1 Introdução
O mundo não é. O mundo está sendo.
Paulo Freire
Inicio essas primeiras palavras com essa pequena e altamente significativa afirmação de nosso mais-velho e peço licença para entrar nessa roda. É nessa circularidade, nessa mandala, portanto, que me insiro enquanto educadora popular anti/contra/decolonial. Sabendo que nunca estamos e tampouco fazemos nada sós, é que trago, nas linhas que se seguem, práticas, experienciações, partilhas, conquistas, aprendizados. Nem sempre na perspectiva da vitória, mas na perspectiva da tentativa, sobretudo da caminhada e da luta. É na certeza dessa limitação, que nos traz a necessidade da busca em ‘ser mais’, como dizia Freire, que nos colocamos enquanto seres em processo, nunca finalizados, porque sempre aprendentes.
Já adianto aqui que não há receita pronta ou manual a ser seguido, até porque “as experiências não se transplantam, se reinventam (FREIRE, 1977, p, 96). Até porque não pretendemos ser modelo de nada, porque acreditamos que vamos fazendo caminho ao caminhar, batendo o solo que a nossa ancestralidade pisou e lutou com, para e pela educação popular (EP). É no mambembe que as nossas práticas se constituem, como trago em minha pesquisa de doutoramento1; é nessa viração, portanto, imbuídas, sim, das teorias e das práticas de quem veio antes, que vamos nos constituindo como seres neste mundo e com este mundo.
Como cenário para tecer esses retalhos de experiências2 imaginemos uma roda de conversa em que você está presente comigo e, tomando um café, chegam Paulo, Elza, Nita e Bell Hooks. Falo do café, e não do sorvete, porque Hooks já teve esse privilégio de saborear uma tarde de sorvete e prosa com nosso mais-velho. Incluo Elza e Nita na tarde desse cafeto, porque, sem elas, muita coisa dos escritos freirianos não teria nascido e chamo Bell Hooks pra essa prosa pela repaginação, atualização, decodificação que deu aos escritos do nosso andarilho! Nessa colcha de retalhos que sigo a tecer, a prosear e a saborear um cafeto sem açúcar ou adoçante, mas aquele amarguinho da roça, trago minhas últimas experiências, com mais um tantão de gente que participou aguerridamente dessas pedagogias dos possíveis durante a pandemia da Covid-19, que está justamente culminando com os 100 anos de Paulo e 105 anos de Elza. Nessa caminhada, desde março de 2020, quando o distanciamento social se tornou uma realidade, o mambembe bateu à porta e tivemos de nos reinventar, trazendo os inéditos viáveis pra essa gira.
Na gíria das favelas e periferias, esperançar3 é a correria do dia a dia, e o inédito viável seria “o que temos pra hoje”. Assim, tratar essas duas categorias que continuam tão plenamente atuais em nossos dias é, pra começar, entender por que elas continuam tão plenamente atuais, vivas e necessárias em nossos dias. É nessa curiosidade freiriana, que nos faz pensar e problematizar o nosso cotidiano, que esses porquês são altamente necessários...
Defendemos aqui o inédito viável como a pedagogia do possível e o mambembe como a pedagogia da viração, de se trabalhar com o que se tem ali, naquele dado momento. “Ser mambembe - como aqui atribuímos seu significado, que é na perspectiva da viração, de ver na escassez possibilidade, e não de algo menor e desqualificado, como o senso comum entende o termo” (REGO, 2019, p. 79).
Importante salientar que, historicamente, a construção das trajetórias de diferentes conceitos, formas e facetas da educação popular, em conjunto com suas demandas, seus coletivos, seus fundamentos e suas singularidades em nossos territórios, é fundamental para nós, por atestarmos seu caráter não homogêneo e uno, mas mambembe, insurgente e criativo, em que, cada um, a seu modo, “juntos e misturados”, caminhou por travessias que marcaram essa prática de resistência por essas terras.
A educação popular possui como marca a impossibilidade de ser ortodoxa, mas sobretudo multifacetada, o que lhe impede o enquadramento e a definição previamente marcada. Nesse contexto, o conceito de popular abrange uma infinidade de definições, grupos e ideologias. Como uma mandala, por ser altamente complexa e com muitos braços, torna-se impossível enquadrá-la, sob o risco de afogar suas práticas genuinamente nascidas nessas especificidades e na originalidade que abrange sua (in)completude e (in)acabamento. A EP não se define e se encerra ainda por um objetivo a ser alcançado, tampouco um único projeto a ser delimitado. Ela, como um polvo, com muitos braços, abrange muitos pontos de partida e chegada, mesmo inesperados. É esse o caráter mambembe que tanto insistimos aqui, que mostra que a EP nunca é, mas está sempre sendo.
Nesse sentido, a pedagogia do possível que aqui nomeamos seria “não uma falsa esperança, que é a de quem espera na pura espera, por isso que vive um tempo de espera vã. A espera só é esperançosa quando se dá na unidade entre a ação transformadora do mundo e a reflexão crítica sobre ela exercida” (FREIRE, 1977, p. 62). É assim olharmos para o que temos de possibilidades e fazermos; é nesse “corre” que vamos nos constituindo, abrindo trincheiras e caminhos na capoeira! Sabemos, entretanto, que não é algo fácil e dado, é luta e luta constante, é vigilância também, que comporta em seu interior a “justa raiva4” (FREIRE, 2014), justamente por sabermos de que lado estamos e contra quem lutamos. A justa raiva se torna legítima ainda “contra a docilidade fatalista diante da negação das gentes” (FREIRE, 2014, p. 74). Docilidade de corpos e mentes que tentam nos impor a todo o momento, de forma a aceitarmos o mundo como nos é mostrado sem quaisquer questionamentos.
Isto porque,
A capacidade de nos amaciar que tem a ideologia nos faz às vezes mansamente aceitar que a globalização da economia é uma invenção dela mesma ou de um destino que não poderia se evitar, uma quase entidade metafísica e não um momento do desenvolvimento econômico submetido, como toda produção econômica capitalista, a uma certa orientação política ditada pelos interesses dos que detêm o poder. (FREIRE, 2014, p. 123)
O mambembe é a recusa a esse fatalismo, negação, amaciamento e docilização. É o “sangue nos olhos”. É não se conformar com esse mundo que produz desiguais e se orgulha imensamente disso. A justa raiva nesse sentido é continuar lutando e fazendo o enfrentamento direto dessas práticas individualistas e meritocráticas de uma sociedade que traz em seu bojo as marcas e feridas da colonialidade, portanto da branquitude/branquidade-cis-heteronormativa-patriarcal-cristã.
Carrego comigo a justa raiva, bem como a “boniteza de ser gente (que) se acha, entre outras coisas, nessa possibilidade e nesse dever de brigar” (p. 59, grifos meus). Penso que a justa raiva é formação, é consciência crítica. Justa raiva é o eu no mundo e com o mundo. Criticizando, dialogando, afetivizando com meus pares e partindo para a ação direta contra toda forma de opressão. “Afinal, minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta, mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também da história (FREIRE, 2014, p. 53).
Passando mais um cafezinho, “porque é prosa pra mais de metro”, Bell Hooks diz: “celebro um ensino que permita as transgressões” (2017, p. 24), no que Freire alinhava: “de nada adianta o discurso competente, se a ação pedagógica é impermeável a mudanças” (FREIRE, 2014, p. 12), ao que Hooks costura: “a teoria não é intrinsecamente curativa, libertadora e revolucionária. Só cumpre essa função quando lhe pedimos que o faça e dirigimos nossa teorização para esse fim” (HOOKS, 2017, p. 86); e Elza, possivelmente, arremata a linha de tecitura: “que se dá quando se pratica o que se teoriza...”.
Paramos todxs, olhamo-nos, sorrimos, tomamos mais um gole do nosso afetuoso café e prosseguimos tecendo essa colcha de retalhos...
Nita, observando tudo e abrindo as conversas novamente, diz:
O legado da obra de Paulo Freire continua vivo e é adequado e eficiente, responde, enfaticamente, às necessidades da educação global contra-hegemônica. Por antinomia não serve à educação hegemônica, mas, em contradição com esta, atende, plenamente, a todas as políticas educacionais, de qualquer parte do mundo, que faça a opção progressista, libertadora, a que pode transformar essa comunidade, numa sociedade autenticamente democrática. (2019, p. 10)
Por essa via, a educação popular entra sob a égide de uma outra educação, que, ampliando suas potencialidades, vem tratar a educação como um direito humano em sua essência, contestando e problematizando, portanto, questões da ordem das desigualdades sociais, de raça, de gênero e sexualidade, que geralmente vêm engendradas sob diferentes formas de tentar justificar sucesso x fracasso. A meritocracia é uma delas. A educação libertadora que nos traz nosso mais-velho trata exatamente disso quando procura desvelar e desmantelar essa ordem nociva autoritária, competitiva e desigual tão presente na educação tradicional formal. Nessa linha, sob o prisma da educação popular, assim como residem em espaços populares, informais e não formais de educação, a crítica, a criatividade e a esperança, essas tornam-se ferramentas imprescindíveis nas lutas por uma educação integralizada, que precisa também estar presente nos espaços formais de educação. A começar pelas licenciaturas, pela formação de professoras e professores.
Precisamos não só entender como o legado de Paulo Freire e dos que vieram antes dele também, o que é importante frisar, pode trazer contribuições aos nossos dias, mas como podemos avançar no sentido de beber desse café, mas sempre passando um novo, de forma a criticizar, atualizar, dialogar e problematizar, como o mais-velho mesmo sempre colocava.
O que nos defende da bala do inimigo é saber ou não saber brigar.
Amílcar Cabral
É por esse viés que trazemos nossas experiências que se deram, se dão e se darão absolutamente por meio da coletividade, onde nos fazemos gente. Nessa pedagogia do possível, somos educadorxs e educandxs, sempre trocando de papéis, porque sabemos que conhecimento é troca e partilha; no entanto e ao mesmo tempo, seguimos aguerridxs e ávidxs e, sobretudo, com os pés no chão, buscando uma outra educação. Quando aguerridxs, fazemos do grito nossa arma, defendendo-nos das constantes opressões que esse sistema nos impõe. Um grito da garganta, que se materializa no diálogo, um diálogo horizontal e sempre aprendente. Quando ávidxs, buscamos na coletividade e na afetividade dessas relações as respostas. Quando com os pés no chão, pisamos essa estrada para a posteridade saber que por aqui passamos e tentamos fazer, reverenciando e referenciando nossxs ancestrais que fizeram, ou ao menos tentaram, uma outra forma de viver. Essa outra forma de viver que, para nós, se chama educação popular. Eis a nossa utopia! Eis o nosso esperançar!
2 Retalhos de experiências em contexto pandêmico: estamos fazendo caminho ao caminhar...
Um dia me deparei fechando a porta daquele núcleo de Educação de Jovens e Adultos. Era uma sexta-feira 13, precisamente 13 de março de 2020. Às 22 horas acabava a última aula do pré-vestibular5 comunitário, popular e social que lá acontecia, juntamente com turmas preparatórias para a prova do ENCCEJA e a Alfabetização de Adultos. O espaço do núcleo são três salas localizadas nas franjas de uma universidade particular de elite no Rio de Janeiro. O nosso quarto de despejo ou porão se localiza embaixo do ginásio esportivo da universidade, no seu estacionamento. Ali fecharia as portas e jamais voltaria (pedi demissão seis meses depois). Foi a partir daí que dei início às atividades do coletivo que idealizei, o Coletivo de Educação Popular e Libertária (CEPL), no modo virtual.
Pegxs completamente de surpresa, ficamos juntxs com xs professorxs-voluntárixs (que são alunxs da universidade) bolando estratégias de como poderíamos fazer ações educativas no modo virtual, instrumentos para nós ainda bastante desconhecidos. Dessas conversas emergenciais que aconteceram logo na semana seguinte ao 13 de março surgiu a ideia do Papo Reto, encontros virtuais em que, com diferentes temáticas, abordaríamos questões do ENEM6, ENCCEJA, vestibulares7 e do novo universo que se apresentava para nós. Tentando algo mais leve, articulamo-nos, elaboramos a temática e a arte e colocamos a chamada nas redes sociais já no mês de março, pois o primeiro encontro do Papo Reto aconteceria na última semana desse mesmo mês. O Papo Reto, no entanto, não foi bem recebido pela coordenação principal do núcleo, que se opôs veementemente e o proibiu, com medo de não ser bem aceito pelas instâncias superiores da universidade, até porque as corriqueiras lives de hoje eram, no início do distanciamento social, algo ainda muito pouco explorado e bastante “inovador” aos olhos daquela coordenação. Não nos demos por vencidas. Depois de várias tentativas de negociação e diante de inúmeras negativas por parte da chefia do Núcleo (isso porque, apesar de passar uma imagem coletivizada e horizontalizada, no final eram somente as suas decisões que valiam: é a “burocracia esclerosante” e as “pequenas ditaduras disfarçadas” de que nos falam, respectivamente, Paulo Freire e Samora Machel), não nos restava então outra saída que não fosse acionar esse coletivo do qual faço parte para que fôssemos silenciadxs mais uma vez e nossxs alunxs não ficassem de uma hora para outra sem qualquer comunicação e abandonadxs por nós.
A minha raiva, minha justa ira, se funda na minha revolta em face da negação do direito de “ser mais”.
Paulo Freire
O CEPL é uma organização da sociedade civil, portanto autônoma e independente, que atua há mais de uma década no Rio de Janeiro, Brasil, em espaços formais, não formais e informais de educação por meio da perspectiva da educação popular e libertária. Trazemos em nossas frentes ações que versam sobre educação, saúde, política, direitos e atuamos por meio de atividades que propõem metodologias participativas nas quais todas, todes e todos têm voz e vez na participação, promovendo, assim, maior troca de experiência e construção de conhecimentos de forma mais atuante, afetiva e coletiva. Nossa atuação se concentra em torno das classes populares, preferencialmente na Educação de Jovens e Adultos (EJA), sobretudo no letramento social e cognitivo dessa faixa de idade, por atestarmos que essa modalidade de educação só existe porque não há, de fato, a consolidação da educação como um direito para todas, todos e todes no Brasil. Estamos presentes em espaços como canteiros de obras, em conjunto com operárixs da construção civil, bem como em sindicatos e em organizações e movimentos sociais. Ainda não temos uma sede física destinada ao CEPL; enquanto isso, alguns trabalhos presenciais também são realizados na casa onde moro, na Favela Vila Parque da Cidade, no Rio de Janeiro-RJ.
Pensamos nossas práticas educativas de forma a problematizar coletivamente as condições históricas e geracionais de exploração e subalternização em prol de: trans-formar. Trans-formar realidades e condicionamentos começando por si e multiplicando entre seus pares, realçando e denunciando formas até então engolidas de submissão e opressão. E, para além disso, essa ação ultrapassaria uma condição de apenas trans-formar, para atuar em prol do que podemos chamar aqui de: Trans-form-AÇÃO8, que seria transgredir, transformar, formar e agir em conjunção, trilhando, assim, os caminhos de uma outra cidadania, uma outra forma, portanto, de ser e estar no mundo e com o mundo.
Dentro do que pensamos e fazemos, criamos currículos que transvergem a ordem estabelecida, currículos que desafiam o dito certo e errado e que rompem em definitivo com as burocracias de uma educação engessada e voltada para o capital, o que chamamos de uma educação “mais do mesmo”. É assim que em nossas práticas fazemos do currículo um processo, movimento e ação, que dialoga com a vida cotidiana, com as nossas subjetividades subversivas - um currículo que, como aqui cunhamos, transverge. É nessa pedagogia do possível, entrecruzando os diversos saberes, que se pode desvelar a realidade vivida, desnaturalizando-a, libertando-a, desenvolvendo a criticidade e voltando-se para a responsabilidade social e política (e nisso temos muito de Paulo e Elza Freire), que implica a apropriação crescente pelo sujeito de sua posição no contexto. Nesse sentido, um currículo que transverge seria aquele que acolhe as subjetividades subversivas do grupo, que são suas demandas, anseios e questões não compreendidas e/ou não aceitas pela sociedade que as consideram subversivas e, por vezes, tentam desqualificá-las e apagá-las. São a essas subjetividades consideradas subversivas que damos importância e ampliamos nosso olhar e escuta; são elas que, combinadas e em diálogo com outros conteúdos pedagógicos, vão na contramão de convergir com um currículo engessado e previamente definido, aquilo que procuramos construir em nossos espaços e ações. Um currículo que transverge, uma pedagogia do possível e uma prática mambembe, portanto, pressupõem desconstrução, construção e reconstrução coletiva e partilhada, para tanto com, e não para.
Fazemos caminho ao caminhar, quando fazemos o enfrentamento e, nos meandros e encruzilhadas, vamos conseguindo abrir brechas na capoeira! É no mambembe, portanto, no inédito viável, que isso se materializa. E foi nesse proceder que pelo CEPL construímos ações desde março de 2020, reinventamo-nos de forma on-line e não deixamos que o ambiente frio e híbrido, que é o virtual, fosse cristalizando as nossas práticas. Ao contrário disso, carregadxs de afeto nessas construções, fomos dia a dia nos amalgamando e tentando criar estratégias de contato e de atividades. Dessa caminhada de erros e acertos, mas sobretudo de tentativas, surgiram as 20 edições do Papo Reto, encontros que traziam temáticas variadas sobre cuidados com a Covid-19, cuidados com a saúde mental e física, passando por questões sobre religião, diversidade, política, cidadania, ENEM, ENCCEJA e vestibulares, de forma transversalizada e transdisciplinar. Simultaneamente aos Papo Reto, tivemos uma ação chamada Café Quarentena, em que colocávamos uma relação de filmes em que seria escolhido um e assistiríamos e debateríamos sobre ele. Tivemos ainda o projeto Meditação às quartas pra segurar a onda do ENEM!, em que todas as quartas, no início da noite, fazíamos meditação ao vivo em prol de cuidar da nossa saúde mental.
Após as 20 edições do Papo Reto, que ocorreram durante todo o primeiro semestre de 2020, uma espectadora da cidade de Porto Alegre - RS, entrou em contato e nos deu a ideia de fazermos um encontro com uma escritora de São Paulo, que lançaria seu livro em breve. A ideia seria divulgar seu livro, que era independente, e reforçar a importância de se debater a temática LGBT já na infância. O encontro foi tão bacana, que nasceu aí o CEPL Convida, que de agosto a dezembro recebeu artistas populares, cantorxs, escritorxs, falamos sobre educação inclusiva e especial, alfabetização de crianças e adultxs, sempre uma vez por semana. Nesse mesmo período, uma vez por mês, fazíamos encontros para discutirmos sobre autorxs latinos, afrodescendentes e africanos, reforçando nossa perspectiva anti/contra/decolonial de educação, e assim foi o Leituras DEvidas - Escritos DIverGENTES. Dentro das nossas atividades virtuais também construímos um minicurso, que só o Enlace de Cosmogonias ou Abrindo Caminhos ou a dita Aula Inaugural já deu o que falar! Momento em que conseguimos reunir companheirxs de diversos segmentos e lutas na sociedade, e ainda contamos com México e Colômbia somando com a gente. Esse Minicurso ou Ebó coletivo - Narrativas e Práticas em Educação Popular em Abya Yala - Conhecendo e trocando saberes nossos somou 12 horas de atividades com encontros semanais destinados à partilha de experiências, de práticas, de angústias e de demandas entre coletivos e movimentos sociais, educadorxs e quem mais quisesse participar.
Já no início de 2021 tivemos nossa participação no Fórum Social Mundial com a oficina A Mística da Mandala na Educação Popular de base comunitária: troca de saberes entre sujeitos de luta!, ocasião em que falamos especificamente de Lélia Gonzalez, Bell Hooks, Solano Trindade, Gersem Baniwa, Elza e Paulo Freire numa perspectiva de transvergir e trazer autorxs que têm grandes contribuições em nossas atividades em educação popular, autorxs que suleiam, portanto, nossas estradas, percursos e trajetórias.
Hoje estamos com o projeto Café com Sociologia, que acontece às segundas-feiras, às 7h30 da amanhã, e é voltado para o exame do ENEM e dos vestibulares, com resolução de questões de provas anteriores e para o ensino da disciplina de Sociologia. Temos, ainda, às segundas-feiras, às 20 horas, o projeto Português & Sociologia, atividade transdisciplinar que reúne temáticas de um livro específico em que debatemos sobre elas à luz dessas disciplinas. Triste Fim de Policarpo Quaresma e 1984 foram livros que já trabalhamos em nossos encontros. Estamos também com encontros virtuais quinzenais sobre Filosofia, com transmissão ao vivo pelo Facebook. A nossa intencionalidade com o que chamamos de Filosofia pra Geral é democratizar e popularizar a Filosofia, mostrando que todo mundo pode falar sobre filosofia, tentando, assim, desmistificar aportes filosóficos, de forma a contestar até mesmo se a filosofia nasceu mesmo na Grécia ou não se deu em África a sua origem.
Se as atividades com o grupo do pré-vestibular fluíram razoavelmente de 2020 passando a 2021, bem como as demais atividades abertas e ao vivo, o mesmo não estava acontecendo com o grupo da alfabetização, apesar de nossas intensas ações e esforços em todo esse cenário de caos pandêmico. Ainda percebíamos que a turma da alfabetização estava bastante estagnada e apática. Trabalhando com os inéditos viáveis, não foram poucas as tentativas de mobilização e participação do grupo. Dentro dessas propostas de atividades, que fazíamos via Whatsapp, estavam a contação de histórias e memórias e construção de identidade, em que contamos as nossas e propusemos que falassem sobre o porquê de seus nomes, relatassem suas vivências e experiências ontem e hoje, o que mudou e o que poderia mudar, caindo para a temática de sonhos e esperanças. Outra ação foi gravarmos vídeos falando sobre artistas, ativistas e revolucionárixs, como Frida Khalo, Cora Coralina, Carolina Maria de Jesus, Luís Gama, Malala, Conceição Evaristo, por exemplo, provocando o debate entre a história contada e as percepções e relações que poderiam fazer com suas próprias vidas e seu universo social. Entregamos também, nas suas casas, atividades impressas com bilhetes afetuosos e plantas para cuidarmos juntxs. Explicávamos as atividades em nosso grupo de WhatsApp e tirávamos as dúvidas que naturalmente iam surgindo.
Do processo de tentativa de fazer uma alfabetização minimamente humanizada e eficaz num ambiente tão hostil que é o virtual, fomos sendo gradativamente vencidas. Nada era como estar presencialmente com nossos abraços e trocas de cúmplices olhares, nada era como repartir um bolo e tomarmos café, o nosso Cafeto, confidenciando a nossa vida e trajetórias como sempre e cotidianamente fazíamos. Fizemos, sim, Cafetos virtuais com chamadas de vídeo, mas não era a mesma coisa! Como alfabetizar virtualmente? Que angústia!
Foi aí que recebemos duas mensagens privadas nos pedindo para que tentássemos fazer as aulas fisicamente de novo. O teor das mensagens era bem delicado e urgente, tratava de questões de violência doméstica e saúde mental. Conversei imediatamente com a voluntária e amiga, também aguerrida à educação popular e àquela turma, que topou o desafio que elxs nos propunham: voltar às aulas físicas em plena pandemia aqui em casa: uma pequena casa alugada na parte alta do morro. Conseguimos uma mesa grande e o quadro, o filho dessa companheira, que é marceneiro, fez e nos deu de presente, e ela, que tem mais condições, comprou os bancos e os materiais pedagógicos. E assim demos início às aulas aqui em casa. Sempre usando máscara e revezando a turma para que não enchesse, deixando os sapatos fora de casa e fazendo uso de álcool de forma frequente, assumimos coletivamente os riscos. Fizemos por pouco tempo, pois logo chegaram as datas festivas de natal e ano novo, além do número alarmante de novos casos no Rio de Janeiro e tivemos que interromper nossas atividades, uma vez que a turma era composta de jovens, adultos e idosos. O risco era muito alto e a educação popular não se faz de forma imprudente e negligente. Optamos coletivamente por dar um tempo e esperarmos a vacina chegar para todxs em 20219.
3 Anticoncluindo
Errando, acertando, corrigindo ou tentando corrigir, vamos fazendo autocrítica em todos os momentos de nossa caminhada com a educação popular. É sabendo que somos seres falhos e limitados que buscamos mais nas perguntas do que nas possíveis respostas encontrar nossos rumos e caminhos. E é no fazer, no tentar, no mambembe, nos inéditos viáveis, portanto, que possivelmente essas respostas vão surgindo. É na Trans-Form-AÇÃO. Penso que é, sobretudo, termos em mente que precisamos avançar enquanto grupo, enquanto coletivo, enquanto sociedade para que as respostas que tanto procuramos venham da utopia de nos sabermos seres errantes e acertantes, mas e sempre caminhantes. E assim passíveis de desconstrução, construção e reconstrução constantes.
Jamais tive medo de apostar na liberdade, na seriedade, na amorosidade, na solidariedade, na luta em favor das quais aprendi o valor e a importância da raiva.
Paulo Freire
Nessa perspectiva, ser mambembe é, sobretudo, usar a criatividade como grande aliada nas lutas cotidianas por emancipação e libertação. É estar abertx e sempre dispostx a mudanças, desde que, é claro, elas não atinjam nossa base comum, que é a libertação desse maldito sistema em que vivemos. Assim, tornar-se mambembe vira uma estratégia de resistência e reexistência, portanto de insurgência. E é na coletividade que isso se dá. Penso que é preciso estarmos segurxs do que acreditamos e queremos.
Importante aqui salientar que não concordamos com o ensino híbrido e remoto, que é bem diferente da EaD. Tivemos de nos adaptar de uma hora para outra a esse tipo de ferramenta e não tivemos muita escolha. Se não fizéssemos, iríamos alargar ainda mais as fronteiras da disparidade entre quem acessa e não acessa os espaços universitários, por exemplo. Se fôssemos aqui colocar em miúdos, nem vestibular ou ENEM teríamos que ter (inclusive nosso coletivo lutou de forma feroz pelo cancelamento, e não pelo adiamento do ENEM 2020, mas não tivemos muita adesão de outros coletivos à época, que naquele momento pediam pelo adiamento apenas), mas, já que existem essas ferramentas de exclusão e meritocracia, faremos de tudo para que xs nossxs entrem e ocupem as cadeiras do dito ensino superior, para que se alfabetizem e concluam os ensinos fundamental e médio e partam para a universidade, que lhes é de direito! E, quando lá, mudem aquele espaço marcado pela colonialidade e pela branquitude cis-hétero-patriarcal-heranceira.
Em meio a esse todo diverso, com várias bifurcações, nuances e inéditos viáveis, como fazer uma educação que abranja e canalize sentidos às suas/nossas práticas e valores, tendo a humanização, a ética, a empatia, a alteridade como aportes nessa educação? A resposta pode estar em, talvez, debruçarmos-nos sobre uma educação mais voltada para as gentes, menos burocratizada e mais humana em seu sentido mais estrito. Quem sabe essa não seja a saída mais salutar possível? E isso começa com a função da própria prática em educação que se faz afeita e comprometida com a ética em prol da justiça social e da reparação das desigualdades e silenciamentos. É por isso que lutamos, é por isso que fazemos educação: uma Educação Popular. Errando e acertando, mas, e sobretudo, tentando. Eis o nosso desafio e caminhança!
Entendendo que a educação popular possui inúmeras frentes de atuação e é, portanto, multifacetada, entramos 2021 pensando formatos de ações diretas junto a pessoas em situação de rua, uma vez que a fome e o desemprego são, hoje, duas realidades nefastas em terras brasileiras. Atualmente estamos com quatro ações diretas simultâneas: Quentinhas Solidárias, Sopinhas Solidárias, Cafeto e Campanha do Agasalho. Com essas frentes, contamos com a colaboração de várixs de nossxs alunxs e constatamos que isso também é fazer educação popular.
Temos de aceitar que nossa luta será longa e estar dispostos a permanecer pacientes e vigilantes. Para nos comprometer com a tarefa de transformar a academia num lugar onde a diversidade cultural informe cada aspecto do nosso conhecimento, temos que abraçar a luta e sacrifício. Não podemos não podemos nos desencorajar facilmente. Não podemos nos desesperar diante dos conflitos. Temos de afirmar nossa solidariedade por meio da crença num espírito de abertura intelectual que celebre a diversidade, acolha a divergência e se regozije com a dedicação coletiva à verdade”. (HOOKS, 2017, p. 50)
É com essa “necessária eticidade” (FREIRE, 2014, p. 17), “algo absolutamente indispensável à convivência humana” (p. 19), e sem ter a pretensão de nada concluir, que vamos, ao contrário, anticoncluindo esses escritos e nos despedindo do cafeto com Hooks, Elza, Nita, Paulo, e com mais quem luta com a gente no front por uma outra educação em nossos espaços de atuação, e com você, que abriu a sua escuta e leitura para nós.
E se a academia não tem espaço para nós, vamos fazendo caminho ao caminhar pelas margens, bifurcações e encruzilhadas dos espaços não formais de educação, que são os coletivos e movimentos sociais. É com essa paciente impaciência (FREIRE, 1977, p. 25) que fomos sentando pra esse cafeto e tentando construir novas formas de fazer. “Nesta, a paciência não é conformismo. Significa apenas que a melhor maneira de fazer amanhã o impossível de hoje é realizar hoje o possível de hoje”. (FREIRE, 1977, p. 65). É na pedagogia do possível, portanto, na resistência, insurgência e sobrevivência que formam entre si o mambembe, de que tanto já falamos: na viração, na esperança e nos afetos, na formação de redes de solidariedade. É o verbo lutar em sua mais presente conjugação.
Partilhando esses retalhos de experiências nem sempre exitosas, seguimos tentando. Errando, acertando. Caminhando. Insistindo em ser aroeira (envergando, mas não quebrando), peço licença para sair à essa ancestralidade que nos deixou a utopia e o esperançar que nos cercam e que não hão de se retirar também de dentro de nós. E com a crença e a luta de que novas e outras possibilidades podem se abrir nesse momento histórico em que temos vivido, em que, quando em momentos de exceção aí é que se faz brotar ainda mais o otimismo e a força para lutar, seguimos nesse esperançar.
Punhos ao Ar!