1 Introdução
Há uma pluralidade de infâncias que precisam ser compreendidas em relação à pluralidade de modos de socializações humanas, a infância, nessa perspectiva, é uma “experiência social e pessoal, ativamente construída e permanentemente ressignificada” (BARBOSA, 2007, p. 1065). É relevante, portanto, colocar em foco infâncias de outros tempos, tendo em vista retirá-las de sua histórica obscuridade (SARMENTO, 2008). Conhecer os modos de educação infantil em tempos e contextos diferenciados possibilita suscitar reflexões àqueles que trabalham com a infância e a sua educação, contribuindo para sua formação e aprimoramento profissional (KUHLMANN JR, 2004). Na medida em que o trabalho da história, como propõe Pesavento (2008, p. 59, grifo da autora), “é sempre o de dar a ver um outro”, a investigação realizada propôs tornar visível outros modos de educar as crianças e outras infâncias que se fizeram presentes no espaço-tempo investigado.
Esse é o teor desta escrita: colocar em destaque a educação infantil em um contexto específico, buscando reconstituir cenas em que se delinearam um conjunto de práticas particulares, próprio desse contexto, que ao serem visibilizados permitem ampliar o conhecimento sobre a educação da infância brasileira permitindo problematizar processos experienciados em instituições educacionais.
A pesquisa, resultante de tese de doutorado, analisa práticas de atendimento em creches, buscando compreender como se operou o processo de institucionalização de bebês e crianças bem pequenas1 na década de 1980, período demarcado pela expansão da educação infantil no Brasil. O conjunto de dados analisados permite ampliar reflexões sobre a cultura de creche. O processo metodológico da investigação contempla a análise documental e a história oral, através de depoimentos de profissionais das creches e gestores. A pesquisa toma como contexto de investigação o município de Francisco Beltrão/PR, a partir de depoimentos colhidos junto às profissionais das creches e gestores vinculados à mantenedora2, associados à análise de documentos. As entrevistas foram realizadas no período de 2012 e 2013.
Foram entrevistadas um total de 20 profissionais de creche que atuaram nas décadas de 1980 nas instituições que foram criadas nessa década. A composição do quadro para a investigação se estabeleceu a partir de contato inicial com as diretoras das instituições de educação infantil (criadas na década de 1980) que indicaram as profissionais mais antigas dos CMEIS e profissionais que haviam trabalhado nas instituições. Priorizou-se aquelas que atuaram com turmas de berçário e maternal e as coordenadoras pedagógicas dessas instituições.
Em Francisco Beltrão/PR, inicialmente esse grupo de profissionais que atendia diretamente as crianças foi contratado, em regime celetista, para o cargo de auxiliar de creche e a partir de 1985 foram reenquadradas no cargo de monitor de creche. O primeiro concurso foi efetuado, em 1991, para o cargo de monitor de creche. Diante disso, o grupo de profissionais entrevistadas atuou em diferentes períodos, algumas delas permaneceram somente no período anterior ao primeiro concurso, outras fizeram o concurso e prosseguiram na carreira3. Trata-se de um grupo que não possuía formação profissional para a docência, sendo que algumas daquelas que foram efetivadas através do concurso realizaram posteriormente sua formação profissional.
O processo analítico segue uma perspectiva interdisciplinar, utilizando as contribuições da história cultural e da sociologia da infância para o processo interpretativo. Há especial ênfase no uso da memória, entendo-a como representação de um tempo (STEPHANOU; BASTOS, 2005).
A matriz analítica da pesquisa possibilita conceber a infância como categoria geracional, possibilitando perceber “o modo como são continuamente reinvestidas de estatutos e papéis sociais e desenvolvem práticas sociais diferenciadas, os atores de uma determinada classe etária, em cada período histórico concreto” (SARMENTO, 2005, p. 367). Nessa perspectiva, o texto desdobra considerações acerca da infância e seus modos de vida, permitindo vislumbrar este grupo geracional em um tempo histórico, contexto e condição de possibilidade específico.
Tais referenciais possibilitam olhar para a creche como produção cultural e um dos lugares de pertença da infância na sociedade contemporânea. Partindo do pressuposto de que toda instituição escolar possui uma cultura própria (SILVA, 2006), argumenta-se, neste caso, que a creche é portadora de uma determinada cultura, possui uma vida interna, que não está alheia ao contexto social mais amplo. Os indivíduos e as práticas são centrais para compreensão de tal cultura que abrange sujeitos e ações do cotidiano institucional. Benito (2000; 2010); Viñao Frago (1995); Julia (2001) em linhas gerais, definem cultura escolar como um conjunto de práticas, normas, ideias e procedimentos que se expressam em modos de fazer e pensar o cotidiano da escola. Juntamente com as contribuições de Bondioli e Mantovani (1998), Faria (2007), Barbosa (2006) que se referem aos contornos de uma cultura de creche, torna-se possível olhar para o cotidiano das creches sob uma perspectiva cultural, possibilitando apreender as práticas e as representações que perpassam o cotidiano institucional. Sendo assim, a creche possui especificidades que a diferencia da escola, que envolve os campos da assistência e da educação e os sujeitos para quem se destina, a criança pequena, formando os contornos de uma cultura onde se estabelece uma pedagogia dos pequeninos (BONDIOLI; MANTOVANI, 1998).
O texto que segue tematiza alguns elementos que tem destaque no contexto investigado no que diz respeito às práticas, representações, tempos e espaços.
2 Higiene, saúde, nutrição e brincadeira no berçário
A tríade higiene-saúde-nutrição demarca significativa presença na creche, predominando visivelmente entre as práticas do berçário, sinalizando uma imagem de bebê biológico. Esses elementos demarcam dois ofícios diferenciados na creche: aos bebês a condição biológica (nutrição-alimentação), associada ao seu papel de sujeito brincante, e às demais faixas etárias um ofício de aluno, onde está presente um conjunto mais amplo de preocupações pedagógicas. Esse é um dos aspectos delimitadores do grupo etário bebês em relação aos demais grupos etários da creche.
A imagem do bebê biológico é explicitada na rotina do berçário:
Daí descarregava todos, aí eu enchia a banheira e começava a dar banho, primeiro cortava unha, a unha dos pezinhos, das mãozinhas, aí pro banho, dava banho, trocava e ia botando cada um na sua caminha, até terminar, aí dava mamá pra todos, eu fazia os mamás, na mamadeira, quando terminava ali aí eu pegava aquelas roupas e levava na lavanderia, quando os nenês estavam quietinhos eu mesma dava uma lavada pra poder voltar a tarde (com as roupas), porque não tinha como né. [...] Aí eu ia pra cozinha iniciava a sopa deles, fazia uma sopinha, quando era 11 horas por aí eu começava a tratar deles, os que já comiam, os que não eu dava mamá de novo. Aí terminando aquilo esperava um pouco trocava todos, novamente, ajeitava todos
(Laura4).
Na mesma instituição, para o outro subgrupo etário, são sinalizadas diferenças no trabalho:
[...] no inverno, assim... aquelas crianças, a gente colocava os colchões no chão, colocava eles sentadinhos, cobria as perninhas deles com cobertor, dava o café lá, assim pra eles e o pãozinho na mão, uma coisa assim carinhosa [...]. Então, aí depois do lanche, troca, banho, aí nós íamos pra uma atividade, depois o almoço, aí nós escovávamos os dentes deles, tinha um tablado assim perto da pia onde eles subiam, nós escovávamos, a gente não dava a escovinha pra eles, nós escovávamos, colocava no peniquinho, coisa mais fofa, depois quem precisava de fralda a gente trocava, [...] e depois eles dormiam, mais ou menos até as 14 horas. Levantou, a gente faz mais uns exercícios com eles, umas atividades, ou ia pra fora, tinha uma quadra lá, ou fazia ali mesmo dentro da sala, aí dependendo do sol, da temperatura do dia, antes das 4 horas era o lanche, as 3 e meia, e após o lanche nós começávamos a trocá-los de volta e aquela roupinha toda ia pra lavanderia. [...] Tinha um planejamento tudo bonitinho. [...] mais atividades lúdicas né pra idade deles, eu dava, por exemplo, deseinho, fazíamos em massinha. Claro eles eram pequenininhos, mas eu trabalhava a coordenação motora, eu trabalhava pra eles andarem na linha, essas coisas que a gente trabalha na educação infantil, com os pequenininhos
(Juraci5).
Enquanto na primeira narrativa a rotina fica centrada nas necessidades biológicas dos bebês, banho, alimentação, troca de fraldas, na rotina do segundo grupo a professora Juraci destaca a preocupação com as “atividades” e “exercícios”, com o planejamento das atividades que incluíam desenho, massinha de modelar, coordenação motora, atividades lúdicas, como indicado pela professora. Fica explícito as diferenças quanto à rotina dos diferentes grupos etários.
Como destaca Coutinho (2011), tem sido recorrente a tendência de restringir as competências dos bebês apenas às dimensões biológicas. Essa ênfase aponta para uma perspectiva adultocêntrica, onde “não há lugar para o reconhecimento dos bebês e das crianças pequenas como seres linguageiros, ativos e interativos” (RICHTER; BARBOSA, 2010, p. 89). Em decorrência, este olhar tem colocado empecilhos para que os bebês sejam percebidos como sujeitos legítimos, produtores ativos de cultura. Geralmente são vistos como um “pacote biológico” (GOTTLIEB, 2009).
Contudo, é interessante notar que a brincadeira também aparece como uma singularidade no tempo e lugar dos bebês na creche. A brincadeira tem um papel significativo nas práticas com os pequenos porque se constitui na ocupação prioritária dessas crianças, nos momentos em que estas não estão envolvidas em atividades da dimensão biológica. Na pesquisa aqui relatada, segundo as depoentes, as brincadeiras eram realizadas na sala e nos espaços externos, brincavam com cantigas, de esconder-se dos bebês cobrindo o rosto com um pano, com materiais de sucata, com brinquedos e ainda improvisavam materiais com recursos da natureza. Ao fazer parte do cotidiano dos bebês, esta dimensão evidencia que eles eram compreendidos como sujeitos e “não apenas corpos a serem banhados, alimentados ou trocados” (TRISTÃO, 2005, p. 42). Embora houvesse ênfase nestes últimos aspectos, que necessitam compor o cotidiano da creche, a dimensão lúdica e social dos bebês também era considerada.
A demarcação de um ofício de bebê na creche, diferenciado dos outros subgrupos etários pode ser sinalizada na seguinte afirmativa: “Prefiro o berço, porque os grandinhos exigem mais atividade, tem que ter mais pique né pra acompanhar eles, já os mais pequenos” (Cleusa6). Conforme acentua Tristão (2005, p. 42) é “mais fácil pensar que as crianças são atores sociais, potentes, criativos, quando falamos de crianças maiores” ainda é “um desafio pensar em alteridade quando este outro é um bebê”. É importante destacar que:
Os bebês sabem muitas coisas que nós culturalmente não conseguimos ainda ver e compreender. Entretanto, suas formas de interpretar, significar e comunicar emergem do corpo e acontecem através dos gestos, dos olhares, dos sorrisos, dos choros, enquanto movimentos expressivos e comunicativos anteriores à linguagem verbal e que constituem, simultâneos à criação do campo da confiança, os primeiros canais de interação com o mundo e os outros, permanecendo em nós – em nosso corpo – e no modo como estabelecemos nossas relações sociais
(RICHTER; BARBOSA, 2010, p. 87).
Como acentua Gottlieb (2009), a habilidade verbal que falta aos bebês é compensada por suas comunicações somáticas. Ainda é um desafio entender os modos dos bebês relacionarem-se com o mundo, entender como o corpo dos bebês é “estruturado (pelas) e estruturador (das) ações” (COUTINHO, 2011 p. 113). Nesse sentido, embora relatado pelas professoras, os tempos da brincadeira na rotina com os bebês não são percebidos em sua dimensão pedagógica, sobressai a importância dos cuidados corporais e a diversidade de brincadeiras relatadas pelas entrevistadas são narradas por elas como algo sem muita importância na rotina.
3 O berço e a sucata na cultura da creche
A imagem retratada na fotografia7 a seguir é significativa para explorar a dimensão do espaço da creche no que se refere aos bebês (Figura 1). Trata-se de uma sala de berçário. Nessa sala há somente berços para as crianças e cadeiras para as monitoras. O que esse lugar tem a dizer? O que expressa a presença/ausência de recursos materiais? Fica explícita a improvisação do espaço, denotando efetivamente o lugar periférico ocupado pela creche.
O espaço traduz uma cultura de infância nas instituições de educação infantil, é carregado de representações de criança e de adulto, apresenta marcas de um projeto educativo (FARIA, 1999). Desse modo, conforme acentua Viñao Frago (1995), o espaço escolar apresenta uma natureza cultural e educativa, não é neutro, é signo, símbolo, apresenta as marcas de quem o ocupa8, em sua materialidade, institui um sistema de valores (BENITO, 1992). A instituição escolar reflete em suas estruturas arquitetônicas os modos de conceber a organização do ensino, de dispor os elementos e pautar as práticas, expressa uma ordem conformada a regras e formas que comportam sentidos (BENITO, 2000). A escola, neste caso podemos dizer a creche, apresenta marcas, que manifesta modos de organização pedagógica e conteúdos de cultura (BENITO, 2000).
O berço se sobressai como recurso de destaque. Essa ideia está presente na fala de Leonilde, coordenadora pedagógica9 da Associação de Proteção à Maternidade e à Infância – APMI, ao referir-se à criação da primeira creche: “se tu visse os bercinhos que nós montamos, com mosquiteiro, tudo coisa mais linda, tinha quatro berços, era dois de um lado e dois de outro”. A narrativa sinaliza o berço como ocupando lugar de destaque. E apontando para qual ideia de atendimento aos bebês que o berço remete, Leonilde complementa a sua narrativa afirmando: “[a monitora] cuidava daquelas crianças, aquelas crianças todas limpinhas, bem arrumadinhas, ali”. Assim o berço impõe uma ordem e remete a funções de atendimento das necessidades biológicas.
Desse modo, como afirma Benito (2000, p. 6), o espaço-escola exibe sinais emblemáticos que veiculam valores culturais, morais e ideológicos, constitui-se em um referente simbólico dotado de significações. Faria (2007) pontua que todo lugar tem um potencial pedagógico. Autores que estudaram sobre o espaço na educação infantil acentuam que este é fundamental para o desenvolvimento e as aprendizagens das crianças, atuando na estruturação de funções motoras, simbólicas, sensoriais, lúdicas e relacionais (BARBOSA; HORN, 2001; FORNEIRO, 1998; HORN, 2004 e outros). Horn (2004) assevera que o espaço se legitima como um elemento curricular, portanto, ele nunca é neutro e pode estimular ou limitar as possibilidades das crianças.
Além dos berços, outro objeto que se destaca na creche é a sucata, conforme expõe Salete10: “pegava a caixa de brinquedos que tinha, mais era sucata. [...] era difícil a gente ter lápis, folha, se usava muito o papel jornal era o que a gente tinha mais a disposição, era papel jornal e tinta. A gente não tinha muita opção de ter um material pra fazer uma atividade pedagógica”. Oliveira [et al.] (2003) dizem que os objetos que as crianças dispõem para brincar, nas salas, são fundamentais. Os materiais que compõem as instituições escolares são testemunhos de uma gramática da escolarização, um código de regras que coloca a cultura escolar em uma determinada ordem (BENITO, 2010). Importante aqui lembrar Horn (2004, p. 37), quando acentua que o espaço, na instituição de educação infantil, é rico em significados, “carrega em sua configuração, como território e lugar, signos e símbolos que o habitam”, ele mostra a cultura em que está inserido através de ritos, da presença, disposição e usos dos objetos. A autora ainda afirma que por meio da leitura da organização dos espaços é possível depreender que concepção de criança e de educação é compartilhada naquele lugar. Desse modo, a ausência de recursos também tem muito a nos dizer.
Cabe, então, problematizar: de que objetos se compõem a creche? No contexto investigado – que delimita um tempo determinado e um lugar específico, mas que pode ser extrapolado para muitos outros contextos – compõem-se, basicamente, de berços, fraldas, mamadeiras, chupetas e sucatas. Se considerarmos a importância dos recursos e o papel que eles desempenham, cabe indagar: o que oferece esse espaço? Refletir sobre os objetos que compõem o cotidiano das crianças auxilia a compreender como as infâncias são constituídas nos diversos lugares. Prout (2010, p. 740) acentua a importância de incluir a materialidade na análise da infância a fim de perceber como a infância se constitui na sociedade “enredada em uma enorme variedade de artefatos materiais”. Isso nos remete a pensar: qual o lugar que esses mesmos artefatos ocupam atualmente no tempo-espaço da creche?
Uma das marcas, não somente no contexto investigado, mas na educação infantil brasileira e independente do período a ser analisado - particularmente das creches voltadas à população de baixa condição econômica – é a carência de recursos em geral, e de objetos pedagógicos especificamente. Tal situação permite que se lhe associe à expressão rainha da sucata, ou seja, contexto marcado pela ausência, pela precariedade (ROSEMBERG, 1992). Contudo, no cotidiano da creche marcada por essa condição, crianças e professoras encontraram alternativas para inventar novos usos aos objetos e assim criar e vivenciar uma cultura lúdica e uma cultura da infância. Nesta perspectiva cabe lembrar Certeau (2012), para quem espaços e tempos sociais estão submetidos à criatividade e à ação dos sujeitos. Como a pesquisa permite constatar, no contexto investigado há lugar para expressão da criatividade dos sujeitos em suas ações. Com isso, refletir sobre os usos das materialidades a que crianças e adultos têm acesso permite avançar na compreensão do lugar social desses sujeitos e aqui, especialmente, das crianças, fazendo perceber de forma mais ampla como se compunha o cotidiano da creche. Assim como reinventam o uso de objetos, reinventam os espaços também. Acerca disso é importante considerar que
As práticas sociais das crianças reconfiguram os lugares institucionais em que vivem as crianças, em cada momento, e as formas de ser e de agir das crianças “contaminam”, alteram, modificam permanentemente as práticas familiares, escolares, institucionais, e dos territórios e espaços sociais em que se encontram. Apesar de isso ser normalmente ignorado, a verdade é que as crianças agem e a sua acção transforma os lugares em que (con)vivem com os adultos
(SARMENTO, 2011, p. 585).
A narrativa de Salete, que remete a essa dimensão da ação ativa das crianças na reconfiguração dos espaços, por diversos momentos da narrativa (aqui sintetizada) faz referência à maneira como o cotidiano da creche se reorganizava a partir da ação das próprias crianças em função das possibilidades que o espaço colocava:
Um grupo ficava num canto, outro grupo ficava no outro [...] numas alturas misturava tudo né [...] acabava que deixava eles brincar livre. Quando resolviam correr lá dentro o barulho era... [...] Até acalmar não era fácil [...] mas vira e mexe estavam todos misturados, porque a gente não tinha uma sala específica, era todo o ambiente aberto. Então estava um dum lado e outro doutro, mas de repente, tinha momentos assim que tava todo mundo junto...
4 Os múltiplos tempos na rotina da creche
A organização do tempo da creche salienta dimensões de um cotidiano pedagógico particular, que se organiza em função de determinadas necessidades das crianças e daquilo que se entende obrigatório incluir no atendimento institucional. As narrativas de Laura sobre a rotina do berçário, e de Juraci sobre a rotina do maternal, possibilitam visualizar como se estruturam esses tempos. O quadro (Quadro 1), elaborado a partir daquelas narrativas e complementado com a de outras profissionais explicita algumas das especificidades de cada grupo.
Rotinas comumente constituem categoria pedagógica usual na educação infantil, elas regram e normatizam o cotidiano institucional (BARBOSA, 2006). Barbosa (2006) acentua que as rotinas são produtos “culturais criados, produzidos e reproduzidos no dia-a-dia”. Assim, as rotinas estão presentes nas instituições educacionais como formas intencionais de controle e regulação, tendo como base “uma seleção feita a partir dos discursos sobre as crianças e sobre a função social da educação infantil” (BARBOSA, 2006, p. 202).
Para Viñao Frago (1995), tempo escolar de fato são tempos no plural, o que permite perceber que, no mesmo espaço institucional, são vividos tempos diferentes por grupos de crianças e adultos. É o que as rotinas aqui apresentadas sinalizam, isto é, o tempo vivido pelos bebês não é o mesmo tempo vivido pelos outros grupos etários. As especificidades de cada tempo traduzem concepções de educação e, deste modo, sujeitos infantis são destinatários de propostas diferenciadas em função das expectativas dos adultos sobre as crianças. O autor pontua que o tempo escolar é organizado e produzido social e culturalmente, por sua vez, Benito (1992) esclarece que o tempo reflete determinados pressupostos psicopedagógicos, valores, formas de gestão de determinado contexto.
Berçário | Maternal |
− Chegada dos bebês; − Banho (cortar unhas) e vestimenta do uniforme; −Permanência no berço; Mamadeira; −Sono ou andar pela sala ou tomar sol; −Almoço; −Sono; −Troca de fraldas; −Mamadeira; −Brincadeira ou tomar sol; −Troca de roupas; −Retorno para casa. |
Chegada das crianças; −Café; −Banho e vestimenta do uniforme; −Atividades lúdico-pedagógicas; −Almoço; −Escovação dentária; −Hora do penico ou troca de fralda; −Sono; −Atividades lúdico-pedagógicas; −Lanche; −Troca de roupa; −Retorno para casa. |
Fonte: Elaborado pela autora.
Nesse sentido, é importante perceber as diferenças entre uma rotina e outra. A segunda inclui o que as professoras denominam de “atividades pedagógicas”, esse elemento não aparece na rotina do berçário, pois a compreensão que ainda hoje está presente no contexto da creche é de que com os bebês é “só cuidado mesmo”. Contudo, como fica explícito especialmente no subtítulo “Higiene, saúde, nutrição e brincadeira no berçário” mesmo que as representações do trabalho com os bebês remetam à ideia de que é “só o cuidado”, há um conjunto de práticas invisibilizadas por esta ideia, que são as práticas das brincadeiras.
Um dos elementos que se destacam nos tempos vividos na creche, no contexto investigado, são os tempos de convivência de interação entre diferentes grupos etários. São momentos de encontro entre diferentes grupos etários, bebês e crianças maiores, adultos e crianças. Oliveira et al (2003, p. 69) asseveram que a interação é um elemento básico para o desenvolvimento infantil. As autoras expõem que a rotina da instituição de educação infantil deve abranger a “organização de atividades estruturadoras de interações adulto-criança, criança-criança e criança-mundo físico e social”.
Quanto aos tempos na creche, no contexto investigado destacam-se oportunidades mais acentuadas de convivência entre diferentes subgrupos etários. Tal como mostra a fotografia (figura 2): bebês, crianças pequenas, crianças maiores, jovens e adultos, todos juntos em momentos festivos, em situações de interação. Esta fotografia é significativa para percebermos que as formas e possibilidades de interação na creche, no período investigado, são diferenciadas das possibilidades oferecidas atualmente.
A imagem está com alguns marcadores que sinalizam o lugar onde estão os bebês nessa fotografia: no colo de adultos e de outras crianças (jovens), que também frequentavam a creche num regime de contra turno escolar. Diferentes ocasiões de integração entre diversas idades, ora incentivada ou, em algumas situações, imposta pelas condições de infraestrutura e espaços improvisados onde os ambientes eram bem mais coletivizados.
Os bebês aparecem como sujeitos atuantes no contexto institucional. Nesse contexto de interações se ritualiza a prática pedagógica efetuando-se uma pedagogia do contato, conforme expressão de Nörnberg (2013), onde diferentes grupos etários se encontram. Esse aspecto é explicitado na fotografia da Festa do Dia da Criança (figura 3) que registra a atuação dos bebês nesses momentos de encontro entre todos os sujeitos da creche. A creche é sinalizada, através dessas fotografias, como lugar de relação, de interações, de vida social coletivizada, apresentando outras possibilidades de viver o espaço institucional, assim como outras possibilidades de socialização.
Constata-se que as festas e atividades vinculadas às datas comemorativas tinham presença importante no período inicial dessas instituições. Algumas festividades como Páscoa e Natal, Dia da Criança eram comemoradas reunindo todas as crianças e adultos de cada creche e contava com a presença da equipe da APMI. Essas datas eram motivo de encontro e compunham um ritual festivo da creche. Cleusa, monitora de creche, recorda, “reuníamos [as crianças], fazíamos lanche juntos. Comemorávamos tudo”. Esse ritual de comemorar tudo está em posição de destaque no cotidiano das creches.
As atividades relacionadas às datas comemorativas expressam um conjunto de conteúdos curriculares, mas efetivamente têm destaque como oportunidade de encontro, de interações entre diferentes subgrupos etários, de participação da comunidade na creche. E acentuam a importância atribuída à infância, naquele contexto, para quem os adultos programam as festas de Páscoa e Natal e as presenteiam nesses eventos. Desse modo, essas práticas festivas têm lugar de destaque nas instituições colocando-se como importante marca cultural da creche no período investigado.
5 Considerações finais
O texto sinalizou traços de uma cultura de creche. Sem a pretensão de abranger de todo o cenário, pontuou reflexões sobre concepções de educação infantil que marcaram o lugar, as singularidades das práticas dos sujeitos, a organização dos tempos e espaços, além de elementos referentes à cultura material da creche que servem ao propósito de levantar questões para refletir sobre o tema.
A cultura da creche delimita-se a partir de alguns contornos que a diferenciam da escola. Na creche práticas e representações envolvem o cuidado, a educação, a brincadeira, as particularidades da presença dos bebês e crianças pequenas, as especificidades da profissionalização docente com o grupo etário a que se destina.
Os traços da cultura de creche que esta pesquisa evidencia permitem identificar as singularidades do lugar social constituído para bebês e crianças bem pequenas no processo de institucionalização de creches – ontem e em grande parte ainda hoje. Tais espaços podem ser simbolizados por berços, fraldas, mamadeiras, chupetas e sucatas. Este lugar da infância pode ser caracterizado como um lugar heterogêneo, um espaço múltiplo, onde é possível identificar tanto a expressão de uma política conformadora de corpos, como a expressão de uma cultura do encontro.
A educação infantil tem o desafio de conceber experiências no campo das práticas pedagógicas para bebês e crianças bem pequenas, que incluam as múltiplas manifestações culturais, integrando saberes, conhecimentos e experiências no sentido de proporcionar o desenvolvimento pleno da criança e a vivência enquanto sujeito social produtor de cultura. Para tanto, é pertinente refletir sobre o lugar ocupado por esses artefatos culturais: o berço desempenha a função de cercear a liberdade dos bebês ou possibilitar o descanso? Como a troca de fralda compõe a rotina da creche? O que os outros bebês fazem durante a hora da troca de fraldas? Esse momento é aproveitado para a experiência comunicativa entre a professora e o bebê? Quais experiências sensoriais oportunizadas aos bebês no campo da alimentação? Quais os recursos, materiais e espaços disponíveis nas creches para a livre exploração das crianças? Quais as possibilidades de interações com os objetos, os sujeitos e os contextos na creche? As questões destacadas são algumas possíveis que o material empírico analisado suscita, daí a importância de estudos que coloquem em destaque a cultura de creche.