INTRODUÇÃO
Cuidados paliativos (CP) é uma modalidade assistencial a ser oferecida a todos que recebem o diagnóstico de uma doença que ameaça a vida, havendo ou não a possibilidade de intervenções curativas. O foco do cuidado é a pessoa, para a qual há muito a oferecer, mesmo quando a doença está ativa e o tempo de vida é limitado1),(2.
Segundo Gamondi et al.3, a prática colaborativa de uma equipe interprofissional é o modelo de atenção almejado para o atendimento das necessidades apresentadas pelos indivíduos em CP e pelas famílias deles. Entre as competências centrais da equipe, são ressaltados a defesa da autonomia, dignidade e qualidade de vida dos pacientes, a comunicação e a construção de vínculos4.
Em 2009, foi criado o Núcleo de Cuidados Paliativos (NCP), no processo de acreditação do Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), como um Centro de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (Cacon). Em 2016, a equipe multiprofissional do NCP foi reestruturada, mas vem dando continuidade às ações de atenção, educação, extensão e pesquisa em CP, para difundir e consolidar essa modalidade de cuidado na rede do Sistema Único de Saúde (SUS), considerada um direito humano5.
Em 17 de março de 2020, o governador do estado do Rio de Janeiro decretou o isolamento social como forma de combate a pandemia da coronavirus disease 2019 (Covid-19), e o Hupe tornou-se referência para a internação de pacientes com as formas moderada e grave da doença, sendo necessária a reorganização dos serviços ambulatoriais para oferecer o cuidado aos pacientes de maior risco e, ao mesmo tempo, protegê-los e a equipe de saúde da infecção pelo coronavírus (Sars-CoV-2)6.
Pode-se depreender a importância da manutenção do atendimento aos pacientes em CP e aos familiares deles, dada a ampliação da angústia e do medo diante de mais uma ameaça a uma saúde já fragilizada. Nesse sentido, a equipe do NCP/Hupe fez a transição do seu processo de trabalho para incluir a telessaúde (TS) na continuidade do cuidado destinado aos pacientes.
Telessaúde pode ser definida como a prestação de serviços de saúde por profissionais da área, quando a distância é um fator crítico, usando Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) para o intercâmbio de informações válidas para o diagnóstico, tratamento e prevenção das doenças e lesões, para a pesquisa e avaliação, e para a educação continuada dos profissionais de saúde, com o interesse de promover a saúde dos indivíduos e suas comunidades7.
A TS está crescendo e sua aplicação em CP é vista como uma solução para as demandas desses serviços8.
Este trabalho tem como objetivos descrever e analisar as potencialidades e desafios da inserção da TS no processo de trabalho da equipe do NCP/Hupe durante o período de março a julho de 2020.
RELATO DA EXPERIÊNCIA
Neste período de isolamento social, o ponto de partida para facilitar a comunicação da equipe sobre o fluxo de atendimento aos pacientes do NCP foi a criação e o compartilhamento de uma agenda virtual armazenada em uma nuvem (drive) pela equipe e a definição de que a teleconsulta seria ofertada aos pacientes que tivessem tido ao menos uma consulta presencial com a equipe e que optassem a não ir à consulta presencial. Entende-se por teleconsulta o atendimento remoto com profissional especializado de acordo com sua área de formação, por exemplo: telemedicina para médicos, telefonoaudiologia para fonoaudiólogos, telepsicologia para psicologia etc.
A teleconsulta possibilitou o acompanhamento da evolução dos sintomas pelo uso da Escala de Avaliação de Sintomas Edmonton (Edmonton Symptom Assessment System - ESAS) e do prognóstico pela Escala de Performance de Karnofsky (Karnofsky Performance Status Scale - KPS). Inicialmente, realizaram-se ligações telefônicas, e, após algumas semanas e com apoio da TS da Uerj, foi oferecida a plataforma Cisco Webex para videoconferências que apresenta o selo da Health Insurance Portability and Accountability Act (HIPAA) que estabelece um conjunto de regras nacionais para proteção de certas informações de saúde.
Alguns pacientes optaram pelo contato telefônico, dadas as dificuldades de acesso à internet e à tecnologia. Os que optaram pela videoconferência foram orientados pela equipe quanto à instalação do software. Realizou-se um treinamento para o uso, e enviou-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para realização do procedimento.
A confirmação das consultas era feita pelas psicólogas da equipe que, além fornecerem suporte emocional aos pacientes, identificavam as necessidades específicas de teleconsulta e as comunicavam aos respectivos profissionais de saúde por WhatsApp e as registravam no drive. O reagendamento era feito de acordo com a complexidade: baixa, média ou alta conforme os indicadores de desempenho e funcionalidade da KPS e o monitoramento de sintomas da ESAS9),(10. Após a teleconsulta especializada, os pacientes seguiam, se necessário, em acompanhamento por essas profissionais ou, caso contrário, aguardavam o próximo contato da equipe, na véspera da data do agendamento seguinte.
Cabe ressaltar que os pacientes que evoluíam com sintomas respiratórios e suspeita de Covid-19 eram encaminhados à triagem específica do Hupe, evitando-se, dessa forma, o contato com a equipe de CP e outros pacientes, medida que foi ao encontro da literatura que corrobora a importância de manter os prestadores de CP livres da Covid-19 dada a ampliação de demandas no período da pandemia para a equipe11.
Durante esse período, a equipe se reuniu por webconferências para o aperfeiçoamento dos fluxos e procedimentos acordados em média três vezes por mês, de modo a melhorar a gestão do tempo da consulta presencial e ampliar o acesso de pacientes de “primeira vez”. Além disso, a equipe interagiu mais frequentemente por WhatsApp, investiu na educação permanente, organizou uma live sobre CP e Covid-19 e participou de dois webgrupos de suporte e reflexão sobre o trabalho, coordenados por um psiquiatra psicanalista.
Elegeram-se dois temas a serem abordados nesses grupos: 1. “Luto em tempos de pandemia”, que refere-se às experiências vividas pela equipe nos âmbitos profissional e pessoal; e 2. “Potencialidades e desafios do trabalho da equipe durante a pandemia”, cujo produto das reflexões é descrito a seguir.
Potencialidades
Fortaleceu a identidade de equipe por meio da ampliação dos espaços de reflexão sobre o trabalho e as situações vivenciadas.
Fortaleceu o vínculo de confiança e afeto entre equipe, pacientes e famílias.
Melhorou a comunicação, o respeito mútuo e a confiança no trabalho interprofissional, qualificando a atenção aos pacientes e familiares.
Permitiu o aperfeiçoamento da gestão de casos pela maior integração da equipe com os demais serviços do Hupe e com a rede de atenção primária do SUS.
Permitiu o desenvolvimento de empatia da equipe, dada a maior aproximação com os contextos familiares e comunitários dos pacientes.
Desafios
Estimar necessidade da ampliação da carga horária dos profissionais por causa do acompanhamento contínuo aos pacientes e familiares.
Administrar mensagens e ligações de familiares em qualquer dia da semana ou horário.
Lidar com a diminuição de profissionais na equipe, impedidos de trabalhar por estarem com suspeita ou com a Covid-19, por cuidarem de familiares vulneráveis ou por atuarem em outros serviços do Hupe.
Observar a regulamentação específica nos ambientes remotos visando à garantia da segurança do paciente e dos profissionais.
Implementar a incorporação de ambientes virtuais institucionais em um novo processo de trabalho.
Construir a rede de atenção integrada para a transição de cuidados (atenção ou internação domiciliar e hospice), retaguarda hospitalar e serviços de urgência requeridos.
DISCUSSÃO
O processo de refletir e pensar sobre a experiência relatada mostra-se um desafio, pois o trabalho está em curso e o distanciamento reflexivo torna-se mais difícil.
A pandemia da Covid-19 causou uma grande mudança na distribuição dos cuidados de saúde, tanto no panorama internacional quanto no nacional. A garantia do direito ao acesso à saúde de grupos invisibilizados como o dos pacientes em CP foi confrontada por essa calamidade da saúde pública, mas não poderia ser negligenciada12.
A atuação da equipe interdisciplinar ajuda a romper o ciclo dor-medo-mais dor, auxiliando os pacientes e seus familiares a resgatar suas forças, dando oportunidade para falarem de suas dores, de seus receios e das novas perspectivas, e também das dificuldades em lidar com a ameaça da Covid-19, uma doença com baixo nível de conhecimento e de recursos terapêuticos13),(14.
Os princípios do acompanhamento dos pacientes em CP são o alívio do sofrimento grave e o tratamento de complicações agudas graves do câncer (como compressão medular, metástases cerebrais sintomáticas em pacientes com bom desempenho, dor etc.), gerenciar o controle de sintomas por TS, quando possível, e organizar serviços de atendimento domiciliar, sempre que possível, para pacientes com altas necessidades antecipadas de CP15.
A TS surgiu rapidamente, como uma opção à consulta presencial, para mitigar o risco de exposição viral para pacientes e profissionais, visto que muitos apresentam alto risco de desenvolver morbimortalidade relacionada à Covid-19. Foi proposta como um meio de garantir cuidados continuados, facilitando o distanciamento físico e diminuindo a carga dos cenários da prática clínica. Para outros autores, a TS tornou-se uma estratégia integral para fornecer CP e permitir a continuidade das prescrições e da renovação de opioides16),(17.
Flexibilidade e resiliência, que podem ser definidas como a “capacidade de se recuperar da adversidade fortalecido e mais resolutivo” (18. têm sido fundamentais para superar problemas críticos. Dessa forma, o SUS teve que rapidamente se adaptar às novas práticas em saúde. Após a liberação legal dos conselhos, a TS, instrumento corroborado pela literatura nacional, foi implementada por nossa equipe. Por meio da utilização da TS, observamos a melhoria no manejo dos sintomas, conforto no atendimento e satisfação do paciente e da família19.
A TS tem sido uma ferramenta extremamente valiosa, mas, ainda assim, alguns autores apontam possíveis barreiras, como complicações relacionadas à tecnologia na população idosa e frágil20 e à presença ou não de familiares. Além disso, os pacientes, assim como os médicos, nem sempre se sentem à vontade com o atendimento médico não presencial21. Pelo menos um estudo controlado randomizado de teleconsultas semanais demonstrou, de forma significativa, mais ansiedade e maior angústia no atendimento não presencial por parte dos profissionais de saúde, o que nos leva a pensar se a ampliação da comunicação dos membros da equipe do NCP pode ter sido a forma encontrada de aplacar a angústia deles22.
A carga de trabalho da equipe do NCP aumentou durante a pandemia, e ficamos disponíveis aos nossos pacientes por meio das tecnologias de informação e comunicação (TICs). Os processos que antes eram realizados quase exclusivamente de forma presencial foram maximizados para atendimento a distância - revisões regulares, demandas de intercorrências, dúvidas e agendamentos -, ficando o atendimento presencial restrito a casos novos com alto grau de complexidade e quando o paciente assim o desejasse23.
Com a pandemia, o cenário dos CP tornou-se mais complexo. A crise planetária trouxe uma ameaça compartilhada por todos, profissionais, pacientes e famílias. A necessidade de proteger e se proteger da exposição ao coronavírus promoveu uma proximidade afetiva inédita. A carga emocional eleva-se e torna-se necessário ajustar melhor as necessidades dos pacientes com as possibilidades da equipe de saúde. Possibilidades que estão diretamente relacionadas à resiliência.
Contudo, o aumento da carga de trabalho dos profissionais envolvidos tem resultado no seguinte questionamento:
Por quanto tempo é possível manter esse esquema de cuidado sem uma adequada regulamentação desse novo processo de trabalho?
CONCLUSÃO
A equipe multidisciplinar do NCP ajustou-se às necessidades impostas pela pandemia para manter o cuidado destinado aos pacientes, o que demonstra empatia, flexibilidade e resiliência.
A despeito da redução do contato face a face com os pacientes, a TS permitiu que a equipe captasse pistas e emoções essenciais para uma boa comunicação, desenvolvesse competências clínicas e socioemocionais, e acompanhasse de perto o desfecho da vida dos pacientes.