INTRODUÇÃO
Em dezembro de 2019, um novo coronavírus, denominado síndrome respiratória aguda grave do coronavírus 2 (severe acute respiratory syndrome cronoravirus 2 - Sars-CoV-2), foi identificado na cidade de Wuhan, na China, e espalhou-se rapidamente pelos demais países do mundo. Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou pandemia da coronavirus disease 2019 (Covid-19), caracterizando-a como doença de elevada gravidade clínica e de alta letalidade, cuja prevenção envolve distanciamento, isolamento social e interrupção de atividades coletivas1. Assim, foi decretado o fechamento de diversos setores da sociedade na maioria dos países do mundo, o qual incluiu as faculdades de Medicina e ocasionou graves problemas na educação médica2.
As conferências mundiais de Edimburgo, da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem), da Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico (Cinaem) e da Rede Unida definem educação médica como o exercício de práticas de ensino para a formação de profissionais éticos, humanistas, críticos e reflexivos3. Essa graduação busca o desenvolvimento de competências para o exercício da medicina nos diferentes níveis de atenção, em ações de promoção de saúde, prevenção de doenças e agravos, tratamento, cura e reabilitação, nos âmbitos individual e coletivo. Trata-se de uma responsabilidade social e de um compromisso com a cidadania e a dignidade humana4. Para o alcance desse conjunto de habilidades e competências, os métodos pedagógicos utilizados historicamente na educação médica são baseados em relações interpessoais, as quais foram afetadas pela interrupção do processo de ensino-aprendizagem presencial causada pela pandemia da Covid-19.
Embora tenha havido aumento na produção acadêmica com o advento da pandemia, a educação médica carece de evidências científicas que subsidiem práticas pedagógicas efetivas e adaptadas ao contexto atual5. Diante disso, até o momento, muitas faculdades no Brasil não retomaram as atividades de ensino e outras não definiram as melhores estratégias acadêmicas, o que demonstra que os desafios são complexos e exigem a produção de subsídios que contribuam para a manutenção da formação médica, minimizando os prejuízos causados pela pandemia. A realização de investigações críticas acerca dessa temática pode contribuir para a busca de novas formas de ensino, já que as práticas pedagógicas historicamente utilizadas pelas escolas médicas estão impossibilitadas pela pandemia.
Assim, este estudo teve como objetivo identificar as estratégias pedagógicas para a educação médica implementadas durante a pandemia da Covid-19 em diferentes países do mundo.
METODOLOGIA
Realizou-se uma revisão da literatura acadêmica indexada em bases de dados internacionais, de acordo com a metodologia scoping review6 (revisão de escopo). A técnica tem a finalidade de mapear, sintetizar e disseminar, por meio de método rigoroso e transparente, o estado da arte em uma área temática, de modo a fornecer uma visão descritiva dos estudos revisados6. Neste estudo, a revisão de escopo foi realizada a partir da seguinte questão de pesquisa:
Quais estratégias pedagógicas foram implementadas na educação médica durante a pandemia da Covid-19?
As estratégias pedagógicas foram compreendidas como os procedimentos planejados e implementados por educadores com a finalidade de atingir os objetivos de ensino. Elas envolvem métodos, técnicas e práticas explorados como meios para acessar, produzir e expressar o conhecimento7.
O estudo teve por base as orientações recomendadas pelo Instituto Joanna Briggs e o arcabouço metodológico específico8. A revisão foi desenvolvida a partir das seguintes etapas: 1. elaboração da questão de pesquisa e definição dos descritores de busca (http://decs.bvs.br/); 2. pesquisa da literatura em bases de dados internacionais; 3. leitura dos títulos e resumos dos artigos para seleção de acordo com critérios de inclusão e exclusão; 4. leitura na íntegra dos estudos selecionados e mapeamento dos dados; 5. sumarização e análise crítica dos resultados; e 6. apresentação dos principais resultados.
O levantamento dos dados bibliográficos foi realizado no dia 2 de junho de 2020 (seis meses após a descoberta da Sars-Cov-2 e três meses depois de declarada a pandemia) por três pesquisadores previamente treinados. Coletaram-se as informações em seis bases de dados - PubMed, Lilacs, SciELO, Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), Web of Science e Scopus - e utilizou-se a chave de busca: “Education, Medical” AND “Pandemics” OR “Coronavirus Infections”. Consideraram-se apenas artigos publicados no ano de 2020.
Para a seleção dos estudos, utilizaram-se os seguintes critérios de inclusão: 1. artigos envolvendo educação médica no cenário de pandemia da Covid-19; 2. com abordagem de novas estratégias pedagógicas durante o isolamento social; e 3. com foco na formação em nível de graduação. Excluíram-se capítulos de livros, artigos sobre residência médica ou pós-graduação e/ou que não abordavam estratégias pedagógicas.
Encontraram-se 1.350 artigos, dos quais 153 atenderam aos primeiros critérios de inclusão e foram inseridos em uma planilha no software Excel, categorizados de acordo com “título, autores, periódico, área temática, tipo de estudo, população/amostra, país, idioma e resultados”. Excluíram-se 48 duplicados, e, com base nos 105 restantes, realizou-se uma nova seleção, em que se priorizaram pesquisas empíricas e relatos de experiência sobre o ensino de graduação em Medicina. Por fim, analisaram-se 27 trabalhos que atenderam aos critérios e que estavam de acordo com a questão de pesquisa.
Os artigos encontrados foram analisados conjuntamente pelos investigadores, que revisaram os critérios de forma pareada. Realizou-se síntese analítica e crítica dos resultados encontrados sobre as novas metodologias pedagógicas na área da educação médica.
As etapas da busca e análise dos artigos, subdivididas em identificação, triagem, elegibilidade e inclusão, estão descritas na Figura 1.
RESULTADOS
Neste estudo, todos os artigos analisados foram publicados no idioma inglês e em periódicos da área médica. A maioria dos estudos é originária dos Estados Unidos (33,3%), da Índia (18,5%), do Canadá (11,1%) e de Singapura (11,1%). Não foram encontradas investigações oriundas de países de baixa renda, na América do Sul e no continente africano.
O Quadro 1 apresenta a síntese dos artigos selecionados. Entre os delineamentos metodológicos utilizados nas investigações analisadas, destacam-se relato de experiência (33,3%)5),(9)-(16, reflexão/comentário (29,6%)17)-(24 e revisão de literatura (18,5%)2),(25)-(29. Apenas quatro investigações caracterizam-se como pesquisas empíricas30)-(33.
AutoresRef. | Local | Tipo de estudo | Público-alvo | Estratégias pedagógicas |
Klasen et al.9 | Suíça, Áustria e Canadá | Relato de experiência | Estudantes e professores | Inserção dos estudantes no trabalho clínico, com equilíbrio entre a importância do contato direto com o paciente e o risco de exposição ao vírus. Utilizaram-se a supervisão, o feedback e a avaliação. |
Sahu25 | Trinidad e Tobago | Revisão de literatura | Estudantes | Adoção da tecnologia e avaliação das experiências dos alunos. Serviços de aconselhamento devem estar disponíveis para apoiar a saúde mental e o bem-estar dos alunos. Devem garantir alimentação e acomodação para estudantes estrangeiros. |
Ashokka26 | Malásia/ Singapura | Revisão de literatura | Estudantes | Modos remotos de educação médica, manutenção da integridade das avaliações formativas e somativas e desenvolvimento de planos para a manutenção de atividades essenciais. |
Akers, Blough et al.27 | Estados Unidos | Revisão de literatura | Estudantes | As rotações clínicas foram suspensas e as aulas transferidas para plataforma virtual. A situação atual exige adaptabilidade. |
Arandjelovicet al.2 | Austrália | Revisão de literatura | Estudantes | Ensino e telessaúde baseados na internet. Pode haver necessidade de os estudantes contribuírem voluntariamente para a resposta da Covid-19. Adaptação do currículo para incluir gerenciamento de pandemia. |
Zayapragassarazan17 | Índia | Reflexão | Estudantes | A tecnologia usada como ferramenta eficaz. Atividades ativas de ensino-aprendizagem promoverão bons hábitos de estudo. Esse tipo de ensino requer envolvimento do corpo docente, plataformas digitais apropriadas e planejamento de atividades educacionais. |
Lall e Singh31 | Índia | Observacional descritivo | Estudantes | Ensino por plataformas remotas. A maioria dos estudantes é favorável, mas sente necessidade de vínculo com atividades extracurriculares. |
Moszkowicz, Duboc et al.10 | França | Relato de experiência | Estudantes | Videoconferência de ensino pelo Google Hangouts. Pode ser aplicado a lições clínicas e de anatomia. Métodos de aprendizagem e ferramentas educacionais modernas como resposta à falta de comparecimento às palestras. |
Schneider e Council18 | Estados Unidos | Comunicação | Estudantes de dermatologia | A educação a distância (EaD) ou on-line se tornou a norma, e várias sociedades acadêmicas combinaram recursos para garantir que a educação médica ocorra durante esse período. |
Pather et al.30 | Austrália / Nova Zelândia | Qualitativo | Estudantes de anatomia | Os educadores de anatomia foram mobilizados para ajustar suas abordagens de ensino. As principais oportunidades incluem: possibilitar ensino síncrono, expandir as ofertas para o espaço de aprendizado remoto e adotar novas pedagogias. |
Tretter et al.28 | Estados Unidos, Canadá, Lituênia, Holanda, Irlanda, Índia, Reino Unido e Suécia | Revisão de literatura | Estudantes | A Heart University pretende ser o recurso on-line para estudar doenças cardíacas em pediatria. É uma biblioteca de acesso aberto organizada e com material pedagógico. |
Cleland, Tan et al.19 | Singapura | Reflexão | Estudantes | Mudança para aprendizagem on-line. Reduziram-se os tamanhos das turmas e executam-se aulas repetidamente. Introduziram-se simulações inovadoras para preparar os alunos do último ano. |
Mukhopadhyay et al.29 | Estados Unidos | Guia | Estudantes de patologia | Utilizaram-se plataformas de videoconferência, sites de patologia, recursos educacionais on-line gratuitos, incluindo mídias sociais e coleções de imagens para as patologias anatômica e clínica. |
Sahi, Mishra et al.20 | Índia | Reflexão | Estudantes | A continuidade da educação médica é imperativa. As inovações pedagógicas envolvem ensino baseado em tecnologia e simulação (palestras on-line, vinhetas em vídeo, simuladores virtuais, webcasting, salas de bate-papo on-ine). Os educadores médicos devem desenvolver e avaliar a sustentabilidade e aplicação dessas inovações em ambientes clínicos. |
Singh, Srivastav et al.11 | Índia | Relato de experiência | Estudantes | Foi implementada uma nova plataforma de sala de aula on-line. O programa atraiu feedback dos alunos. Pode servir de modelo para ensino e treinamento. |
Tokuç e Varol12 | Turquia | Editorial/ relato de experiência | Estudantes | Todas as faculdades médicas fizeram transição das lições teóricas para on-line. Práticas clínicas e exames foram adiados, e preparou-se um novo calendário acadêmico. As faculdades exigiram infraestrutura tecnológica e equipe técnica de assistência médica. |
Regier, Smith et al.21 | Estados Unidos | Reflexão | Estudantes de genética | A comunidade genética está preparada para preencher a lacuna educacional com a criação de atendimento de telemedicina e módulos de aprendizado on-line. |
Menon, Klein et al.22 | Estados Unidos | Reflexão | Estudantes | A retirada dos estudantes do atendimento direto ao paciente contribuirá para reduzir as transmissões e o desperdício de equipamentos de proteção individual. |
Rasmussen, Sperling et al.13 | Dinamarca | Correspondência / relato de experiência | Estudantes | Mudança para plataforma digital. Empregar estudantes do último ano como residentes temporários e iniciar cursos em terapia ventilatória. |
Gaber, Shehata et al.14 | Egito | Relato de Experiência | Estudantes | Aulas na plataforma Zoom, dividindo os alunos em equipes. Reuniões com o líder de cada equipe que criou um grupo do WhatsApp para facilitar a comunicação. O material de leitura foi previamente disponibilizado e os alunos se uniram ao tutor para feedback. |
Liang, Ooi et al.23 | Singapura | Reflexão | Estudantes | Tecnologia, videoconferência e plataformas on-line são usadas para ministrar palestras ou tutoriais por meio de dispositivos portáteis e laptops. Teleconferência pode ser usada para demonstrar procedimentos médicos e técnicas cirúrgicas. |
Stokes15 | Estados Unidos | Editorial / relato de experiência | Estudantes | Realização de atividades não clínicas em ambientes on-line sem experiências clínicas precoces. Para estudantes em treinamento clínico, as implicações são menos claras. |
Longhurst et al.32 | Irlanda / Reino Unido | Quantitativo / transversal | Estudantes | Anatomia enfrenta desafios com a EaD especialmente pela falta de exposição cadavérica. Os acadêmicos mencionaram que o tempo pode restringir a qualidade e eficácia dos recursos de EaD. |
Naik, Finkelstein et al.33 | Estados Unidos | Experimental | Estudantes | Desenvolveu-se um modelo de telessimulação híbrida para ensinar estratégias de gerenciamento de ventilador. Os alunos foram prestadores de cuidados a pacientes não pertencentes à unidade de terapia intensiva (UTI), com experiência limitada para o gerenciamento de ventiladores. O uso de tutorial em vídeo e telessimulação interativa foi bem-sucedida. |
Calhoun et al.5 | Estados Unidos | Relato de experiência | Estudantes | Foi criada uma secretaria virtual inovadora. Realizou-se esforço para incluir os locais de rotação nas decisões críticas que impactarão tanto os estudantes de Medicina quanto os professores. |
Liu et al.16 | China | Relato de experiência | Estudantes | Criou-se um sistema de pesquisa para apoiar a formação de talentos inovadores em saúde pública de alto nível. Formulação de programa de treinamento de “integração médica e preventiva”. |
Hall et al.24 | Canadá | Reflexão | Professores | Adaptação dos programas de ensino para maximizar o aprendizado. Com um foco contínuo no bem-estar dos alunos/professores, os educadores médicos terão que otimizar as experiências de treinamento existentes, adaptar aquelas que não são mais viáveis, empregar novas tecnologias e ser flexíveis na avaliação de competências. |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Dentre os artigos, 81,5% destinam-se a estudantes de Medicina2),(5),(10)-(17),(19),(20),(22),(23),(25)-(28),(31)-(33 e 14,8% são voltados para áreas específicas do curso, como disciplinas de patologia29, genética21, anatomia30 e dermatologia18. Apenas 7,4% têm como alvo a prática docente9),(24 (Quadro 1).
Todos os estudos analisados descrevem o ensino remoto como a única estratégia pedagógica viável para a educação médica durante a pandemia da Covid-19, com a utilização de plataformas digitais de educação a distância (EaD) por meio da internet e da tecnologia. Palestras on-line, teleconferências, vinhetas em vídeo, mídias sociais, simuladores virtuais, webcasting, biblioteca virtual e salas de bate-papo on-line foram utilizados como recursos para a efetivação dessa modalidade de ensino10),(14),(20),(23),(28),(29 (Quadro 1).
Com relação à prática docente, a literatura identificou a necessidade de envolvimento dos professores com o processo pedagógico, o planejamento das atividades e a identificação das plataformas digitais mais apropriadas17),(25. A redução do quantitativo de estudantes por turma e a repetição das aulas também foram experienciadas19. Ademais, os estudos observam que é fundamental a realização de supervisão, feedback e avaliação dos estudantes, além da adaptação e flexibilização dos modelos educacionais9),(14),(17),(26. A alteração no calendário acadêmico, em função da pandemia, também foi citada12, além da criação de serviços de saúde mental, aconselhamento e provisão de alimentação e estadia para estudantes estrangeiros25 (Quadro 1).
Não houve consenso sobre a inserção dos estudantes nas atividades práticas de estágios curriculares e internatos médicos. Parte dos estudos defende a inclusão nos espaços hospitalares como forma de contribuir para a superação da crise sanitária imposta pela pandemia13),(33, e outros evidenciam o risco de exposição dos estudantes à infecção e a otimização dos equipamentos de proteção individuais22),(27. Além disso, estudos observam a existência da EaD mesmo antes da pandemia e vinculação com a prática da telemedicina2),(21. Por fim, identificou-se também a necessidade de os currículos de Medicina incluírem disciplinas de gerenciamento de pandemia com foco na saúde pública16 (Quadro 1).
DISCUSSÃO
A análise crítica dos 27 estudos encontrados na literatura científica acerca das estratégias implementadas na educação médica durante a pandemia da Covid-19 evidencia mudanças radicais no que tange aos aspectos pedagógicos, didáticos e avaliativos no ensino médico. Além do mais, os artigos evidenciam um determinado consenso acerca dos rumos da educação médica, embora haja ausência de evidências sólidas que subsidiem efetivamente essas práticas.
As estratégias pedagógicas relatadas são baseadas no ensino remoto, na tecnologia e na EaD. Além disso, fundamentam-se na reformulação das estratégias e práticas pedagógicas tradicionais e no desenvolvimento de novas habilidades de ensino, adaptando-se às tecnologias da informação e comunicação.
A continuidade da educação médica curricular durante a crise ocasionada pela pandemia pode ser justificada pela necessidade de formação de novos profissionais, principalmente pelo fato de os médicos vivenciarem aumento da jornada de trabalho e de sofrimento emocional34. Porém, embora a tecnologia seja um recurso pedagógico necessário durante a pandemia, a maioria dos estudos não sinaliza as fragilidades, limitando-se a defendê-la de forma acrítica e sem o aprofundamento teórico necessário para a garantia das melhores práticas na educação médica. Ademais, apesar de os estudos identificarem a pandemia como causadora das mudanças pedagógicas, sabe-se que a Covid-19 apenas acelerou a inserção da tecnologia no ensino médico, pois práticas e plataformas virtuais já haviam sido experienciadas como metodologias alternativas e complementares nos ambientes educacionais, em muitas escolas médicas35),(36),(37.
Apesar da inevitabilidade de novas pedagogias na educação médica, a rapidez com que as adaptações estão sendo feitas podem gerar lacunas intelectuais na formação desses estudantes, pois, para o exercício efetivo dessas novas estratégias, exige-se tempo, especialmente no que tange à formação sobre elas e ao domínio e à implementação das plataformas digitais. Esses processos são essenciais para garantir o uso qualificado de tais instrumentos de ensino, uma vez que os “usuários” devem se familiarizar e se envolver com esse tipo de aprendizagem on-line38.
O acesso aos recursos necessários para o ensino remoto é outra problemática que não foi relatada nos estudos revisados. A falta de infraestrutura e de tecnologia adequada pode se constituir em barreiras na educação médica, especialmente em países de baixa e média rendas39. Muitos desses locais carecem de tecnologia básica, como acesso intermitente à internet. Assim, visto que a maioria dos países vivencia desigualdades sociais importantes, predefinir que todos tenham dispositivos e acesso à internet pode potencializar a seletividade e desigualdade no ensino38.
Além dessa fragilidade, ressalta-se como a interação e as relações interpessoais entre estudantes e professores, impedidas pelo distanciamento social durante a pandemia, produzem efeitos importantes para a formação médica, possibilitando o intercâmbio de ideias, conhecimentos e saberes como método de aprendizagem. A falta desse contato produz fragilidades na formação, uma vez que os profissionais de saúde cuidam de pessoas vulnerabilizadas e, dessa forma, devem adquirir habilidades da área das humanidades médicas, as quais ficam limitadas pela tecnologia40.
A concentração de artigos em países de alta renda, publicados apenas em língua inglesa e em periódicos da área médica, reflete o esvaziamento científico na produção de evidências que considerem os contextos dos países de média e baixa rendas, além da falta de intersecção com outras áreas, como a educação. Isso contribui para que as dificuldades sejam potencializadas durante a pandemia em alguns países, pois a complexidade existente no campo da educação médica exige pesquisas e comunicação científicas em tempo oportuno para a implementação de ações efetivas.
Do mesmo modo, a publicização de saberes acerca de estratégias pedagógicas na educação médica até o momento corrobora a noção de que, ao longo da modernidade, a produção do conhecimento científico foi configurada por um determinado modelo epistemológico, centrado em países ricos, como se o mundo fosse monocultural, que descontextualiza o conhecimento e impede a emergência de outras formas de saber. Assim, inferiorizam-se as formas de conhecimento locais, desperdiçando-se, em nome dos desígnios do colonialismo, a riqueza de perspectivas presentes na diversidade cultural e nas multifacetadas visões de mundo41.
Com isso, é necessário que a educação médica, em decorrência da pandemia da Covid-19, se reinvente a partir da diversidade do mundo, do pluralismo epistemológico, reconhecendo as múltiplas visões e contribuindo para a ampliação de experiências e práticas sociais, educacionais e políticas. Dessa forma, é inquestionável a importância da intervenção tecnológica e científica dos países do norte, desde que esse monopólio da ciência não oculte outras formas de conhecimento e modos de intervenção para os quais a ciência moderna pouco contribui41.
Os estudos analisados não promovem crítica teórica e reflexiva acerca das fragilidades do ensino remoto, limitando-se a defendê-lo como única estratégia viável. Além do mais, não abordam a educação médica como direito e não incluem as perspectivas de populações específicas, como imigrantes, indígenas, pobres e os que não têm acesso à tecnologia necessária. A adoção de metodologias remotas de ensino, nesse sentido, pode acentuar ainda mais as disparidades sociais à medida que o direito à educação de qualidade passa a ser ameaçado pelo perigo da “infoexclusão”, uma modalidade de desigualdade recente, mas que acompanha os grupos marginalizados socioeconomicamente42.
O conceito de infoexclusão não se refere apenas à falta de acesso aos meios tecnológicos, mas, sobretudo, às diferenças de capacidade que os indivíduos têm em usá-los. Tal capacidade dependeria de um conjunto de condições sociais, culturais e institucionais que habilitam comunidades e indivíduos a exercer um poder de conectividade, podendo-se, assim, alavancar ou comprometer o acesso a diversos recursos e oportunidades42.
Em situações que exigem trocas mais sofisticadas de interação virtual, como no caso do ensino remoto, os indivíduos com maior nível de recursos materiais e imateriais são aqueles que melhor aproveitarão as oportunidades oferecidas. Assim, as camadas dominantes da população possuem vantagens não somente em relação ao acesso, mas também quanto à capacidade de uso da internet43.
Considerando, portanto, o contexto socioeconômico desigual dos países de baixa renda e periféricos - que não tiveram suas realidades contempladas pelos estudos revisados -, percebe-se o risco excludente dessa modalidade de ensino. Além disso, há de se questionar a reprodução da educação elitizada por meio da tecnologia, que valoriza as classes privilegiadas em detrimento das minorias, historicamente excluídas dos cenários de formação médica. É necessário compreender que quanto maiores forem as dificuldades de acesso das classes pobres da sociedade e quanto mais tempo elas passarem afastadas dessa tecnologia, mais a internet se moldará ao uso dos setores dominantes, criando barreiras duradouras à sua democratização43.
Além da perpetuação dessa cultura excludente, alguns estudos referem-se à existência da EaD antes mesmo da pandemia, e foi frequente a referência à prática da telemedicina como estratégia aliada à teleducação. A tecnologia, nesse caso, é um dispositivo não mais complementar, mas substitutivo das relações interpessoais nos campos da saúde e da educação, agudizadas pela pandemia e pelo regime capitalista.
As valises tecnológicas44, utilizadas no contexto da produção do cuidado na área da saúde, podem agora subsidiar a discussão acerca das práticas pedagógicas na educação médica, na qual as tecnologias “leves” - produzidas em ato, no encontro, resultando em relação de confiança e vínculo entre os sujeitos - vêm sendo subsumidas pelas tecnologias “duras” e “leve-duras” - equipamentos tecnológicos e saberes estruturados. Na área da saúde, o trabalho vivo em ato tende a ser, portanto, capturado e expresso por saberes tecnológicos que reduzem seu foco de ação aos procedimentos, e na educação, à prática pedagógica sem o contato e a produção de afeto entre professor e estudante. Essa modelagem é possível de ser assumida por uma lógica de produção capitalista que vê, na parceria entre os serviços da medicina e da educação tecnológica e o capital industrial, um produtivo terreno de investimento44.
O distanciamento físico e a impessoalidade do tratamento prestado por meio de tecnologias “duras e leve-duras” de informação, como no caso da telemedicina e da teleducação médica, devem ser considerados, principalmente pelo potencial de comprometer a construção de uma boa relação médico-paciente e professor-estudante. Nesse sentido, entre os fatores que afetariam essa interação relacional tão essencial à medicina e à formação médica, estariam as limitações físicas, psicológicas e sociais, a “despersonalização” por conta da interação indireta, o risco de omissão de sinais e sintomas pelo paciente e a impossibilidade de se realizar uma consulta médica completa em razão da limitação do exame físico e da redução da confiança mútua45.
Assim, apesar de este estudo apresentar limitações, principalmente no que tange à ausência de evidências sólidas no campo da educação médica durante e após a pandemia da Covid-19, e compilar, em sua maioria, artigos de relato de experiência, revisão de literatura e reflexão, eles apresentam achados importantes para a compreensão dos rumos da educação médica em diferentes países do mundo.
CONCLUSÃO
De acordo com a literatura revisada e diante das limitações impostas à educação médica tradicional e presencial por conta da pandemia da Covid-19, conclui-se que as novas estratégias pedagógicas que vêm sendo implementadas nos diversos países do mundo centram-se no ensino remoto virtual. As experiências encontradas estão concentradas em países de alta renda e desenvolvidos, que delinearam formas diversas de aplicação dessa nova modalidade, e todas dependentes da internet e das tecnologias de informação e comunicação.
Além de tal exclusão científica, foram identificadas omissões acerca das limitações e fragilidades dessa nova estratégia pedagógica, em muito por seu caráter recente e emergencial que reflete em problemáticas, como a falta de acesso universal e igualitário aos meios digitais, a desconsideração de realidades minoritárias e subdesenvolvidas e a desvalorização das tecnologias leves interpessoais essenciais à formação médica.
Por fim, os achados analisados são importantes para que se considerem novas possibilidades pedagógicas, mesmo que em caráter provisório, e, sobretudo, para que se questione a necessidade de soluções abrangentes e factíveis a todas as realidades, a fim de se garantir uma educação médica universal, inclusiva e sem lacunas intelectuais. Assim, torna-se necessária a realização de estudos que avaliem a efetividade das estratégias pedagógicas voltadas ao ensino remoto utilizadas pela educação médica durante a pandemia da Covid-19, buscando minimizar os efeitos produzidos na formação dos profissionais.