1 História da Educação e História da Cultura Escrita: os cadernos nessas interfaces
Este estudo1 tematiza alguns aspectos da experiência de estágio do Curso de Magistério, desenvolvido em uma escola da rede municipal no município de Canoas/RS, em uma terceira série do primeiro grau de ensino, no ano de 1987. A pesquisa privilegia o exame dos diários de aula de uma quase professora, estudante do Colégio São Paulo2, também em Canoas.
Tem-se como objetivo analisar o que os cadernos, guardados por tantos anos por sua autora, são capazes de fazer dizer acerca do estágio obrigatório do Curso de Magistério. Discute-se o significado desses artefatos, considerando-os testemunhos da cultura escolar3, documentos que representam práticas escolares cotidianas, materializando uma memória nesses suportes de escrita.
A pesquisa promoveu a compreensão da potencialidade desses artefatos para a História da Educação, campo de pesquisa que cada vez valoriza os manuscritos como documentos. Investigá-los permite que possamos chegar perto dessa quase professora que, exercitou a preparação para o magistério, por meio desses registros. A pesquisa também se inscreve no campo da História da Cultura Escrita, entendida como estudo da produção, difusão, uso e conservação dos objetos escritos (Castillo Gomez, 2002) em interface com aportes da História da Educação, que tem, entre seus objetos, o estudo da escrita em suas várias modalidades. Refletir sobre as relações entre História e Cultura Escrita a partir de papéis produzidos pela escola, aqui traduzidos pelos diários de aula de uma estudante-estagiária, considerados como documentos ordinários, é o propósito deste estudo. Pesquisá-los permite aproximações do o vivido na sala de aula” (Mignot, 2008, p.7). Antônio Viñao (2008) explica que, por meio deles, pode-se encontrar essa ‘caixa preta’ da história da educação ” (2008, p. 16), são capazes de deixar ver rastros das práticas escolares inscritas em um determinado espaço e tempo.
Os cadernos pertencem a Eliane Spies Sarmento, estudante do Curso Magistério, entre 1984 e 1987. Cumpre informar que, a partir da Lei 5692/714, com relação à formação de professores, desaparecem as Escolas Normais e, em seu lugar, institui-se a habilitação magistério, como habilitação profissional, entre outras tantas possíveis, no segundo grau de ensino. Portanto, ao escolher fazer o segundo grau de ensino na habilitação magistério, a estudante se titulava para o exercício da docência nas primeiras quatro séries do primeiro grau de ensino.5
Materiais da ordem do comum, cadernos têm como destino final, muitas vezes, o descarte. Se sobrevivem, podem oferecer ao pesquisador da educação indícios de práticas escolares de determinada época. Não portam verdades intrínsecas, mas, como documentos, é possível indagá-los e problematizá-los. Esses diários de aula permaneceram, por anos, guardados por Eliane, em uma caixa, junto a outros papeis referentes ao estágio obrigatório. Neste sentido, Cunha explicar que esses suportes de escrita, via de regra, são “desvalorizados a cada mirada, são relidos, selecionados, quase sempre destruídos e não raro desprezados, mas, se conservados, podem ganhar importância na condição de escritas ordinárias e contribuir para a compreensão da cultura escolar do período em que se inscrevem” (Cunha, 2007,p.81).
Assim, pode-se pensar nas subjetividades que motivaram a autora para os “gestos de guardar” (Cunha, 2017, p. 189), permitindo que deles não se desfizesse em todos esses anos passados. É bem provável que por afeto aos cadernos, Eliane os tenha conservado, em meio a seus acervos pessoais, e aqui nesta investigação adquirem outro estatuto, pois são tomados como documentos para História da Educação.
Importa destacar algumas especificidades dos diários de aula. Carregam consigo uma determinada oficialidade (Alves, 2003), pois apresentam planejamentos e sequência das atividades desenvolvidas nas aulas, observações acerca dos alunos, instrumentos de avaliação, entre outros. Entretanto, para além de dados oficiais, esses suportes de escrita podem trazer outros sentidos às pesquisas em História da Educação. Por permitirem anotações diversas, ganham vida, possibilitam ao pesquisador construir diversas problematizações a partir de suas marcas (Zaccur, 2003).
Esses suportes de escrita carregam consigo o efeito de raridades (Meda, 2014), “estatutos de relíquias” (Cunha 2007, p. 80) e, por meio de análises a esses materiais, é possível chegar perto de algumas facetas do processo de formação docente. Dotados de especificidades (Gvirtz e Larrondo, 2008), são produtos da experiência do estágio, são dispositivos escolares que abarcam um conjunto de práticas discursivas que representam a cultura escolar daquela instituição de ensino e daquela temporalidade, “envolvem questões visíveis e invisíveis, ideias e conteúdos que superam o que vemos e tocamos” (Grinspun, 2008, p. 264).
2 Entendendo a experiência do estágio pelos cadernos: tecendo análises
Os dois cadernos6 contêm os planos de aula desenvolvidos no estágio docente. Por serem documentos que comportam uma formalidade, ficam nítidas as imposições normativas institucionais, definindo uma determinada padronização, pois não se nota qualquer desvio que porventura pudesse alterar a função inicial do diário(Alves, 2003).
Assim, não se percebem anotações nas margens, ou qualquer espécie de rasuras, o que faz pensar que talvez houvesse outro caderno onde a estagiária fazia seus registros cotidianos, depois, provavelmente esses registros passavam por um filtro e então seriam transcritos para o caderno oficial, em um processo que lembra uma espécie de assepsia na escrita. Cada aula é descrita em seus pormenores, obedecendo a protocolos, desde a cópia da data da aula, até a resolução dos exercícios que faziam parte do plano diário. Sobre isso, indaga-se porque a estagiária se preocupava em escrever minuciosamente todas as atividades propostas, até mesmo as mais óbvias. É possível que, amparada pelas respostas certas, se sentisse mais segura neste novo lugar que é o de professora.
É preciso lembrar as especificidades dessa etapa curricular do Curso Magistério, no sentido de transição no processo de formação docente. Pode-se pensar que o estágio situa-se como zona de fronteira, pois a estudante ainda não é legitimamente professora, mas está na condição de docente, responsável por uma turma de estudantes durante um semestre letivo. Infere-se que essas anotações acerca do planejamento minucioso das aulas, escritas nesses cadernos ou em outros provavelmente descartados, eram manuscritos que a acompanhavam diariamente, que lhe permitiam um maior fortalecimento na condução das aulas.
Sobre as características desse suporte, ambos apresentam dimensões equivalentes a 28 cm de comprimento e 20,5 cm de largura. Não possuem nenhum tipo de revestimento, não estão encapados, talvez não fosse exigência do estágio. Carregam consigo marcas do tempo, capa original desbotada, dobras e folhas que começam a amarelar.
Na primeira página, a identificação “Meu Diário”, acrescida da assinatura da estagiária. Isso remete a cadernos de cunho pessoal, como se aquele material fosse de seu uso exclusivo.
Entretanto, não se trata de uma escritura de foro privado, passavam pelo crivo da avaliação, ou seja, constituem-se em uma espécie de testemunho do trabalho pedagógico da futura professora que deveria estar impecável, pois seria apreciado pela orientadora/supervisora do estágio.
No primeiro caderno, após a página inicial, aparece um desenho de uma menina, colorido minuciosamente, aparentemente copiado. Esse capricho anuncia, de certo modo, o que vem a seguir, ou seja, o relato também meticulosodas aulas que compõem esta etapa do Curso de Magistério.
Por que motivo teria desenhado uma menina? Percebem-se relações entre a imagem e a frase que aparece logo abaixo dela “A criança é a semente nascida que deve ser irrigada para não se perder entre as pedras”. Parece ser uma epígrafe, algo escolhido com cuidado que poderia representar, para a professora, o significado da docência.
O conteúdo discursivo da frase remete a pensar como se deu a constituição histórica da profissão de professora, uma profissão que se tornou feminizada e feminilizada (Tambara, 2002). Nesse sentido, a professora assume diferentes papéis que se confundem, pois culturalmente atribuiu-se a ela o cuidar, o olhar sensível ao desenvolvimento da criança.
Ao longo dos cadernos, a presença de mais desenhos como elementos ilustrativos, de modo repetitivo. No tema de casa, ocupa o lugar da palavra casa com um desenho, substituindo a palavra. De todos os desenhos no decorrer do material, esse é o que me chama mais a atenção, devido à recorrência que aparece.
No primeiro caderno (referente à primeira metade do estágio curricular), o desenho representando uma casa aparece 47 vezes, ou seja, em todas as aulas e cada um com seus detalhes e cores variadas. Já no caderno 2 (referente a segunda metade do estágio curricular), das 39 aulas que a estagiária ministrou, apenas em 24 aparecem os desenhos, não tão caprichados, e nas últimas 15 aulas, o espaço destinado ao desenho da casa está vazio. Essa é uma das características que diferem os dois cadernos, já que no segundo não transparece o mesmo esmero, podemos inferir que por se tratar do final do estágio e de um semestre, talvez estivesse cansada, menos motivada, e, por isso, as ilustrações já estão diferentes em relação ao início do ano.
Na sequência, aparecem os dados de identificação da escola e seu endereço7. Também, nessa página de identificação, a autora aponta os dados informativos do estágio, realizado em uma turma de terceira série do primeiro grau de ensino, com um total de 24 alunos.
Sobre a organização das aulas, primeiramente, apresenta a semana de aula, com o anúncio dos objetivos, conteúdos e modo de avaliação, este em uma perspectiva mais geral. Todos esses elementos constituem o que intitula Plano de Unidade8. Após essa organização semanal, seguem os Planos de Aula9, em que constam, mais detalhados os objetivos, conteúdos, avaliação, incluindo os procedimentos didáticos realizados a cada dia.
Tratando ainda sobre sua materialidade, o primeiro caderno é composto por 159 páginas, todas completas com escritos, excluindo a última reservada aos registros da supervisora do estágio. O segundo caderno é uma continuação dos planos de aula, possui 134 páginas, todas igualmente preenchidas. A diferença no número de páginas entre os dois cadernos faz pensar que, por terem o formato espiral, não se tinha controle das folhas que, por algum motivo, foram retiradas. Além disso, o descarte de algumas folhas, provavelmente com rasuras, poderia ser uma maneira de tentar padronizar a estética dos cadernos, dando a ele o destaque de documento oficial.
3 Temáticas abordadas durante o estágio
Foram registrados, no primeiro caderno, 43 dias letivos, sendo que os meses de abril e maio são aqueles com maior número de aulas. É bem possível que em março a estagiária possa ter feito algum momento de observação dentro da Escola, antes de iniciar efetivamente o trabalho docente. No entanto, o mês de maio fica dividido entre os dois diários de classe, 10 aulas pertencem ao primeiro material de pesquisa e mais 10 que estão descritas no outro. O primeiro dia de aula é assim identificado “Canoas, 9 de março de 1987”. No segundo caderno, foram registrados 39 dias letivos. O mês com menor número de aulas é Julho, mês de finalização do estágio, a última aula está registrada com a data, “Canoas, 10 de julho de 1987”.
No quadro a seguir, constam as temáticas desenvolvidas pela estagiária:
As disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática são predominantes no desenrolar de todas as unidades. Quando se trata do ensino da Língua Portuguesa, nota-se o predomínio de atividades relacionadas à ortografia e textos com questões objetivas a serem respondidas. Já no ensino da Matemática, observa-se uma ênfase nos exercícios envolvendo operações matemáticas, em sua maioria, descontextualizadas. Ao que tudo indica, era uma exigência a presença de atividades de Matemática e de Língua Portuguesa no planejamento, inclusive em folhas de tema de casa.
Alguns exemplos, no dia 19 de março, o dever para casa foi uma folha provavelmente produzida pela estagiária, com questões referentes ao uso das letras M ou N antes de P e B. No dia 24 de março, se repete no tema esse assunto, solicitando-se o recorte de 10 palavras em que o M estivesse antes de P e B. É possível pensar que, talvez por falta de experiência, preferisse apostar em atividades mais simples em seu planejamento, ou, quem sabe, sua sensibilidade diagnosticou que esse não era um conhecimento plenamente construído pelos alunos, necessitando de uma maior intervenção.
Do mesmo modo, no segundo caderno, a Matemática e o Português permanecem como prioridades, presentes em todos os dias letivos, predominando exercícios envolvendo cálculos e problemas, isolados dos temas centrais das unidades. Nota-se que as atividades de Língua Portuguesa se resumem a práticas de memorização e questões gramaticais desvinculadas dos textos propostos. Como exemplos, o uso de graus do substantivo, diminutivo e aumentativo, regras de acentuação, plural e singular das palavras, separação de sílabas, pontuação, entre outras.
Raramente a presença de alguma propostaque valorizasse a imaginação da criança. Nas poucas vezes que aparecem, apresentam-se desenhos prontos, provavelmente feitos no quadro de giz para que os alunos copiassem, e, na sequência,escrevessem frases sobre os mesmos.
Ou ainda, em um exercício do caderno 2, em que a professora escreve um início de texto e solicita a continuidade do mesmo. Todavia, vê-se que são propostas descontextualizadas das demais atividades do dia, mas, pela observação dos diários de aula, pode-se observar que é o mais próximo de ações que colocavam o aluno como produtor de conhecimento.
O estágio docente aconteceu em 1987, ano que antecipa a promulgação da Constituição Federal de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, marcando o fim da ditadura civil militar no Brasil (Schwarcz e Starling, 2015). Contudo, mesmo sendo um tempo importante na história do país, não se percebe em nenhum momento nos cadernos, qualquer temática/discussão relacionada ao assunto.
Observando os temas considerados centrais nas unidades, vê-se que a maioria corresponde a datas do calendário universal, nacional e local. Entretanto, alguns chamam a atenção, por exemplo, a unidade cujo assunto central é "Revolução Democrática". Procuramos no caderno algum indício que explicasse a escolha por esse nome, a única informação que se tem é a data dessa Unidade que começou no dia 23 de março de 1987 e terminou no dia 27 do mesmo mês. No dia 31 de março de 1964, os militares promoveram um golpe no país e instituíram uma ditadura civil-militar que permaneceu por mais de vinte anos, o que faz pensar que essa temática central descrita pela estagiária como “Revolução Democrática” possa ter relação com essa data. Nessa unidade, a professora desenvolveu atividades relacionadas ao município, à alimentação saudável, além de exercícios envolvendo operações matemáticas, e ortografia. Ou seja, pelo exame do caderno, constata-se que o título não tem qualquer vinculação com as temáticas desenvolvidas. É possível que os títulos das unidades tenham sido cópias de outros planejamentos anteriores, da década de 1970 e início dos anos 1980, períodos de permanência da ditadura no país. Em 1987, o Brasil não tinha mais a presença de militares no governo, mas ainda não haviam acontecido eleições diretas para Presidente da República. Talvez essa proximidade temporal do período de exceção no país explique a manutenção desse título, que representa uma concepção dos governos militares e da sociedade civil que os apoiava em relação ao que aconteceu no Brasil a partir de 1964.
De qualquer modo, a ausência de relação entre título e temáticas desenvolvidas não é uma prerrogativa desta unidade. Observando o modo como os cadernos foram organizados, nota-se que, de modo geral, os temas das unidades não têm referência direta aos objetivos e conteúdos previstos, por exemplo, na unidade em que a ideia central é o "Dia do Índio", não há sequer um objetivo que trate sobre a temática. E na previsão de conteúdos consta apenas um "desenho sobre o índio", desenho este que foi entregue às crianças em folha mimeografada, representando um indígena estereotipado, sendo a única tarefa pintá-lo.
Essa atividade proposta aos alunos remete à discussão sobre como a escola apresentou aos estudantes a história dos indígenas, marcadamente por um único ponto de vista, sob o olhar do não indígena, e, na maioria das vezes, restringindo-se ao dia 19 de abril, sem aprofundamento. Pela observação dos escritos da professora, constata-se ainda uma maior desvalorização dos povos originários, pois essa atividade da pintura do desenho do indígena consta no planejamento do dia 24 de abril de 1987. Cumpre ressaltar que não se defende a limitação da educação indígena ao dia 19 de abril, entretanto, a professora costumava trabalhar todas as outras datas comemorativas nos dias certos. Por que teria organizado suas aulas desse modo, deixando o “dia do índio” no esquecimento?
Nos anos 1980, comumente, a escola ainda reforçava uma única representação desses povos, homogênea, como se só houvesse uma única cultura existente (Bergamaschi, 2012). Configurava-se uma visão atrelada ao passado, genérica, ao invés de promover um conhecimento das inúmeras etnias indígenas presentes em nosso país. Desse modo, arrisca-se a dizer que, para a estagiária, essa não era uma questão relevante, ou que, muito provavelmente, essas questões não fizeram parte de sua formação pedagógica naquele tempo, tendo em vista o quanto são recentes as abordagens sobre esse tema no campo da educação.
No mês de abril, nota-se que trabalhou vários conteúdos relacionados à História, entretanto, apenas assuntos alusivos a datas comemorativas. Observa-se um ensino de História que enfatiza a comemoração de eventos cívicos, lembrando o passado sobre um único viés, o eurocêntrico, e de forma descontextualizada, contribuindo para naturalizar apenas uma verdade, onde, parafraseando Bergamaschi (2002), não se valorizam as diferenças e a diversidade cultural.
Ainda sobre datas comemorativas, a cada início de mês, aparece no caderno uma lista delas, consideradas naquele momento, importantes de serem celebradas na escola. Acredita-se que fossem copiadas no quadro para que os alunos reproduzissem em seu material de registro, destacando aqueles considerados grandes acontecimentos da História e do calendário da Igreja Católica. Silva (2000) diz que a escola mantém a “opção” por ensinar “a” história eurocêntrica, de tempo linear, branca, masculina, católica e dicotomizada de sentidos mais amplos” (Siva, 2000, p. 112).
Além do ensino pautado na celebração de algumas datas, os conteúdos de História e Geografia também se apresentam de acordo com a metodologia dos círculos concêntricos. Considerada uma teoria linear do desenvolvimento infantil (Bergamaschi, 2002), definida do próximo para o distante, do mais simples para o mais complexo, do concreto para o abstrato. Contudo, como definir o que é simples e o que é difícil para uma criança? Por que trabalhar apenas os temas referentes ao município em que vive na terceira série? Isso denota uma compreensão superficial desses conceitos, pois aquilo que afeta a cidade não está desvinculado do país, do bairro, da família, são assuntos que perpassam uns pelos outros.
Nesse sentido, o foco de estudos na terceira série, nos campos da História e da Geografia, é o município de Canoas. É notável a quantidade de vezes que aparece nos planejamentos. Para trabalhar a história do município, novamente são valorizados os notáveis, como os fundadores da cidade, esquecendo as pessoas comuns. A partir do que Gil e Almeida (2012) discutem, salienta-se que “todos fazem parte da história, que não deve ser vista como privilégio de um setor específico da sociedade. Mulheres e homens comuns necessitam ser entendidos como partícipes e construtores das histórias que vivenciam” (2012, p. 71).
A lista a seguir mostra os conteúdos escolhidos para serem trabalhados e o dia em que pressupomos terem ocorrido.
Chama a atenção a incidência do tema do município em junho, talvez por ser o mês de sua fundação. Na primeira aula, situa-se Canoas fazendo parte do contexto estadual e federal, contudo, as demais atividades mostram a cidade de forma isolada, os assuntos foram apresentados sem relações uns com os outros, e sempre na mira de seguir uma história de grandes homens.
Ao examinar os dois cadernos, constata-se a força do ensino religioso que se faz presente no cotidiano das aulas, sendo contemplado como tema em três unidades, mas permeia muitas atividades. Aparece quando se enfocam os feriados religiosos que ocorrem no município, todos eles relacionados ao catolicismo. A presença do ensino religioso pode ser compreendida pelo fato da estagiária estudar em uma instituição de ensino católica, que, à época, pertencia a uma congregação de Irmãs religiosas. É possível que fosse uma exigência do estágio contemplar, com um determinado destaque, um ideal de educação que privilegiasse a formação religiosa católica.
As aulas de ensino religioso se desdobram em textos que tratam sobre Jesus, além de pequenos excertos da Bíblia que eram copiados no caderno e ganham o título de “Ler atentamente”. Em muitas dessas leituras, parece que havia apenas o intuito de cópia, sem uma questão propriamente pedagógica e/ou religiosae, quando aparecem em exercícios, têm o título “Aprender Brincando”, ou “Vamos testar nossos conhecimentos bíblicos”.
A próxima tabela mostra as diversas vezes que esse tipo de texto aparece nos cadernos:
Em outros textos, solicitava-se a memorização de passagens bíblicas, um exemplo, “Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome ali estou no meio deles” (M. - 18, 20). Qual seria a intenção da estagiária com esse tipo de proposta? Observando os objetivos do plano diário de aula, constam essas atividades, em que o aluno deveria valorizar o texto de Religião e a avaliação desse momento consiste em considerar satisfatório quando o discente conseguisse compreender o que estivesse relacionado aos ensinamentos cristãos. Como entender tal condição de avaliação em meio à tamanha subjetividade?
Por meio desses artefatos aparentemente silenciosos, podemos nos transpor ao final dos anos 1980 e identificar vestígios das práticas escolares desenvolvidas no primeiro grau de ensino, especificamente na terceira série. Como prioridades curriculares, observa-se o relevo que Língua Portuguesa e Matemática assumiam na cena escolar. As demais áreas de conhecimento situam-se perifericamente, pautadas em abordagens, via de regra, descontextualizadas, descritivas, homogeneizadoras, princípios esses rincípios esses rincípios esses rincípios esses rincípios esses que ainda se que ainda se que ainda se que ainda se que ainda se que ainda se mantinham na na educação escolareducação escolar educação escolareducação escolareducação escolareducação escolar educação escolareducação escolar educação escolar educação escolar naquela temporalidade. naquela temporalidade. naquela temporalidade.naquela temporalidade. naquela temporalidade. naquela temporalidade. naquela temporalidade. naquela temporalidade.naquela temporalidade.naquela temporalidade.
4 Considerações finais
O diário, seja qual for a sua natureza, diário íntimo, diário profissional, diário de aula, é um expediente que pode assumir muitas formas distintas. Mas seja qual for a forma que assume, sempre guarda a potência de ser uma espécie de desdobramento daquele que se põe a escrever. Essas escritas da experiência do estágio foram praticadas nos momentos em que a quase professora idealizava como seriam suas aulas. Nas páginas dos cadernos, podemos dizer que se aproximou do ofício docente, organizou os procedimentos cotidianos das aulas e, assim, começou a construção de sua identidade docente.
Fazer uma imersão em cadernos de outras décadas, considerados escritas ordinárias, que foram produzidos e guardados por pessoas comuns, hoje, permitem rastrear a cultura escolar pretérita, por meio do exame do que foi registrado por sua autora.
Para os historiadores da educação, esses dispositivos textuais constituem-se em documentos preciosos que permitem certo conhecimento dos modos de escolarizar, dos discursos circulantes, dos signos e códigos comportamentais de determinadas temporalidades e permitem imaginar quem seria aquela moça que preparava-se para seguir a profissão de professora.
Esses manuscritos evidenciam alguns aspectos, dependendo de quem os mira, cada pesquisador poderá dar um novo sentido a tais documentos e produzir novas versões, a partir dos registros existentes neles. Por meio das análises dos diários de aula, foi possível entender algumas faces da experiência de estágio do Curso Magistério, desenvolvido por uma professora estagiária, em 1987. Embora os diários de aula apresentem muito detalhes do planejamento das aulas, o vivido dentro daquele espaço é algo inapreensível, uma alteridade (Pesavento, 2004), no limite, o que conseguimos são movimentos de aproximações sucessivas, na busca por construir uma compreensão verossímil da história. Isto está longe de uma ideia de encontro com o passado.
Durante as análises, buscou-se identificar que narrativas do estágio foram privilegiadas na escrita dos diários de aula. O tom que permanece é do cumprimento à formalidade dos diários de aula, do respeito à oficialidade dos documentos que pouco dizem acerca das subjetividades daquela quase professora.
Estes são cadernos em que a autora inicialmente pareceu querer imprimir uma marca pessoal, pois iniciam com o título “Meu diário”, mas que, de fato, pouco revelam as identidades daquela que os escreveu. Por diversos motivos, entre eles, vigilância, situação de estar em avaliação na condição de ainda estudante, de quase professora, o fato é que ela não conseguiu manter um estilo pessoal na construção dos diários.Capricho, meticulosidade, obediência à normatização do estágio, em relação às prescrições curriculares, por exemplo, todas essas são fortes características dos materiais analisados neste estudo.