INTRODUÇÃO
A morte é um fenômeno universal inerente à condição humana, permeada de simbolismos, significados e valores, variando no decorrer da história e entre as diversas culturas1. Ao fazer uma análise histórica da relação do homem ocidental com a morte, Philippe Ariès2 relatou que, no passado, a morte fazia parte da cena cotidiana da vida, era natural e familiar. Ao longo dos séculos, a intimidade do homem com a morte deu lugar a uma atitude de medo e negação, transformando-a em um tabu social3.
Na cultura ocidental dos dias atuais, a morte saiu das casas, afastou-se do seu ciclo familiar e instalou-se nos hospitais¹. Porém, de forma ambivalente, o ambiente médico nem sempre está preparado para alicerçar tal temática. Prepondera, muitas vezes, a conspiração do silêncio: não se fala em morte, e, quando se deparam com tal situação, os profissionais não estão preparados para o assunto, gerando um certo distanciamento em relação aos pacientes que têm doenças terminais4. O despreparo médico para lidar com o processo de morrer é evidente desde a formação na graduação, visto que a maioria dos cursos de Ciências da Saúde, especialmente o de Medicina, ainda é falha em discutir e ensinar sobre a morte e o morrer5.
O que se percebe é que o ensino médico é muito focado no tratamento curativo, e isso se tornou ainda mais evidente a partir do século XVIII, com o desenvolvimento científico e tecnológico, e com a institucionalização do doente terminal, pois o médico deixou de ser um mero espectador no processo do morrer e passou a ter um papel ativo, visando principalmente à cura3.
Dessa forma, o estudante de Medicina foi estimulado a focar sua atenção nas doenças, dando menos importância aos aspectos humano e psicológico envolvidos no enfrentamento da morte. Pode-se perceber que isso ainda é valorizado no ensino médico. A grade curricular e os fatores envolvidos na aprendizagem e formação do médico são bastante responsáveis por essa maneira de empregar esforço laboral em busca da cura como se fosse a única alternativa possível6.
A terminalidade da vida, o sofrimento, o medo e as ansiedades por ela despertadas são uma realidade constante no cotidiano dos trabalhadores de saúde, o que justifica a necessidade de implementar orientações sobre o tema durante a aprendizagem nas faculdades de Medicina4. As diretrizes nacionais vêm impulsionando mudanças nos currículos médicos, visando à formação reflexiva de um profissional com características humanitárias. Muitas escolas buscam implementar metodologias ativas, baseadas na andragogia, e também inserem em seus currículos o ensino da bioética. Porém, de acordo com um estudo realizado pela Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), tal iniciativa ainda é muito incipiente, visto que no Brasil menos de 5% das faculdades de Medicina apresentam em seus currículos acadêmicos a disciplina de Cuidados Paliativos7.
Com base nessas premissas e com o intuito de subsidiar a institucionalização de estratégias para a melhoria do ensino e da assistência sobre o processo do morrer e da morte, foi proposto o presente estudo. Seus objetivos são descrever os sentimentos dos estudantes de Medicina e dos médicos residentes do Brasil ante o morrer e a morte, e buscar compreender como são as vivências e experiências durante a sua formação na graduação e especialização para o enfrentamento desse processo.
MÉTODOS
Trata-se de revisão sistemática da literatura, conduzida pelas pesquisadoras A. L. C., S. L. O. e S. T. I. M., e a redação do trabalho final foi realizada conforme a recomendação dos Principais Itens para Relatar Revisões Sistemáticas e Metanálises (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses - PRISMA)8. Realizou-se busca on-line no Portal Regional da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) que é um espaço de integração de fontes de informação em saúde que abrange diversas bases de dados, incluindo Literatura Latino-Americana em Ciências da Saúde (Lilacs), Biblioteca Regional de Medicina (Bireme) e Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (Medline). Foram usados os descritores: “estudantes de medicina”, “medical students”, “morte” e “death” com filtro Brasil em país/região de tema. A consulta ao portal foi realizada de agosto a dezembro de 2019.
Os critérios de inclusão foram: 1. artigos que abordavam os sentimentos e/ou a formação dos estudantes de medicina e dos médicos residentes em lidar com o processo de morrer e da morte no decorrer do curso de graduação e residência e/ou a percepção a respeito do tema; 2. estudos em português e inglês. Não se delimitou o ano de publicação. Excluíram-se os artigos que analisavam escolas médicas estrangeiras, estudos de revisão da literatura, relatos de caso e estudos que analisavam estudantes de outras graduações da área da saúde.
O rastreamento dos estudos foi feito de forma independente pelos pesquisadores a partir da avaliação dos títulos e resumos. Em caso de discordância entre os pesquisadores, nessa etapa os estudos eram incluídos. Em seguida, realizou-se a seleção dos estudos a partir da leitura completa dos textos, obedecendo rigorosamente aos critérios de inclusão e exclusão definidos no protocolo de pesquisa. Essa etapa também foi realizada de forma independente. Em caso de discordância, os pesquisadores com o apoio da orientadora arbitravam sobre a seleção do artigo em reunião de consenso.
Os dados foram extraídos de maneira padronizada pelos revisores, que trabalharam novamente de forma independente. Coletaram-se as variáveis relativas às características dos estudos (autor, nome do artigo, local de realização, desenho do estudo, forma de coleta dos dados e tipo de instituição), dados relativos à amostra de cada estudo (número de participantes e período do curso ou especialização), bem como os resultados dos estudos quanto às reações e aos sentimentos diante do morrer e da morte.
RESULTADOS
A seleção dos artigos para a revisão sistemática foi feita de acordo com o fluxograma apresentado na Figura 1. Na busca automática, identificaram-se 372 artigos, dos quais se rastrearam 43 após leitura de títulos e resumos. Depois da leitura integral do texto, incluíram-se 18 artigos.
Os 18 estudos identificados nesta revisão foram publicados entre 1998 e 2019, em sua maioria a partir de 2008. A maioria dos artigos abordou as reações e os sentimentos dos estudantes ou residentes de Medicina perante as situações de morte durante a formação médica. Outros artigos apontaram discussões sobre os aspectos psicossociais relacionados ao processo de morrer e da morte e o papel da educação médica na formação dos alunos para que possam lidar com essas questões.
Para a análise dos resultados, os artigos foram organizados no Quadro 1, de acordo com autor, título, local, tipo de estudo, população estudada e reações e sentimentos mais predominantes perante a morte.
Autor/título | Ano de publicação | Tipo de estudo População estudada | Reações e sentimentos predominantes perante a morte |
---|---|---|---|
Storarri, Castro et al.9 Confidence in palliative care issues by medical students and internal medicine residents (São Paulo) | 2019 | Estudo transversal de cunho descritivo com 336 pessoas, sendo estudantes de Medicina do primeiro ao sexto ano e residentes do primeiro ou segundo ano. | Falta de preparo para dar más notícias a pacientes e suas famílias. |
Marques, Oliveira et al.10 Percepção, atitudes e ensino sobre a morte e terminalidade da vida no curso de Medicina da Universidade Federal do Acre (Acre) | 2019 | Estudo qualitativo e quantitativo com 66 estudantes de Medicina, do oitavo e 11º períodos. | Por um lado, a morte parece provocar angústia e medo, e, por outro, de maneira aparentemente contraditória, o perfil de atitude predominante era caracterizado pela visão da morte como algo natural, a morte como parte da própria vida (aceitação neutra). |
Santos e Pintarelli.11 Educação para o processo do morrer e da morte pelos estudantes de Medicina e médicos residentes (Paraná) | 2019 | Estudo transversal quantitativo e observacional com 898 pessoas, sendo estudantes de Medicina e médicos residentes. | O contato com pacientes em processo de morte gerou efeitos variados, sendo os mais relatados: aumento da sensibilidade, aumento da religiosidade, aumento do gosto pela medicina, tristeza e angústia. |
Meireles, Feitosa et al.12 Percepção da morte para médicos e alunos de medicina (Minas Gerais) | 2019 | Estudo transversal, descritivo e de abordagem quantitativa com 92 pessoas, sendo estudantes de Medicina do segundo, terceiro e quarto períodos, médicos do Sistema Único de Saúde (SUS) e médicos de um hospital particular. | A maioria dos entrevistados sente-se despreparada para enfrentar a esfera familiar da morte dos doentes. |
Pereira, Rangel et al.7 Identificação do nível de conhecimento em cuidados paliativos na formação médica em uma escola de Medicina de Goiás (Goiás) | 2019 | Estudo quanti-qualitativo com 81 estudantes de Medicina do sexto ano. | A maioria não se sente preparada para lidar com a morte. Há dificuldade de lidar com os aspectos gerais da terminalidade, como a própria finitude da vida, aceitação da não cura e falhas na comunicação, especialmente quando envolve más notícias. |
Santos, Lins et al.13 “As intermitências da morte” no ensino da Ética e Bioética (Bahia) | 2018 | Estudo descritivo com análise qualitativa com 47 estudantes de Medicina do primeiro ano. | Angústia, ansiedade, medo, solidão e fracasso. |
Malta, Rodrigues et al.14 Paradigma na formação médica: atitudes e conhecimentos de acadêmicos sobre morte e cuidados paliativos (São Paulo) | 2018 | Estudo de coorte quantitativo com 240 estudantes de Medicina. | Medo de lidar com a morte. |
Correia et al.15 Cuidados paliativos: importância do tema para discentes de graduação em Medicina (Alagoas) | 2018 | Estudo quantitativo, descritivo e transversal com 134 estudantes de Medicina do quinto e sexto anos. | Ansiedade ou desconforto ao pensar na morte de seus pacientes. |
Alves, Alves et al.16 Evaluation of medical interns’ attitudes towards relevant aspects of medical practice (Brasília) | 2017 | Estudo transversal quantitativo com 120 estudantes de Medicina do primeiro ao sexto ano. | O enfrentamento da morte representa um grande desafio para a educação médica. |
Duarte, Almeida et al.4 A morte no cotidiano da graduação: um olhar do aluno de Medicina (São Paulo) | 2015 | Estudo qualitativo com 26 estudantes de Medicina do quarto e sexto anos. | A morte aparece como um tabu, por ser pouco abordada e discutida. Os alunos do quarto ano referem sentimentos e sensações desagradáveis, já os do sexto relatam que as experiências oportunizaram o aprendizado por meio da observação. |
Santos, Menezes et al.17 Conhecimento, envolvimento e sentimentos de concluintes dos cursos de Medicina, Enfermagem e Psicologia sobre ortotanásia (São Paulo) | 2013 | Estudo qualitativo com 22 alunos: seis do curso de Medicina, dez de Enfermagem e seis de Psicologia. | Dificuldades com a experiência. |
Andrade, Deus et al.18 Avaliação do desenvolvimento de atitudes humanísticas na graduação médica (Brasília) | 2011 | Estudo transversal, qualitativo-quantitativo com 120 estudantes de Medicina do primeiro ao sexto ano. | Despreparo para confortar e transmitir as más notícias às famílias. |
Azeredo, Rocha et al.19 O enfrentamento da morte e do morrer na formação de acadêmicos de Medicina (Rio Grande do Sul) | 2011 | Estudo qualitativo com cinco estudantes de Medicina do internato. | Sensação de frustração e um sentimento de incapacidade, pois existe um despreparo, para lidar “dignamente” com a morte. |
Silva e Ayres.5 O encontro com a morte: à procura do mestre Quíron na formação médica (Rio Grande do Norte) | 2010 | Estudo qualitativo com 19 pessoas, sendo estudantes de Medicina do primeiro ao sexto ano e residentes do primeiro e segundo anos. | Tema evitado, pouco abordado e presenciado de forma acidental. |
Mascia et al.20 Atitudes frente a aspectos relevantes da prática médica: estudo transversal randomizado com alunos de segundo e sexto anos (São Paulo) | 2009 | Estudo transversal randomizado com abordagem quali-quantitatiiva com 82 estudantes de Medicina do segundo e sexto anos. | Pouco contato com a morte de pacientes durante o curso. Alunos do sexto ano referiram aprendizado e aceitação da morte, enquanto alunos do segundo ano ressaltaram: “culpa”, “raiva”, “sentimento ruim”. |
Marta, Marta et al.21 O estudante de Medicina e o médico recém-formado frente à morte e ao morrer (São Paulo) | 2009 | Estudo transversal de cunho descritivo com 220 pessoas, sendo estudantes de Medicina do terceiro ano e médicos residentes. | A maioria dos estudantes contraria a aceitação da morte como um continuum da vida, porém a maioria dos residentes afirma aceitação da morte como um processo natural e como o fim de um ciclo. |
Sadala e Silva.22 Cuidar de pacientes em fase terminal: a experiência de alunos de Medicina (São Paulo) | 2008 | Estudo qualitativo com 24 estudantes de Medicina do quinto e sextos anos. | A morte é um processo natural para alguns; para outros, um processo de sofrimento. |
Vianna e Piccelli.23 O estudante, o médico e o professor de Medicina perante a morte e o paciente terminal (Brasília) | 1998 | Inquérito com 326 pessoas, sendo estudantes de Medicina, médicos residentes e professores de Medicina. | Sensação de repulsa e desespero, porém interesse no assunto. |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Os estados brasileiros que contribuíram com estudos foram: São Paulo (n = 7), Brasília (n = 3), Bahia (n = 1), Minas Gerais (n = 1), Rio Grande do Sul (n = 1), Rio Grande do Norte (n = 1), Acre (n = 1), Alagoas (n = 1), Paraná (n = 1) e Goiás (n = 1), conforme demonstrado na Tabela 1. Dos 18 artigos selecionados, cinco (27,7%) foram estudos qualitativos; dois (11,1%), quantitativos e qualitativos; dois (11,1%), quantitativos; oito (44,4%), transversais; e um (5,5%), estudo de coorte. A maior parte dos estudos utilizou questionários para avaliar os sentimentos e as reações da população estudada diante da morte (n = 11). Seis artigos utilizaram entrevistas para a coleta de informações, e um artigo adotou a avaliação curricular do componente Ética e Bioética da instituição para coletar as informações.
Variáveis | n | % |
---|---|---|
Estados | ||
São Paulo | 7 | 38,89 |
Brasília | 3 | 16,67 |
Bahia | 1 | 5,56 |
Minas Gerais | 1 | 5,56 |
Rio Grande do Sul | 1 | 5,56 |
Rio Grande do Norte | 1 | 5,56 |
Acre | 1 | 5,56 |
Alagoas | 1 | 5,56 |
Paraná | 1 | 5,56 |
Goiás | 1 | 5,56 |
Tipo de estudo | ||
Qualitativos | 8 | 44,44 |
Quali-quantitativos | 4 | 22,22 |
Quantitativo | 6 | 33,33 |
Usou questionário para avaliar sentimentos | ||
Sim | 11 | 61,11 |
Não | 7 | 38,89 |
Gestão da universidade | ||
Pública | 9 | 50,00 |
Privada | 3 | 16,67 |
Sem informação | 6 | 33,33 |
Total | 18 | 100,00 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Com relação às instituições de ensino que participaram dos estudos, a maior parte corresponde a universidades públicas (n = 9), três estudos foram feitos em instituições privadas e seis não informaram tal dado.
Quanto à população estudada, somam-se 1.828 estudantes dos 18 artigos, sendo 1.507 alunos realizando a graduação em Medicina e 321 médicos residentes, recém-formados. Dos estudos avaliados, 249 alunos haviam sido preparados para lidar com a morte por meio de disciplinas presentes em suas grades curriculares.
Quanto à análise dos artigos em relação aos sentimentos dos estudantes, a maioria dos alunos, tanto os do segundo como os do sexto ano, quando questionados sobre seus sentimentos perante situações de morte, referiu experiências associadas com a morte de algum parente ou pessoa próxima, mas poucos alunos mencionaram experiências relacionadas com a morte de pacientes durante o curso de graduação. Os alunos do sexto ano falaram sobre aprendizado e aceitação da morte, enquanto os alunos do segundo ano ressaltaram o lado negativo da experiência, utilizando palavras como: “culpa”, “raiva”, “sentimento ruim”20. Silva e Ayres5 identificam que a experiência com o processo de morte e morrer ocorre mais ao final da graduação com a maioria dos estudantes.
Quanto à habilidade para lidar com a morte, Vianna e Piccelli23 constataram que a dificuldade ante as situações de morte entre os residentes é menor se comparada aos estudantes, principalmente os da fase pré-clínica do curso de Medicina, sugerindo que as experiências clínicas durante a residência contribuíram para que eles aprendessem a lidar melhor com a morte. Porém, ao mesmo tempo, a maioria dos residentes e dos professores do estudo relatou muita dificuldade para tratar do tema e até mesmo tentava evitá-lo.
Silva e Ayres5 e Vianna e Piccelli23 identificam em seus estudos que as experiências de ensino-aprendizagem são bastante escassas durante a graduação, sendo o tema pouco abordado e com frequência evitado. Esse fato foi reforçado na pesquisa de Azeredo, Rocha et al.19, que constataram que, ainda hoje, os alunos são estimulados a ver o paciente de forma mais objetiva e impessoal, negligenciando fatos triviais que ocorrem durante a prática médica, como a dor e o sofrimento. Os estudantes sentem-se pouco encorajados a desenvolver habilidades para lidar com a morte, e, na maior parte dos cursos, esse tema é negligenciado como competência na formação médica.
Apenas um estudo trouxe informações de acadêmicos que se sentiam mais preparados para lidar com a morte por terem recebido alguma preparação durante o curso. A instituição onde foi feita a pesquisa possuía um Programa Educacional de Habilidades e Atitudes Profissionais voltado ao treinamento do estudante em semiologia e comunicação médica, numa visão biopsicossocial, desenvolvido nos primeiros períodos do curso. Embora houvesse grande negatividade e insegurança para confortar e transmitir as más notícias, a maioria se sentia preparada para comunicar a morte em um serviço de urgência18.
Sobre a institucionalização da formação para lidar com a morte, dos 18 artigos selecionados, um menciona essa preparação curricular no ambiente pesquisado, um trabalho não especifica tal informação, cinco informam que, entre a população estudada, uma parte obteve preparação acadêmica e outra não (sendo comum a maior parte da amostra sem preparação), porém a maioria dos estudos (n = 11) aponta a deficiência de formação teórico-prática relacionada à morte.
De acordo com Duarte, Almeida et al.4, faltam experiências voltadas para o ensino de habilidades comunicacionais e competências na esfera da sensibilidade humana, e tais saberes também são necessários para a formação do médico, contribuindo para seu próprio bem-estar e para o sistema de saúde de modo geral.
No estudo de Pereira, Rangel et al.7, a maioria dos entrevistados relatou ter sentido falta de mais contato com a disciplina Cuidados Paliativos e com a sua vivência na prática médica diante de pacientes que necessitam dessa técnica para ter uma melhora da qualidade de vida.
Em um estudo com médicos e alunos de Medicina sobre a percepção da morte, a maior parte dos médicos se sente preparada para lidar com a morte por conta dos anos de experiência profissional, o que não ocorre com a maioria dos discentes pesquisados. Porém, ambos os grupos enfatizam a necessidade da implantação de disciplina de Tanatologia no currículo ao longo do curso de Medicina12.
O estudo de Santos e Pintarelli11 realizado com estudantes de Medicina e médicos residentes também apresenta concordância com os outros estudos, apontando que 58,9% dos estudantes de Medicina e 48,9% dos médicos residentes negaram ter recebido preparação sobre o morrer e a morte durante a formação médica.
Já os alunos de Medicina participantes do estudo de Azeredo, Rocha et al.19 afirmam que há a necessidade de incluir o ensino sobre a morte de pacientes nas práticas de estágios, não só de forma teórica.
DISCUSSÃO
Até meados do século XX, o homem vivenciava a morte no cenário domiciliar. Estavam com ele a família e os amigos. Seus desejos e suas vontades eram respeitados, pois lhe era permitido expressá-los. Era raro o doente ser encaminhado ao hospital para morrer2. Com a aceleração do processo de interdição da morte, ela saiu das casas e instalou-se nos hospitais. Com isso, os profissionais de saúde começaram a conviver com a terminalidade da vida de uma forma constante, e nem sempre estavam preparados para lidar com tal temática, visto que a morte é considerada um tabu social e, portanto, é pouco discutida2. Aparentemente, a conspiração do silêncio começou a ser questionada recentemente, visto que a maior parte dos estudos encontrados foi publicada nos últimos anos, com representatividade de todos os estados brasileiros.
Quando se analisam os sentimentos dos estudantes de Medicina em relação à morte, pode-se perceber que a terminalidade da vida remete a sentimentos e sensações de fundo predominantemente negativo, com significado principal de fracasso, impotência e imperícia. Os alunos também revelam sentimentos de medo e angústia perante as experiências com a morte4. Isso mostra que a morte continua sendo um tabu dentro das escolas de Medicina e que, muitas vezes, não há um ensino diferenciado para os alunos, restando-lhes apenas suas vivências e observações pessoais, como crenças, valores e experiências que o indivíduo adquiriu durante a vida.
Segundo os alunos, os profissionais de saúde parecem evitar o confronto com a morte, a qual é historicamente negada na sociedade ocidental24. Dessa forma, os profissionais de saúde parecem favorecer a conspiração do silêncio. Embora o ambiente hospitalar seja o palco principal em que os profissionais convivem diariamente com a terminalidade da vida, pouco ou quase nunca se fala sobre a morte ou sobre as situações que remetem a ela.
De acordo com os estudos, os profissionais de saúde têm dificuldade de lidar com a morte porque o ensino da Medicina, na sociedade contemporânea ocidental, é pautado quase exclusivamente no modelo técnico-científico de valorização absoluta da cura, no qual o cuidado médico, a medicina à beira do leito, o toque, a escuta e o olhar comprometido com o paciente são deslocados para um patamar secundário. Nesse contexto, a morte, parte integral do ciclo da vida, passa a ser considerada evento indesejável, prorrogável e que se pretende expulsar do cotidiano25. O foco é sempre nos órgãos e sistemas acometidos pelas doenças e tende-se a perder progressivamente a visão sobre o todo, sobre o organismo vivo e inter-relacionado que alberga o órgão doente. Dessa forma, valorizam-se apenas o diagnóstico e a cura da doença, colocando em segundo plano o cuidado com o ser humano que adoeceu26.
Uma diferença observada refere-se ao fato de que, apesar de os alunos, tanto dos primeiros ou últimos anos, reportarem sentimentos negativos em relação à morte, estes são amenizados no decorrer do curso, já que os alunos de períodos mais avançados vivenciam com mais frequência contextos de terminalidade4.
De forma contraditória, a maioria dos médicos, sejam eles com diferentes especializações e/ou com alta qualificação profissional, continua tendo dificuldades para lidar com a morte, relatando sentimentos de incômodo e angústia1. O que se percebe é que a maioria deles lida com a morte no cotidiano da profissão e com o passar do tempo, por meio de muito sofrimento, vai adquirindo maturidade profissional e emocional. Porém, mesmo após anos de experiência, ainda há relativa apreensão e sentimento de impotência quando vivenciam a perda de pacientes1.
Com isso, pode-se deduzir que os alunos de períodos avançados possuem um ilusório sentimento de maior preparo para lidar com a terminalidade da vida após poucas vivências e observações4. Porém, percebe-se que o médico recém-formado ou mesmo aqueles que possuem anos de profissão, quando confrontados com um cenário de morte inevitável, travam uma luta solitária, o que indica claros custos emocionais exigidos no exercício da clínica27.
A vulnerabilidade emocional pode prejudicar a vida pessoal e profissional do médico. Essa situação pode levar a uma sobrecarga, denominada síndrome de burnout, uma das consequências mais marcantes do estresse profissional, que se caracteriza por exaustão emocional e física, despersonalização e diminuição da capacidade de realização pessoal. Refere-se a um tipo de tensão emocional crônica de pessoas que cuidam de maneira muito intensa de outros indivíduos. Além disso, há uma elevada taxa de dependência química, depressão e suicídio entre os médicos21.
A falta de preparo médico pode influenciar negativamente também o cuidado com o paciente, visto que o médico, para defender-se dos seus temores relacionados à morte, muitas vezes se isola e se fragmenta. Há ruptura na comunicação entre médico e paciente verificada pela atitude de não falar da doença e da morte. Consequentemente isso gera um maior distanciamento médico-paciente e uma pior relação em um momento tão delicado21),(23.
Há um consenso na literatura, percebido em todos artigos utilizados para a preparação deste trabalho, de que a maioria dos jovens médicos e dos estudantes de Medicina tem pouco ou nenhum apoio pedagógico durante a graduação. Dos 1.828 alunos analisados, apenas 249 receberam preparo para lidar com a morte por meio de disciplinas presente em suas grades curriculares, correspondendo apenas a 13% de todos os estudantes. Em Minas Gerais, apenas duas instituições oferecem, em caráter curricular, o estudo de Tanatologia e Cuidados Paliativos26. Logo, os estudos apontam para a necessidade de introduzir conteúdos que visem desenvolver competências interpessoais, capacidade de reflexão sobre questões de ética e deontologia médica, envolvendo a terminalidade da vida.
A maioria dos artigos relata a necessidade de um curso teórico que aborde a temática, para que o estudante seja inserido em diversas situações de conflito do binômio “vida e morte”, fazendo com que ele desenvolva suas ferramentas cognitivas e afetivas, para que, ao se deparar com a situação real, não tenha um impacto que o faça sofrer de maneira disfuncional. Em estágios acadêmicos mais avançados, o ideal seria que o aluno tivesse maior contato pessoal e profissional com os pacientes terminais, sempre monitorados por cuidadores mais experientes que possam transmitir segurança em suas atitudes14. Os alunos precisam de exemplos que os inspirem a lidar com esses pacientes, e cabe aos professores e preceptores agir para detectar os sentimentos e as dificuldades que os discentes enfrentam, além de compartilhar suas próprias experiências como estratégia de orientação19.
É necessário criar um cenário de discussões sobre morrer e morte de forma longitudinal ao longo do curso de Medicina, com uma visão mais humanística e holística do ser humano, desmistificando a ideia do médico que apenas trata e cura em favor do médico que se importa, independentemente de sua especialidade e do prognóstico do paciente10),(28.
Se bem utilizadas, as experiências acadêmicas com pacientes em fim de vida podem ser valiosas oportunidades de ensino e aprendizado. Lições como bons princípios na relação médico-paciente, discussões sobre questões bioéticas, estratégias para lidar com a morte, noções de autocuidado e profissionalismo, trabalho em equipe e autocrítica podem ser estimuladas desde o início da graduação até o final da carreira médica10.
CONCLUSÕES
Estudantes de Medicina e médicos residentes apresentam desconforto em lidar com os processos de morte e do morrer, e citam sentimentos predominantes de angústia, incômodo e despreparo. O tema ainda é pouco trabalhado de maneira formal nos cursos médicos e de residência, e os alunos vão aprendendo a lidar com situações de sofrimento e com a finalidade da vida na prática, durante os atendimentos. Portanto, os estudantes de Medicina e médicos residentes do Brasil apontam a necessidade de incluir disciplinas teórico-práticas de Tanatologia e Cuidados Paliativos no currículo das escolas médicas para modificar esse cenário de despreparo.