INTRODUÇÃO
A anatomia, no seu conceito mais amplo, é a ciência que estuda, macro e microscopicamente, a constituição e o desenvolvimento dos seres vivos. A anatomia humana é considerada uma disciplina milenar, a qual é utilizada como base para aqueles que atuam nas diferentes áreas da saúde1.
O cadáver é peça fundamental para a qualificação dos estudantes e profissionais, visto que a prática com o corpo cadavérico permite um maior aprendizado, além de reduzir erros futuros dos profissionais da saúde2. O aprendizado prático da anatomia humana utilizando o corpo cadavérico é de fundamental importância por proporcionar um melhor conhecimento da topografia corporal, já que permite aos estudantes analisar as relações anatômicas entre diferentes órgãos e estruturas. O manuseio do cadáver pelos estudantes é uma prática que visa fortalecer, além do conhecimento anatômico, a humanização dos futuros profissionais da saúde3.
Na grande maioria das instituições de ensino, o aprendizado da anatomia é realizado por meio da utilização de corpos cadavéricos não reclamados, ou seja, de pessoas que faleceram e não foram procuradas por amigos ou familiares. Desde 30 de novembro de 1992, de acordo com a Lei nº 8.501 esses cadáveres podem ser utilizados para o ensino e pesquisa4. Contudo, observa-se atualmente uma diminuição da oferta de corpos não reclamados, fato relacionado com a recente melhoria das condições socioeconômicas do país, associada aos processos burocráticos com alto custo na regularização de corpos não reclamados5.
Diante dessas dificuldades apresentadas, somado à expansão da quantidade de instituições de ensino superior no país, o ensino da anatomia encontra-se em um cenário de escassez de peças cadavéricas. Desse modo, nos últimos anos, com o avançar da tecnologia, surgiram novos métodos de ensino, das mais variáveis possíveis, a fim de suprir a necessidade do cadáver como meio de ensino, a exemplo de lousas digitais, vídeos, softwares 3D, modelos anatômicos sintéticos, entre outros6.
Diversas pesquisas comparam as novas metodologias citadas com o estudo da anatomia com o cadáver, demonstrando que o estudo com a peça anatômica é mais efetivo no ensino dos estudantes7),(8. Além disso, o ensino com metodologias alternativas não substitui de forma completa o estudo com peças anatômicas, podendo, inclusive, contribuir para erros de aprendizado9.
Diante desse cenário, na tentativa de solucionar essa problemática, diversos países, inclusive o Brasil, estabeleceram programas de doação voluntária de corpos. Em 2002, foi aprovado o artigo 14 da Lei nº 10.406/2002 do Código Civil brasileiro, que afirma ser “válida, com objetivo científico ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte para depois da morte. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo”10. Portanto, com a criação dessa lei, tornou-se possível a doação voluntária de corpos para estudo e pesquisa no Brasil. Esse feito, atualmente, tem se constituído como solução momentânea para a falta de cadáveres para o estudo da anatomia humana11.
Desse modo, com as mudanças da legislação e com o objetivo de suprir a necessidade de cadáveres para o ensino e pesquisa, diversas universidades brasileiras implementaram um programa de doação de corpos: Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Faculdade de Medicina do ABC (FMABC), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), entre outras11.
Outrossim, na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), após criação do programa de doação de corpos, ocorreu uma mudança no cenário do fornecimento desses corpos, visto que, antes da criação do programa, a maioria dos cadáveres eram de corpos não reclamados, e, logo após a iniciativa, grande parte era decorrente de doações voluntárias12.
A doação e a captação de peças cadavéricas são baixas em todo o mundo, o que ressalta a importância dessa temática nas diversas universidades. Ademais, para o aumento da adesão a essa prática, o desenvolvimento efetivo de programas e a ampla divulgação tornam-se necessários13.
Apesar dessa mudança no cenário nacional, ainda não há um sistema de doação de corpos no estado do Maranhão, especialmente na Universidade Federal do Maranhão (Ufma). Dessa forma, a fim de tentar suprir a escassez de cadáveres, soergue-se a relevância de um programa de doação de corpos para estudo anatômico na Ufma.
Além disso, ressalta-se a importância de levantar e identificar a opinião da população acerca da temática da doação de corpos para fins educacionais, bem como analisar o grau de conhecimento desses indivíduos a respeito dessa prática. Dessa forma, o presente estudo objetivou analisar o grau de conhecimento e as perspectivas da comunidade universitária a respeito da doação voluntária de corpos cadavéricos para fins educacionais e de pesquisa.
MÉTODO
Tipo de estudo
Trata-se de um estudo observacional, transversal e prospectivo com abordagem quantitativa e coleta de dados por meio de questionário individual.
Local do estudo
O presente trabalho foi realizado em uma instituição pública de ensino superior - Universidade Federal do Maranhão, campus Dom Delgado, situado na Avenida dos Portugueses, 1966, Vila Bacanga, São Luís, MA, CEP 65080-805. Ademais, foi envolvido nesse projeto o Departamento de Morfologia (Demor), o qual serviu como suporte para realização das etapas da pesquisa.
Amostra do estudo
A amostra deste estudo foi constituída por estudantes matriculados na Ufma (campus Dom Delgado) e que tenham cursado ou não a disciplina de Anatomia Humana, bem como docentes da instituição. Todos os discentes estavam, durante a pesquisa, devidamente cadastrados no Sistema Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas (Sigaa - https://sigaa.ufma.br). Ademais, quanto aos docentes, foram selecionados profissionais das mais diversas áreas contempladas pela universidade. Durante todo o estudo, incluíram-se homens e mulheres de idade igual ou superior a 18 anos. A amostra foi composta por 264 indivíduos ao todo, sendo 202 discentes e 62 docentes.
Coleta de dados
Tendo em vista o contexto da pandemia de Covid-19, no qual esta pesquisa foi desenvolvida, realizou-se a aplicação do questionário de forma remota e individualizada, por meio de formulário desenvolvido na plataforma Google Forms. Os participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) anexado ao questionário para que pudessem ser incluídos no estudo. Com o intuito de coletar e analisar as informações acerca da doação de corpos para fins de estudo em anatomia humana, elaboraram-se dois questionários com base em perguntas já abordadas sobre o tema em estudos anteriores11),(14)-(16. O primeiro destinou-se especificamente aos discentes; e o segundo, aos docentes da instituição.
O site da Ufma disponibiliza a relação de alunos e professores com matrícula ativa, separados por curso. Assim, a partir do nome de cada aluno, foi possível obter o endereço de e-mail institucional associado à matrícula. As unidades acadêmicas da Ufma são divididas de acordo com as áreas do conhecimento: ciências biológicas e da saúde, ciências humanas, ciências sociais, ciências exatas e tecnologia, ciências agrárias e ambientais. Para cada unidade, a plataforma digital da Ufma disponibiliza a relação de alunos e professores com matrícula ativa17. A partir dessa relação, é possível obter o endereço de e-mail institucional, associado à plataforma Google Workspace. Em seguida, o endereço eletrônico do formulário foi enviado para todos os discentes e docentes com matrícula ativa e com endereço de e-mail institucional cadastrado. A aplicação dos questionários e a coleta de dados ocorreram entre os meses de agosto e novembro de 2021.
Análise dos resultados
Os dados foram analisados conforme perfil sociodemográfico (sexo, idade, cor, religião e estado civil), características socioculturais, conhecimento e perspectivas sobre a doação voluntária de corpos para fins de ensino e pesquisa. Utilizou-se a linguagem de programação Python, versão 3.9.10. Trata-se de popular linguagem de script de alto nível, cuja primeira versão foi lançada por Guido van Rossum em 1991. Atualmente, é mantida pela organização sem fins lucrativos Python Software Foundation e compartilhada sob a licença Python Software Foundation. É uma das principais linguagens de programação utilizada em ciência de dados18, com grande disponibilidade de bibliotecas e ferramentas gratuitas. Para o processamento dos dados, utilizaram-se as bibliotecas Pandas versão 1.4.3, cujo foco é manipulação de dados em alto nível19),(20, e SciPy versão 1.8.1, biblioteca com ampla gama de algoritmos de cálculo estatístico. Ambas são gratuitas e de código aberto, disponibilizada no GitHub, principal plataforma de hospedagem de código-fonte21. Para variáveis categóricas, realizou-se o teste do qui-quadrado. A significância estatística foi considerada para valores de p < 0,05, com nível de significância de 95%. Os resultados serão expressos como média ± desvio-padrão, para as variáveis contínuas, e porcentagens, para as variáveis binomiais. Os dados foram tabulados no Microsoft Office Excel.
Considerações éticas
Depois de submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), esta pesquisa foi aprovada: Parecer nº 4.623.985. Garantiu-se a confiabilidade das informações prestadas para todos os participantes, os quais assinaram o TCLE. Os dados coletados foram utilizados somente para o que se refere aos objetivos da pesquisa, sendo as informações apresentadas de forma coletiva, sem qualquer dano para as pessoas envolvidas. Os dados encontram-se sob a guarda dos pesquisadores, de modo a assegurar o sigilo e a confidencialidade.
RESULTADOS
A amostra do estudo foi constituída de dois grandes grupos: 202 discentes e 62 docentes da Ufma. Avaliaram-se as seguintes variáveis em relação ao perfil sociocultural dos participantes: idade, sexo, cor, estado civil, área de formação/atuação e religião.
Em relação aos discentes, a população amostral apresentou média de 23,16 ± 4,79 anos de idade, sendo constituída por 127 (62,87%) indivíduos do sexo feminino e 75 (37,13%) do sexo masculino. Os resultados indicaram que 191 (94,55%) eram solteiros, dez (4,95%) eram casados e apenas um (0,5%) era divorciado, e nenhum discente se enquadrou no perfil “outros” (união estável, viúvo, desquitado).
Ademais, a análise do perfil religioso mostrou o seguinte: 78 (38,61%) dos discentes eram católicos, 53 (26,24%) não tinham religião, 38 (18,82%) eram evangélicos, 22 (10,89%) não quiseram declarar e 11 (5,44%) pertenciam a outras religiões (kardecista, espírita, afro-brasileiras). Em relação à cor, 93 discentes (46,04%) eram pardos; 79 (39,11%), brancos; 27 (13,37%), negros; e três (1,48%) mencionaram outras possibilidades (amarela, indígena, não soube informar). A análise estatística permitiu inferir que 125 (61,88%) discentes eram da área da saúde e 77 (38,12%) não eram da área da saúde, e estavam nesse grupo alunos dos mais diversos cursos da instituição, como Direito, Jornalismo, Letras, Ciência da Computação, Engenharias, Design, Ciências Econômicas, entre outros.
Quanto ao conhecimento dos discentes em relação à possibilidade de doar o corpo cadavérico para fins de ensino e pesquisa, 173 (85,64%) responderam que tinham conhecimento acerca dessa possibilidade e 29 (14,36%) responderam que não tinham.
Quando questionados se doariam o próprio corpo para fins de estudo e pesquisa em anatomia, observou-se que 34 (27,2%) discentes da área da saúde marcaram que doariam, 44 (35,2%) marcaram que não doariam e 47 (37,6%) mencionaram não ter opinião formada. Em relação aos discentes que não são da área da saúde, 21 (27,27%) marcaram que doariam o próprio corpo, 22 (28,57%) marcaram que não doariam o próprio corpo e 34 (44,16%) mencionaram não ter opinião formada. Não houve diferença estatisticamente significativa entre os dois grupos (p > 0,05).
Diante desses resultados, analisaram-se os motivos favoráveis à doação do próprio corpo apontados pelos discentes, descritos na Tabela 1. Em relação aos discentes da área da saúde, quando se analisaram as respostas dos 34 (27,2%) alunos que doariam o próprio corpo, obteve-se o seguinte resultado: 17 marcaram que doariam o corpo “para contribuir com o avanço da educação na área da saúde”, sete marcaram “serei útil mesmo após o meu falecimento”, seis marcaram que doariam porque “conheço a necessidade desse material nos laboratórios”, três marcaram “para ajudar o próximo a ser um profissional mais qualificado” e um marcou que doaria “em agradecimento à ciência”. Já os discentes que não são da área da saúde, quando se analisaram os 21 (27,27%) alunos que doariam o próprio corpo, obteve-se o seguinte resultado: 11 marcaram que doariam o corpo “para contribuir com o avanço da educação na área da saúde”, cinco marcaram “serei útil mesmo após o meu falecimento”, três marcaram que doariam “em agradecimento à ciência” e dois marcaram que doariam porque “conheço a necessidade desse material nos laboratórios”.
Discentes da saúde | Discentes de outras áreas | |||
---|---|---|---|---|
N | % | N | % | |
Para contribuir com o avanço da educação na área da saúde | 17 | 50 | 11 | 52,4 |
Serei útil mesmo após o meu falecimento | 7 | 20,6 | 5 | 23,8 |
Conheço a necessidade desse material nos laboratórios | 6 | 17,64 | 2 | 9,5 |
Para ajudar o próximo a ser um profissional mais qualificado | 3 | 8,82 | - | - |
Em agradecimento à ciência | 1 | 2,94 | 3 | 14,3 |
Total | 34 | 100 | 21 | 100 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Na esteira desse raciocínio, analisaram-se também as razões pelas quais os discentes não eram favoráveis à doação do próprio corpo, conforme descrito na Tabela 2. Em relação aos 44 (35,2%) discentes da área da saúde que marcaram que não doariam o próprio corpo, 26 marcaram que não doariam porque “quero ser enterrado/cremado ou outros”, cinco marcaram que “alunos desrespeitam o cadáver”, quatro marcaram que “familiares não aceitariam”, três marcaram que não doariam por “motivos religiosos”, dois marcaram que não doariam “por vergonha de ser reconhecido”, dois marcaram que não doariam por “despreparo da universidade em receber cadáveres” e dois colocaram em “outro motivo”: “prefiro que meu corpo seja destinado à doação de órgãos”. Em relação aos 22 (28,57%) discentes que não são da área da saúde e que marcaram que não doariam o próprio corpo, 12 marcaram que não doariam porque “quero ser enterrado/cremado ou outros”, quatro marcaram que “alunos desrespeitam o cadáver”, três marcaram que “familiares não aceitariam” e três colocaram em “outro motivo”: “prefiro que meu corpo seja destinado à doação de órgãos”.
Discentes da saúde | Discentes de outras áreas | |||
---|---|---|---|---|
N | % | N | % | |
Quero ser enterrado/cremado ou outros | 26 | 59 | 12 | 54,54 |
Alunos desrespeitam o cadáver | 5 | 11,37 | 4 | 18,2 |
Familiares não aceitariam | 4 | 9,1 | 3 | 13,63 |
Motivos religiosos | 3 | 6,81 | - | - |
Por vergonha de ser reconhecido | 2 | 4,54 | - | - |
Despreparo da universidade em receber cadáveres | 2 | 4,54 | - | - |
Outros motivos | 2 | 4,54 | 3 | 13,63 |
Total | 44 | 100 | 22 | 100 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Com relação ao conhecimento dos discentes acerca dos procedimentos e documentos necessários para realizar a doação de corpos com fins educacionais, observou-se que a grande maioria dos participantes (195, 96,53%) não tinha nenhum conhecimento sobre o que seria necessário para realizar a doação. Além disso, a grande maioria dos discentes (176, 87,12%) respondeu que não conhecia a lei brasileira que permite a doação de corpos.
Com relação aos resultados dos docentes, a população amostral apresentou uma média de 49,65 ± 9,95 anos de idade, sendo constituída por 32 (51,61%) indivíduos do sexo feminino e 30 (48,39%) do sexo masculino. Os resultados indicaram que 46 (74,19%) eram casados; oito (12,90%), divorciados; seis (9,68%), solteiros; e dois (3,23%), viúvos.
Quanto ao perfil religioso dos docentes, a análise dos dados mostrou que 35 (56,45%) indivíduos mencionaram ser católicos, oito (12,90%) se classificaram como “sem religião”, sete (11,29%) se declararam evangélicos, sete (11,29%) apontaram ser kardecistas e cinco (8,06%) sinalizaram que pertenciam a outras religiões ou não quiseram declarar. Quanto à cor da pele, 35 (56,45%) docentes se autodeclararam brancos, 25 (40,32%) mencionaram ser pardos, um (1,61%) se declarou amarelo e um (1,61%) apontou ser preto. A análise estatística permitiu inferir que 43 (69,35%) dos docentes eram da área da saúde e 19 (30,65%) não eram da área da saúde.
Quanto à análise do conhecimento dos participantes em relação à possibilidade de doar o corpo cadavérico para fins de ensino e pesquisa, 54 (87,1%) responderam que tinham conhecimento acerca dessa possibilidade e oito (12,9%) responderam que não tinham conhecimento.
Quando questionados se doariam o seu corpo para fins de estudo e pesquisa em anatomia, observou-se que dez (23,26%) docentes da área da saúde marcaram que doariam o próprio corpo, 16 (37,21%) marcaram que não doariam e 17 (39,54%) mencionaram não ter opinião formada. Em relação aos docentes que não são da área da saúde, oito (42,11%) marcaram que doariam o próprio corpo, sete (36,84%) marcaram que não doariam o próprio corpo e quatro (21,05%) mencionaram não ter opinião formada. Não houve diferença estatisticamente significativa (p > 0,05) entre os dois grupos.
Diante desses resultados, foram analisados os motivos que os docentes apontaram para doar ou não doar o próprio corpo, dados demonstrados nas tabelas 3 e 4. No que se refere aos docentes da área da saúde, analisando os que marcaram que doariam o próprio corpo, cinco marcaram que doariam o corpo “para contribuir com o avanço da educação na área da saúde”, três marcaram “em agradecimento à ciência”, um marcou “conheço a necessidade desse material nos laboratórios” e um marcou “para ajudar o próximo a ser um profissional mais qualificado”. Quanto aos docentes que não são da área da saúde, analisando os que marcaram que doariam o próprio corpo, sete marcaram que doariam o corpo “para contribuir com o avanço da educação na área da saúde” e um marcou “serei útil mesmo após o meu falecimento”.
Docentes da saúde | Docentes de outras áreas | |||
---|---|---|---|---|
N | % | N | % | |
Para contribuir com o avanço da educação na área da saúde | 5 | 50 | 7 | 87,5 |
Em agradecimento à ciência | 3 | 30 | - | - |
Conheço a necessidade desse material nos laboratórios | 1 | 10 | - | - |
Para ajudar o próximo a ser um profissional mais qualificado | 1 | 10 | - | - |
Serei útil mesmo após o meu falecimento | - | - | 1 | 12,5 |
Total | 10 | 100 | 8 | 100 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Docentes da saúde | Docentes de outras áreas | |||
---|---|---|---|---|
N | % | N | % | |
Quero ser enterrado/cremado ou outros | 8 | 50 | 5 | 71,4 |
Alunos desrespeitam o cadáver | - | - | - | - |
Familiares não aceitariam | 4 | 25 | - | - |
Motivos religiosos | 2 | 12,5 | 1 | 14,3 |
Por vergonha de ser reconhecido | - | - | - | - |
Despreparo da universidade em receber cadáveres | - | - | - | - |
Outros motivos | 2 | 12,5 | 1 | 14,3 |
Total | 16 | 100 | 7 | 100 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Quando se analisaram os fatores que levaram os docentes a não doar o próprio corpo, identificou-se, entre os docentes da área da saúde, que um total de oito profissionais marcaram que não doariam porque “quero ser enterrado/cremado ou outros”, quatro marcaram que “familiares não aceitariam”, dois marcaram que não doariam por “motivos religiosos”, dois colocaram em “outros motivos”: “sou doador de órgãos” e “me sinto ainda despreparada emocionalmente para isso”. Ademais, no que diz respeito aos docentes que não são da área da saúde e que marcaram que não doariam o próprio corpo, cinco marcaram que não doariam porque “quero ser enterrado/cremado ou outros”, um marcou que não doaria por “motivos religiosos” e um colocou em “outros motivos”: “deixo essa opção para esposa e filhos”.
Foi questionado aos docentes quais seriam os procedimentos e documentos necessários para realizar a doação de corpos com fins de ensino e de pesquisa, e, diante disso, observou-se que a grande maioria dos participantes (54, 87,1%) não tinha nenhum conhecimento sobre o que seria necessário para realizar a doação. Além disso, a grande maioria dos docentes (52, 83,9%) respondeu que não conhecia a lei brasileira que permite a doação de corpos.
DISCUSSÃO
Esta pesquisa apresenta uma particularidade: ocorreu no período de distanciamento social em virtude da pandemia da Covid-19, em que a comunidade acadêmica também foi envolvida sem precedentes. Assim, a necessidade em manter o acervo de cadáveres para o ensino médico torna-se essencial no aprendizado da anatomia humana, visto que permite uma visão tridimensional das estruturas anatômicas, além de demonstrar de forma real as texturas dos diferentes tecidos16. Vale lembrar que o conhecimento anatômico que o estudo com corpos cadavéricos permite, a vivência na sala de dissecação e o contato com o cadáver proporcionam uma oportunidade para desenvolver princípios da prática ética entre os estudantes desde o início da formação acadêmica22.
Na tentativa de solucionar a falta de tamanho pilar no ensino, as universidades brasileiras, baseadas no artigo 14 da Lei nº 10.406/2002 do Código Civil brasileiro10, desenvolveram programas de doação de corpos para ensino e pesquisa em anatomia. Apesar dessa mudança no cenário nacional, ainda não há um sistema de doação de corpos no estado do Maranhão, especialmente na Ufma. Dessa forma, visando à implementação futura de um programa de doação de corpos na Ufma, a fim de solucionar a escassez do cadáver na instituição, o presente estudo analisou o grau de conhecimento e as perspectivas da comunidade universitária a respeito da doação voluntária de corpos cadavéricos para fins educacionais e de pesquisa.
Quando se analisou o conhecimento dos participantes acerca da possibilidade da doação voluntária do próprio corpo, observou-se uma alta porcentagem tanto dos discentes (85,64%) como dos docentes (87,1%). Contudo, na avaliação do grau de conhecimento desses grupos acerca dos procedimentos e documentos necessários para realizar a doação, bem como qual seria a legislação brasileira que permite tal prática, nota-se que ambos apresentam baixo percentual de conhecimento sobre essas temáticas. No que diz respeito aos discentes, identificou-se que 96,53% e 87,12% não conheciam os procedimentos e a legislação, respectivamente. Já em relação aos docentes, 87,1% e 83,9% não conheciam os procedimentos e as leis, respectivamente. Dessa forma, esses resultados demonstram que os participantes, apesar de apresentarem um conhecimento prévio acerca da possibilidade de doar o próprio corpo, carecem de informações sobre como realizar isso, bem como da legislação brasileira que permite tal prática.
O presente estudo avaliou a opinião da comunidade universitária acerca da disponibilidade em doar o próprio corpo. Quando se analisou a disponibilidade da comunidade universitária no geral, observou-se que somente 27,65% dos participantes estavam aptos a doar, 33,7% apontaram que não doariam o próprio corpo e 38,9% marcaram a opção “não tenho opinião formada”. Encontrou-se resultado semelhante em outro estudo, no qual foi apontado que 25% dos entrevistados estavam dispostos a doar o próprio corpo, 51% responderam que não doariam e 24% mencionaram não ter opinião formada sobre o assunto13.
Apesar de os docentes e discentes da área da saúde terem maior conhecimento e contato com a anatomia humana e com o corpo cadavérico, não se encontrou relação estatisticamente significativa em doar o próprio corpo, ou seja, neste estudo, essas populações não se mostraram mais propensas a essa prática. Observou-se ainda que docentes e discentes que não são da área da saúde possuem um maior percentual favorável quando questionados sobre a doação do próprio corpo para ensino e pesquisa da anatomia do que os docentes da área da saúde, além de apresentarem um percentual menor de recusa quando questionados sobre a doação.
Ademais, tanto os discentes como os docentes apresentam um alto percentual de indecisão, demonstrando não ter opinião formada sobre doar ou não o próprio corpo, o que abre uma possível margem de crescimento na disponibilidade de doar, a qual pode ser obtida por meio do uso das mídias sociais, sites e exposições nas universidades e em locais públicos para disseminação de informações sobre essa temática23. Pensamento semelhante é compartilhado por Ranjan et al.24, os quais afirmam que campanhas podem ser feitas para sensibilização do público.
Do mesmo modo, segundo Signorati16, somente ter legislações específicas para doação de corpos não é suficiente para resolver o problema da escassez de corpos, sendo a divulgação dessas informações um ponto importante para auxiliar na desinformação sobre o direito de doar o próprio corpo, algo que já é feito por meio de site, panfletos e campanhas na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
Um passo importante para intervir na disponibilidade de doação dos indivíduos é conhecer os fatores que levam a doar o próprio corpo, bem como os fatores que impedem essa prática. Dessa forma, o presente estudo analisou que, entre os discentes e docentes, os principais motivos que levaram à doação foram: “para contribuir com o avanço da educação na área da saúde”, “ser útil após o meu falecimento”, “conheço a necessidade do cadáver no laboratório de anatomia”, “em agradecimento à ciência” e “ajudar o próximo a ser um profissional mais qualificado”. Esses dados também corroboram os resultados divulgados por Marsola11, que apontou motivos semelhantes para a doação voluntária. Além disso, o principal motivo identificado foi a vontade de ser útil após o falecimento, elucidado por Bolt et al.25.
No que diz respeito aos motivos que não levariam à prática da doação, os mais frequentes apontados pelos discentes e docentes foram: “quero ser enterrado ou cremado”, “alunos desrespeitam o cadáver”, “familiares não aceitariam”, “motivos religiosos”, “despreparo da universidade em receber cadáveres” e “vergonha em ser reconhecido”. De forma semelhante, consoante com os dados desta pesquisa, estudos apontam que motivos como medo em ser reconhecido, motivos religiosos, vontade sem ser cremado/enterrado e possível tratamento inadequado dos corpos pelas universidades são motivos que influenciam negativamente a doação voluntária26),(27.
Diante dos fatores que influenciam negativamente a doação dos corpos cadavéricos, somados ao grande número de indivíduos indecisos em doar ou não o próprio corpo, e do grau de desinformação a respeito dessa questão, aponta-se a importância da divulgação dessa temática nas mídias e na sociedade, por meio de campanhas feitas de forma contínua com fim informativo e educativo sobre a doação de corpos para fins de ensino e pesquisa.
A implantação de um programa de doação de corpos, somada a uma divulgação sistemática em sites e mídias sociais, focada em informar a população sobre esse direito e sobre a legislação que permite a prática da doação, pode auxiliar de forma importante a solucionar a escassez de corpos cadavéricos nas universidades brasileiras. Um exemplo importante é o da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a qual possui um sistema de doação de corpos chamado “Vida após a Vida” que realiza divulgação em seu site e em suas mídias sociais e que já teve mais de 60 corpos doados ao longo da existência do programa28.
Observa-se também na literatura um resultado positivo apresentado por Rocha et al.12 com a implantação de um programa de doação voluntária na UFCSPA, em 2008. Depois da divulgação do programa, houve um aumento no número de doações: de 26 (obtidas no período de 2003-2007) para 147 corpos, de 2008 a 2012, com uma média de 29,4 registros de cadáver por ano.
De forma sinérgica com essas ações, os estudos internacionais apontam a importância do respeito com o cadáver para a melhoria dos índices de doação, já que o desrespeito com o cadáver por parte dos estudantes é um motivo apontado como contrário à doação. Atitudes de respeito e admiração devem ser ensinadas aos alunos e a todos os profissionais da área da saúde ao utilizarem o corpo cadavérico, medida que faz os potenciais doadores terem mais confiança no ato de doar e entenderem melhor a importância do cadáver27.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Evidenciou-se que a maioria dos entrevistados possui conhecimento acerca da possibilidade de doar o próprio corpo para fins de ensino e pesquisa. Contudo, identificamos que um alto percentual não conhece os procedimentos e a legislação que permite a doação.
Em relação à disponibilidade de doar o próprio corpo, conclui-se que os participantes apresentam baixa aptidão para doação, entretanto mostram-se motivados para doação como uma contribuição para a educação na área em saúde.
Concluímos que a criação de um programa de doação de corpos serve como meio de viabilizar a doação voluntária, sendo essa ação, somada à divulgação da temática por meio das mídias, um importante caminho para auxiliar no problema de escassez de corpos cadavéricos nas universidades brasileiras, além de trazer melhorias significativas na qualidade de ensino dos alunos e na melhor formação profissional médica.