INTRODUÇÃO
Mais do que comparar currículos ou negar mudanças, o estado da arte em educação médica exige que as instituições de ensino continuamente revisem seus processos, a fim de utilizar as melhores evidências da área1. Isso levará a uma reflexão diária se a escola está de fato sendo capaz de entregar à sociedade médicos dignos de confiança. Para que tal objetivo seja alcançado, a matriz curricular deve ser sistematicamente renovada a fim de apoiar o estudante e sua centralidade no processo de ensino-aprendizagem.
A literatura internacional contém diversos relatos sobre como as instituições podem estruturar tais renovações2)-(7. Nesse sentido, o objetivo do presente trabalho é descrever a experiência de uma Faculdade de Medicina brasileira em seu processo de reforma da matriz curricular.
Com isso, tem-se a intenção de apoiar instituições que se veem em situações semelhantes, para que possam estruturar seus movimentos de reforma a partir da metodologia relatada. O ponto central defendido é o de que mudanças reais, duradouras e sustentadas ao longo prazo advêm do trabalho conjunto, da colaboração e cocriação envolvendo toda a comunidade acadêmica.
RELATO DE EXPERIÊNCIA
O presente relato foi desenvolvido a partir da experiência da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, uma instituição de ensino privada dedicada à formação de profissionais da saúde ao longo de 50 anos. A faculdade conta com hospital-escola próprio no centro da capital paulista, permitindo o contato precoce do aluno da graduação nos ambientes de enfermaria e nos demais cenários desde o início de sua formação.
Nessa escola, estava vigente uma matriz curricular tradicional, organizada em disciplinas isoladas, com carga total de 9.580 horas, incluindo o internato nos dois anos finais. A última alteração, feita em 2017, foi construída pela coordenação acadêmica de forma vertical, com consulta às chefias de disciplinas. Talvez muito mais orientada por necessidades logísticas e de adequação de grade horária, não houve à época a pactuação de um projeto político-pedagógico claro.
Em meio ao cenário descrito, foi de fundamental importância o uso de sondagens externas, incluindo dados do Teste de Progresso, do qual a instituição participou pela primeira vez por meio de aplicação regional em 2019. Isso ocorreu porque a referida avaliação tem caráter informativo, de modo a oportunizar inferências sobre a qualidade dos processos educacionais e visar ao seu aperfeiçoamento8. Quando se aplicaram as mesmas questões de cadeiras básicas e clínicas aos alunos do primeiro ao sexto ano, constataram-se déficits em alguns conteúdos e competências, os quais foram associados à não oportunidade de revisitar conteúdos centrais ao longo da graduação.
Outro pilar refere-se às recomendações apontadas no relatório do Sistema de Acreditação de Escolas Médicas (Saeme), que despertaram reflexões críticas da comunidade e a percepção sobre a necessidade de transformações, para além de terem motivado a criação do Núcleo de Desenvolvimento Docente9),(10. Este tem o objetivo de promover uma formação continuada aos professores, inclusive por meio da concessão de bolsas para cursos de pós-graduação em Educação.
O primeiro passo para uma reforma consistiu, portanto, na definição das motivações, valendo-se dos instrumentos mencionados11. Com o apoio do Núcleo Docente Estruturante (NDE), foi em 2020 formada uma “Comissão da Matriz” composta por cerca de 20 pessoas, incluindo gestores, docentes, médicos assistentes do campo de prática, funcionários técnico-administrativos e alunos indicados pelo Centro Acadêmico12. Apesar de desafiador, é central compreender a pluralidade de visões que o grupo responsável por pensar mudanças deve ter, afastando-se da ideia de que decisões curriculares competem apenas à coordenação pedagógica, pois todos são partes interessadas no processo ensino-aprendizagem, com suas visões, expectativas e saberes próprios.
Para dar conta de tal estrutura participativa, utilizaram-se os princípios do Design Thinking. Segundo Cavalcanti et al.11),(13, trata-se de abordagem centrada nas pessoas, orientada para colaboração, capaz de estimular a criatividade e a releitura de um problema complexo, oferecendo soluções que tenham significado emocional além de funcional. Nessa visão, com base nos passos propostos, o processo se iniciou com a organização dos conhecimentos prévios, familiarização conceitual, bem como revisão de literatura.
A parte subsequente essencial foi ouvir a comunidade, a fim de valorizar as diferentes vivências dos sujeitos e dar significado a elas11. Para isso, os membros da comissão deveriam compreender os desejos e as necessidades das partes interessadas. Os representantes discentes, por exemplo, criaram grupos focais, randomizados, com alunos de cada uma das séries, conduzindo reuniões para coletar visões sobre as vulnerabilidades e fortalezas do atual currículo. Com isso, foram geradas opiniões que alimentaram o processo, garantindo a representatividade efetiva e contribuindo para a cultura de mudança.
Durante tais trabalhos de difusão e comunicação horizontal, houve apoio do NDE, que nessa instituição conta com a participação discente com direito a voz e voto14. Ao NDE coube a coordenação da reescrita simultânea do projeto pedagógico de curso (PPC), o qual passa a ser o principal registro documental da nova matriz e das inovações pactuadas. Por sua vez, o Centro Acadêmico manteve papel ativo em conscientizar os alunos e propor demandas estudantis.
A comissão da matriz, desde o início, reuniu-se quinzenalmente, em encontros de aproximadamente três horas de duração, com carga horária protegida na agenda dos participantes. Durante os meses de maior distanciamento exigido pela pandemia de Covid-19, as reuniões ocorreram de forma remota, retornando à modalidade presencial quando permitido, reconhecendo que certos momentos dependiam da interação em grupo, incluindo dinâmicas com uso de cartolina, flip-chart, lousa e marcadores.
O que se colocou como desafio da nova matriz foi entregar à sociedade profissionais críticos, humanos e tecnicamente aptos ao exercício profissional cotidiano. Para isso, adotou-se um currículo baseado em competências. Esse paradigma, conforme Frank et al.15, parte da definição de aonde se quer chegar com a formação, definindo as habilidades, as atitudes e os conhecimentos esperados dos graduandos. Definidos os horizontes, puderam-se então desenvolver os caminhos curriculares, os marcos de aprendizagem e os instrumentos de avaliação necessários à consecução desses objetivos15.
Pactuou-se que a nova matriz seria, então, construída para formar profissionais competentes nos sete domínios previstos no framework do CanMEDS (Canadian Medical Education Directions for Specialists): especialista, comunicador, colaborador, líder, acadêmico, profissional e defensor da saúde coletiva16. Ainda, não se pode deixar de considerar que no Brasil os objetivos esperados para o exercício profissional do médico são expressos por meio do pacto coletivo representado nas Diretrizes Curriculares Nacionais, seja como obrigação legal, seja como norte do que a sociedade deve cobrar da formação médica17),(18.
Para de fato garantir a operacionalização das competências e vinculá-las às tarefas do dia a dia profissional, a matriz adota o conceito de Entrustable Professional Activities - EPA (Atividades Profissionais Confiabilizadoras)19. As EPA consistem em uma “unidade de prática profissional”, de modo que se referem a uma atividade essencial a ser feita, avaliada e confiada para ser realizada sob diferentes níveis de supervisão, a depender do momento do curso, e que leva em conta a segurança do paciente20),(21. Optou-se aqui por utilizar as 13 EPA nucleares definidas pela Association of American Medical Colleges (AAMC), incluindo desde realizar uma anamnese até iniciar a avaliação de um paciente de urgência21.
Assim, disciplinas que antes corriam isoladas passaram a ser agrupadas em módulos, conforme exemplificado na Figura 1, os quais mobilizam habilidades, atitudes e conhecimentos próximos, levando à consecução das mesmas EPA nucleares. Para fins didáticos, os docentes foram também convidados a pensar outras atividades confiabilizadoras, além daquelas previstas na literatura, denominadas aqui de “micro-EPA”. Por fim, cada bloco também compartilha, além das EPA, de um Programa de Extensão Integrador (PEI), com escuta ativa da comunidade para a construção dos projetos a serem desenvolvidos em cada momento.
Além disso, essa nova matriz apresenta três eixos: fundamentos e método científico; humanismo e visão de direitos; e prática médica. A necessidade de estágio em diferentes níveis de atenção e a prática coletiva por meio de projetos de extensão também foram integradas à carga horária de cada unidade.
Com as mudanças, o curso passou a ter um total de 8.240 horas. Essa redução foi obtida a partir do convite à reflexão de quais são os conteúdos essenciais para o exercício profissional cotidiano do médico generalista. Foi conseguida, também, por meio da matriz que minimiza a fragmentação de temas e evita redundâncias de conteúdo teórico por meio da integração horizontal, isto é, a existência de blocos interdisciplinares dentro de um mesmo período22.
Vale registrar que a diminuição de carga horária está ligada à priorização de garantir aos alunos de todas as séries de um a dois períodos livres por semana. Trata-se de medida importante para zelar pela qualidade de vida do estudante, permitindo que sejam desenvolvidas atividades extracurriculares e oportunizados momentos de lazer e descanso23)-(27.
Além disso, a nova matriz se vale do que a literatura convencionou denominar de “currículo em Z”, que organiza a experiência clínica prática desde os primeiros momentos, sem deixar de lado a inserção de cadeiras básicas nos anos finais28. Isso ocorre porque o ensino centrado no aluno precisa oportunizar o resgate e o exercício de temas previamente vistos, para aprofundá-los de forma coerente e progressiva de acordo com o momento da formação.
Partindo do princípio de que muitas das competências são desenvolvidas gradualmente ao longo da formação, foi também um pilar da nova matriz a necessidade de olhar o aluno em vários momentos do curso, sob diferentes perspectivas29),(30. Para tanto, criou-se um Núcleo de Avaliação responsável por centralizar o planejamento institucional e a coordenação da longitudinalidade do processo avaliativo ao longo dos anos8.
Vale ressaltar que a construção de uma cultura que enxerga a avaliação como momento de aprendizagem e que promove a abundância de oportunidades em receber devolutivas construtivas apresenta impactos na saúde mental e qualidade de vida do estudante31)-(33. Entra nessa lógica, também, a criação de programa de mentoria, a fim de apoiar processos de interpretação de feedback ou remediações que se fizerem necessárias34.
Além disso, considerando a individualização da jornada pelos marcos de aprendizagem, elegeu-se o portfólio como instrumento de registro das trajetórias acadêmicas20. Essa ferramenta permite aos alunos documentar os conhecimentos mobilizados para cada tarefa e registrar os feedbacks recebidos, de modo a incentivar a autoavaliação e possibilitar um aprendizado reflexivo, em que o discente desenvolve seu próprio plano de ensino com base em suas necessidades, vislumbrando a prática futura29),(35),(36.
Resta notar que o desenvolvimento de uma comissão plural e horizontal proporcionou momentos para construir pontes, vínculos e espaços de escuta que outrora não pareceram suficientes para propor novos olhares e soluções. Com isso, emergiram temas centrais como permanência estudantil, combate à violência sistemática, inclusão, diversidade e saúde mental. Por serem parte do chamado currículo oculto, entendeu-se que uma reforma de matriz precisaria também encaminhar tais questões37.
Assim, foram atingidos resultados paralelos como: reformulação do Serviço de Saúde do Aluno para atenção à saúde mental; criação de ambulatórios de ensino; implantação de um conselho de permanência estudantil para gerenciar debates de inclusão e diversidade; abertura de vagas para cotas sociais; formalização de comissões de classe para acompanhamento longitudinal de cada turma; formação de uma comissão de extensão para validação de programas e projetos.
Por fim, permanece a necessidade de reavaliação contínua do processo. A comissão se torna agora um órgão assessor permanente para isso, com o desafio de estabelecer mecanismos de controle de qualidade. É claro que o portfólio e a avaliação programática já são instrumentos com informações úteis à avaliação do currículo, mas parece ser necessária a existência de canais de feedback com os docentes e de fichas de avaliação das disciplinas a serem preenchidas pelos estudantes29. Também será necessário aprofundar com a comunidade o debate em torno das pesquisas relacionadas ao perfil do egresso, inclusive de forma a pensar meios de se verificar a consecução dos objetivos curriculares, avaliando o desempenho profissional dos formados após inseridos na prática médica.
DISCUSSÃO
A literatura nacional sobre reformas curriculares guarda semelhanças com as motivações de mudanças que impulsionaram esta experiência, tais como a frustração de alunos, a distância entre teoria e prática profissional, a falta de integração curricular e a alteração das necessidades de saúde da população38)-(43. Ao mesmo tempo, as dificuldades encontradas também são as mesmas, envolvendo a resistência às mudanças por parte dos docentes e a insegurança dos alunos diante da proposição de uma nova formação44),(45.
O que parece ser um desafio quando se fazem mudanças no âmbito da escola médica é criar processos flexíveis, capazes de se perpetuarem de forma autônoma e orgânica ao longo do tempo, tornando-se independentes de um grupo específico de pessoas. A experiência aqui descrita se diferencia por envolver alunos, professores e funcionários numa comissão que serviu de provocadora ao definir as diretrizes iniciais e capacitar a comunidade. A gestão compartilhada do ensino, ao socializar os problemas e diluir a complexidade, torna essa temática algo natural para o dia a dia e estimula a responsabilização pelo processo de ensino-aprendizagem.
Assim, um currículo que nasce da colaboração, do entendimento e da participação ativa de todos é não apenas mais representativo, como também tem maior respaldo para ser executado na prática, a despeito de decretos ou coerções, justamente por se tornar naturalmente capilarizado.
Hoje, após cerca de dois anos de trabalho da Comissão da Matriz, esse grupo serve mais como campo de escuta permanente, dando suporte à reforma que agora é descentralizada e infindável. Há vontade legítima dos docentes em atualizar suas ferramentas de ensino observando a mudança dos paradigmas, bem como dos alunos em se assumir como responsáveis por pensar seu processo de aprendizado.
Há que se considerar, ainda, que o processo aqui descrito se deu diante da pandemia de Covid-19, que foi pano de fundo para ratificar a necessidade de repensar a formação dos profissionais de saúde. Isso ocorreu porque a educação técnico-científica precisa ser somada às lentes capazes de perceber os contextos sociais de determinação do processo saúde-doença, marcados notadamente pelos efeitos de distribuição de renda e poder, sendo necessários médicos que não se limitem a atribuir os desfechos em saúde apenas às consequências de escolhas individuais46.
Ainda, o momento oportunizou o debate sobre o papel dos egressos como educadores e formadores de opinião, para além de serem capazes de diagnosticar condições agudas e pressupor a capacidade de excisar suas causas46. Assim, são pilares fundamentais da nova matriz: bioética, direitos humanos, cuidados paliativos, manejo de condições crônicas, bem como ênfase na promoção e prevenção em saúde.
Ainda que se fale em inovação, vale mencionar que a discussão sobre educação baseada em competências é anterior à virada do século47. Isso não implica dizer, entretanto, que sejam completamente conhecidas as formas de superar as dificuldades encontradas nessa implementação. Há de se reconhecer que a experiência aqui relatada apresenta diferenças em relação à literatura. Contudo, tais desencontros não deixam de traduzir a realidade da instituição, como foi construída historicamente, suas qualidades e seus diferenciais, seus atores, sua inserção regional e sua relação com a comunidade.
Por exemplo, para o currículo baseado em competências, é fundamental a flexibilidade de tempo para dar conta de comportar as diferentes velocidades de aprendizado dos estudantes, os quais só passarão ao próximo ciclo quando realmente estiverem capacitados, independentemente da carga horária15. Nessa reforma, não foi possível dissolver a noção de disciplinas que correm em blocos de tempo fixos e predefinidos, como são tradicionalmente desenhados os currículos na maior parte das instituições por razões logísticas. O meio-termo encontrado foi promover, em todos os anos do curso, a existência de períodos dedicados a estágios eletivos, além de um semestre para desenho de carreira na última série, os quais são momentos para cada aluno escolher cursar algo que deseja retomar, aperfeiçoar ou descobrir, para além da base curricular comum.
Outro conflito vivenciado foi a chamada tirania da utilidade, que surge ao se eliminar todo o conteúdo e a carga horária que não são absolutamente relevantes para atingir os resultados definidos15. Essa premissa se mostrou conflituosa diante da presença de professores renomados em suas subespecialidades, que têm de ser questionados sobre a finalidade de alguns temas para formação do generalista. Houve ainda a necessidade de enfrentar uma noção cristalizada de que o prestígio de um professor é proporcional à quantidade de carga horária teórica e ao número de aulas por ele ministradas. Esse desafio parece universal às escolas e necessitou de intenso diálogo para fazer mudanças sem desvalorizar as trajetórias do corpo docente ou afetar o clima institucional.
Apesar disso, o fato de a construção ser coletiva e dialogada durante todas as fases permitiu que a comunidade optasse por assumir essas limitações existentes e comportasse espaço para desenvolvimento gradual de formas de superação desses obstáculos, de acordo com as possibilidades operacionais, logísticas e financeiras. Há, portanto, sempre a necessidade de ajustar a literatura para não eliminar as especificidades e fortalezas de cada instituição, bem como focar a construção de bases reais e executáveis.
CONCLUSÕES
Os currículos em medicina devem formar pessoas éticas, humanas e tecnicamente competentes para o exercício profissional, alinhado às necessidades do Sistema Único de Saúde. A instituição deve permanecer continuamente disposta a reavaliar o currículo e, para isso, estar preparada para a necessidade de promover mudanças em diversos âmbitos.
Este relato pode servir como modelo de organização de uma reforma capaz de promover mudanças significativas na matriz curricular com embasamento em evidência. Ao mesmo tempo, contribuir para o fortalecimento de vínculos com toda a comunidade; afinal, alunos, professores e funcionários são todos agentes de um mesmo contexto, devendo estar aptos a enxergar criticamente sua condição e contribuir para a gerência do ensino. Com isso, além de um projeto mais representativo e alinhado às demandas da vida real, tem-se a possibilidade de aprender durante sua construção.
Deve-se, por fim, ponderar que este artigo é limitado pelo fato de que a matriz descrita ainda está em implantação gradual, não sendo ainda conhecida sua aceitação, tampouco é possível saber se a aptidão profissional do egresso planejada será alcançada. Por isso, o planejamento deve ser adequado à realidade de cada escola, não existindo caminho único para que transformações sejam feitas, devendo cada instituição ter autonomia para reconhecer os próprios objetivos e limitações.