INTRODUÇÃO
Médicos e profissionais de saúde estão entre as categorias ocupacionais particularmente vulneráveis ao risco de suicídio1)-(3, sobretudo as mulheres4. Médicos residentes em formação5),(6 e estudantes de Medicina também constituem um grupo de alto risco para comportamento suicida7)-(9. Estresse psicológico, sintomas depressivos e burnout são mais prevalentes nos anos iniciais de treinamento, mas, em qualquer estágio da carreira médica, esses sintomas são comparativamente mais prevalentes que em outras ocupações10.
Os alunos de Medicina são especialmente vulneráveis ao sofrimento mental e ao risco de suicídio. Apresentam características prévias comuns de alta exigência pessoal e competitividade, e são recém-saídos de uma experiência de grande empenho, estudo e estresse da fase pré-vestibular11. Deparam-se com a realidade do curso idealizado, intensa carga horária de aulas, competitividade, frustração em não manter alto desempenho de notas, a necessidade de aprender novas formas de estudar e o contato com doenças graves, a miséria e a morte12),(13. Com o tempo, surgem problemas relacionados à possibilidade de conciliar vida social e familiar, aos plantões, às dificuldades do internato, à quebra de expectativas quanto à profissão, à frustração com tratamentos de condições graves e à morte14.
Diferentes revisões encontraram uma prevalência de depressão e sintomas depressivos em aproximadamente um terço dos estudantes de Medicina, maior que na população geral15),(16. Entre mais de 20 mil alunos de Medicina, em uma revisão sistemática com artigos de 43 países, a presença de ideação suicida (IS), nas últimas duas semanas até nos últimos 12 meses, foi estimada em torno de 11%15, similar à encontrada em um estudo de metanálise que reuniu mais de 30 mil alunos de cursos de Medicina da China17.
A prevalência de IS ao longo da vida entre os estudantes de Medicina variou internacionalmente de 2,9% a 53,6%18. Na literatura mundial, as prevalências de ideação, planejamento e tentativas de suicídio (TS) alguma vez na vida entre estudantes de Medicina encontradas variaram muito: na Noruega, encontraram-se prevalências de 43% de ideação, 8% de planejamento e 1,4% de TS7; no Paquistão, prevalências de 35,6% de ideação, 13,9% de planejamento, e 4,8% de TS19; na China, prevalências de 17,9% de ideação, 5,2% de planejamento e 4,3% de TS20; e no Nepal, prevalências de 10,7% de ideação, 1% de planejamento e 1% de TS21.
A prevalência de TS alguma vez na vida também variou entre alunos de Medicina de outros países, com valores de 1,9% nos Estados Unidos9, 2,2% na Áustria22, 3,9% na Etiópia23, 6,4% na Turquia22 e 6,9% na África do Sul24.
Os fatores associados ao comportamento suicida entre estudantes de Medicina em âmbito internacional foram: gênero feminino19),(20),(25, baixo nível de escolaridade da mãe20, negligência/características de relacionamento com os pais18)-(21, pouco suporte social23, dificuldades financeiras18),(26, morar sozinho26, insatisfação/pior desempenho acadêmico21),(23),(25),(27, estar no primeiro ano do curso19, estar nos semestres clínicos21, saúde física precária26, depressão7),(18),(23),(26),(27, ansiedade7),(18),(23, estresse23, características de funcionamento psicológico7),(20, antecedente de transtorno psiquiátrico18),(19),(25, estar em tratamento psicofarmacológico26, uso de álcool23),(26, uso de drogas18),(19),(21),(25),(27 e eventos negativos na vida7.
Na América Latina, observaram-se prevalências de ideação, planejamento e TS alguma vez na vida de 34,3%, 22,4% e 19,4% entre estudantes de Medicina peruanos28. Com relação aos futuros médicos da Colômbia, verificaram-se prevalências de IS e TS alguma vez na vida de 15,7% e 5%27. No caso dos paraguaios, a prevalência de IS nos últimos 30 dias foi de 7,8%29. Uma revisão latino-americana encontrou prevalências de IS entre alunos de Medicina de países da região de 13,7%30, considerando diversos instrumentos de coleta31.
Existe uma crescente literatura sobre a saúde mental dos futuros médicos no Brasil32)-(35, e sintomas ansiosos e depressivos são mais prevalentes nesse público quando comparado com a população geral36),(37 ou grupo de idade correspondente38. Falta de motivação, pouco suporte emocional e sobrecarga acadêmica foram correlacionados com problemas de saúde mental39.
No Brasil, são poucos os estudos sobre comportamento suicida em estudantes de Medicina, e as prevalências de IS aferidas por diferentes instrumentos padronizados (períodos entre uma semana e um mês anterior à pesquisa) variaram de 7,5% a 13,4%40)-(42 nos estudos da primeira década do século XXI. Em dois estudos recentes, encontrou-se uma prevalência de 30% de IS no último mês, entre alunos de Medicina brasileiros43),(44.
No estudo de Carro et al.45 sobre a presença de sintomas da síndrome de burnout entre alunos de uma Faculdade de Medicina particular da Região Sul do Brasil, 81,2% dos respondedores sinalizaram afirmativamente quando perguntados sobre a presença de pensamentos suicidas durante o curso de Medicina (não houve a utilização de instrumentos específicos para a avaliação de comportamento suicida).
Na literatura brasileira, os fatores mais associados à IS em estudantes de Medicina foram viver sozinho, pensamentos de abandonar o curso, sintomas depressivos moderados ou graves e provável transtorno obsessivo-compulsivo46. Identificou-se uma alta prevalência de desesperança entre esses alunos42. Disfunções familiares43, burnout45 e ansiedade44 foram associados à presença de IS entre os estudantes de Medicina brasileiros.
Apenas um estudo investigou a prevalência de TS entre acadêmicos de Medicina no Brasil47. Os fatores associados a tentativas anteriores de suicídio foram: gênero feminino; homossexualidade; baixa renda; bullying por colegas universitários; trauma na infância ou no período adulto; história familiar de suicídio; IS no último mês; uso diário de tabaco; e abuso de álcool47.
Há uma escassez de informação sobre o comportamento suicida dos estudantes de Medicina brasileiros. Este estudo teve como objetivos avaliar a prevalência de ideação, planejamentos e TS em uma amostra de estudantes de graduação em Medicina do Brasil, e identificar a associação de fatores sociodemográficos, de vida estudantil e de saúde com a presença de pensamentos suicidas.
MÉTODO
Período e local do estudo
Este estudo foi realizado entre 2017 e 2018 com alunos de graduação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O curso de Medicina é oferecido pela Faculdade de Ciências Médicas (FCM) e possui um rigoroso processo de seleção com vagas disputadas por estudantes de todo o país. Seus programas de assistência médica, docência e pesquisa se desenvolvem em um complexo docente-assistencial que inclui o Hospital de Clínicas, o Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (CAISM), o Hemocentro, o Gastrocentro, o Hospital Estadual de Sumaré e vários centros de saúde da rede pública do município de Campinas. Ao todo, a FCM conta com 299 docentes, 236 servidores não docentes, 869 alunos de graduação, cerca de 2,5 mil alunos de pós-graduação e 1,2 mil médicos residentes e residentes multiprofissionais.
Desenho do estudo e população
O estudo é de corte transversal, quantitativo e descritivo. A FCM possui aproximadamente 120 alunos em cada um dos seis anos de curso obrigatórios na graduação de Medicina, no Brasil. Dessas 120 vagas, 110 são preenchidas pelo vestibular da Unicamp, e dez, pelo Programa de Formação Interdisciplinar Superior (ProFIS). A seleção vestibular prevê adição de pontos à nota dos candidatos que tenham cursado escola pública e reserva (cotas) de no mínimo 25% das vagas para alunos pretos e pardos. O ProFis é voltado aos estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas de Campinas e obtiveram as melhores notas do Enem em suas respectivas escolas. A taxa de evasão do referido curso é mínima, com apenas duas desistências nos últimos dez anos.
Por causa do período de coleta de dois anos, além de uma turma para cada ano do curso médico, duas turmas de primeiro ano foram convidadas a participar. No total, 722 alunos matriculados em todos os anos do curso de Medicina optaram por participar.
Ferramenta de coleta de dados e procedimentos
Os estudantes foram convidados a responder voluntariamente, em sala de aula, a um questionário anônimo, preenchido, de forma individual, após a orientação dos aplicadores e a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
O questionário geral possui questões abertas e de múltipla escolha, com perguntas tanto originais quanto baseadas em instrumentos preestabelecidos, abordando temas relacionados a perfil sociocultural, vida acadêmica, vida social, hábitos e atividades de lazer e questões de saúde mental, física e sexual.
Entre os instrumentos, utilizou-se o Alcohol Use Disorder Identification Test (AUDIT)48, desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e validado em português para o Brasil49, com o objetivo de identificar o uso problemático de álcool. O AUDIT possui dez questões sobre o uso de álcool no ano anterior, cada uma com valores de 0 a 4 (máximo 40). Uma nota final de oito ou mais indica uso problemático de álcool.
Questões específicas sobre comportamento suicida foram desenvolvidas pelo grupo de pesquisa e colaboradores. Esse instrumento consiste em três perguntas principais:
Alguma vez na sua vida você pensou seriamente em pôr fim à própria vida?
Alguma vez na sua vida você fez planos concretos para pôr fim à própria vida?
Alguma vez na vida você fez uma tentativa de pôr fim à própria vida (tentativa de suicídio)?
Questionou-se se houve pensamentos ou planos suicidas nos últimos 30 dias.
Houve ainda um questionamento sobre a quantidade de tentativas e sobre quantas vezes o indivíduo teve que ser enviado ao pronto-socorro.
Sobre a última TS, realizaram-se os seguintes questionamentos: “Como foi?”, “Quando foi”, “Ficou mais de 24 horas em observação?” e “Foi necessária internação em UTI ou realização de cirurgia?”.
Não se contabilizaram os estudantes que optaram por não participar do estudo, e excluíram-se aqueles que entregaram seus questionários completamente não preenchidos.
Processamento e análise dos dados
Criou-se um banco de dados com a utilização do programa estatístico SPSS for Windows versão 22. Os dados foram inseridos por membros da equipe de pesquisa e inteiramente revisados duas vezes. O programa computacional utilizado para a obtenção das análises descritivas e de associação foi o IBM SPSS Statistics. Realizaram-se testes de qui-quadrado para identificar essas associações. Calculou-se a razão de chances (odds ratio) nos eventos binários para medir a força dessas associações. Foi adotado o nível de significância estatística de 95%.
Considerações éticas
Os aplicadores eram profissionais de saúde treinados para acolher manifestações de desconforto que porventura surgissem entre os respondedores durante o preenchimento do instrumento e estavam capacitados para orientar sobre a procura de recursos de saúde mental dentro e fora do campus. O contato dos serviços de urgência e de apoio psicológico e psiquiátrico ao estudante da universidade constava no final do questionário. O banco de dados produzido foi processado de forma anônima e é protegido pela equipe de pesquisa. Este estudo e seus procedimentos foram aprovados pela Comissão de Ética em Pesquisa da respectiva universidade: Parecer nº 1.903.287.
RESULTADOS
Características sociodemográficas dos respondedores
Responderam ao questionário 722 alunos de Medicina. Uma discreta maioria era composta de mulheres 401 (55,7%), com média de idade de 22,4 (±3,2 DP) anos, mediana de 22 e moda de 20 anos. Eles eram majoritariamente solteiros (94,4%) e brancos (73,4%). Entre os respondedores, havia alunos de todos os anos do curso de Medicina, e 215 (30%) cursavam o primeiro ano.
Prevalência de pensamentos suicidas, planejamento e tentativas de suicídio
As prevalências de pensamentos, planejamento e TS ao longa da vida entre os respondedores foram respectivamente 196 (27,3%), 64 (8,9%) e 26 (3,6%). Nos 30 dias que antecederam a pesquisa, 36 (5%) pensaram seriamente em pôr fim à própria vida, e 11 (1,5%) planejaram concretamente colocar fim a própria vida. Entre eles, 185 (25,9%) conheciam alguém que já havia falecido por suicídio.
Entre aqueles que tentaram suicídio, 17 (68%) fizeram isso uma vez na vida, e sete (29,2%) foram levados ao pronto-socorro. Na última TS, três (11,5%) ficaram pelo menos 24 horas em observação, e apenas um (4,2%) precisou ser internado em leito de UTI.
Fatores associados ao comportamento suicida
Entre as características sociodemográficas dos respondedores, o baixo nível socioeconômico foi significativamente associado à presença de IS, mostrando que alunos mais pobres apresentam mais esse tipo de pensamento (Tabela 1).
Pensou em suicídio? | OR(IC95%) | p-valor | Total (N) | ||
---|---|---|---|---|---|
Gênero | Feminino | 119 (29,8%) | 0,75 [0,5-1,0] | 0,09 | 719 |
Masculino | 77 (24,1%) | ||||
Idade | 22,4 (±3,2 DP) anos | 0,56 | 718 | ||
Estado civil | Solteira/o | 182 (26,9%) | 1,6 [0,6-2,3] | 0,67 | 716 |
Não solteira/o | 12 (30%) | ||||
Nível socioeconômico (ABEP) | A | 89 (24,5%) | 0,035 | 718 | |
B | 89 (28,3%) | ||||
C/D/E | 18 (42,9%) | ||||
Identidade étnica ou cor da pele | Brancos | 132 (26,4%) | 0,66 | 711 | |
Negros e pardos | 33 (26,8%) | ||||
Orientais | 24 (33,3%) |
OR: razão de chances, intervalo de confiança de 95%.
Fonte: Elaborada pelos autores.
Os fatores relacionados a aspectos de vida estudantil, sexualidade, relacionamentos e prática religiosa foram associados à presença de IS entre os alunos e podem ser vistos na Tabela 2.
Pensou em suicídio? | OR(IC95%) | p-valor | Total (N) | ||
---|---|---|---|---|---|
Ano do curso | 1 e 2 | 86 (26,9%) | 0,98 | 715 | |
3 e 4 | 57 (27,7%) | ||||
5 e 6 | 51 (27,0%) | ||||
Bullying | Sim | 115 (38,6%) | 2,7 [1,9-3,8] | < 0,001 | 716 |
Autoavaliação do desempenho acadêmico | Acima da média | 60 (20,8%) | 0,004 | 718 | |
Na média | 87 (29,2%) | ||||
Abaixo da média | 46 (37,4%) | ||||
Não sei | 2 (22,2%) | ||||
Com quem vive? | Pais | 50 (29,6%) | 0,002 | 719 | |
Sozinha/o | 68 (35,4%) | ||||
Outras pessoas | 78 (21,8%) | ||||
LGBTQIA+* | Sim | 51 (40,8%) | 2,1 [1,4-3,2] | < 0,001 | 704 |
Discriminação pela orientação sexual | Sim | 42 (38,9%) | 1,9 [1,2-2,8] | 0,004 | 704 |
Relacionamento amoroso? | Sim | 91 (26,5%) | 0,9 [0,6-1,3] | 0,57 | 707 |
Tem religião? | Não | 85 (33,9%) | 1,4 [1,1-1,8] | 0,004 | 706 |
Qual é sua afiliação religiosa? | Católicos | 34 (17,2%) | 0,001 | 712 | |
Evangélicos | 22 (24,2%) | ||||
Espiritualistas** | 46 (36,2%) | ||||
Ateus e agnósticos | 62 (33,9%) | ||||
Outros/mais de uma religião | 32 (28,3%) | ||||
Grau de religiosidade - frequência | Nenhuma | 104 (29%) | 0,01 | 711 | |
De uma a dez vezes por ano | 59 (32,6%) | ||||
Mais de dez vezes por ano | 33 (19,3%) |
OR: razão de chances, intervalo de confiança de 95%.
* Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Pessoas Queers, Intersexo e Assexuais, e + é utilizado para incluir outros grupos e variações de sexualidade e gênero.
** Kardecismo + espiritualidade difusa + ayahuasca + umbanda + candomblé + budismo + outras religiões orientais.
Fonte: Elaborada pelos autores.
Fatores relacionados a aspectos de saúde mental foram muito associados à presença de IS entre os estudantes, o que não ocorreu com o uso de substâncias psicoativas. Esses resultados podem ser vistos na Tabela 3.
Pensou em suicídio? | OR | p-valor | Total (N) | ||
---|---|---|---|---|---|
Transtorno mental? | Sim | 106 (49,1%) | 4,6 [3,2-6,5] | < 0,001 | 711 |
Tratamento psicológico? | Sim | 121 (37,3%) | 2,6 [1,8-3,6] | < 0,001 | 716 |
Tratamento psiquiátrico? | Sim | 84 (50,6%) | 4 [2,8-5,8] | < 0,001 | 716 |
Fez ou faz uso de medicamentos psiquiátricos? | Sim | 74 (47,4%) | 3,2 [2,2-4,7] | < 0,001 | 715 |
Procurou assistência em saúde mental na universidade? | Sim | 89 (45,9%) | 3,4 [2,4-4,9] | < 0,001 | 711 |
Alguém na família teve problema de saúde mental? | Sim | 122 (31,4%) | 1,5 [1,1-2,1] | 0,02 | 705 |
Álcool (AUDIT > 7) | 70 (32,3%) | 1,4 [1,0-2,0] | 0,048 | 719 | |
Cigarro | No mínimo uma vez no último ano | 100 (33,9%) | 1,7 [1,2-2,4] | 0,001 | 711 |
Maconha | No mínimo uma vez no último ano | 95 (29,3%) | 1,2 [0,9-1,7] | 0,21 | 711 |
Calmantes sem prescrição médica | No mínimo uma vez no último ano | 38 (38,8%) | 1,8 [1,2-2,9] | 0,007 | 708 |
Solventes | No mínimo uma vez no último ano | 48 (32,2%) | 1,4 [0,9-2,0] | 0,13 | 705 |
Ecstasy | No mínimo uma vez no último ano | 34 (29,3%) | 1,1 [0,7-1,7] | 0,58 | 705 |
OR: razão de chances, intervalo de confiança de 95%.
Fonte: Elaborada pelos autores.
Regressão logística múltipla
A Tabela 4 apresenta o resultado da regressão logística múltipla. A partir dessa tabela, nota-se que bullying em algum momento da vida, transtorno mental, procura de assistência em saúde mental na universidade, uso de calmante sem prescrição médica, nível socioeconômico, com quem vive, religião e grau de religiosidade são os fatores que, conjuntamente, melhor explicam a chance de comportamento suicida.
Fator | OR | LI | LS | p-valor |
---|---|---|---|---|
Bullying | 1,87 | 1,27 | 2,77 | 0,002 |
Transtorno mental? | 3,12 | 2,07 | 4,73 | 0,000 |
Procurou assistência em saúde mental na universidade? | 2,05 | 1,34 | 3,13 | 0,001 |
Calmantes sem prescrição médica | 1,53 | 1,03 | 2,29 | 0,037 |
Nível socioeconômico B | 1,27 | 0,85 | 1,90 | 0,239 |
Nível socioeconômico C/D/E | 2,43 | 1,12 | 5,18 | 0,022 |
Com quem vive? Pais | 1,69 | 1,03 | 2,76 | 0,036 |
Com quem vive? Só | 2,01 | 1,27 | 3,19 | 0,003 |
Tem religião? Católicos | 0,45 | 0,23 | 0,87 | 0,018 |
Tem religião? Espiritualistas* | 1,05 | 0,59 | 1,85 | 0,870 |
Tem religião? Evangélicos | 0,82 | 0,37 | 1,81 | 0,634 |
Tem religião? Outros/mais de uma religião | 0,81 | 0,44 | 1,46 | 0,481 |
Grau de religiosidade Sim, mais de dez vezes por ano | 0,99 | 0,51 | 1,89 | 0,970 |
Grau de religiosidade Sim, de uma a dez vezes por ano | 1,73 | 1,03 | 2,90 | 0,038 |
LI e LS referem-se aos limites inferir e superior, respectivamente, do intervalo de 95% de confiança da OR.
* Kardecismo + espiritualidade difusa + ayahuasca + umbanda + candomblé + budismo + outras religiões orientais.
Fonte: Elaborada pelos autores.
Observa-se que o maior risco de comportamento suicida acontece no grupo de alunos que sofreram bullying, têm transtorno mental, procuraram assistência em saúde mental na universidade, usam calmante sem prescrição médica, de nível socioeconômico C/D/E, se comparados com o nível A, que vive com os pais ou sozinho, ateu, se comparado com católico, e com grau de religiosidade entre uma e dez vezes por ano, se comparado com sem grau de religiosidade.
DISCUSSÃO
Este estudo foi realizado com alunos dos seis anos de graduação de Medicina de uma universidade pública brasileira. Além das prevalências de pensamentos, planejamento e TS prévias, investigaram-se informações sobre as características sociodemográficas, de vida estudantil e de saúde mental dos alunos, e sua associação com a presença de comportamentos suicidas relatados pelos estudantes.
A prevalência de IS entre alunos de Medicina foi aferida por diversos instrumentos nos últimos anos, com diferentes períodos e formas de coleta. Alguma vez na vida, nos últimos 12 meses (General Health Questionnaire item 28 e Composite International Diagnostic Interview - CIDI), no último mês (Mini International Neuropsychiatric Interview - MINI), nas últimas duas semanas (Beck Scale for Suicide Ideation - BSI - e Patient Health Questionnaire item 9 - PHQ-9) e na última semana (Beck’s Depression Inventory - BDI item 9) são os períodos mais investigados.
As prevalências e os períodos de tempo de IS entre estudantes de Medicina de universidades brasileiras encontrados na literatura são bastante diversos. Os estudos que utilizaram BDI e BSI40),(42),(46 (uma e duas semanas) encontraram prevalências de 7,2% a 13,4%. Nos estudos que consideraram um período maior de tempo41),(43),(44 (MINI - um mês), houve uma maior variação (de 7,5% a 30,2%). No presente estudo, os respondedores apresentaram uma prevalência de pensamento suicida ao longo da vida considerável (27,3%), porém com taxas muito menores nos últimos 30 dias (5%), se comparado aos estudos brasileiros mais recentes43),(44 (28,7% e 30,2%).
Essa prevalência de pensamentos suicidas ao longo da vida encontrada (27,3%) é maior que a da Sérvia25 (2,9%), da Alemanha50 (7,4%), dos Emirados Árabes Unidos51 (17,5%), da China20 (17,9%) e do Nepal21 (18,4%), menor que a da Índia52 (53,6%) e semelhante à da África do Sul24 (32,3%). Provavelmente esses resultados díspares sejam explicados por diferenças culturais, religiosas e distintas atitudes em relação ao suicídio no planeta, além de variadas metodologias de coleta de dados utilizadas.
Marcon et al.47 conduziram um inquérito on-line com 4.840 estudantes de Medicina de todo o Brasil, dos quais 8,9% afirmaram já ter realizado pelo menos uma TS alguma vez na vida. Trata-se de um valor maior que aquele obtido em nosso estudo (3,6%), que se apresenta mais próximo de taxas encontradas em outros países em desenvolvimento, como Etiópia 3,9%23, China 4,3%20 e Paquistão 4,8%19. Uma possível explicação para essa discrepância seria o uso de uma definição mais abrangente de TS, compatível com a OMS, que incluiria o fenômeno que o DSM-5 rotula de “autolesão não suicida” (definida como a destruição deliberada e autoinfligida de tecido corporal sem intenção suicida). Além disso, inquéritos on-line tendem a captar sujeitos menos representativos do universo amostral geral53.
A resposta afirmativa para a presença de “pensamentos suicidas” foi escolhida como variável para as análises de correlação entre comportamentos suicida e possíveis fatores associados. Este é um recorte de relevância estatística e adequado para discussão com a literatura científica sobre o tema.
Em nosso estudo gênero, idade, estado civil e identidade étnica não foram relacionados com maior prevalência de IS. Nível socioeconômico foi associado com esse fenômeno. Essa associação se manteve muito relevante após a regressão logística múltipla (OR 2,43 [1,12-5,18]). Pobreza, dificuldades financeiras, estresses e preocupações em como se manter durante a universidade são possíveis fatores associados internacionalmente ao comportamento suicida entre estudantes de Medicina18. O item baixa renda financeira foi associado com maior prevalência de TS entre graduandos de Medicina brasileiros47. A universidade em questão possui um serviço próprio de apoio ao estudante com diversas ações para a permanência de alunos com dificuldades financeiras, como bolsas de auxílio social, bolsas de auxílio-moradia, programa de moradia estudantil e bolsa-alimentação, e transporte.
Ter sofrido bullying foi associado a maior prevalência de IS43 e a ter realizado TS pregressa47 entre acadêmicos médicos brasileiros. Mais da metade dos nossos respondedores que apresentaram comportamento suicida relatou história pregressa desse tipo de violência. A presença de bullying em qualquer momento da vida se manteve fortemente associada ao comportamento suicida após a regressão logística múltipla (OR 1,87 [1,27-2,77]). Intervenções na cultura das instituições, com identificação dos problemas de relacionamento entre os alunos, separação das vítimas de seus assediadores, promoção de estratégias de relacionamento interpessoal e resolução de disputas entre os discentes, podem ser abordagens na resolução desse problema.
A insatisfação com o desempenho acadêmico foi associada com a presença de sintomas depressivos em alunos de Medicina54),(55, inclusive entre os estudantes brasileiros33. Neste estudo, foi encontrada uma associação entre presença de IS e baixa autoavaliação do desempenho acadêmico (Tabela 2). A IS está relacionada com percepção de baixo ou regular desempenho27, insatisfação com o próprio desempenho21 e valor médio das notas25 dos estudantes médicos. Os alunos de Medicina passaram por rigorosos exames de admissão, apresentam alta exigência pessoal, competitividade e frequentes traços obsessivos, que podem contribuir para uma autoavaliação em desacordo com seu desempenho real.
Morar sozinho foi um fator que se manteve significativamente associado à presença de IS após a regressão logística múltipla (OR 2,01 [1,27-3,19]). Estudos nacionais e internacionais associam esse fator ao comportamento suicida entre estudantes de Medicina26),(46. Pessoas que decidem morar sozinhas podem já ter uma predisposição ao isolamento, dificuldade em relacionamentos interpessoais ou mesmo estar passando por situações emocionais ou eventos de vida, em que buscam permanecer sozinhas. Estudantes que moram sozinhos longe da família muitas vezes possuem uma rede de pessoas e cuidados reduzida, o que prejudica as ações de vigilância e cuidado.
Observou-se que ser um estudante de Medicina LGBTQIA+ está mais associado com a presença de IS. Uma prevalência significativa de IS foi encontrada em alunos LGBTQIA+ de diversos cursos de graduação de uma universidade brasileira (22% de IS significativa na última semana)56. Em um estudo norte-americano, apenas os estudantes universitários não heterossexuais apresentaram aumento da IS durante a pandemia de Covid1957. Ser homossexual foi associado com maior prevalência de TS entre os estudantes de Medicina brasileiros47. O preconceito e a discriminação aparentam ter um papel importante nesse fenômeno. No presente estudo, cerca de 40% dos alunos que relataram ter sofrido discriminação por causa da orientação sexual também apresentaram IS (Tabela 2).
Pertencer a uma religião é considerado um fator protetor ao comportamento suicida58. Em nosso estudo, constatou-se que possuir religião e um maior grau de religiosidade (frequência de ida ao culto) estão associados com menor prevalência de IS. A diferença entre as prevalências de IS de acordo com a afiliação religiosa foi estatisticamente significativa. Evangélicos e católicos apresentaram menores prevalências quando comparados a ateus, agnósticos e praticantes de outras religiões brasileiras (candomblé, umbanda, kardecismo, espiritualismo, ayahuasca, budismo e outras religiões orientais). Essa associação estatística se manteve significativa após a regressão múltipla, tanto entre as diferentes afiliações religiosas quanto ao grau de religiosidade (Tabela 4). Diferentes dogmas religiosos em relação ao suicídio, pertencer a minorias com sobreposições de fatores associados ao comportamento suicida e possuir características psicológicas relacionadas à busca por afiliações religiosas fora do mainstream são possíveis explicações para as diferenças encontradas.
Como observado na Tabela 3, todos os fatores relacionados com história pregressa de transtorno mental, tratamento psicológico ou psiquiátrico e uso de medicações psiquiátricas foram fortemente associados à presença de IS entre os estudantes de Medicina.
Problemas de saúde mental são prevalentes entre os acadêmicos de Medicina no Brasil39. Depressão, ansiedade e burnout são mais prevalentes nesse grupo se comparado à população geral34),(35),(45. Os respondedores apresentaram altas prevalências de problemas de saúde mental, tratamentos psiquiátricos e psicológicos prévios, e grande busca pelo serviço especializado, o que está de acordo com a literatura atual. Fatores como apresentar diagnóstico de transtornos mentais e ter procurado o serviço de saúde mental da faculdade foram fortemente associados ao comportamento suicida (OR de 3,12 [2,07-4,73] e 2,05 [1,34-3,13] respectivamente).
A alta prevalência de suicídio entre alunos de Medicina motivou o surgimento de diversos serviços especializados em apoio psicológico e psiquiátrico14, inclusive a criação do serviço de saúde mental ao estudante de Medicina da Unicamp11. Esses serviços são essenciais para uma população tão vulnerável. Sua ampliação e seu aperfeiçoamento, envolvendo estratégias de educação, prevenção e mudança de cultura ocupacional, além dos atendimentos psicológicos e psiquiátricos tradicionais, são estratégias viáveis para o enfrentamento desse problema.
Entre as causas apontadas para o adoecimento psíquico relacionado ao risco de suicídio nessa população, estão vivências profissionais específicas, carga de trabalho, privação do sono, dificuldade de relacionamento com pacientes, ambientes insalubres, preocupações financeiras e sobrecarga de informação59. A grade curricular do curso de Medicina da Unicamp inclui um eixo longitudinal sobre ética médica, comunicação de notícias difíceis e reações relativas à morte. Porém, a carga horária de disciplinas sobre o adoecer e a morte ainda é baixa.
A violência institucional e os aspectos negativos do currículo oculto são temas progressivamente mais estudados e discutidos dentro das faculdades de Medicina60. Abuso verbal, humilhação pública, discriminação étnica e de gênero, além de uma constante separação entre habilidades clínicas e qualidades humanísticas, contribuem para o sentimento de baixo rendimento e a sensação de haver poucas oportunidades para a prática de habilidades clínicas61. Esses aspectos negativos dentro dos ambientes educacionais causam impactos na futura conduta profissional e na qualidade de vida dos estudantes62.
Ouvir música, manter relacionamentos afetivos de qualidade, descansar e praticar esportes são métodos comuns para lidar com pensamento suicídas63. É necessária a busca por um ambiente acadêmico de crescimento individual e humanístico que acompanhe a excelência técnica no conhecimento. Dentro do curso de Medicina, deve haver lugar para o lazer, a arte, os esportes e a promoção de vínculos saudáveis entre o aluno e a comunidade acadêmica.
O consumo de substâncias psicoativas é comum nessa população: mais da metade dos alunos consome álcool de forma regular, e 5% fazem uso de tabaco29. Em um estudo recente, de 11,4% a 18% dos alunos referiam uso de álcool “além do usual”64, e, em outra pesquisa, 15% dos discentes mencionaram uso frequente de maconha65. Álcool, tabagismo e outras substâncias psicoativas estão associados com sintomas depressivos em estudantes de Medicina brasileiros33. Consumo de álcool e tabaco foi associado a problemas de saúde mental39 e TS47 entre esses alunos. IS e comportamento suicida entre estudantes de medicina foram associados ao consumo de álcool23),(26),(28, uso de substâncias ilícitas27, e abuso de drogas21.
Os respondedores apresentaram prevalências importantes para o consumo de risco de álcool (AUDIT > 7 = 30,1%) e o uso eventual de tabaco (41,4%) e maconha (45,1%). Entre as substâncias questionadas, apenas tabaco, calmantes sem prescrição médica e consumo de risco para álcool (AUDIT > 7) foram associados à maior prevalência de IS. Após a regressão logística múltipla, o uso de calmantes sem prescrição médica se manteve fortemente associado ao comportamento suicida (OR 1,53 [1,03-2,29]. A utilização de calmantes e bebidas alcoólicas para lidar com ansiedade, estresse e dificuldades de sono é bastante conhecida e se correlaciona com as fortes associações entre IS e fatores de saúde mental encontradas (Tabela 3).
Foi surpreendente a forte associação entre uso de tabaco e IS entre os respondedores. Como o consumo de tabaco caiu exponencialmente no Brasil nos últimos 30 anos, podemos pensar que os universitários que mantêm o hábito de fumar são aqueles que estão menos preocupados com a saúde física ou menos comprometidos com hábitos saudáveis de vida, ou mesmo que utilizam o tabagismo como uma forma de lidar com a ansiedade. O uso diário de tabaco foi associado com história de TS entre universitários taiwaneses66.
O consumo de substâncias pode servir tanto como motivo para intervenções direcionadas a promoção de saúde e bem-estar quanto sinalizador na busca por ações que cheguem aos alunos com risco de comportamentos suicidas.
Limitações do estudo
Os respondedores foram convidados em sala de aula, em dias normais do calendário acadêmico. Podemos inferir que parte dos alunos mais deprimidos, com maior grau de sofrimento mental e provavelmente em maior risco para o suicídio, não frequente assiduamente as aulas ou esteja menos disposta a participar. Esses alunos podem ter sido excluídos desta pesquisa, minimizando as prevalências desse comportamento no grupo estudado.
As prevalências de comportamento suicida entre estudantes universitários são bastante variadas na literatura e de difícil comparação. Provavelmente, isso se deve à utilização de diversos instrumentos e de perguntas com diferentes formas de questionamento, especificação de gravidade e tempo de sintomas para aferir a presença de pensamentos de morte, IS, planejamento e tentativas passadas.
Por tratar-se de estudo transversal, não é possível afirmar que haja relações causais da prevalência de pensamentos, planejamento e TS prévias com as outras características sociodemográficas, de hábitos e comportamento, e de saúde. Futuras análises bivariadas e multivariadas entre esses fatores são necessárias para aprofundar o entendimento sobre o comportamento suicida dos futuros médicos.
CONCLUSÕES
Pensamentos, planejamento e TS são comuns entre estudantes de medicina (27%, 8% e 3,9%). Perguntas simples podem identificar um grave problema passível de prevenção e intervenções variadas. Todos os estágios do curso médico exibem risco para comportamento suicida. Bullying, presença de transtorno mental, procura de assistência em saúde mental na universidade, uso de calmante sem prescrição médica, baixo nível socioeconômico, morar sozinho, religião (ateus, agnósticos ou espiritualistas) e grau de religiosidade são os fatores que, conjuntamente, melhor explicam a chance de comportamento suicida. As escolas médicas devem estar atentas à prática de bullying dentro da instituição e aos alunos mais isolados socialmente ou que sofreram bullying. Fatores associados ao sofrimento mental dentro do ambiente acadêmico (carga horária extenuante, ausência de espaços para cultura e lazer, ausência de vínculos dentro da comunidade) devem ser identificados e modificados. São estimuladas ações de educação sobre os problemas de saúde mental durante a graduação, para todos os agentes envolvidos na comunidade universitária (discentes, docentes, supervisores e coordenação), além da ampliação dos serviços especializados de apoio psicológico e psiquiátrico aos estudantes.