INTRODUÇÃO
Os serviços de saúde, em seus diferentes níveis de apresentação, respeitam a tríade do Sistema Único de Saúde (SUS) - universalidade, equidade e integralidade - no intuito de estabelecer a saúde como direito de todos, “garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, conforme a Constituição Federal no artigo 1961. Para respeitar esse conceito é necessária uma medicina estruturada e eficaz, que leva em consideração fatores básicos de humanização e relações interpessoais, especialmente na atenção primária à saúde (APS), ambiente em que se desempenha um íntimo contato com a população e se viabiliza importante aprendizagem acadêmica na área médica, uma vez que executa papel central no acesso à saúde e a promove na comunidade.
O desempenho adequado da APS, entre vários fatores, depende também da satisfação do usuário quanto ao serviço2, visto que essa é uma medida indireta de qualidade3. A participação ativa da população permite identificar carências não percebidas pela própria equipe da estratégia da família, sejam elas materiais ou referentes às relações médico-paciente. Portanto, possibilita uma reflexão a partir da perspectiva do paciente e, consequentemente, uma intervenção sobre a forma de organização, visando ao seu aperfeiçoamento. Isso garante o aumento na qualidade do atendimento, repercutindo nas atitudes dos usuários, desde a adesão correta ao tratamento até os cuidados gerais com a saúde4.
Atualmente, no âmbito da atenção primária, as atividades acadêmicas na área médica oferecem um rico espaço de aprendizagem e experiências para os estudantes, permeando não apenas aspectos técnicos, como também conceitos das relações humanas, fundamentais para a execução da medicina com qualidade, que busca entender não apenas a enfermidade em si, mas também todo contexto sociocultural do usuário4. Desse modo, pesquisas que avaliam a qualidade desse serviço são fundamentais para futuras intervenções na APS6.
O trabalho em grupo e a prática colaborativa podem ajudar a melhorar o acesso universal ao serviço oferecido na APS7. Cada equipe da APS é formada por, no mínimo, médico, enfermeiro, técnico de enfermagem e agentes comunitários da saúde, sendo responsável por no máximo quatro mil pessoas, dependendo do nível de vulnerabilidade da comunidade8, baseada em ações interprofissionais e de integralidade. Essas equipes trabalham de maneira comunicativa e interdependente para um bem comum, visando garantir as necessidades de saúde da comunidade, tanto as objetivas quanto as subjetivas9. Por isso, ela oferece um ambiente de parceria e diálogo, sendo certamente uma experiência importante para o desenvolvimento acadêmico.
A disciplina de Medicina de Família e Comunidade (MFC) é essencialmente clínica e busca cumprir os princípios e diretrizes do SUS e da APS. Possui um grande potencial na prática médica e formação de recursos humanos, atuando na APS com uma abordagem biopsicossocial e existencial do processo saúde adoecimento, prioriza a prática médica centrada na pessoa, na relação médico-paciente, com foco na família e comunidade, privilegiando certos atributos de acessibilidade, longitudinalidade, integralidade e coordenação da saúde, sempre com o objetivo de oferecer um serviço de qualidade e resolutivo, resolvendo cerca de 85% das demandas de saúde10.
Sendo o ensino médico uma dimensão de ampla interface entre as políticas de saúde e educação11, a inserção dos estudantes de Medicina na APS possibilita presenciar os atributos da APS, valores que aproximam a prática médica da humanização. Portanto, permite uma compreensão sobre o papel e o funcionamento dela, acrescentando na educação médica princípios importantes, que futuramente podem ser retribuídos para própria saúde da comunidade.
Na pesquisa em questão, em virtude da introdução dos acadêmicos de Medicina na APS e da gama de possibilidades que tal ambiente proporciona, será abordada a percepção dos usuários quanto ao atendimento realizado pelos internos de Medicina em uma unidade básica de saúde (UBS) do Sul do Brasil, uma vez que a necessidade de compreender a perspectiva do usuário em relação à consulta realizada permite tanto para o universitário quanto para o educador um retorno que vai além da visão estritamente técnica, sendo certamente um potencializador da aprendizagem prática.
O projeto tem como objetivos compreender a percepção dos usuários referente às ações desempenhadas pelos acadêmicos em relação à consulta e perceber os aspectos essenciais para os pacientes na relação com os acadêmicos de Medicina, o que permite fortalecer a participação dos estudantes no serviço em questão.
MÉTODO
O estudo foi realizado com meios financeiros próprios, sem nenhum conflito de interesse, conduzida de acordo com a Comissão Nacional deÉticaem Pesquisa (Conep) e com a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Itajaí (CEP/Univali): Parecer nº 4.316.008.
Trata-se de uma pesquisa exploratória com abordagem qualitativa e traços quantitativos. A coleta dos dados aconteceu por meio de entrevistas semiestruturadas e dialogadas, que combinaram conversas informais com perguntas abertas e fechadas, com entrevistas gravadas pelos pesquisadores, posteriormente transcritas e apagadas. Por fim, a interpretação dos dados foi feita pela análise de conteúdo12, que busca qualificar as percepções do usuário sobre determinado objeto13 e descrever o conteúdo emitido no processo de comunicação, com codificação e categorização, de modo a permitir a inferência de conhecimentos14 e extrapolar as relações para além das falas propriamente ditas13. Além disso, as frases dos entrevistados foram separadas em tabelas objetivas para uma visão quantitativa de dados, mesmo que não seja o foco principal da pesquisa.
Portanto, as categorias são resultado de sistematização e analogia após leitura atenta e crítica até a saturação de conteúdo ou questionamentos para definir o que é essencial em função dos objetivos propostos. Os resultados só surgem no final com o método de indução analítica e comparação constante, sendo permanentemente revistas e aperfeiçoadas ao longo da pesquisa15.
Realizaram-se 22 entrevistas até obter o esgotamento dos dados16 em uma UBS no Sul do Brasil, que conta com atendimentos por internos do curso de Medicina. A participação dos usuários na pesquisa foi pelo critério de intencionalidade, com amostragem não probabilística.
Existiam alguns fatores que foram considerados, pois poderiam influenciar as respostas dos usuários. No internato médico, especificamente na UBS em questão, o mesmo grupo de quatro a seis acadêmicos do quinto e sexto ano de Medicina, em um rodízio de sete semanas, atende diariamente em demanda livre pela manhã e em consultas agendadas pela tarde, sempre com a supervisão do médico associado à universidade e responsável pela Estratégia Saúde da Família.
As entrevistas foram realizadas no final da consulta, em ambos os períodos, em um ambiente reservado dentro da UBS, somente com a presença do participante e do entrevistador, que eram formados por um grupo de dois estudantes de Medicina do quarto ano, sem vínculo com os internos que realizaram os atendimentos. Os entrevistadores abordaram 37 pessoas logo após o atendimento, e obtiveram-se 22 aceites.
O usuário é informado no começo do atendimento sobre o atendimento por acadêmicos, que realizam a consulta completa desde o início, sem tempo limite, e só entram em contato com o preceptor no final do atendimento para que possam discutir o caso e definir uma conduta adequada, e o atendimento é finalizado em conjunto pelo estudante e pelo preceptor. Essa dinâmica do internato oferece o tempo necessário para os internos realizarem o atendimento, o que muitas vezes não corresponde à realidade dos serviços de saúde, na qual os médicos possuem uma alta demanda e consequentemente pouco tempo para realizar os atendimentos. Além disso, a participação do médico responsável e do acadêmico na finalização do atendimento e o sentimento de gratidão do usuário pelo atendimento realizado podem indiretamente influenciar a perspectiva do usuário.
1) O/a senhor/a já tinha médico na UBS? |
2) Como o/a senhor/a recebeu a notícia que seria atendido/a pelo acadêmico? |
3) O acadêmico buscava supervisão? |
4) De que forma o/a senhor/a gosta de ser atendido/a? O acadêmico atendeu o/a senhor/a assim? |
5) O acadêmico examinou inteiramente o/a senhor/a? |
6) O/a senhor/a acha que o acadêmico conseguiu entender a sua vida? |
7) O/a senhor/a acha que é importante o acadêmico procurar entender como é sua vida? |
Fonte: Elaborado pelos autores.
1) Os internos se identificaram como acadêmicos de Medicina? O/a senhor/a julga necessário? Por quê? |
2) Durante a consulta, o/a senhor/a julga que o acadêmico ouviu com atenção as suas queixas? Comente sobre a escuta realizada pelo acadêmico. |
3) O/a senhor/a se sentiu confortável com as perguntas realizadas pelos acadêmicos em relação à investigação clínica? Comente livremente. |
4) Durante o exame físico, o/a senhor/a se sentiu confortável e seguro/a com a prática realizada por parte do acadêmico? Por quê? |
5) O/a senhor/a se sentiu seguro/a com as explicações dadas pelo acadêmico e conseguiu entender as informações? Comente livremente. |
6) O/a senhor/a se sentiu seguro/a em relação ao tratamento e às indicações que o acadêmico lhe ofereceu? Comente livremente. |
7) Pretende realizar o que lhe foi recomendado pelos acadêmicos? Comente livremente. |
8) Como o senhor/a julga o tempo de consulta realizada pelo acadêmico? Comente livremente. |
9) Pelo fato de a consulta ser realizada por acadêmicos, o/a senhor/a teve dificuldades para expressar-se? Por quê? |
10) O/a senhor/a acredita que a inserção dos acadêmicos na UBS seja importante? Por quê? |
11) O/a senhor/a julga que os acadêmicos já estão capacitados para realizar as tarefas designadas? Comente livremente. |
12) O que o/a senhor/a recomenda aos acadêmicos para melhorar a experiência? |
13) O senhor/a passaria novamente em consulta com acadêmicos? Por quê? |
Fonte: Elaborado pelos autores.
RESULTADOS
Após a leitura crítica exaustiva das falas, buscando a saturação do conteúdo e a valorização dos achados, selecionaram-se inicialmente 11 categorias gerais com um número elevado de falas (238 falas - 100%), organizadas em respectivos conjuntos. Depois, essas categorias foram sintetizadas em três classes principais baseadas no referencial bibliográfico, com redução do número de falas (39 falas - 16,38%) e utilizando falas de destaque. Por último, realizou-se novamente uma leitura exaustiva e interativa das sentenças com foco na essência e no significado delas e não mais no referencial bibliográfico, extrapolando a compreensão e interpretação para além do referencial bibliográfico utilizado na pesquisa, o que resultou em duas categorias.
Por fim, esses dois grupos ficaram com 14 frases principais (5,88%) que possuíam grande carga de conteúdo e sintetizavam a essência dos dados obtidos. Essas categorias foram divididas em “Humanização na atenção ao usuário” e “Educação médica integrada ao serviço da APS”.
Categorias | Falas |
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Humanização na atenção ao usuário | “A gente se sente mais confortável para se expressar com o médico, não temos um vínculo antigo com o acadêmico, é uma questão de tempo” (entrevistado 19). |
“Ela fez parte de um momento muito difícil da minha vida, ela teve um papel muito importante, ela viveu um processo da minha vida como um todo e me ajudou como um todo” (entrevistado 19). | |
“Deu total atenção para o que precisava” (entrevistado 6). | |
“O médico conversando contigo, te explicando as coisas, te orientando, parece que todas aquelas coisas ruins que eu estava sentindo aliviou” (entrevistado 18). | |
“A interna se dedicou inteiramente” (entrevistado 4). | |
“Me deixou confortável, às vezes não sinto isso nem com médicos já formados. (entrevistado 20). | |
“Gosto quando conversa sobre tudo da minha vida, porque ela vai entender melhor” (entrevistado 22). | |
“Entendeu tudo sobre a minha queixa e tudo em volta disso e me explicou tudo certinho” (entrevistado 22). | |
Educação médica integrada ao serviço da APS | “Importante também para o estudante que tem que pegar o ritmo de entender o povo” (entrevistado 21). |
“Eles não atrapalham em nada, eles ajudam” (entrevistado 14). | |
“É importante a inserção, uma vez que se familiarizam com a rotina e se preparam para exercer sua função no futuro” (entrevistado 3). | |
“Ela foi bem clara e simples para dar as explicações” (entrevistado 12). | |
“Os acadêmicos acabam fazendo mais perguntas” (entrevistado 12). | |
“Gosto que me dê atenção, nos escutem com qualidade, conversem, e perguntem se tem mais alguma coisa” (entrevistado 19). |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Na análise objetiva relacionada às entrevistas, 22 participantes (100%) responderam que os acadêmicos se apresentaram de forma correta - nome, ocupação e universidade. Desses 22 entrevistados apenas um (4,55%) não considerou necessária a apresentação. Além disso, sobre a importância da inserção dos acadêmicos na UBS, novamente todos (100%) responderam que essa inclusão é importante para a formação e carreira médica, tendo como justificativa a possibilidade de os acadêmicos atenderem a comunidade após a graduação, a familiarização com a dinâmica da UBS e do ambiente, o auxílio no fluxo de atendimentos trazendo agilidade para o sistema e a necessidade da aprendizagem na formação médica.
Quando questionados se os acadêmicos já estão preparados para realizar as tarefas designadas, quatro participantes (18,18%) mencionaram que sim, mas com necessidade de supervisão; dois (9,09%) relataram que existem internos despreparados, com justificativas relacionadas ao comportamento técnico teórico demonstrado; e 16 (72,72%) responderam que os estudantes estão devidamente preparados para exercer as funções designadas.
Dos entrevistados que não se sentiram seguros na investigação clínica pelo acadêmico, apenas um (4,55%) foi examinado exclusivamente pelo preceptor, os demais foram examinados pelo acadêmico e quatro (18,18%) necessitaram da supervisão no exame físico com o preceptor junto, sempre respeitando o sentimento do paciente para fornecer-lhe a melhor experiência possível.
Questionamento | Frequência objetiva |
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Os internos se identificaram como acadêmicos de Medicina? O/a senhor/a julga necessário? | Sim, os internos se identificaram: 22 (100%). |
Não, os internos não se identificaram: 0 (0%). | |
É Necessário: 21 (95,45%). | |
Não é necessário: 1 (4,55%). | |
Durante a consulta, o/a senhor/a julga que o acadêmico ouviu com atenção as suas queixas? | Sim: 22 (100%) |
Não: 0 (0%). | |
O/a senhor/a se sentiu confortável com as perguntas realizadas pelos acadêmicos em relação à investigação clínica? | Sim: 21 (95,45%). |
Não: 1 (4,55%). | |
Durante o exame físico, o/a senhor/a se sentiu confortável e seguro/a com a prática realizada? | Sim: 17 (77,27%). |
Não: 1(4,55%). | |
Apenas com a presença do supervisor: 4 (18,18%). | |
O/a senhor/a se sentiu seguro/a com as explicações dadas pelo acadêmico e conseguiu entender as informações? | Sim: 18 (81,82%). |
Não: 0 (0%). | |
Apenas na presença do supervisor: 4 (18,18%). | |
O/a senhor/a se sentiu seguro/a em relação ao tratamento e às indicações que o acadêmico lhe ofereceu? | Sim: 18 (81,82%). |
Não: 0(0%). | |
Apenas na presença do supervisor: 4 (18,18%). | |
Pretende realizar o que lhe foi recomendado pelos acadêmicos? | Sim: 19 (86,36%). |
Não: 0 (0%). | |
Apenas na presença do supervisor: 3 (13,64%). | |
Como o/a senhor/a julga o tempo de consulta realizada pelo acadêmico? | Adequado: 21 (95,45%). |
Não adequado: 1 (4,55%). | |
Pelo fato de a consulta ser realizada por acadêmicos, o/a senhor/a teve dificuldades para expressar-se? | Sim, com dificuldade: 1 (4,55%). |
Não, sem dificuldade: 21 (95,45%). | |
O/a senhor/a acredita que a inserção dos acadêmicos na UBS seja importante? | Sim: 22 (100%). |
Não: 0 (0%). | |
O/a senhor/a julga que os acadêmicos já estão capacitados para realizar as tarefas designadas? | Sim: 16 (72,72%). |
Não: 6 (27,27%). | |
O/a senhor/a passaria novamente em consulta com acadêmicos? | Sim: 22 (100%). |
Não: 0 (0%). |
Fonte: Elaborada pelos autores.
DISCUSSÃO
Humanização na atenção ao usuário
Os participantes da pesquisa ressaltaram os aspectos de humanização dos acadêmicos, principalmente durante o atendimento e referente à atenção oferecida aos usuários, com um entendimento integral do paciente, explícito em “Deu total atenção para o que precisava” (participante 6), “A interna se dedicou inteiramente” (participante 4) e “Atenção e paciência, é disso que precisamos, se sentir acolhidos” (participante 11). A percepção quanto à atenção oferecida pelo acadêmico é fundamental na prática clínica centrada na pessoa, visto que humanização e atenção estão associadas ao melhor acolhimento16 e permitem uma abertura maior do usuário para se expressar, dividindo a hierarquia do atendimento, o que pode facilitar a exploração da saúde, a experiência da doença e o entendimento como um todo do indivíduo, como sugere o método clínico centrado na pessoa (MCCP), além de cumprir um dos significados da integralidade considerando as reais necessidades do atendido17.
Os participantes também deram destaque para a capacidade de entendimento biopsicossocial dos estudantes, em falas como “Gosto quando conversa sobre tudo da minha vida, porque ela vai entender melhor” (participante 22) e “A gente tem aquela cultura que o médico do SUS não olha para gente, mas ela perguntou tudo, abordou tudo sobre o meu dia a dia” (participante 19). Tais frases demonstram o esforço dos acadêmicos em entender o paciente como um todo e não apenas considerar objetivamente os fatores da sua doença, o que é uma característica do MCCP, pois explora a história e o contexto sociocultural e econômico em que cada indivíduo e a família estão inclusos18. Esse procedimento novamente cumpre um atendimento integral, melhora a satisfação do atendido e do médico19, com uma percepção mais ampla sobre a realidade do usuário20, e revela uma abordagem humanizada, com visão abrangente e multifacetada da saúde, além de aspectos de uma educação médica equilibrada entre a capacitação técnica e a formação humanista.
A opinião dos pacientes sugere que a humanização, por meio da atenção, é importante para explorar a saúde, a doença, a experiência da doença e o entendimento do atendido como um todo. A fala “O médico conversando contigo, te explicando as coisas, te orientando, parece que todas aquelas coisas ruins que eu estava sentindo aliviou” (participante 18) evidencia como o processo de exploração e entendimento do usuário por parte do acadêmico foi amplo e completo, adentrando no contexto biopsicossocial que, por meio do diálogo, das explicações e das orientações, permitiu compreender o sentimento do indivíduo e gerar alívio. Além disso, infere-se dessa fala que o processo de atendimento realizado pelo acadêmico permitiu a criação de um vínculo e, consequentemente, o fortalecimento da relação médico-paciente, demonstrando a articulação de atenção, sentimento, confiança com atributos de empatia, cuidado e compaixão presentes na prática do acadêmico, fatores que devem ser praticados no relacionamento, pois aumentam a chance de sucesso do projeto terapêutico18.
Educação médica integrada ao serviço da APS
As percepções sobre o atendimento realizado pelos internos estão relacionadas à categoria de educação médica integrada à APS. A participação dos acadêmicos nos serviços da APS é bem-aceita pelos usuários, vista como uma troca de experiências mútuas, positivas tanto para os pacientes como para estudantes, exemplificado na fala “Vocês aprendem com a gente e acabam nos ajudando também” (participante 16), reafirmando como o estágio é fundamental na formação de qualquer aluno, sendo o meio de transformação no profissional21. Além disso, a importância da educação médica integrada à APS com uma formação humanizada para entender a realidade da comunidade fica explícita na fala “Importante também para o estudante, que tem que pegar o ritmo de entender o povo” (participante 21), o que reforça um desenvolvimento crítico e reflexivo perante as diversas situações interpessoais vivenciada nesse meio16, de modo a aproximar os acadêmicos, futuros médicos, da realidade comunitária e fortalecer a hipótese de que as alterações curriculares realizados nos último anos permitem esse melhor entendimento da realidade.
A educação médica molda-se conforme o tempo, com as mudanças das necessidades sociais referentes à saúde. Atualmente, preza-se uma formação ética, humanista e reflexiva, que visa entender a realidade e formar médicos mais generalistas com menos ênfase nas especialidades por meio de metodologias integradas e ativas22, e, por isso, a atuação precoce dos acadêmicos na APS promove o conhecimento baseado nas necessidades da comunidade e proporciona um novo olhar sobre o processo saúde-doença, uma relação mais próxima com os pacientes e o estabelecimento de vínculos23, a fim de atender às demandas da formação moderna e melhorar a relação médico-paciente e a dedicação e participação do estudante na APS.
Embora a percepção fragmentada do usuário por parte do acadêmico e a contínua preferência por especialidades médicas segmentares ainda estejam presentes na educação médica atual, foi possível perceber a melhor relação médico-paciente, maior participação na atenção básica e maior dedicação a ela22, que ficam claras nas abordagens já citadas, com a presença de uma prática clínica centrada na pessoa e humanizada, com os pacientes reagindo positivamente, visto que recebem mais atenção e percebem mais dedicação, empatia e compaixão.
Por fim, uma percepção importante que sintetiza as informações das entrevistas e engloba as duas categorias trabalhadas demonstrando humanização e educação médica integrada ao serviço da APS fica explícita nas falas “Ela lembra de mim de outros atendimentos” (participante 19) e
[...] só tenho a agradecer, ela participou de um processo para mim, que foi difícil até para compartilhar, ela ainda lembra, ela teve um papel de grande importância, acredito que para ela também deve ter sido importante, pois ela viveu um processo como um todo, um processo que veio desde um tratamento de mãe e filho, tive um problema na gravidez e ela participou de todo o processo de melhora num todo, ela participou de tudo isso, acho que vai ser bem importante na formação dela (participante 19).
Essas falas englobam as duas categorias citadas e contemplam os processos do MCCP, demonstrando a capacidade de entendimento como um todo do usuário, a competência para criar vínculo, manter longitudinalidade e comprometer-se com ele, com foco no fortalecimento da relação médico-paciente.
CONCLUSÕES
No geral, a perspectiva dos usuários em relação ao atendimento dos acadêmicos na UBS em questão foi positiva, em que se destacaram fatores fundamentais da relação médico-paciente e da humanização inclusas nas diretrizes de educação médica atuais. Os estudantes desenvolveram uma prática clínica centrada na pessoa, buscando entender todos os aspectos biopsicossociais e fortalecer o vínculo com o atendido e a comunidade, sempre com uma atenção humanizada, entendendo o paciente como um ser emocional e não apenas como uma doença biológica, assim como sugere o MCCP, o que garante melhores níveis de satisfação21 e cumpre os princípios e atributos exigidos na APS.
Em relação aos aspectos clínicos da consulta na percepção dos usuários, os estudantes de Medicina desempenharam uma prática abrangente das questões técnicas, na maioria das vezes deixando o paciente confortável com a situação e apto para realizar as orientações e opções terapêuticas propostas.
A prática humanizada dos acadêmicos, portanto, é resultaQuado de uma educação médica humanizada que introduz precocemente o acadêmico nos serviços da APS, integrando-o à saúde da comunidade e à realidade prática do serviço, permitindo uma maior dedicação e um maior comprometimento com a APS e os usuários, com resultados expressivos no quesito atenção e humanização.
Sugere-se, portanto, uma introdução precoce do estudante de Medicina no ambiente da APS, com práticas constantes ao longo do curso e com aproximação entre acadêmico, paciente e comunidade, de modo a trabalhar, além dos aspectos técnicos necessários para o desenvolvimento da medicina, aspectos de empatia e compaixão, buscar compreender o atendido como um todo e abranger o MCCP na formação médica.
Por fim, entende-se que a pesquisa demonstra uma realidade local, na qual observamos potencial de generalização para outros ambientes com contexto e característica parecidos. A pesquisa indica a necessidade do fortalecimento da realização da atenção médica dentro da APS no SUS para a formação técnica e humana do acadêmico de Medicina e aponta ainda para a necessidade de maior compreensão dos fatores que potencializam esse aprendizado. A intenção aqui não é propor uma mudança de prática, mas corroborar as mudanças curriculares e buscar novas práticas em medicina, que têm se tornado mais intensas neste século, ao trazermos as falas dos pacientes envolvidos nesse processo.