INTRODUÇÃO
O que se espera de um educador para a graduação em Medicina? Frequentemente a admissão dos docentes é baseada no desempenho na área de atuação e no conhecimento do tema que irá ensinar, fundamentado no conceito de “quem sabe fazer sabe ensinar’’. Para muitos, a docência é considerada uma atividade secundária à profissão médica (ou às demais profissões da saúde), e o trabalho docente não se configura como uma profissão e somente como uma complementação de suas atribuições1),(2. A reduzida valorização da formação pedagógica do professor no ensino médico pode ser associada à mesma desvalorização das atividades de ensino nas universidades no que concerne à pesquisa científica. Afinal, os critérios de progressão na carreira se norteiam mais pela produção científica do que pelo exercício da docência3. No entanto, quando se busca a profissionalização da docência, é necessário engajar os profissionais médicos na área da educação e estimular o desenvolvimento contínuo dos professores, como instrumento de reelaboração e de transformação da prática, culminando em movimento que reconhece a docência como profissão4),(5.
A profissionalização da docência é o processo pelo qual o professor constrói as competências necessárias para a sua atuação, adquirindo saberes andragógicos e disciplinares para o processo ensino-aprendizagem6. O desenvolvimento docente deve focar as diferentes competências de um educador: professor, planejador curricular e disciplinar, avaliador, líder educacional, administrador, modelo profissional (role model) e pesquisador7. Porém, o foco não deve ser exclusivo em estratégias educacionais, mas em valores e atitudes sobre educação, de modo a buscar o ensino centrado no aluno8)-(10.
A adesão dos professores ao desenvolvimento docente e a sensibilização deles às diferentes competências são centrais para evolução da formação médica. No olhar de Paulo Freire, não há docência sem discência, as duas se explicam, e, seus sujeitos, apesar de diferentes, não se reduzem à condição de objeto um do outro11),(12. Álvaro Vieira Pinto13 apresentou um conceito inovador: educação é a formação do homem pela sociedade. Apresenta dois conceitos para compreensão da educação: o conceito ingênuo e o crítico. No primeiro, o conteúdo da educação está definido pela totalidade dos conhecimentos (matéria) transmitidos do professor ao aluno. O conceito crítico considera a totalidade do processo educativo, presente em cada ato pedagógico, suas relações interpessoais, suas histórias de vida e seus contextos, individualizando o processo ensino-aprendizagem13.
A educadora bell hooks14) (que solicitava que seu nome fosse escrito com letras minúsculas) estimula que os pensadores dispostos a mudar as práticas de ensino-aprendizagem conversem entre si. A colaboração pode ser feita com discussões e espaço para intervenções. Nesse sentido, considera o diálogo um dos meios mais simples e eficazes para que professores, acadêmicos, alunos e pensadores possam cruzar fronteiras. Dessa forma, a autora defende sua convicção de que diálogos públicos podem ser intervenções úteis e poderosas14),(15. Na visão de hooks, a prática pedagógica e a identidade como professor não são algo pronto e sim um processo de transformação. De acordo com hooks14, a sala de aula não é um espaço de aprendizagem exclusivo para os alunos, mas também para o professor.
Paulo Freire ressalta a importância da reflexão crítica sobre a prática, uma exigência da relação teórico-prática e a importância da formação permanente do professor. É a partir da reflexão crítica sobre a prática que o educador entende que ensinar não é transferir conhecimento (denominada pelo autor de educação bancária), mas criar possibilidades para sua produção ou sua construção a partir do diálogo entre professor e aluno, com a valorização do contexto e das experiências de vida de ambos. Nesse sentido, devemos abandonar a educação bancária, aquela que enxerga o aluno como um depósito de conteúdo, em busca do compartilhamento de saberes e da reflexão crítica sobre o mundo (ensino dialógico)12),(16. É imprescindível assumir que ensinar é uma prática complexa, que requer reflexão contínua, inovação e refinamento, que o desenvolvimento dessas práticas reflexivas deve ser ancorado no cotidiano docente, conhecer os contextos da instituição em que está inserido e pensar a formação como um processo17.
A profissionalização da docência nos cursos de Medicina no Brasil apresenta um longo caminho a ser percorrido para estimular os professores no ensino baseado em competências. Alguns fatores contribuem para isso, como tempo de dedicação, motivação, planos de carreira, processo de seleção para docentes e avaliação sistemática dos cursos. Para pensar como motivar e engajar professores do curso de graduação de Medicina rumo à profissionalização da docência na educação médica, é fundamental a escuta desses atores. Nesse sentido, a pesquisa buscou como ponto de partida compreender a percepção dos coordenadores de disciplinas de uma faculdade paulistana quanto às necessidades de desenvolvimento docente, suas práticas educativas e sua visão sobre educação.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo transversal, com amostra de conveniência constituída por coordenadores de disciplinas do curso de graduação em Medicina de uma faculdade paulistana. O público-alvo da pesquisa foram os docentes que coordenam as disciplinas da graduação em Medicina. Esses docentes são escolhidos pelos chefes de departamento e gestores do curso e são responsáveis por: atividades de coordenação dos docentes que atuam na disciplina, mediação de diálogo com alunos e seus representantes, diálogo com seus pares para integração entre disciplinas, diálogo com gestores do curso, planejamento educacional, ações educativas e avaliações.
Coleta de dados
Realizou-se a coleta de dados entre agosto e setembro de 2020. Em agosto, todos os coordenadores foram convidados a participar da pesquisa por meio de um e-mail enviado com a explicação da pesquisa e com o link para preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Ao aceitar o convite para a pesquisa, o professor deveria responder a um questionário autoaplicado. O questionário foi elaborado pelos autores com base na pedagogia freiriana e nos conceitos da pesquisadora bell hooks, como frameworks teóricos. As assertivas utilizadas na avaliação dos valores dos docentes correspondem, em grande parte, ao instrumento padronizado na literatura internacional denominado Conceptions of Learning and Teaching (COLT)18.
O questionário apresentava 32 perguntas sobre os seguintes domínios: necessidades de desenvolvimento docente, relatos sobre a prática educativa utilizadas (planejamento, métodos e avaliação) e reflexões e visão sobre o processo de ensino-aprendizagem. Após o primeiro convite eletrônico por e-mail, em duas semanas, foi realizado novo convite aos docentes que ainda não haviam respondido ao questionário. Nos casos em que não houve resposta ao segundo e-mail, considerou-se que o docente não desejava participar da pesquisa.
Contexto da pesquisa
O curso de graduação em Medicina da instituição de ensino superior (IES) conta com 94 disciplinas, sendo 74 obrigatórias e 20 opcionais, coordenadas por 68 docentes da instituição. Todos os 68 professores coordenadores foram convidados para participar da pesquisa. Destes, 56 professores coordenavam disciplinas obrigatórias (82,4% do total de docentes) e 16 coordenavam as disciplinas optativas (23,5%), e 12 eram coordenadores somente de disciplinas optativas (17,6%). Do total, 19 professores eram coordenadores de duas disciplinas ou mais (27,9%).
O presente estudo é um diagnóstico realizado na implantação do Núcleo de Desenvolvimento Docente da IES em 2019, para planejar as ações de desenvolvimento docente na instituição.
Construção de variáveis
A variável dependente do estudo foi o gênero autorreferido. As variáveis independentes foram relativas aos três módulos do questionário: necessidades de desenvolvimento docente, relatos sobre a prática educativa e reflexões acerca do processo ensino-aprendizagem.
Para as variáveis categóricas, utilizou-se a escala de resposta Likert de cinco pontos, de acordo com o nível de concordância com a afirmação. As opções de resposta foram classificadas assim: 1 = concordo totalmente, 2= concordo parcialmente, 3 = não concordo, nem discordo, 4 = discordo parcialmente e 5 = discordo totalmente. Para análise final das respostas, agruparam-se os dados como uma variável dicotômica: 1 e 2 como concordo e 3, 4 e 5 como discordo.
A variável perspectiva de educação foi construída a partir de oito variáveis do primeiro e do último módulo do questionário, já agrupadas de forma dicotômica (concordo = 1/perspectiva freiriana da educação, discordo = 0/ perspectiva bancária da educação). Consideraram-se as seguintes afirmativas para a construção da variável:
Nada melhor do que uma boa aula expositiva com um especialista para promover aprendizado.
Os alunos precisam receber informações do professor, pois não têm habilidade para buscá-las de forma adequada.
Os alunos devem ser estimulados a fazer perguntas e buscar respostas de forma autônoma.
As experiências de vida dos alunos são irrelevantes no processo ensino-aprendizagem da área da saúde.
Na interação entre professores e alunos, devemos convidar os alunos a apresentar exemplos e experiências prévios.
O diálogo com os docentes, tanto em sala de aula quanto nos estágios práticos, influencia o aprendizado.
Acho mais importante que os alunos saibam analisar criticamente uma situação do que memorizar informações.
Os alunos aprendem bastante explicando o assunto aos seus pares ou a alunos mais jovens.
As afirmativas a, b e d apresentam pontuação invertida em relação às demais assertivas. Realizou-se a somatória das oito respostas às afirmativas descritas. Foi considerada perspectiva freiriana dialógica da educação para aqueles docentes que pontuaram de 5 a 8 pontos na soma das oito categorias. Considerou-se perspectiva bancária da educação para aqueles docentes que pontuaram de 0 a 4 pontos na soma das categorias. Os cortes foram definidos pelos autores deste estudo e necessitaram de validação posterior.
Análise estatística
As variáveis categóricas foram descritas em forma de proporções. Utilizaram-se o teste do qui-quadrado para comparações entre as variáveis categóricas e ainda o teste exato de Fisher nos casos de comparações em que o número esperado de observações nas caselas foi menor que cinco. Considerou-se significativo o resultado com valor de p menor do que 0,05. Foi utilizado o programa Stata 13.1 para análise dos dados.
Aspectos éticos
O estudo foi autorizado pela diretoria da faculdade e submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos (CEP), que o aprovou em 17 de agosto de 2020: Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 35167120.7.0000.5479 e Parecer nº 4.217.084. Todos os participantes aceitaram participar e assinaram o TCLE, em formato eletrônico de formulário Google.
RESULTADOS
Do total de 68 docentes coordenadores de disciplina, 47 responderam ao questionário enviado (69,1%), com uma taxa de recusa de 30,9%. Do total de 47 participantes, 26 (55,3%) se consideravam do gênero feminino e 21 (44,7%) do gênero masculino. Nenhum docente se declarou de outro gênero. A realização de curso prévio de formação para a atuação docente foi referida por 34 (72,3%) coordenadores, e 13 (27,7%) referiram não possuir nenhum preparo formal para docência, sem diferença entre os gêneros (p = 0,15). A percepção da importância de formação específica para docência foi relatada por 44 (93,6%) participantes (Tabela 1).
Sexo feminino N = 26 | Sexo masculino N = 21 | Total N = 47 | P | |
---|---|---|---|---|
Realização de curso prévio na área de formação para docência (%) | 0,15 | |||
Sim | 21 (80,8) | 13 (61,9) | 34 (72,3) | |
Não | 05 (19,2) | 08 (38,1) | 13 (27,7) | |
Percepção da necessidade de formação específica para docência (%) | 1,0 | |||
Sim | 24 (92,3) | 20 (95,2) | 44 (93,6) | |
Não | 02 (7,7) | 01 (4,8) | 03 (6,4) | |
Necessidades espontâneas de temas para desenvolvimento docente (%) | ||||
Planejamento | 07 (26,9) | 02 (10,0) | 09 (19,6) | 0,15 |
Métodos | 18 (69,2) | 08 (40,0) | 26 (56,5) | 0,04 |
Avaliação | 09 (34,6) | 02 (10,0) | 11 (23,9) | 0,08 |
Outros | 0,004 | |||
Ensino a distância | 02 (7,7) | 07 (35,0) | 09 (19,6) | |
Tutoria/mentoria | 01 (3,9) | 0 (0) | 01 (2,2) | |
Didática/teoria aprendizagem | 01 (3,9) | 05 (25,0) | 06 (13,0) | |
Percepção de pontos fortes na formação como professor (%) | ||||
Planejamento | 08 (30,8) | 06 (28,6) | 14 (29,8) | 0,87 |
Métodos | 10 (38,5) | 07 (33,3) | 17 (36,2) | 0,72 |
Avaliação | 04 (15,4) | 03 (14,3) | 07 (14,9) | 1,0 |
Conteúdo | 21 (84,0) | 18 (85,7) | 39 (84,8) | 1,0 |
Percepção de necessidades de melhorias na formação como professor (%) | ||||
Planejamento | 20 (76,9) | 11 (52,4) | 31 (66,0) | 0,08 |
Métodos | 20 (76,9) | 14 (66,7) | 34 (72,3) | 0,44 |
Avaliação | 19 (73,1) | 09 (42,9) | 28 (59,6) | 0,04 |
Conteúdo | 10 (38,5) | 02 (9,5) | 12 (25,5) | 0,02 |
Motivação para participar de cursos de desenvolvimento docente no momento atual (%) | 1,0 | |||
Sim | 24 (92,3) | 20 (95,2) | 44 (93,6) | |
Não | 02 (7,7) | 01 (4,8) | 03 (6,4) | |
Percepção de domínio de métodos suficiente para prática docente (%) | 0,3 | |||
Sim | 10 (38,5) | 11 (52,4) | 21 (44,7) | |
Não | 16 (61,5) | 10 (47,6) | 26 (55,3) | |
Desejo de realizar formação nos próximos 3 meses (%) | 20 (76,9) | 12 (57,1) | 32 (68,1) | 0,15 |
Motivação para incluir inovações no planejamento e prática educacional (%) | 22 (84,6) | 18 (85,7) | 40 (85,1) | 1,0 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Com o objetivo de avaliar as necessidades de desenvolvimento docente apontadas espontaneamente pelos coordenadores, realizou-se uma pergunta aberta: “Em quais temas de formação para a docência você gostaria de se aprofundar?”. Os métodos de ensino foram a necessidade de desenvolvimento docente mais citada pelos professores (56,5%), e as mulheres apontaram essa necessidade com maior frequência do que os homens (p = 0,04). O planejamento educacional foi citado como necessidade por 26,9% das mulheres e 10,0% dos homens (p = 0,15), e a avaliação por 34,6% das mulheres e 10,0% dos homens (p = 0,08). Outros temas levantados espontaneamente foram ensino a distância (19,6%) e didática e teorias de ensino-aprendizagem (13,0%) (Tabela 1).
O segundo módulo do questionário se referia às práticas educativas, permitindo um diagnóstico das estratégias educacionais relatadas pelos coordenadores de disciplina. Quando questionados sobre a primeira etapa do planejamento educacional da disciplina, o tema mais apontado foi a seleção de conteúdos ou temas (38,3%), seguido dos objetivos educacionais (36,2%) e do planejamento de competências (17,0%). Quanto aos objetivos educacionais mais presentes no dia a dia da disciplina, 83,0% relataram aqueles relacionados ao domínio cognitivo, seguidos de competências (63,8%), habilidades (59,6%), atitudes (57,5%) e profissionalismo (25,5%). As habilidades foram mais citadas pelas mulheres (76,9% versus 38,1% homens, p = 0,007), assim como as atitudes (73,1% versus 38,1%, p = 0,02) (Tabela 2).
Sexo feminino N = 26 | Sexo masculino N = 21 | Total N = 47 | P | |
---|---|---|---|---|
Primeira etapa do planejamento educacional (%) | 0,98 | |||
Conteúdo/temas | 09 (34,6) | 09 (42,9) | 18 (38,3) | |
Objetivos educacionais | 10 (38,5) | 07 (33,3) | 17 (36,2) | |
Métodos | 01 (3,9) | 0 (0) | 01 (2,1) | |
Avaliação | 0 (0) | 0 (0) | 0 (0) | |
Competências | 04 (15,4) | 04 (19,0) | 08 (17,0) | |
Campos de prática | 02 (7,7) | 01 (4,8) | 03 (6,4) | |
Objetivos educacionais mais presentes no dia a dia da disciplina (%) | ||||
Conhecimentos | 23 (88,5) | 16 (76,2) | 39 (83,0) | 0,44 |
Habilidades | 20 (76,9) | 08 (38,1) | 28 (59,6) | 0,007 |
Atitudes | 19 (73,1) | 08 (38,1) | 27 (57,5) | 0,02 |
Competências | 17 (65,4) | 13 (61,9) | 30 (63,8) | 0,81 |
Profissionalismo | 09 (34,6) | 03 (14,3) | 12 (25,5) | 0,11 |
Uso de uma avaliação somente na disciplina (%) | 0,49 | |||
Sim | 04 (15,4) | 05 (23,8) | 09 (19,2) | |
Não | 22 (84,6) | 16 (76,2) | 38 (80,9) | |
Uso de prova prática tipo OSCE* (%) | 0,006 | |||
Sim | 08 (30,8) | 0 (0) | 08 (17,0) | |
Não | 18 (69,2) | 21 (100,0) | 39 (83,0) | |
Uso de prova prática tipo OSCE*, seminários, projetos, entre outras técnicas avaliativas (%) | 0,73 | |||
Sim | 21 (80,8) | 16 (76,2) | 37 (78,7) | |
Não | 05 (19,2) | 05 (23,8) | 10 (21,3) | |
Utiliza avaliação formativa (%) | 0,03 | |||
Sim | 17 (65,4) | 07 (33,3) | 24 (51,1) | |
Não | 06 (23,1) | 05 (23,8) | 11 (23,4) | |
Não conheço a expressão | 03 (11,5) | 09 (42,9) | 12 (25,5) | |
Métodos ativos utilizados antes do início da pandemia (%) | 1,0 | |||
Sim | 23 (88,5) | 19 (90,5) | 42 (89,4) | |
Não | 03 (11,5) | 02 (9,5) | 05 (10,6) | |
Métodos ativos utilizados depois do início da pandemia (%) | 0,72 | |||
Sim | 21 (80,8) | 18 (85,7) | 39 (83,0) | |
Não | 05 (19,2) | 03 (14,3) | 08 (17,0) | |
Uso exclusivo de aulas expositivas como métodos (depois do início da pandemia) (%) | 0,35 | |||
Sim | 04 (17,4) | 01 (5,0) | 05 (11,6) | |
Não | 19 (82,6) | 19 (95,0) | 38 (88,4) | |
Formação específica para uso de metodologias ativas de ensino-aprendizagem (%) | 0,02 | |||
Sim | 15 (57,7) | 05 (23,8) | 20 (42,6) | |
Não | 11 (42,3) | 16 (76,2) | 27 (57,4) |
* OSCE = Organized and Structured Clinical Examination.
Fonte: Elaborada pelos autores.
Um único momento de avaliação durante a disciplina foi referido por 19,2% dos coordenadores, sem diferença entre os gêneros (p = 0,49). Somente oito coordenadores (17,0%) utilizam prova prática do tipo Organized and Structured Clinical Examination (OSCE) como ferramenta avaliativa (30,8% das mulheres e nenhum homem, p = 0,006). Quando questionados sobre o conhecimento da expressão “avaliação formativa”, 25,5% dos coordenadores não conheciam a terminologia e apenas 24 (51,1%) docentes relataram utilizar avaliação formativa na sua disciplina. As mulheres relataram utilizar mais a avaliação formativa (65,4%) do que os homens (33,3%, p = 0,03). Em relação à utilização de metodologias ativas de ensino-aprendizagem, 89,4% as usavam antes da pandemia da coronavirus disease 2019 (Covid-19) e 83,0% passaram a adotá-las depois do início da pandemia. Um total de 11,6% dos docentes referiu o uso exclusivo de aulas expositivas como método educacional na disciplina, após o início da pandemia. As mulheres apresentaram maior relato de formação específica para uso de metodologias ativas de ensino-aprendizagem (57,7%) em relação aos homens (23,8%, p = 0,02) (Tabela 2).
O terceiro módulo do questionário englobou os valores dos professores acerca do processo ensino-aprendizagem e de seu papel como docentes, o que influenciou suas práticas educacionais e o planejamento da disciplina. Um total de 23,4% dos docentes afirmou que a aula expositiva com especialistas é a melhor forma de promover aprendizado, e, para 14,9% dos coordenadores, os alunos não têm habilidade para buscar informações de forma adequada e independente. No entanto, 78,7% mencionaram que os alunos devem ser estimulados a fazer perguntas e buscar respostas de forma autônoma. Embora 93,6% tenham apontado que o diálogo é uma importante ferramenta e influencia o aprendizado, 10,6% relataram que as experiências de vida dos alunos são irrelevantes no processo educacional e ainda 21,3% discordaram da assertiva de que se devem convidar os alunos a apresentar exemplos e suas experiências na conversação. A valorização da memorização aconteceu ainda entre os coordenadores (17%), todavia a importância da reflexão crítica de situações foi apontada por 83% dos coordenadores. A maioria dos docentes concorda que discussões em pequenos grupos motivam o aluno a aprender de forma mais eficiente (85,1%) e que a educação por pares é importante, ou seja, os alunos aprendem de forma relevante quando estão ensinando aos outros (87,2%) (Tabela 3).
O conjunto de valores sobre educação foi analisado de acordo com a perspectiva do educador Paulo Freire e classificado em duas categorias: perspectiva de educação bancária e perspectiva freiriana dialógica. Observou-se que 91,5% dos docentes apresentaram uma perspectiva dialógica freiriana, enquanto 8,5% mencionaram o olhar de educação bancária, sem diferença entre os gêneros (Tabela 3).
Sexo feminino N = 26 | Sexo masculino N = 21 | Total N = 47 | P | |
---|---|---|---|---|
Nada melhor do que uma boa aula expositiva com um especialista para promover aprendizado (%) | 0,51 | |||
Concordo | 05 (19,2) | 06 (28,6) | 11 (23,4) | |
Discordo | 21 (80,8) | 15 (71,4) | 36 (76,6) | |
Os alunos precisam receber informações do professor, pois não têm habilidade para buscá-las de forma adequada (%) | 0,68 | |||
Concordo | 03 (11,5) | 04 (19,1) | 07 (14,9) | |
Discordo | 23 (88,5) | 17 (80,9) | 40 (85,1) | |
Os alunos devem ser estimulados a fazer perguntas e buscar respostas de forma autônoma (%) | 0,48 | |||
Concordo | 19 (73,1) | 18 (85,7) | 37 (78,7) | |
Discordo | 07 (26,9) | 03 (14,3) | 10 (21,3) | |
As experiências de vida dos alunos são irrelevantes no processo ensino-aprendizagem da área da saúde (%) | 0,16 | |||
Concordo | 01 (3,9) | 04 (19,1) | 05 (10,6) | |
Discordo | 25 (96,1) | 17 (80,9) | 42 (89,4) | |
Na interação entre professores e alunos, devemos convidar os alunos a apresentar exemplos e experiências prévios (%) | 0,08 | |||
Concordo | 23 (88,5) | 14 (66,7) | 37 (78,7) | |
Discordo | 03 (11,5) | 07 (33,3) | 10 (21,3) | |
O diálogo com os docentes, tanto em sala de aula quanto nos estágios práticos, influencia o aprendizado (%) | 0,08 | |||
Concordo | 26 (100,0) | 18 (85,7) | 44 (93,6) | |
Discordo | 0 (0) | 03 (14,3) | 03 96,4) | |
Como professor tenho que indicar claramente os pontos mais importantes (%) | 1,0 | |||
Concordo | 21 (80,8) | 17 (80,9) | 38 (80,9) | |
Discordo | 05 (19,2) | 04 (19,1) | 09 (19,1) | |
Acho mais importante que os alunos saibam analisar criticamente uma situação do que memorizar informações (%) | 1,0 | |||
Concordo | 22 (84,6) | 17 (80,9) | 39 (83,0) | |
Discordo | 04 (15,4) | 04 (19,1) | 08 (17,0) | |
Apresentar a prática cotidiana da profissão motiva os alunos a apreender (%) | 0,08 | |||
Concordo | 26 (100,0) | 18 (85,7) | 44 (93,6) | |
Discordo | 0 (0) | 03 (14,3) | 03 (6,4) | |
Discussões em pequenos grupos motivam o aluno a aprender de forma mais eficiente (%) | 0,22 | |||
Concordo | 24 (92,3) | 16 (76,2) | 40 (85,1) | |
Discordo | 02 (7,7) | 05 (23,8) | 07 (14,9) | |
Os alunos aprendem bastante explicando o assunto aos seus pares ou a alunos mais jovens (%) | 1,0 | |||
Concordo | 23 (88,5) | 18 (85,7) | 41 (87,2) | |
Discordo | 03 (11,5) | 03 (14,3) | 06 (12,8) | |
Concepção sobre educação (%) | 0,31 | |||
Perspectiva de educação bancária | 01 (3,9) | 03 (14,3) | 04 (8,5) | |
Perspectiva freiriana dialógica | 25 (96,1) | 18 (85,7) | 43 (91,5) | |
Faixas de pontuação na escala de concepção sobre educação (%) | 0,17 | |||
0 a 2 | 0 (0) | 03 (14,3) | 03 (6,4) | |
3 a 4 | 01 (3,9) | 0 (0) | 01 (2,1) | |
5 a 6 | 06 (23,1) | 03 (14,3) | 09 (19,2) | |
7 a 8 | 19 (73,1) | 15 (71,4) | 34 (72,3) |
Fonte: Elaborada pelos autores.
DISCUSSÃO
Esta pesquisa considera a importância do olhar do docente coordenador de disciplina da graduação em Medicina, suas necessidades de desenvolvimento docente e suas visões sobre a prática educativa e o processo de ensino-aprendizagem. Apesar de a maioria dos professores relatar a realização de curso prévio de formação para docência (72,3%), verificamos que eles ainda carecem de formação na área. Na educação médica, ante o reconhecimento da importância da profissionalização da docência, o desenvolvimento docente é peça fundamental.
Devemos considerar que essa IES foi criada a partir de um hospital. Na construção inicial, o hospital tornou-se uma grande sala de aula cujos médicos não apenas exercem a assistência aos pacientes, mas também se tornam reconhecidamente os profissionais com competência para o ensino médico baseado no conceito de “quem sabe fazer sabe ensinar’’. A maioria era formada por bons médicos, todavia sem formação para docência. O acompanhamento do paciente à beira do leito era considerado peça fundamental para a formação do profissional médico. A preocupação com a profissionalização da docência e o ensino em diferentes cenários nos hospitais, longe deles e centrado no aluno veio depois.
A maioria dos professores de medicina tem experiência no conteúdo a ser ensinado (o que ensina), mas não nos métodos e nas estratégias (como ensinam, planejam e avaliam), pois apresenta práticas com diversas oportunidades de melhoria. É imprescindível que a totalidade dos docentes tenha formação para as atividades de ensino, com progressiva profissionalização da docência8),(19),(20.
Percebemos grande sensibilização ao desenvolvimento docente entre os participantes da pesquisa, já que a quase totalidade acredita ser necessária a formação específica para docência (93,6%) e somente três docentes relataram que não percebiam a necessidade de formação para docência. Também foram elevados os percentuais de docentes que estão motivados a realizar curso no presente momento (93,6%) e nos próximos três meses (68,1%), e 85,1% relataram a motivação para incluir inovações em sua prática educacional. A motivação aliada ao engajamento e à percepção positiva do ambiente profissional pode contribuir para o desenvolvimento do corpo docente e, quando acrescida de iniciativas institucionais, promove o aperfeiçoamento das competências docentes20),(21.
Ainda se percebe insegurança quanto ao domínio de metodologias de ensino, já que 55,3% dos professores referiram não ter o domínio de técnicas suficientes. Cabe ressaltar que o estudo foi realizado durante a pandemia da Covid-19, fato que transformou profundamente as práticas educacionais e exigiu grande adaptação do corpo docente e discente, o que pode explicar parte da insegurança percebida22. Constataram-se as diferenças geracionais entre alunos e professores, em que se verificaram maior adaptabilidade dos alunos (considerados nativos digitais) e dificuldades dos professores (considerados imigrantes digitais) no contexto do ensino remoto emergencial23, além de adaptações emocionais de todos envolvidos aos tempos de luto e ao sofrimento intenso24.
Sobre a percepção das necessidades de desenvolvimento docente, os temas espontaneamente mais solicitados foram métodos e avaliação. No entanto, nas questões com respostas preestabelecidas, também surgiu um percentual significativo de necessidade para planejamento educacional, além da reiteração das necessidades quanto a métodos e avaliação. Em estudo sobre formação docente, realizado com professores de seis universidades, 13 competências na formação docente foram enumeradas em ordem de valorização: apresentar trabalhos em conferências, fornecer feedback efetivo, ensinar habilidades de comunicação, aplicar ensino baseado em problemas (problem-based learning), criar avaliação do tipo OSCE, ensinar medicina baseada em evidências, utilizar estratégias efetivas para o ensino centrado no aluno, ensinar em pequenos grupos, gerar habilidades de trabalho em equipe, acessar informação médica on-line, ensinar estudantes e residentes considerados difíceis, avaliar uma disciplina ou um curso e desenvolver materiais e cursos a distância25. Da mesma maneira que o presente estudo, existe grande ênfase em métodos de ensino considerados inovadores e técnicas de avaliação (como provas práticas, feedback e até mesmo avaliação de disciplina).
Na visão dos estudantes, as expectativas relacionadas às competências pedagógicas do professor se baseiam em competências relacionadas à comunicação, às atitudes e ao relacionamento interpessoal. Em estudo realizado em universidade de paulistana, em 2018, com 418 participantes (74 professores e 344 alunos de Medicina), as características mais valorizadas pelos alunos em relação aos seus professores foram as atitudes no ambiente de ensino e a interação com os discentes e com os colegas. A interação com os alunos e colegas incluíam estimular o raciocínio clínico, apresentar-se disponível para ajudar e ter empatia, boa comunicação e bom relacionamento com os discentes, além de boa habilidade de interagir26.
Em relação às práticas educacionais relatadas pelos coordenadores de disciplinas, observamos que o planejamento ainda se baseia predominantemente na escolha de conteúdos e temas. Todavia, o planejamento deve começar com a construção de competências e objetivos educacionais. O domínio cognitivo (83%) foi o objetivo educacional mais relatado, com menor valorização de habilidades, atitudes e profissionalismo. Ao refletirmos sobre a educação como prática de liberdade, devemos alertar que a aquisição de informação é bastante diferente da construção do pensamento crítico. Dessa forma, ao considerarmos apenas o domínio cognitivo, temos uma visão fragmentada que não valoriza a formação em direção à construção das competências, o que incorpora participação muito maior das habilidades, das atitudes e do profissionalismo. O professor deve ser muito mais do que alguém que transfere conhecimento ou que sabe ministrar boas aulas. O verdadeiro professor é aquele que faz a mediação entre a busca do conhecimento e o processo de transformação no caminho para autonomia, por meio de experiências educacionais, do diálogo e da reflexão crítica (ação - reflexão - ação) sobre o mundo e sobre suas práticas12.
Em relação às práticas avaliativas, ainda há percentual razoável de coordenadores que utilizam somente uma prova ao final da disciplina (19,2%), com menor valorização da avaliação em processo e da avaliação formativa (55,1% dos coordenadores realizaram avaliação formativa). Ressalta-se que expressivo número de coordenadores não conhece a expressão avaliação formativa (25,5%), reiterando a necessidade premente de formação docente. Em um estudo realizado em 2017, os estudantes apontaram para a necessidade de atualização docente em: didática, métodos de ensino para organizar e liderar o processo ensino-aprendizagem, empatia, habilidades de comunicação e flexibilidade para considerar as necessidades e expectativas dos alunos. Os professores valorizaram essas questões (p < 0,01), com exceção do profissionalismo que foi a mais valorizada por eles (p < 0,01)27.
Em nosso estudo, foi observado que há diferenças no planejamento educacional de acordo com o gênero do docente. As coordenadoras de disciplina relataram mais frequentemente a necessidade de se desenvolver em métodos, avaliação e atualização em conteúdos, demonstrando uma maior exigência relacionada à sua formação docente. As mulheres incluíam mais habilidades e atitudes no planejamento educacional, sendo mais aptas a um olhar integral do ensino, voltado à aquisição de competências. Utilizam mais ferramentas avaliativas como avaliação formativa e têm maior formação para uso de metodologias ativas. Não foram observadas diferenças relacionadas ao gênero quanto à concepção da educação. Utilizamos a expressão desigualdade de gênero para falar das diferenças culturais, relacionadas ao poder e à inserção político-econômica na sociedade entre homens e mulheres. Embora haja uma progressiva feminização da profissão médica nas últimas décadas (a partir dos anos 2000), isso não acontece nos cargos de liderança nem na vida acadêmica28),(29. Especialmente na docência: quanto mais inicial é o nível de ensino, mais baixo é o salário e maior é o número de mulheres, e quanto mais alto é o nível de ensino, maior é o salário e maior é a quantidade de homens. Trata-se de uma clara divisão do poder, as mulheres seguem em postos de trabalho docente desvalorizados culturalmente e mais associadas ao cuidado; e aos homens são destinados os cargos docentes de maior prestígio social30. Essa desigualdade entre mulheres e homens apresenta diversas explicações e determinantes culturais e sociais. Embora haja evidências da sobrecarga entre o trabalho doméstico e a vida profissional, muitas mulheres ainda enfrentam a necessidade de apresentar maior qualificação para ocupar espaços na vida acadêmica e romper com as barreiras de acesso baseadas no sexismo estrutural31),(32.
No que refere aos valores relatados pelos docentes sobre o processo de ensino-aprendizagem, percebemos uma perspectiva dialógica em grande parte deles. Todavia, a perspectiva dialógica ainda não se traduz na prática educativa, pois o planejamento parte dos conteúdos, com pouca avaliação formativa e pouca diversificação de avaliações. Cabe ressaltar que a avaliação formativa se baseia fundamentalmente em observação e diálogos sobre o processo de ensino-aprendizagem, com apoio de devolutivas baseadas na confiança, no respeito e com foco em transformação. Cada vez mais, preconiza-se o equilíbrio entre avaliações somativas e formativas para prover ao aluno feedback sobre seu processo de crescimento na formação.
Ainda existe um percentual razoavelmente expressivo (23,4%) dos coordenadores de disciplina que acreditam que nada melhor que uma boa aula com especialista para promover aprendizado. Tal fato é preocupante, pois, como coordenadores de disciplina, essa crença influenciará a forma de planejar o currículo e priorizar esse método passivo. As aulas com o especialista se distanciam do aprendizado, especialmente quando são longas, promovendo passividade e desencorajando a participação de aprendizes. A aula expositiva ainda pode ter lugar no trabalho com grandes grupos, para realizar uma síntese de um processo educativo, contudo é fundamental incluir técnicas de interatividade durante a aula e incluir espaços de reflexão para o aprofundamento do aprendizado33),(34.
Embora 93,6% acreditem que o diálogo é importante ferramenta e influencia o aprendizado, 10,6% consideram que as experiências de vida dos alunos são irrelevantes no processo educacional e 21,3% discordam da assertiva de que devemos convidar os alunos a apresentar exemplos e suas experiências para o diálogo. Conhecer origens, desejos e sonhos faz o ambiente ficar mais propício para o aprendizado, já que o diálogo é a troca de compreensões e sentidos no empenho para construir a formação34),(35.
Os professores não apresentam consenso sobre a maior relevância da análise crítica sobre a memorização, já que 17,0% discordam dessa assertiva. Vale ressaltar que o raciocínio clínico é mais similar à análise e ao pensamento crítico do que a memorização. Consciência e engajamento crítico na sala de aula transformam professores e alunos em participantes ativos, não consumidores passivos. Esses dados ressaltam ainda uma parcela de docentes com uma visão bancária, segundo Paulo Freire12. De acordo com essa abordagem, o aluno precisa apenas consumir a informação dada por um professor e ser capaz de memorizá-la e armazená-la. Trata-se de um conceito ingênuo de aprendizagem que, conforme Pinto13, valoriza mais o conteúdo do que os processos cognitivos de reflexão, contextualização e articulação de conhecimentos.
O presente estudo reflete as necessidades de desenvolvimento docente de uma IES no município de São Paulo. Os resultados encontrados apresentam limitações, pois, embora apontem diversas consonâncias com achados da literatura, não representam parte das instituições de ensino superior. Esses resultados partem ainda da percepção e do relato dos docentes, não incorporando a visão dos estudantes ou dos gestores. Além disso, não houve a análise documental dos planos de disciplina. Apresentam, dessa maneira, um viés de memória dos respondentes e das suas subjetividades na autoavaliação de seu trabalho como professores. O estudo ainda se refere ao conjunto de coordenadores de disciplina da instituição, o que nem sempre reflete o total de docentes de cada disciplina, o que pode ser considerado uma limitação na interpretação dos resultados. O contexto da pandemia da Covid-19 afetou os resultados sobremaneira, os quais devem ser considerados com base no momento histórico da coleta de dados.
O estudo apresenta algumas fortalezas. A pergunta de pesquisa teve enfoque pouco frequente na literatura, valorizando a centralidade das necessidades do professor. Incorporou uma análise dos valores dos professores sobre o processo de ensino, o que é essencial na cultura acadêmica para a sensibilização e a mudança organizacional almejadas. A análise dos valores se baseou na pedagogia freiriana e nos conceitos da pesquisadora bell hooks, como frameworks teóricos de análise. As assertivas utilizadas na avaliação dos valores dos docentes correspondem em grande parte ao instrumento padronizado na literatura internacional (COLT)18.
Apesar de o estudo ter sido conduzido em uma instituição, há uma clara percepção por parte dos autores de que o desenvolvimento do professor, de forma sistematizada e apoiado pelo curso, é uma necessidade em grande parte dos cursos de Medicina. Mais do que isso, cabem a um núcleo específico de desenvolvimento docente, com horas protegidas para tal atividade, o empenho e a atenção no que concerne ao reconhecimento de demandas customizadas para aquele grupo de professores. Nesse sentido, a fase diagnóstica, como a realizada neste trabalho, alinhada com o projeto pedagógico do curso, é um caminho necessário para que se construa um plano efetivo e comunicativo, que gere aprendizado significativo e duradouro aos professores. A motivação contínua dos seus participantes pode permitir a profissionalização natural da atividade desses professores, com clara inserção dela no cotidiano dos docentes, sem a destrutiva percepção de “aditivo” de trabalho, periférico e pouco valorizado.
O estudo tem papel importante na construção de programa de desenvolvimento docente institucional, buscando a incorporação da visão dos coordenadores de disciplina. O estudo foi realizado na implantação de um Núcleo de Desenvolvimento Docente na IES como parte de um diagnóstico inicial para planejamento de ações, como cursos, oficinas, journal club, seminários, entre outros. São necessários mais trabalhos sobre as necessidades de educação permanente de professores, tanto da perspectiva dos próprios docentes como da perspectiva dos alunos e da gestão acadêmica. Também é necessário aprofundar a análise dos valores dos docentes sobre o processo ensino-aprendizagem, para promover melhorias no ambiente educacional.
CONCLUSÕES
O desenvolvimento docente é fundamental na profissionalização da docência, de modo a gerar impacto positivo na formação dos alunos. Uma etapa importante da construção de um programa de desenvolvimento docente é o diagnóstico inicial com olhar para as expectativas e necessidades dos docentes envolvidos, sendo fundamental na perspectiva dialógica de formação docente.
As práticas educativas relatadas revelam a incorporação insuficiente do ensino baseado em competências, com valorização do domínio cognitivo e menor valorização de atitudes e habilidades. O planejamento se inicia com frequência por escolha de temas e conteúdos, em detrimento da construção de competências ou mesmo objetivos educacionais. A avaliação relatada apresenta escassez de avaliação formativa e poucas práticas que avaliam o desempenho do aluno de forma mais integral. Os valores relatados pelos docentes refletem uma perspectiva dialógica do ensino, no entanto as práticas relatadas são contraditórias em relação à concepção de ensino relatada. Essa contradição sugere a necessidade de incorporação de maior diversidade de ferramentas educacionais (tanto de planejamento quanto de avaliação e métodos) para implementar essa visão na prática educacional.
Na análise relacionada ao gênero, as mulheres apresentam maior relato de formação docente (para uso de metodologias ativas, especificamente), maior incorporação de objetivos atitudinais e psicomotores no planejamento das disciplinas, com maior diversificação de ferramentas avaliativas, além de maior valorização da avaliação formativa. Os resultados observados podem indicar uma maior profissionalização da docência entre o gênero feminino, assim como parecem estar no caminho de uma perspectiva dialógica freiriana da educação, a partir das práticas relatadas.
Foi observada importante motivação dos docentes para educação permanente, com abertura para inovações. O primeiro passo da profissionalização docente se baseia na expectativa e na percepção da necessidade. A valorização de ampla gama de temas é solo fértil para um programa de desenvolvimento docente e pré-requisito para a profissionalização e transformação das práticas educacionais.