1 Introdução
Não é possível pensar as políticas públicas sobre a educação escolar, também em sua vertente inclusiva, sem considerar os limites sociais a elas impostos e, para que essa proposta de educação seja minimamente compreendida, faz-se necessário ressaltar alguns de seus movimentos históricos, pelo menos os mais recentes, que serão enunciados mais à frente.
Adorno (2003) enfatizou, em meados da década de 1960, que o principal objetivo da educação deveria ser evitar que a barbárie materializada em Auschwitz ocorresse novamente, apesar de estar ciente de que as condições que propiciaram o horror do século XX ainda permaneçam. Por isso:
A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá-la. Não consigo entender como até hoje mereceu tão pouca atenção.
(ADORNO, 2003, p. 119)
Considerando a questão apresentada por Adorno, a educação deveria ser política e explicitar os interesses sociais em confronto. Ao contrário da proposta de “escola sem partido”, deve-se ser assumidamente a favor de uma sociedade justa e igualitária. Se as condições objetivas – sociais e políticas – levam à frieza individual, característica dos carrascos e apoiadores do nacional socialismo, e se essas condições dificilmente poderiam ser alteradas à época, o que julgamos valer até nossos dias, Adorno (2003) propõe que a educação se volte para o fortalecimento dos indivíduos para que possam resistir à violência – à sua e à de outrem. Os limites de tal educação são claros: ainda que fortaleça os indivíduos, a sociedade não se altera e continua a incentivar a violência. Mas ao menos – o que não é pouco – permite a eles renunciar à própria violência e perceber a dos outros.
Parece-nos que é no âmbito desses limites que temos de pensar as políticas educacionais voltadas à inclusão escolar: anunciar a convivência e a identificação com os que são considerados mais frágeis, sem que essa fragilidade seja eliminada, e não deixar de refletir que é esta sociedade que, também, por meio da educação escolar, tanto produz e fixa as noções do que é ser mais forte e mais frágil, quanto incentiva a adaptação mediante a exaltação do que é visto como mais forte, mais habilidoso, mais competente.
Afirmado de uma outra maneira, neste artigo entendemos a educação inclusiva como uma concepção ainda não plenamente presente na experiência docente materializada no modo de conceber o processo, o espaço e o tempo formativo e educacional que se contrapõem à ideia de organização social com base na hierarquização, definida com base nas diferenças individuais dos alunos. Consequentemente, a educação inclusiva não se destina a um público específico, mas à totalidade do corpo discente.
Todavia, quando a legislação nacional (BRASIL, 1988; BRASIL, 1996; BRASIL, 2008; BRASIL, 2020), entre outros dispositivos legais, preconiza a permanência da educação especial como modalidade educacionalb, reafirma a hierarquização entre fortes e frágeis, assim como a cisão entre as escolas regular e especial, sobretudo porque, muito embora anuncie a oferta dessa modalidade nas escolas regulares, esta não é uma obrigatoriedadec.
Ainda sobre esse aspecto, deve-se deixar claro: não que as competências e as habilidades não devam ser incentivadas, mas é necessário analisar quais são seus fins. Se outrora essa reflexão se fazia desnecessária, atualmente, como seus fins não são tão óbvios, há de se pensar: para onde a educação deve conduzir (ADORNO, 2003)?
A problematização feita por Adorno, que data da década de 1960, reverbera até os nossos dias, sobretudo se considerarmos a força com que chega ao Brasil a corrente de pensamento pedagógico denominada “Pedagogia das Competências”, pautando as políticas, diretrizes e normativas educacionais atuais, como, por exemplo, na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2017). Entre outros aspectos, a Pedagogia das Competências se caracteriza por se fundamentar em um novo projeto educacional que considera as mudanças ocorridas no plano social, em especial nas relações de trabalho, desde o final da década de 1980 e se consolidando na década de 1990, destacadamente em razão da crescente automação, e que exigem do indivíduo uma formação, tanto do ponto de vista técnico quanto comportamental, que acompanhe suas transformações. Segundo Ramos (2001, p. 401), pelas transformações advindas de um capitalismo mundializado, a Pedagogia das Competências atende, pelo menos, a dois propósitos: “a) reordenar conceitualmente a compreensão da relação trabalho-educação (...); b) institucionalizar novas formas de educar/formar os trabalhadores e de gerir o trabalho internamente às organizações e no mercado de trabalho em geral(...)”.
Se a educação se ocupa do desenvolvimento de habilidades e competências restritas à adaptação à sociedade e de como esta está cindida, para negar essa cisão é possível supor que a racionalidade que a sustenta é a da formalização do pensamento, posto que o que está em foco é a adequação do comportamento em relação aos parâmetros previamente estabelecidos (HORKHEIMER, 2007). Embora a formação para a adaptação social seja necessária, não pode ser supervalorizada a ponto de suplantar a identificação com aqueles que não conseguem desenvolver determinadas habilidades adaptativas esperadas no ambiente escolar.
Claro, tem-se de afirmar que, ainda que contraditória, a proposta da educação inclusiva é mais propícia à liberdade do que a educação segregada, pois permite o convívio necessário para que a estranheza inicial, gerada pela diferença, possa ser incorporada, pelos alunos, ao conceito de humanidade, mesmo porque, segundo Adorno (2015), a essência está na diferença.
2 Condições objetivas contrárias à educação inclusiva
Os fatores objetivos indicados por Adorno (2003) que nos impelem à violência se referem também ao movimento da internacionalização que enfraquece as nações-estado, tal como puderam se constituir até o século XIX. Como o capital rompe as fronteiras, as nações que ficam à margem do sistema reagem. Não por acaso um dos objetivos de Hitler era a expansão de fronteiras para a sobrevivência de seu país. Nos dias de hoje, esse processo de eliminação de fronteiras se evidencia por acordos como os da União Europeia e os do Mercosul, ainda que as tendências reacionárias a esse movimento, que defendem o nacionalismo, sejam visíveis. Dessa contradição entre o nacionalismo e a internacionalização é triste ilustração a crise dos refugiados que não são aceitos em diversos países e não podem voltar para sua própria pátria; de outra natureza, a saída da Grã-Bretanha da União Europeia também indica que o nacionalismo ainda é forte.
Passaram-se décadas desde que Horkheimer e Adorno (1985, p. 11) questionaram as razões pelas quais “[...] a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie”, questão que nos parece muito atual. Entendemos que, se a história da humanidade tem sido marcada pela violência e pelo sofrimento e, simultaneamente, por grande avanço material e técnico, é porque, no percurso do progresso, o desenvolvimento tecnológico e material não se voltou principalmente para a felicidade e a liberdade humanas. Com o avanço tecnológico, pessoas não deveriam mais sofrer em razão da miséria que ainda aflige boa parte da população mundial, e, de alguma forma, tais experiências nos dão os indícios de que as nossas instituições formativas têm fracassado em sua missão primeira: o processo de humanização.
Essas condições sociais se referem à estrutura social vigente que se ergueu historicamente sobre a propriedade privada, que medeia a divisão do trabalho e se fixa na dominação de uma classe social sobre a outra. A racionalidade burguesa neutraliza a capacidade de percepção de tal dominação ao se converter em ideologia.
Na educação, tal ideologia é expressa por uma adaptação à realidade que impede a crítica; assumindo por referência o pensamento de Adorno (2003, p. 145):
Pelo fato de o processo de adaptação ser tão desmesuradamente forçado por todo o contexto em que os homens vivem, eles precisam impor a adaptação a si mesmos de um modo dolorido, exagerando o realismo em relação a si mesmos, e, nos termos de Freud, identificando-se ao agressor. A crítica deste realismo supervalorizado parece-me ser uma das tarefas educacionais mais decisivas, a ser implementada, entretanto, já na primeira infância.
Por ter como principal objetivo a adaptação dos alunos à realidade social, sobretudo ao que se refere às demandas do sistema de produção, como define o § 2º do art. 1º da LDBEN/1996 – “A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social” –, a educação escolar torna-se útil à lógica do capital, afastando-se de seu objetivo-fim: o de promover o desenvolvimento humano. Se todos se voltam, pois, à produtividade sem se perguntar o que é produzido, é o pragmatismo próprio da autoconservação individual e da reprodução social que se apresenta. Por isso “Os sintomas de colapso da formação cultural que se fazem observar por toda parte, mesmo no estrato das pessoas cultas, não se esgotam com as insuficiências do sistema e dos métodos da educação” (ADORNO, 1996, p. 1), e “[...] seria totalmente ilusório desejar solucioná-las pedagogicamente ou por intermédio de um tipo de controle social, pois elas são engendradas em virtude da supremacia cega da técnica” (ADORNO, 1986, p. 7). E a técnica, segundo Horkheimer e Adorno (1985), é tão democrática quanto a sociedade na qual se desenvolve. Como discutiremos mais adiante, a democracia formal, que caracteriza nossa sociedade, ainda que importante por ser democracia, encobre a desigualdade social e, logo, a supremacia da técnica auxilia a reproduzir essa desigualdade.
Assim, as propostas de democratização e de universalização do acesso à educação e seus nexos com as condições para uma educação inclusiva, se são importantes para a inclusão social, podem atuar para seu oposto por se situarem em uma sociedade com tendência imanente à exclusão. Ao discorrerem sobre o antissemitismo, Horkheimer e Adorno (1985, p. 158-159) expõem essa contradição:
Os judeus liberais, que professaram a harmonia da sociedade, acabaram tendo de sofrê-la em sua própria carne como a harmonia da comunidade étnica (Volksgemeinschaft). Eles achavam que era o anti-semitismo que vinha desfigurar a ordem, quando, na verdade, é a ordem que não pode viver sem a desfiguração dos homens.
Isso posto, cabe-nos questionar: até que ponto as políticas públicas que se voltam à educação inclusiva podem estar relacionadas com o “[...] conjunto de ilusões destinado a pregar esperanças numa sociedade anacrônica, ou seja, que já esgotou as suas possibilidades de realização de felicidade, liberdade e justiça?” (CROCHIK, 2003, p. 17).
Como as políticas públicas e os movimentos sociais, em prol da inclusão dos grupos em situação de vulnerabilidade histórica, têm contribuído para expor o sofrimento devido ao preconceito contra esses grupos, dando visibilidade a essa questão, a proposta de uma “educação especial na perspectiva da educação inclusiva” limita a própria inclusão, ou seja, a discriminação presente na educação especial se mantém ao se contrapor à proposta de educação inclusiva, a qual visa à modificação das condições escolares para incluir o aluno, e não a manutenção da educação especial sob um muro simbólico; apesar disso, a educação inclusiva também sofre as limitações indicadas neste texto, já que essas limitações são estruturais e se dirigem a toda forma de educação nesta sociedade. Contém, no entanto, mais avanço do que a que preserva a expressão e a prática da “educação especial” em sua designação.
Consequentemente, a defesa deve ser em prol da superação da manutenção da qualificação “especial” dada à educação inclusiva na Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008), levando-se em consideração o caráter ambíguo da educação, o que fortalece a cisão da educação ao conservar sua dimensão especial. Quanto a isso, estudos (COSTA, 2018; 2012) revelam que, se, por um lado, a educação inclusiva encontra receptividade nas escolas por parte das atitudes de acolhimento dos professores em suas salas de aula, contribuindo para o fortalecimento da escola pública e da democracia social, por outro não se observa alteração significativa nas escolas no que se refere aos aspectos de acessibilidade arquitetônica, curricular e recursos pedagógicos disponíveis nas salas de aula regulares para o ensino de alunos considerados em situação de inclusão, contribuindo para a afirmativa de que as escolas continuam inalteradas em sua organização e reduzindo a educação inclusiva à matrícula compulsória (em atendimento à legislação vigente) e à adaptação desses alunos às condições materiais da educação mantidas na escola.
Isso contraria a concepção da educação inclusiva baseada nos direitos sociais e humanos, que, para além de seus objetivos voltados a não mais separar os alunos nas escolas e nas salas de aula, também deve ser importante para se pensar e afirmar a educação em sua totalidade, que deve superar sua ênfase adaptativa às condições objetivas sociais para assumir o sentido de educação democrática e humanizadora, envolvendo a totalidade de alunos, independentemente de gênero, sexo, condições sociais, econômicas, étnicas e de ter ou não deficiência.
A ideologia das políticas educacionais inclusivas, sob a égide da educação especial, também se revela nas práticas pedagógicas dos professores, que seguem ignorando as demandas de aprendizagem dos alunos considerados em situação de inclusão com a justificativa, entre outras, de que “não foram preparados para lidar com esses alunos”, como identificado em estudos empíricos (COSTA, 2015; CROCHIK, 2011; FARIA, 2016).
Ademais, como as condições materiais da educação reproduzem as desigualdades sociais, destacadamente no que se refere à infraestrutura, manutenção e aperfeiçoamento de formação, recursos e materiais pedagógicos nas escolas – também evidenciado pelos dados do Censo 2017: do total de escolas brasileiras de ensino fundamental, apenas 41,6% contam com rede de esgoto e 52,3%, com fossa; e em 10% delas não há água, energia ou esgoto (MARTINS, 2018) para falar o mínimo –, a permanência da educação especial como modalidade de educação escolar, realizada por meio do Atendimento Educacional Especializado (BRASIL, 2011) e destinada aos alunos com deficiência, transtornos e altas habilidades que hoje estão nas escolas regulares, é o anúncio, ao menos do ponto de vista legal, da disponibilização das condições materiais, sobretudo aquelas que se voltam à acessibilidade (arquitetônica e urbanística, tecnológica, de comunicação e de informação, nos transportes e pedagógica) para esse segmento da população escolar. Nesse caso, a discriminação desse grupo específico é justificada pelo objetivo de lhe garantir direito à escolarização na escola regular.
Considerando a contradição entre o avanço que a educação inclusiva implica e seus limites sociais, o fato de diferentes grupos sociais continuarem sendo expropriados de seu direito ao pertencimento a esta sociedade, restando-lhes apenas uma inclusão marginal (MARTINS, 1997), revela a não sincronia entre o desenvolvimento tecnológico e o humano: ninguém mais precisaria estar excluído das riquezas produzidas por muitos, que poderiam se voltar para todos e não majoritariamente para a elite econômica e política, o que implica “[...] a fraqueza do poder de compreensão do pensamento teórico atual” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 13), contribuindo para o fortalecimento da ideologia voltada aos interesses burgueses que, em geral, não estão em consonância com as necessidades da maioria da população. Para justificar essa desigualdade, no entanto, como Marx e Engels (2007) enunciaram, há objetivamente a ideologia que imputa às competências individuais a justificativa de sua riqueza ou pobreza, o que não é estranho ao que se defende na atual BNCC.
Cabe pensar sobre uma das formas de ideologia contemporânea que tem se destacado das demais: a do neoliberalismo. O conceito de neoliberalismo, ao ser pensado como ideologia, dá visibilidade à descrição de sociedade administrada apresentada por Horkheimer e Adorno (1985), que se contrapõe à ideia de mercado livre, em seu sentido liberal, que, se nunca foi “livre”, atualmente é quase inexistente. O Estado mínimo, por sua vez, defendido por essa ideologia, é um Estado forte no que se refere às tarefas de fiscalização, cobrança e favorecimento dos oligopólios e monopólios, quer pelas leis sancionadas, quer pela infraestrutura custeada pelos impostos. Em outros termos, o papel do Estado e a produção social se referem a uma sociedade que tenta cada vez mais administrar mercadorias e pessoas, que, como força de trabalho, também são consideradas mercadorias. Assim, a crítica ao neoliberalismo deve ser feita considerando-o uma ideologia que tenta ocultar, com a falsa noção de estado mínimo e livre concorrência, a existência da sociedade administrada.
Essa ideologia tem história recente. O jornalista norte-americano Meyer (2009) chamou o ano de 1989 de O ano que mudou o mundo – título de sua obra – e o antropólogo Latour (1994, p. 13, 15, 143) o intitula de “Miraculoso ano de 1989”. Com base nesses autores, não é possível negar que eventos marcantes, como a queda do muro de Berlim, o fim da Guerra Fria e a decadência do socialismo, conspiraram para que, a partir de 1989, vivêssemos mais intensamente o processo de ocidentalização do Leste Europeu e o fortalecimento da visão norte-americana de mundo. Como destacado por Latour (1994, p. 13-14), o anúncio que se seguiu foi o do “[...] triunfo do liberalismo, do capitalismo, das democracias ocidentais sobre as vãs esperanças do marxismo”.
As mudanças socioculturais, econômicas e políticas advindas da crise vivida na década de 1980, marcada pela estagnação no crescimento em comparação com os anos anteriores, sobretudo no período pós-Segunda Guerra, impactaram sobremaneira as relações dos Estados-nação com o mundo. Se na breve era de ouro do capitalismo, como afirmado por Hobsbawn (1995), entre as décadas de 1940 e 1970, houve um grande crescimento econômico e técnico, os anos 1980 foram herdeiros de uma nova crise atribuída ao esgotamento dos propósitos do antigo modelo político e econômico, pois, sob a perspectiva ultraliberal de Hayek (1987) sobre o papel do Estado, quanto menos intervenções governamentais, mais crescimento econômico, sendo as políticas públicas, com o objetivo de distribuição de renda e de mediação nas relações de mercado competitivo, um obstáculo ao crescimento e à estabilidade econômica. Por essa tese, caberia ao Estado assumir a função de agente estimulador da concorrência, visto que dela dependeriam a estrutura, o desenvolvimento e o funcionamento da sociedade. Essas ações conduziriam a um verdadeiro estado democrático, posto que se sustentam na liberdade plena.
O desfecho para esse ciclo da história recente começou a ser desenhado muito antes e as mudanças que se instalaram, com resistências insuficientes, encaminham-se para a confirmação do que os frankfurtianos haviam anunciado: o mundo administrado, um estado de integração total e ordenamento formal produzidos artificialmente.
Assim, o mundo administrado “[...] integra desintegrando. Só é integrável o que não resiste; assim, quem é incluído não é necessariamente o indivíduo, mas sua negação, dada pela adaptação exigida” (CROCHIK, 2011, p. 70). Por uma reconciliação forçada e falseada entre as pessoas, instituições e Estados vão apaziguando as forças opostas e o poder de resistência, a tal ponto que o poder transformador contemporiza as diferenças postas pelas condições objetivas, muito embora as desigualdades permaneçam, pois também permanecem as relações de dominação.
Na reedição da Dialética do esclarecimento, em 1969, nos momentos da “era de ouro do capitalismo”, seus autores afirmam: “[...] o desenvolvimento que diagnosticamos neste livro em direção à integração total está suspenso, mas não interrompido; ele ameaça se completar através de ditaduras e guerras” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 10). O ano de 1989, com seus eventos marcantes, expressou o movimento do que antes estava suspenso: a marcha para a sociedade administrada. O breve período de latência, que possibilitaria à humanidade compreender seus impulsos destrutivos que permitiram a barbárie, não cumpriu seu papel, uma vez que a sociedade, mesmo anunciando a liberdade, aumentou a cisão entre indivíduo e sociedade, não reconhecendo essa última entre seus objetivos principais, a felicidade e a liberdade individuais (ADORNO, 2015).
Quanto à questão da negação do indivíduo, com e sem deficiência, vale recorrer também ao pensamento de Saramago (1999), que, em sua crítica à globalização, à hegemonia do mercado e ao consumismo, afirmou não estar tanto interessado em literatura, pois, se a arte tivesse ajudado a mudar o mundo, há muito o homem estaria vivendo em uma sociedade solidária, sem egoísmo, sem miséria e fome. Antes, “estamos todos cegos, com os olhos enevoados pela cobiça e pelo individualismo”.
Esse estado de inconsciência, denominado por Saramago como sendo um estado de “cegueira coletiva”, agiganta-se sob a égide da sociedade administrada. Em sentido próximo, Adorno (2003, p. 62) indica que mecanismos do fascismo permanecem na sociedade democrática que o sucedeu, e que isso é mais preocupante do que os movimentos neonazistas:
Hoje em dia o nazismo sobrevive menos por alguns ainda acreditarem em suas doutrinas – e é discutível inclusive a própria amplitude em que tal crença ocorreu no passado –, mas principalmente em determinadas conformações formais do pensamento.
Atentar à possibilidade de a “ditadura do capital” – mesmo quando o mercado é anacrônico sob o domínio dos oligopólios e monopólios - se fazer presente nas políticas de educação inclusiva, tanto em sua concepção quanto na implementação nos sistemas de ensino, faz-se necessário na luta contra a negação do indivíduo em uma sociedade na qual impera a lógica da produtividade em prol da concentração e reprodução do capital e que é contrária à humanização e à afirmação do indivíduo.
3 Políticas públicas por direitos humanos e a educação inclusiva
As políticas públicas que se voltam à inclusão de indivíduos historicamente excluídos fazem parte das lutas por direitos humanos na contemporaneidade, embora seu caráter universal e inalienável estivesse presente desde tempos antigos. Foi com o fim da II Guerra Mundial, todavia, que os países se organizaram em torno de uma pauta comum: a responsabilidade de todos os Estados-nação para com a segurança e a manutenção da paz mundial. A concepção de uma “comunidade internacional” que primasse pela proteção e promoção dos direitos humanos individuais e coletivos, materializada pela elaboração e assinatura da Carta das Nações Unidas, inaugurou a política internacional de direitos humanos.
Como uma das macrodiretrizes que alavancaram esse modelo de relação entre os Estados-nação, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), documento assinado e aprovado por 48 países, e os tratados que lhe deram a força jurídica necessária para torná-la legítima, têm como ideal que os direitos civis básicos e liberdades por ela descritos, entre eles a educação, o trabalho, a justiça, a saúde e o bem-estar, sejam atingidos por todos os povos e nações, considerando o ensino e a educação veículos capazes de “[...] desenvolver o respeito desses direitos e liberdades”(ONU, 1948), assim como esforços progressivos de ordem nacional e internacional sejam empreendidos para promovê-los.
Os direitos humanos, apesar de reconhecidamente universais, são também históricos (BOBBIO, 1992), portanto são, ao mesmo tempo, produto e produtores da estrutura social que os sustenta, correspondendo às razões para prosseguir nesse curso. A Declaração Universal dos Direitos Humanos é apresentada ao mundo como o divisor de águas entre a organização social que permitiu que a barbárie ocorresse e aquela que se funda na liberdade, fraternidade, dignidade e igualdade de direitos.
Especificamente no que se refere à responsabilização da comunidade internacional com o combate às violações aos direitos humanos e à proteção ao direito à educação e ao ensino, em 1960, por meio da Convenção da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) (1960) relativa à luta contra as discriminações na esfera do ensino, os Estados-membros definiram que a discriminação ocorre pelo tratamento desigual entre as pessoas devido a raça, sexo, língua, religião, opinião política, origem social.
No conceito de direitos humanos estão implícitas as bases da educação inclusiva, descritas em documentos subsequentes, evidenciando a sua derivação no embasamento educacional. Vale destacar ainda que as concepções tanto de educação quanto de aprendizagem tiveram seus conceitos ampliados por uma concepção inclusiva em diversos documentos produzidos internacionalmente, como a Declaração de Educação para Todos (UNESCO, 1990), a Declaração de Salamanca e Enquadramento da Ação na Área das Necessidades Educativas (UNESCO, 1994), a Declaração de Educação para Todos: o Compromisso de Dakar (UNESCO, 2000), entre outros.
Se, no entanto, a educação escolar, como ressaltado, tem como objetivo principal a adaptação dos indivíduos à sociedade existente e se, nesta sociedade, o trabalho é tido como central para a sobrevivência individual e coletiva, é, sobretudo, para esse que aquela educação se volta. No que se refere à educação inclusiva, os limites individuais podem ser considerados não somente para a socialização, mas também para a preparação ao trabalho, destacadamente o repetitivo, favorável ao desenvolvimento de hábitos que dispensam a intervenção do trabalhador no que é produzido. A concepção de inclusão profissional foi possível de ser gestada em decorrência dos avanços tecnológicos, que permitiram a utilização de menos força e destreza no trabalho, favorecendo gestos simples e repetitivos. Com o desenvolvimento do maquinário, segundo Marx (1984), além dos homens física e mentalmente “perfeitos”, as mulheres e as crianças passaram a ser reconhecidas como força de trabalho, mas obtendo salários menores e certo desprezo na hierarquia do mundo laboral. Mais recentemente, o avanço tecnológico contribuiu para que pessoas com deficiência também participassem como mão de obra (COSTA, 2005) e com as mesmas condições desfavoráveis, ilustrando o que Martins (1997, p. 32) intitula de inclusão precária ou marginal.
O que está posto não são os direitos civis de cidadãos, tampouco a equidade ou justiça, mas o quanto poderão ser explorados pelo capital, seja vendendo sua força de trabalho, seja como consumidores. Ao se retomar a citação de Horkheimer e Adorno (1985) sobre a imanência da tendência da exclusão desta sociedade, é oportuno perguntar se a inclusão marginal é inclusão e se, ao fim e ao cabo, há alguma inclusão nesta sociedade, ou, ainda, tal como Adorno (2015) demonstra, se a ameaça da exclusão que gera o medo de ser destruído não é a base da sociedade burguesa. Assim, a adaptação e a autoconservação conteriam a autodestruição: é necessário sacrificar a própria vida para viver.
Compreender, portanto, a educação inclusiva implica atentar para as contradições que lhe são inerentes nesse modelo de sociedade. Se, de um lado, estão as conquistas por direitos formais, de outro está a lógica da produção e reprodução do capital, que nega o indivíduo e o processo de humanização. Consequentemente, cabe à educação, mesmo se considerando seus limites na sociedade administrada, explicitar essa ambiguidade sem negar suas possibilidades contraditórias. Para tal, retomamos o pensamento de Adorno (2003, p. 141-142), que, ao se referir à sua concepção inicial de educação, sabiamente a problematizou afirmando que a educação não deve modelar as pessoas, mas produzir uma consciência verdadeira.
Com a consciência de que a democracia formal se torna falsa democracia por eludir a desigualdade social sobre a qual se assenta, compreende-se que, quanto mais se desenvolve essa democracia formal, menos democrática é a sociedade. Nesse sentido, as políticas públicas, mesmo quando pretendem mais justiça social, aumentam a injustiça por promoverem a ilusão de que mecanismos formais são suficientes para resolver problemas gerados pela desigualdade social.
Nesse aspecto, faz-se necessário estabelecer a distinção entre a igualdade social, almejada para que todos possam se individuar, diferençar-se, e a igualdade formal, que, por priorizar o que é universal, desdenha da experiência que pode constituir o indivíduo singular. Certamente não há singularidade sem a apropriação do que é universal – diversas formas de expressão da cultura –, mas esse universal deveria se expressar pelas diferenças que permitem formar, e não pela negação dessas diferenças. Nesse sentido, formar para a igualdade formal é pseudoformação, pois a relação entre o concreto e o abstrato, possibilitada pela experiência, é cindida com a supremacia do abstrato sobre o concreto; no entanto o abstrato indica a prisão ao imediato e o concreto, a possibilidade de dele se distanciar e o refletir.
Por isso, os indivíduos, de modo geral, não se reconhecem na democracia por não a identificarem como a expressão de suas experiências como sujeitos políticos. Antes, essa é apreendida como mais um sistema de organização política e econômica da sociedade segundo o qual o que importa é o quanto de êxito se tem ou não: “Na linguagem da filosofia poderíamos dizer que na estranheza do povo em relação à democracia se reflete a alienação da sociedade em relação a si mesma” (ADORNO, 2003, p. 36).
Nesses termos, a contradição entre a ética e o direito formal cresce em toda sua pujança. Enquanto a justiça formal aparece como uma força que define as regras sobre um dever ser, a ética se exprime na práxis, por meio de atitudes, porque está atrelada à autorreflexão crítica sobre as condições objetivas que permitiram – e ainda permitem – que o fascismo se consolidasse.
Por outro lado, é importante voltar a salientar que foi no contexto da democracia formal que os movimentos sociais representativos de classe puderam se constituir e, como desdobramento, foram ampliadas as possibilidades de conquista dos direitos civis. Ademais, à medida que se reconhecem o compromisso e a responsabilidade mundial com a promoção e a proteção dos direitos humanos, tanto mais frequentemente estarão presentes nas agendas dos governos de cada um dos Estados-nação, sobretudo se considerarmos que as políticas públicas se apresentam como arena de disputas de interesses diversos e os governos, minimamente autônomos, definem suas agendas. Quando há um impulsionamento por parte da comunidade internacional em prol dos direitos humanos, a temática é fortalecida.
Assim, as condições de acesso à educação por parte dos grupos sociais historicamente excluídos nunca foram tão favoráveis. É o que afirma Adorno (2003, p. 146-147): “Além disto é preciso lembrar que hoje – e isso é bom – inserem-se no processo educacional milhões de pessoas que antigamente não participavam do mesmo”. Assim, não se deve ignorar que, no atual modelo societário, é a democracia formal que tem tornado possíveis, se não a realização de condições sociais justas e equânimes, ao menos a sua problematização e a esperança de um dia alcançá-las.
4 Considerações finais
Pelo exposto até então, é possível afirmar que a educação assume um papel estratégico no entendimento das causas e, consequentemente, no enfrentamento e na superação da segregação e da exclusão dos indivíduos pertencentes a grupos considerados desiguais por não se submeterem integralmente aos desígnios da sociedade capitalista; entre esses grupos, as pessoas com deficiência. A ausência da reflexão sobre seus limites, porém, pode fortalecer a ideologia de que nesta sociedade é possível uma vida equânime à totalidade dos indivíduos, mesmo considerando que dados estatísticos indicam ter ocorrido avanços na inclusão de alunos em salas de aula regulares, que antes não estudavam ou o faziam em classes ou instituições especiais.
Os dados publicados no Anuário Brasileiro da Educação Básica (CRUZ; MONTEIRO, 2016, p. 45), com base no Censo Escolar do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP)/Ministério da Educação (MEC)/Diretoria de Estatísticas Educacionais (DEED), expressam os avanços quantitativos das políticas públicas de educação inclusiva que contemplam alunos com deficiência no Brasil na educação infantil e nos ensinos fundamental e médio.
Esses dados, todavia, não ilustram as formas pelas quais essa inclusão tem ocorrido. Se se trata da educação especial dentro da escola regular, o disfarce da exclusão pela inclusão se torna visível; se há um educador específico em sala de aula para os alunos considerados em situação de inclusão, ou se para esses são ministrados conteúdos e avaliações diversificados, e não somente diferençados quanto ao grau de dificuldade, a manutenção da segregação é clara.
Conforme desenvolvemos neste texto, educamos, sobretudo, para a adaptação social e, para isso, fazem-se necessárias a competição e a desvalorização do perdedor, sendo essa forma de educação fruto de uma sociedade desigual que, por meio dessa educação, tenta se reproduzir, não sendo possível a educação inclusiva, mas somente a inclusão em uma escola que exclui.
Se, no entanto, esses limites da proposta da educação inclusiva forem notados, a consciência da necessidade de uma sociedade não violenta pode surgir e contribuir para a própria mudança social e, consequentemente, a superação da educação segregada ou marginalmente inclusiva. Além disso, é fundamental notar que, mesmo com esses limites, como acentuado anteriormente, a luta contra a segregação que a educação inclusiva, em todos os seus moldes, promove é um avanço em relação à educação escolar segregada.
Por fim, nessa perspectiva, a reflexão sobre os direitos humanos, as políticas públicas e a inclusão têm o papel fundamental de nos manter em luta pela afirmação da sociedade democrática por intermédio da experiência e da conscientização a respeito da afirmação da educação humana e emancipadora, sem ignorar as contradições sociais que lhe impõem limites enquanto não forem superadas. Em outros termos: a educação inclusiva, assim como toda forma de inclusão, somente será possível com a superação das contradições próprias a uma sociedade violenta.