INTRODUÇÃO
O mundo está passando por um momento histórico desde o início da pandemia da Covid-19. Conhecido como Sars-CoV-2, esse vírus surgiu na província chinesa de Wuhan, em meados de dezembro de 20191, e se disseminou para outros países. Em 20 de agosto de 2021, o número de casos confirmados no mundo totalizava 209.876.613 e 4.400.284 mortes, demonstrando o grau de disseminação da doença2.
O novo coronavírus tem provocado repercussões econômicas, sociais e na saúde mental dos indivíduos com a instauração do distanciamento social. Medidas de prevenção e controle foram tomadas pelas autoridades sanitárias, de modo a limitar a mobilidade dos indivíduos com o fechamento de setores comerciais não essenciais, como escolas, universidades e espaços públicos de lazer3.
O âmbito universitário da área da saúde sofreu grande impacto e teve que ser repensado em toda sua estrutura, inclusive em relação ao curso de Medicina. De acordo com os resultados preliminares de uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Educação Médica, com dados de início de abril de 2020, referente a 82,4% das escolas médicas do Brasil, 57% delas tiveram suas atividades suspensas completamente, e 40%, parcialmente. Foi necessário reestruturar a integração ensino-serviço, as atividades em cenários de prática, os processos seletivos de residência médica4 e até mesmo a data de formatura daqueles que estavam em fase final da graduação5.
Como alternativa, desenvolveram-se atividades a distância e remotas em substituição às presenciais. Essa modalidade foi implementada em 80% das graduações médicas6, já que o Ministério da Educação permitiu, em caráter de excepcionalidade, atividades teórico-cognitivas em meios digitais para o curso de Medicina7. No entanto, essa modalidade necessitou de adaptações no meio acadêmico8, capacitações para todos os usuários das plataformas virtuais, considerando os seus diferentes contextos9),(10.
Na perspectiva de alguns estudos, é discutida a ambiguidade do papel dos estudantes no enfrentamento da pandemia: os dos últimos anos podem apresentar maior habilidade para atuar como apoio aos serviços de saúde, ao mesmo tempo que são vistos como potenciais vetores de contaminação, com necessidade de uso dos escassos equipamentos de proteção individual (EPI) e de supervisão profissional11)-(13.
Com base em dados de diagnóstico situacional na fase inicial da pandemia no Brasil, afirmava-se que o retorno integral às atividades universitárias seria um processo lento e gradual6. No começo do ano letivo de 2020, o vírus espalhou-se com rapidez inesperada, e, no Brasil, a emergência sanitária foi questionada e politizada. Nesse cenário, as escolas médicas tentaram se preparar para um segundo semestre realizado de forma integralmente remota. Em 2021, as escolas médicas esforçaram-se para organizar a aprendizagem em um modelo híbrido14.
Diante do exposto, o presente estudo tem como objetivo compreender as repercussões emocionais, sociais e na formação acadêmica e profissional, na perspectiva do estudante de Medicina do internato de uma faculdade do interior paulista, durante os seis meses de suspensão das atividades práticas imposta pelo distanciamento social causado pela pandemia da Covid-19.
MÉTODO
Tipo de estudo
Trata-se de pesquisa qualitativa, ou seja, que se utiliza do universo de significados, além de crenças, motivos, aspirações, atitudes e valores como material de trabalho. Atém-se a um nível da realidade que não é passível de ser quantificado, já que o espaço profundo de relações, processos e fenômenos não pode ser reduzido à operacionalização de variáveis15.
Local e participantes da pesquisa
Os participantes foram graduandos dos dois últimos anos do curso de Medicina de uma faculdade localizada no interior do estado de São Paulo, que contempla os cursos de Medicina e Enfermagem, em regime integral, com estrutura seriada e currículo integrado e orientado por competência dialógica, estruturada a partir de metodologias ativas de ensino e aprendizagem16.
Define-se competência dialógica como a capacidade de mobilizar diversos recursos e atributos para que possam ser aplicados em contextos distintos e mutáveis. A competência dialógica tem como objetivo a integração de teoria e prática, contextualizando o conhecimento adquirido na prática profissional, sem deixar de considerar as inconsistências do mundo real. Tal processo tem como resultado o desenvolvimento de habilidades críticas, reflexivas e questionadoras nos estudantes17.
Tal escola médica, como instituição de ensino, tem seu currículo integrado a partir das metodologias de ensino: aprendizagem baseada em problemas (ABP) e problematização. Os acadêmicos partem da identificação de problemas acerca da realidade objetiva os quais estão circunscritos e constroem questões norteadoras para o estudo e posterior solidificação do conhecimento18),(19.
O número de participantes foi definido por meio de saturação, ferramenta utilizada para estabelecer o fechamento da amostra analisada, quando os dados obtidos passam a apresentar repetição de ideias e redundância de fatos pela avaliação do pesquisador20.
Estratégia de coleta de dados: narrativas
A escolha das narrativas como parte da metodologia desta pesquisa deu-se por conta de seu processo formativo e pelo fato de elas enaltecerem as experiências singulares.
As narrativas valorizam os sentidos dados pelo indivíduo por meio das palavras para descrever a experiência21, possuindo como característica uma sequência finita e longitudinal de tempo, na qual o narrador conta as histórias dentro de sua própria perspectiva, de modo a permitir a reflexão sobre si mesmo e uma autocompreensão22.
Dessa forma, as produções dos participantes auxiliam na construção de novos saberes, concomitantemente à análise realizada23, com a oportunidade de cada participante refletir, por meio de sua escrita, sobre as particularidades da experiência.
Aspectos éticos e de coleta de dados
O trabalho foi submetido à aprovação do CEP sob Parecer Consubstanciado nº 4325.470 e CAAE nº 36803720.0.0000.5413. Adotaram-se as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa Envolvendo Seres Humanos, conforme a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde24.
Realizaram-se sorteios aleatórios para envio do convite aos acadêmicos do quinto e do sexto ano do curso de Medicina por meio do aplicativo WhatsApp. Após a aceitação, cada participante recebeu o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para participação na pesquisa. Foi disponibilizado por e-mail um documento contendo um pequeno texto com instruções para o preenchimento do formulário e para a construção da narrativa, orientando um desenvolvimento de um texto com a descrição de experiências pessoais, de sentimentos mobilizados e de pensamentos relacionados às repercussões sociais e à formação do participante como estudante de Medicina do internato, sem limite mínimo ou máximo de palavras e sem a necessidade de encadeamento histórico ou citação de datas. Também se disponibilizou um questionário para caracterização do participante, contemplando ano da graduação, gênero, idade, os locais onde passou o período de distanciamento das atividades práticas e com quem passou esse período. Tanto as narrativas quanto os questionários não continham dados que identificavam os participantes. Para apresentação dos participantes no estudo, foram utilizados nomes fictícios escolhidos aleatoriamente, levando em conta apenas o gênero autorreferido.
Entre os estudantes convidados, incluíram-se aqueles que concordaram em participar da pesquisa, com envio posterior do material solicitado. Excluíram-se aqueles que não responderam às mensagens e/ou não enviaram o material dentro de um prazo de 15 dias.
A coleta das narrativas deu-se no período de novembro de 2020 a fevereiro de 2021, e o retorno às atividades práticas ocorreu em agosto de 2020 para o sexto ano de Medicina e setembro do mesmo ano para o quinto ano. Portanto, as narrativas foram elaboradas retrospectivamente no que se refere ao período de distanciamento social vivenciado pelos acadêmicos e, além disso, trouxeram informações sobre o início do regresso aos campos de prática.
O processo de coleta em si cursou com algumas dificuldades, principalmente a falta de aceitação do convite por parte dos estudantes que haviam sido sorteados. Porém, a coleta concomitante à análise nos permitiu chegar à saturação teórica, com dados significativos para discussão do estudo.
Análise dos resultados
Para a análise das narrativas, adotou-se a análise de conteúdo, modalidade temática, seguindo critérios de Bardin25 e Minayo26. Para apresentação dos participantes no estudo, foram utilizados nomes fictícios escolhidos aleatoriamente, levando em conta apenas o gênero autorreferido, seguido do ano em que estavam no curso.
Dessa maneira, realizaram-se as seguintes fases: leitura exaustiva das narrativas, levantamento das ideias, dos núcleos de sentido e construção dos temas.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Analisaram-se 11 narrativas, das quais sete foram escritas por acadêmicos do quinto ano e quatro por acadêmicos do sexto ano. Dentre os participantes, seis eram do sexo feminino e cinco do masculino. As idades dos participantes variaram de 22 a 32 anos, que declararam, quase em sua totalidade, ter passado o período na casa dos pais acompanhados do núcleo familiar mais próximo ou do parceiro afetivo, tal como encontrado por Teixeira et al.27. Entretanto, para os sextanistas, o afastamento das atividades acadêmicas foi de quatro meses, enquanto para os quintanistas, de cinco meses. A extensão das narrativas variou de 13 a 70 linhas. Ademais, a maior parte das narrativas foi recebida após o retorno das atividades práticas, sendo construídas de maneira retrospectiva, considerando as memórias afetivas significativas do período de afastamento.
Foram originados quatro temas: 1. “Aspectos socioculturais desencadeados pela pandemia”; 2. “Implicações psicológicas e interpessoais da pandemia na vida”; 3. “Experiências no âmbito acadêmico perante a pandemia”; e 4. “Avaliação do distanciamento social e mecanismos de enfrentamento”. Essas temáticas e seus respectivos núcleos de sentido estão descritos no Quadro 1 e são comentados a seguir.
Temas | Núcleos de sentido |
---|---|
Aspectos socioculturais desencadeados pela pandemia | Impacto social com a progressão da pandemia |
Preocupação com as repercussões sociais | |
Reconhecimento do empenho dos profissionais de saúde atuantes na Covid-19 | |
Reações institucionais e governamentais no manejo da pandemia | |
Alterações nos hábitos de vida | |
Percepção diante das atitudes da população e dos colegas no enfrentamento da pandemia | |
Implicações psicológicas e interpessoais da pandemia na vida | Sentimentos e conflitos internos mobilizados pela quarentena |
Reações das pessoas à recepção de informações midiáticas | |
Dificuldades interpessoais e familiares durante a quarentena | |
Oportunidade de fortalecimento dos vínculos familiares | |
Mudança de perspectiva em relação à vida | |
Repercussões na saúde física e mental do indivíduo | |
Experiências no âmbito acadêmico perante a pandemia | Preocupações com as repercussões acadêmicas |
Oportunidade de aprimoramento acadêmico | |
Sentimentos diante do retorno das atividades do internato | |
Experiência diante da condição de ser estudante de Medicina no internato | |
Crítica ao formato do internato pré-pandemia | |
Percepção diante da organização da escola médica durante a suspensão das atividades práticas | |
Avaliação do distanciamento social e mecanismos de enfrentamento | Avaliação do distanciamento social como negativo |
Avaliação do distanciamento social como positivo | |
Mecanismos para lidar com os efeitos do distanciamento |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Aspectos socioculturais desencadeados pela pandemia
Inicialmente há uma descrição do início da pandemia, com relatos da falta de percepção da gravidade da doença e, posteriormente, um entendimento de que ela não seria tão passageira como alguns imaginavam, trazendo reflexões a respeito de problemas sociais que surgiram ou se agravaram.
Observou-se a preocupação com a situação econômica, porém houve maior ênfase na angústia com as vidas que estavam em constantes riscos. O contexto pandêmico refletiu negativamente na economia do país, com perda de empregos e incertezas que consequentemente reduziram o consumo de bens de serviço. Concomitantemente, destacou-se a importância da correlação entre a crise econômica e uma deterioração da saúde mental, corroborando diversos estudos28),(29. Os estudantes demonstraram como a pandemia impactou a vida deles:
Pensava que ficaríamos isolados em quarentena por duas ou três semanas no máximo. Só depois de alguns dias que tive noção da proporção dos fatos. Com o passar dos meses, um sentimento de ansiedade, impaciência e preocupação tomou lugar. Não acreditava que a pandemia se prolongaria tanto (Ricardo, sexto ano).
Notícias assustadoras de mortes pelo mundo, famílias perdendo empregos e casas, descaso e medidas imprudentes de governantes e de parcela da população (Sara, quinto ano).
Houve também reflexões sobre posicionamentos de negação ou minimização da gravidade da pandemia, com críticas à condução da pandemia pelo governo federal e ao comportamento de familiares e colegas que ignoravam as medidas de segurança adotadas pela ciência e as repercussões na condição de vida das pessoas.
Esse aspecto corrobora estudos que revelam que situações de emergência em saúde pública trazem consequências individuais e comunitárias, resultando em estresse emocional, angústia e transtornos mentais, hábitos de vida não saudáveis, como abuso de substâncias, e inconformidade com as diretrizes de saúde pública, como o descumprimento do distanciamento social e os movimentos antivacina30.
Vi amigos, colegas de turma, familiares que [...] preferiram minimizar ou adotar uma visão negacionista, tal qual o presidente da República. [...] Percebi inúmeros colegas preocupados exclusivamente com sua formação acadêmica em 2020, sequer se preocupando com as condições de segurança deles mesmos, de seus familiares, dos pacientes. Pior, muitos deles indo a encontros com aglomerações entre estudantes (Carlos, sexto ano).
As principais reflexões na perspectiva de aspectos socioculturais apresentadas nas narrativas tinham um foco no início da pandemia, momento de pouco conhecimento sobre a doença e suas repercussões. Esse fato é descrito também na literatura, segundo a qual, no início de uma crise, afloram ideias contrastantes com emoções negativas e otimismo irrealista31.
Implicações psicológicas e interpessoais da pandemia na vida
Os estudantes demonstraram sentimentos de insegurança conforme se estendia o período do afastamento das atividades curriculares, corroborando os estudos que revelam que a suspensão das atividades educacionais afetou mais de 90% da população estudantil mundial32 e trouxe infelicidade e angústia quanto à incerteza da concretização de planos pessoais e profissionais33),(34: “Foi quase como se eu estivesse num limbo, numa realidade virtual, sem saber como seria a sucessão dos eventos, sem saber a proporção que a pandemia poderia tomar, sem nenhuma resposta da faculdade sobre retorno de atividades (Kátia, quinto ano). Conforme o distanciamento social e as medidas de biossegurança foram implementados, essa ruptura da rotina gerou não só sentimentos de incerteza e estresse, mas também propiciou o surgimento e/ou agravamento de distúrbios psiquiátricos35. Segundo a vivência dos estudantes nesse período, muitos problemas de saúde se intensificaram.
Antes do afastamento, fazia quase oito meses que eu não tinha crises de enxaqueca e o médico que me acompanha estava começando a pensar em descontinuar a minha medicação profilática; apenas durante o primeiro mês de quarentena, tive três crises (sendo uma delas uma das piores que já tive). Antes do isolamento, fazia cinco anos que eu não tinha crises de pânico; durante toda a quarentena, tive quatro (Miguel, sexto ano).
Atrelada à remodelação do ensino no contexto da pandemia, a vivência familiar teve uma série de mudanças com o aumento de conflitos paterno-filiais36. Consoante com esse estudo, alguns estudantes também trouxeram problemas em relação à dinâmica familiar no período da pandemia: “De resto apenas tentava não surtar e ter uma boa convivência com a minha família, que, no geral, é extremamente difícil. Entre muitas discussões e brigas e estresse (Kátia, quinto ano).
Em contrapartida, outros mencionaram que o período de afastamento contribuiu para a melhora nos vínculos familiares:
A convivência familiar mais próxima e duradoura que antes foi meu porto seguro, e garantiu que passasse a maior parte dos meses amparando-nos mutuamente (Rodrigo, quinto ano).
Outro fator que impactou também a saúde mental dos indivíduos, gerando ansiedade e estresse, foi a intensa propagação de notícias falsas e de conteúdo duvidoso pela mídia31: “A raiva era quase diária ao observar a disseminação de fake news e a irresponsabilidade de figuras públicas diante da situação, prestando um desserviço social”(Olívia, quinto ano).
Apesar do grande impacto negativo que a pandemia gerou na saúde mental do indivíduo, muitos estudantes trouxeram o período como um momento de mudança de perspectiva em relação à vida.
O distanciamento social obrigou-me a repensar meus valores e os objetivos de vida. Se há alguns meses gastaria tempo com futilidades, agora penso como a vida pode virar de ponta-cabeça em um instante sem o menor aviso (Sara, quinto ano).
[...] passei a aproveitar minha família, a curtir mais as conversas, coisa que já não fazia antes, e às vezes evitava. [...] Aceitei esse ritmo de vida novo, todo mundo se adaptou de uma forma ou de outra, as pessoas estavam seguindo a vida delas, e eu também queria (Rodrigo, quinto ano).
Experiências no âmbito acadêmico perante a pandemia
De maneira geral, as experiências relatadas pelos estudantes que enviaram suas narrativas foram marcadas pela suspensão das atividades presenciais. Tal fato levou muitos a desenvolver preocupações quanto às repercussões acadêmicas desse afastamento dos cenários de prática, especialmente no período de internato, além de observações a respeito das atividades remotas:
Quando voltaríamos? Como voltaríamos? Qual seria o impacto dessa pausa na minha formação? [...] Enfim, várias perguntas e respostas incertas. Sobre o impacto da quarentena na formação, ainda ecoa na minha mente, pois não me sinto segura para me formar de tal modo (Joana, quinto ano).
Por mais que as aulas fossem importantes e agregavam conhecimento à nossa formação, nada substitui a prática tão presente nos quinto e sexto anos da Faculdade de Medicina. É nesse momento que realmente aprendemos a ser profissionais, a agir e pensar como tal. A pandemia nos privou em grande parte disso (Ricardo, sexto ano).
O questionário aplicado nesta pesquisa encontrou respaldo em um estudo realizado em abril de 2020, no Peru37. No estudo peruano, aplicou-se um questionário a internos do curso de Medicina, no qual 91,5% dos estudantes relataram sentir muita ou moderada incerteza em relação ao reinício do internato.
Além disso, considerando que os estudantes sentem-se despreparados para iniciar seu trabalho como profissionais, tais apreensões destacam a necessidade de diretrizes robustas focadas no desenvolvimento educacional continuado durante tempos de crise e possíveis pandemias futuras, já que a prioridade dos acadêmicos é que atinjam os objetivos necessários para que possam obter a graduação de médicos38.
Apesar de estarem enfrentando preocupações e incertezas, nas narrativas aparece a perspectiva de que, diante da maior quantidade de tempo livre, o período de suspensão de atividades presenciais poderia constituir-se como uma oportunidade de aprimoramento acadêmico, principalmente por meio do estudo teórico:
Apesar das limitações e postergação das atividades a distância para os estudantes do quinto e sexto anos, resolvi aproveitar a oportunidade para me dedicar ao estudo (sanar lacunas do saber, aprimorar alguns conhecimentos através de cursos on-line e gratuitos, muitos, inclusive, oferecidos pelo SUS) [...] (Olívia, quinto ano).
De maneira análoga, em um estudo com acadêmicos de Medicina da Líbia, os estudantes comentam que se engajaram em múltiplas atividades, enquanto as escolas médicas permaneceram fechadas, como o estudo individual e atividades de pesquisa e de voluntariado39.
Outro aspecto relevante refere-se ao papel de um estudante cursar Medicina e estar inserido num momento de pandemia:
É engraçado como seus amigos e conhecidos mandam mensagens para tirar dúvidas com você sobre o que está acontecendo, esperando uma resposta esclarecedora, mas num momento em que nem os infectologistas têm muita certeza sobre nada [...] (Miguel, sexto ano).
Senti-me completamente inútil por não poder ajudar: não possuía diploma ou conhecimento necessário para atuar em hospitais (Sara, quinto ano).
Essas inseguranças podem estar associadas às incertezas quanto à função dos estudantes de Medicina durante a pandemia da Covid-19, já que os acadêmicos ocupam não apenas a posição de aprendizes, mas também a de “médicos em treinamento”. Ou seja, apesar de seu papel primário ser o aprendizado da prática médica, os estudantes também fornecem cuidado aos pacientes por meio de entrevistas, comunicações com suas famílias e assistência em procedimentos e na coordenação do cuidado40. Além disso, há uma expectativa de familiares e conhecidos de que saibam sobre todos os assuntos da saúde humana.
Ademais, o afastamento das atividades presenciais suscitou nos acadêmicos reflexões sobre a estruturação do processo de aprendizado, incluindo críticas a como se dava a organização dos estágios anteriormente à pandemia e às propostas formuladas pelo corpo docente diante da suspensão dos campos de prática:
Senti um alívio nos primeiros dias de descanso. Foi um respiro em meio à rotina exaustiva dos estágios que havia passado. Hoje, penso que, se não houvesse a pandemia, não teria suportado terminar 2020. Ou, se o terminasse, com certeza minha saúde (mental, física e emocional) estaria completamente comprometida. Isso me fez refletir muito sobre a organização atual do internato (Olívia, quinto ano).
Foram três meses sem qualquer proposta de organização. Houve mobilização do corpo estudantil frente ao abandono, e só depois de infinitas reuniões pouco produtivas, foi iniciada a programação de ensino a distância (Ricardo, sexto ano).
Como pode-se perceber, a pandemia da Covid-19 levanta questionamentos a respeito de quando e como os internatos podem continuar, ainda mais diante das previsões extensamente variáveis no que se refere à duração da crise sanitária. Por isso, as escolas médicas, independentemente de sua organização curricular, poderiam considerar novas medidas para dar continuidade à sua missão de formar futuros profissionais, com soluções tecnológicas, como as iniciativas de telemedicina41.
Contudo, à medida que foram se passando os meses de distanciamento social e começaram a ser anunciadas as primeiras perspectivas de retorno aos estágios de prática, os estudantes relataram um misto de sentimentos:
Quando voltaram as atividades, estava ansioso e feliz, não sabia como iria ser os primeiros dias. A retomada foi suave, com a carga de trabalho diminuída nas enfermarias, o hospital bem mais organizado e limpo, e os EPIs foram distribuídos. Senti-me mais seguro (Rodrigo, quinto ano).
Eventualmente retornamos, e um pouco de animação tomou conta de mim, além da esperança de um retorno e normalização da vida pré-pandemia. Não foi o que aconteceu. Mas o mindsetting do momento foi: tirar o máximo dessa situação ruim! (Kátia, quinto ano).
É possível que a ansiedade, felicidade e esperança referidas pelos acadêmicos estejam associadas ao conceito de pós-crise que, como explicado por Faro et al.31, é um momento de reconstrução social após o período agudo em que se instala um problema de saúde pública. Nessa fase pós-crise, segundo os autores, há um declínio da transmissão comunitária e uma redução das medidas de distanciamento social. Com isso, as pessoas tendem a retomar suas atividades habituais, assim como as instituições gradualmente retornam ao funcionamento.
Avaliação do distanciamento social e mecanismos de enfrentamento
O período de distanciamento social foi descrito como permeado por várias dificuldades intra e interpessoais, no entanto também foi vivenciado como uma oportunidade para realizar atividades que não seriam possíveis em um período habitual de atividades curriculares. Com maior disponibilidade de tempo, os participantes citaram que aproveitaram o período para se dedicar ao lazer, descobrindo e desenvolvendo novas habilidades, ou retomando atividades do cotidiano que haviam sido abandonadas.
Me descobri boa em fazer novos doces. Redescobri um hábito que havia abandonado há tempos, como correr. [...] Alimentei novos sonhos. Descobri uma nova língua, como o italiano. Estudei astrocartografia. [...] Aos poucos e à sua maneira, a vida vai voltando, vamos aos poucos se adaptando com o que dá (Alice, quinto ano).
Considerei um período importante de reflexão, de fazer atividades extracurriculares, como pintar quadros, tocar violão, ler livros, organizar documentos, atividades que eu não tinha tempo durante o período letivo. [...] Tentava aproveitar ao máximo esse período, pois sabia que uma hora ele ia acabar e não teria o mesmo tempo livre que tive (Fernando, quinto ano).
O contato com a arte, por exemplo, que foi descrito em algumas narrativas, permitiu a expressão dos sentimentos mobilizados durante o distanciamento social, assim como ocorre na pesquisa de Medeiros et al.42, em que atividades como pintura e escrita foram desenvolvidas como maneira de conviver com as mudanças da pandemia.
A mudança na rotina de lazer descrita nas narrativas também é encontrada na literatura43),(44, em que novas habilidades foram desenvolvidas, ao mesmo tempo que outras tiveram que ser adaptadas para o meio virtual, como apresentações culturais e encontros com amigos. É importante ressaltar que o lazer é reconhecido como fator protetor da saúde mental, sendo uma expressão de resiliência diante de toda a mudança atual de rotina45),(46:
Passei a caminhar no bairro, para ver o céu e sentir o ar fresco, me sentir mais vivo (Rodrigo, quinto ano).
A ressignificação do período de distanciamento social como uma oportunidade única de desenvolvimento pessoal corresponde a uma estratégia de enfrentamento que apresenta proteção contra sintomas depressivos e transtornos de estresse agudo44),(47.
Nesse contexto, a internet foi o instrumento que possibilitou também a permanência de contato com o círculo social dos participantes desta pesquisa, auxiliando na busca de suporte social enquanto o presencial estava restrito. Essa adaptação também é encontrada na literatura44, que descreve a internet como espaço para propagação de apoio emocional e social ao indivíduo.
Houve também a valorização do acompanhamento psicológico profissional como um dos fatores que auxiliaram a lidar melhor com a situação:
Inclusive, um ponto de virada definitivo para o meu bem-estar mental foi finalmente entender o que estava ou não no meu controle e o que eu deveria fazer para manter esse controle (algo que atribuo quase integralmente à minha psicóloga [...]) (Miguel, sexto ano).
Esse aspecto é também demonstrado em um estudo que revela um aumento expressivo de atendimento profissional em saúde mental durante a pandemia, tornando o acompanhamento psicológico uma estratégia importante de enfrentamento48.
Observa-se que as medidas mencionadas anteriormente são congruentes com as orientações de proteção à saúde mental durante a pandemia, publicadas pelo Ministério da Saúde: realizar atividades (físicas, cognitivas, de relaxamento, entre outros) que diminuam o estresse agudo, manter a rede socioafetiva ativa e buscar atendimento profissional em saúde mental se necessário49. Assim, apesar do sofrimento psíquico, alguns participantes da pesquisa encontraram novas possibilidades de atividades de lazer e de momentos de reflexão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio das narrativas, obteve-se a expressão de sentimentos, pensamentos e ações de estudantes dos dois últimos anos de um curso de Medicina, que vivenciaram o distanciamento social decorrente da pandemia da Covid-19.
Contextualizou-se o enfrentamento da pandemia nos cenários mundial e nacional, em que se retrataram ações governamentais, institucionais e acadêmicas, além das repercussões socioculturais, psicológicas e interpessoais do distanciamento social. Expressaram-se preocupações com a crise de saúde pública, o que levou a reflexões sobre a situação política e econômica do país e suas consequências na assistência à saúde. Ademais, os participantes relataram o impacto negativo na saúde mental e física, com sentimentos de angústia, ansiedade e estresse, surgimento e/ou agravamento de transtornos psiquiátricos e físicos, além de aumento de conflitos familiares.
O cenário acadêmico foi um dos grandes disparadores de uma gama de sentimentos, reflexões e incertezas. Gerou estresse, preocupações acerca de prejuízos para a formação acadêmica, com a paralisação das atividades presenciais, com o ensino remoto e o retorno híbrido. Expressaram-se inseguranças diante da ausência e das possibilidades de retorno das atividades práticas. Houve ainda a angústia relacionada aos impactos na formação profissional.
No entanto, o período de suspensão de atividades foi também visto como uma oportunidade de vivenciar momentos que não seriam possíveis fora do contexto da pandemia. Relataram-se estudos teóricos focados na formação profissional, na maior vivência e no desenvolvimento do vínculo familiar, em atividades de lazer e reflexões individuais acerca de muitos aspectos da vida cotidiana.
Dessa maneira, o período de distanciamento social causado pela pandemia da Covid-19 gerou dificuldades na saúde mental dos estudantes, muitas vezes associadas às alterações no âmbito acadêmico, o que exigiu cuidados. Esse período também foi vivenciado por outros como uma época em que as relações familiares e os desenvolvimentos individuais nos estudos contribuíram para outros aprofundamentos.
Cabe ressaltar que, por conta de todas as alterações existentes no período da pandemia da Covid-19, este estudo teve a limitação no número de participantes, considerando as mudanças na rotina e as fragilidades relacionadas ao acesso aos estudantes. Mesmo assim, em razão dos resultados encontrados no presente trabalho, tornam-se relevantes novos estudos que possam ampliar o olhar das repercussões desse momento histórico aos profissionais em formação.