É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança.
Provérbio Bantu, África do Sul.
As recentes marchas em prol da manutenção da moralidade burguesa referente ao conceito de família, pautado na propriedade privada, e a hierarquização dos papéis sociais de gênero, têm ecoado no cenário brasileiro contemporâneo como um movimento que procura garantir a integridade das crianças, criando pânicos morais4 que alicerçam e justificam a manutenção das desigualdades.
Entretanto, neste artigo, buscamos romper com esse modo de percepção das relações humanas, trazendo para o centro da discussão aportes africanos e afro-brasileiros para se pensar o cuidado das crianças pequenininhas para além de privilégios burgueses pautados no capital, bem como propomos, a partir desse encontro com a África Negra Ancestral, retomarmos apontamentos levantados por feministas negras, a respeito da condição da mulher negra em uma sociedade racista, hetero-patriarcal e adultocêntrica, para assim pensarmos uma educação infantil que tenha como foco o coletivo, que acolha a ancestralidade das crianças, e procure romper com as hierarquias construídas pelas desigualdades.
As filosofias africanas5, muito frequentemente representadas em provérbios, trazem axiomas alinhados com o espírito da ética ubuntu6, cujo objetivo principal é a ligação do indivíduo com o coletivo. A noção fundamental dessa ética é a “filosofia do nós”, fundamentada em princípios de partilha, preocupação, cuidados mútuos e solidariedade. Esses elementos constitutivos baseiam-se no altruísmo, na fraternidade e na construção coletiva, assim como na equidade, na lealdade e na felicidade, pois, no conceito africano, a felicidade é entendida como aquilo que faz bem a toda coletividade.
No Brasil, os descendentes dos povos africanos que vivem em diáspora se reconhecem como unidades de resistência. Esses coletivos se caracterizam pela manutenção de um contínuo civilizatório africano, constituindo territórios próprios, marcados pela vivência comunitária e pelo acolhimento, também criam o pertencimento a uma comunidade, a uma sociedade, à natureza de que faz parte (SILVA, 2017). Ao longo do tempo, essas práticas sociais e modos de vida tornaram-se uma referência de africanidade7 na sociedade brasileira.
Os quatros grandes grupos étnicos e matrizes culturais africanas Yorubá, Ewe, Fon e Bantu transplantados para a sociedade brasileira conseguiram preservar boa parte de suas cosmovisões, seus conhecimentos e saberes, tornando-os marcas indeléveis na história e no modo de ser e viver brasileiros. Essas matrizes culturais ressignificam-se constantemente, dando origem a territórios tradicionais, com diversas denominações. Todas elas valorizam a ancestralidade africana, a vivência comunitária, o acolhimento e o fortalecimento dos membros de seus grupos representativos.
Em sua tese de doutorado, Souza (2016) buscou a compreensão de diferentes significados de infâncias que ocorrem em um universo que representa a resistência negra no Brasil - uma casa de candomblé. No episódio Presente de Oxum 2013, os embalos da ancestralidade conduzem os bebês na comunidade e apresenta as diferentes formas de acolhimento que a comunidade tem para com as crianças.
Nesse contexto, a pesquisadora Souza (2016) aponta que o acolhimento não se associa com noções de delimitação, restrição ou ainda subordinação das crianças para com os adultos, mas apresenta-se na responsabilidade para com todas as crianças que, por sua vez, são distribuídas a todos os visitantes e membros na comunidade, uma vez que é ensinado e aprendido que acolher e responsabilizar-se pelas crianças é um dever de todos os presentes para com todas as crianças. Assim, as crianças não têm um único colo, um lugar pré-determinado, ou responsáveis fixos, pois eram acolhidas, saciadas, acariciadas, embaladas por toda a comunidade, inclusive, no momento das liturgias.
Essa dinâmica sociocultural distancia-se da construção histórica do “sentimento de infância” do século XVI, em que os adultos destinavam certa atenção às crianças, reconhecidas como fonte de distração, o que Ariès (1981, p. 159) denominou de “crianças bibelot”, expressando um sentimento de “paparicação” pela infância, como também o “sentimento de família” a partir do século XVIII, fortemente marcado pela necessidade e pelo desejo de privacidade. Inegavelmente, esse sentimento de infância não foi estendido a todas as pessoas de pouca idade, assim como o sentimento de família foi moldado pela colonialidade8; consequentemente, circunstância em que aprendemos que algumas crianças pequenininhas têm prioridade no acolhimento, na construção de laços de afeto e de receptividade em detrimento de outras.
O papel da comunidade para com o cuidado, acolhimento e afeto das crianças pequenininhas na visão eurocêntrica inúmeras vezes é construído de forma distinta das matrizes culturais africanas. Pois, em se tratando das interações sociais da criança, ela está em relação constante com um variado número de pessoas da família extensa, no sentido coletivista e comunitário, tal como é concebida pelo pensamento africano originário das sociedades negro-africanas (LEITE, 2008).
O caráter comunitário da existência exige que os processos de socialização estabeleçam quais os limites possíveis dentro dos quais os indivíduos exerçam sua mobilidade social, sendo por isso que a formação da personalidade nas civilizações negro-africanas é encargo atribuído à sociedade como um todo. Esse humanismo revela que a sociedade propõe a superação, pela consciência da realidade existêncial, das limitações materiais e instrumentais, harmonizando o homem com as práticas sociais suficientes (LEITE, 1995/1996, p. 108).
Nesse sentido, o ubuntu, princípio existencial e transformador que constitui e regula diversas comunidades africanas e afro-brasileiras, fazendo o elo do indivíduo com o coletivo, pode ser compreendido, como afirma Noguera (2011, p. 148), com “o que é comum a todas as pessoas”, pois eticamente “o ser humano só se realiza quando humaniza outros seres humanos”; isso implica estar acolhido pela comunidade, “trabalhando em prol de si e de outras pessoas”. Assim, a sociedade que pratica ubuntu reconhece, portanto, que existem singularidades de expressão de humanidade, e que as especificidades da diversidade, em si, têm a mesma valorização (NASCIMENTO, 2014).
O processo de colonização não roubou somente as riquezas tecnológicas e naturais de países na África. Mas também assassinou, traficou e escravizou os povos bacongos, ambundos, benguelas e ovambos da Guiné e da Angola (século XVI), os povos iorubás, jejes, minas, hauçás, tapas e bornus da Costa da Mina, hoje chamado de Benin e Daomé (século XVIII), construiu relações sociais intersubjetivas pautadas na hostilidade, no não acolhimento dessas pessoas e de seus descendentes em virtude de tipo físico, idade, gênero, orientação sexual, pertencimento de classe.
Diante das amarras desse processo, como destacam Santiago e Pereira (2017, p. 4), o povo negro “tem sido colocado à margem da experiência social e cultural em decorrência dos efeitos da colonialidade, procurar discutir os processos de conscientização política [...], possibilita o entendimento de como e onde a pessoa se localiza diante da cultura”, visto que esses efeitos fazem com que cada pessoa, e notadamente as crianças pequenininhas negras, como consta na pesquisa de mestrado desenvolvida por Santiago (2014), se deem conta de que a sociedade lhes reserva certos lugares e oportunidades, certos direitos, e as exclui de outros. Com efeito, as crianças desde bem pequenas percebem o racismo impregnado nas práticas pedagógicas desenvolvidas pela creche e, por meio de diversas linguagens, como o choro, a briga ou a desestabilização da ordem vigente, as crianças pequenininhas resistem ao racismo e recriam outros modos de existir.
Sob o mesmo ponto de vista, Souza (2012), em sua dissertação de mestrado, afirma que as percepções das infâncias em nossa sociedade são pautadas, inúmeras vezes, em experiências do que é ser uma criança branca. Segundo a pesquisadora, essas percepções são alicerçadas pelas estruturas de distorções e desigualdades que envolvem a população negra brasileira. Nesses processos são elaborados estereótipos do que é ser um sujeito negro, criam-se distorções que simplificam características individuais, ao mesmo tempo em que se eleva um padrão de indivíduo e sociedade alicerçado em uma normatividade prescrita (BHABHA, 2007).
Os preconceitos e as discriminações que estruturam desigualdades raciais ainda são questões e desafios que enfrentamos cotidianamente, assim como a desqualificação daqueles que se distanciam dos padrões eurocêntricos são encarados como desviantes da ordem hegemônica da homogeneização. Com essa lógica, o afeto configura-se como um elemento racialmente distintivo ao longo da história, digno somente daqueles que possuem todas as características prescritivas pela norma vigente colonizadora; éticas filosóficas de acolhimento como a do ubuntu não faziam mais parte da matriz colonial eurocêntrica, criando assim relações de distanciamento e experiencias subjetivas distintas das concebidas pelos povos tradicionais africanos. Como aponta bell hooks9 (2000), em diferentes momentos históricos a população negra foi interditada desse sentimento relacionado ao acolhimento e ao afeto mútuo, a exemplo do período escravocrata afro-americano estadunidense:
Depoimentos de escravos revelam que sua sobrevivência estava muitas vezes determinada por sua capacidade de reprimir as emoções. Num documento datado em 1845, Frederick Douglass lembra que foi incapaz de se sensibilizar com a morte de sua mãe, por ter sido impedido de manter contato com ela. A escravidão condicionou os negros a conter e reprimir muitos de seus sentimentos. O fato de terem testemunhado o abuso diário de seus companheiros - o trabalho pesado, as punições cruéis, a fome - fez com que se mostrassem solidários entre eles somente em situações de extrema necessidade. E tinham boas razões para imaginar que, caso contrário, seriam punidos. Somente em espaços de resistência cultivados com muito cuidado, podiam expressar emoções reprimidas. Então, aprenderam a seguir seus impulsos somente em situações de grande necessidade e esperar por um momento “seguro” quando seria possível expressar seus sentimentos.
Num contexto onde os negros nunca podiam prever quanto tempo estariam juntos, que forma o amor tomaria? Praticar o amor nesse contexto poderia tornar uma pessoa vulnerável a um sofrimento insuportável. De forma geral, era mais fácil para os escravos se envolverem emocionalmente, sabendo que essas relações seriam transitórias. A escravidão criou no povo negro uma noção de intimidade ligada ao sentido prático de sua realidade. Um escravo que não fosse capaz de reprimir ou conter suas emoções, talvez não conseguisse sobreviver (bell hooks, 2000, p. 190-191).
O afeto tornou-se um privilégio em nossa sociedade, marcada pela desigualdade racial: o amor, o carinho, o princípio de partilha, a preocupação, o cuidado mútuo e a solidariedade são estabelecidos com base nas estruturas hierárquicas fundamentadas pelo racismo e o sexismo presentes nas sociedades capitalistas, configurando-se enquanto produtos da segmentação das relações de poder (SANTIAGO, 2017). As relações de afeto, como pontua Silva (2015), constroem um lugar, em que determina que a humanidade não pertence a todos, cultivando sentimentos e ideias de que para pertencer à humanidade é preciso possuir determinadas características, entre elas ser descendente de europeus ou é preciso ser branco. Quem for branco, ou quanto mais branco, mais humano seria.
Esse racismo está entrelaçado na estrutura social e naquilo que já tem sido afirmado por Lander (2005) e Quijano (2005), dentre outros/as autores/as descoloniais, na colonialidade do ser, do poder, do saber. Nós, ainda hoje, somos educados/as ao não estabelecimento de relações de afeto para com o diferente (aqueles que não se enquadram no padrão colonial-racista e sexista); contrapondo-se a isso, é fundamental praticarmos em sociedade a ética ubuntu, no sentido de que todos/as, desde bebês, se sintam participantes da humanidade, pois “descolonizar-se não é um processo meramente intelectual, não é uma coisa que a gente diz entre professores ou entre pesquisadores. É uma experiência de vida, é trocar...” (SILVA, 2015), para assim, efetivamente, construirmos processos de descolonização.
Na ótica do ubuntu, o indivíduo se envolve com o outro como sujeito, tornando-se sujeito a partir do reconhecimento da sua sujeição comum à história, combinando sua liberdade e a autonomia com sua responsabilidade pelos outros. A partir desse princípio, com poucos dias de nascida, a criança ioruba é amarrada às costas da mãe. Esse processo faz com que ela se sinta segura, fique perto do alimento, e, ao mesmo tempo, seja embalada, enquanto a mãe trabalha. É raro haver um bebê chorando, pois as mães entretêm seus bebês para que eles não chorem. Ao crescer um pouco, a criança passa a ser carregada nos quadris de uma irmã mais velha, ou outra menina da tribo, até aprender a engatinhar. As brincadeiras limitam-se geralmente às ocasiões de festa, entre a plantação e a colheita. As crianças ensaiam jogos, músicas e danças para apresentar na festa. Os ensaios são feitos em grupo, à noite, sob o luar (LEITE, 1998).
A experiência do acolhimento das crianças pequeninhas nos rituais das culturas e religiões de matriz africana (os candomblés)10 traz elementos que nos ajudam a pensarmos relações para além da colonialidade, num processo de afirmação ancestral, que rompe os diálogos de determinação de uma imagem para o outro, de forma a construir relações de sororidade, afeto e respeito que articulam as percepções dos sujeitos enquanto atores e atrizes sociais. Nos momentos do Siré Órìsà (roda, ou dança para evocação dos Orixás), as crianças ao serem abraçadas pelas divindades africanas com sua energia ancestral, não deixa de ser reconhecida como um ser que tem liberdade e singularidade. Pelo contrário, esse ato demonstra o acolhimento desse novo sujeito para com a comunidade, superando as relações adultocêntricas, pois o ubuntu (elemento central da filosofia africana), que concebe o mundo como uma teia de relações entre o divino, a comunidade e a natureza, estrutura essas interações sociais (MALOMALO, 2010).
Essa forma de humanismo africano estabelece elementos que valorizam as crianças, com suas características e formas de se relacionar com o mundo, também potencializa suas diversas linguagens e seus modos de percepção de si e das outras pessoas que constroem a sua comunidade. Nesse universo, que representa parte da resistência negra no Brasil, temos a figura da Ìyálóòde (mulher que assume papéis de liderança ou responsabilidade coletiva), que desenvolve ações de afirmação próspera para todos os membros da comunidade. De acordo com a tradição africana Iorubá, esse é um dos títulos dados a Òsun (Oxum), divindade feminina protetora das crianças, ligada à maternidade, fertilidade e a multiplicação, cultuada na cidade de Òsogbo e protetora de Abéòkúta na Nigéria, região da África Ocidental.
Conta-se em diversos ìtàn (conjunto de mitos, canções, histórias e outros componentes culturais) dessa tradição oral que Òsun òrìṣà (orixá) é marcada pela beleza, pela força de vontade, capacidade de liderança e realização; celebra a figura das mulheres que se colocam como agentes políticos de mudança, detentoras principais das riquezas conquistadas e presença no espaço público - destaca-se, aqui, que a liderança feminista negra é fundamentalmente coletiva. Dessa maneira, os mitos a respeito dessa divindade africana revelam o papel feminino das mulheres nas dimensões de luta, de instabilidade de posições, de poderes de agenciamento e transformação, como também da sua responsabilidade em relação ao grupo e da existência de uma coletividade, tensionando o patriarcado e questionando o poder da riqueza, o que recoloca a dimensão ativista que as mulheres negras têm vivenciado, desde o continente africano até o cotidiano da diáspora (WERNECK, 2005). Nesse sentido, a luta feminista negra, como ressaltam Santiago e Pereira (2017, p. 10), “desarma as estruturas eurocêntricas de representação da mulher, dos corpos e das relações sociais, descolonizando a iconografia pejorativa em torno da ancestralidade”, historicamente estereotipada e estigmatizada pela sociedade racista, hetero-patriarcal, misógina e capitalista.
Os marcadores sociais da diferença de raça, gênero, classe social e orientação sexual reconfiguram-se mutuamente, formando um mosaico que só pode ser entendido em sua multidimensionalidade (BARROS, 1991). O exercício de pensar as relações de modo interseccional, segundo McClintock (2010), possibilita uma ruptura no pensamento moderno, produzindo ideias teóricas pós-coloniais: raça, gênero e classe não são campos distintos e isolados da experiência. O gênero não é somente uma questão ligada aos atributos culturais construídos a partir de um “sexo biológico”, mas também é uma questão de classe, de uma pilhagem colonial. Raça não é somente uma questão de cor da pele, mas também uma questão de divisão social das forças de trabalho, incubada pelo gênero. Esses domínios não são redutíveis ou idênticos entre si, mas coexistem em recíprocas e contraditórias.
Tentar conhecer uma mulher somente a partir da sua identidade de gênero, em uma sociedade sexista, é uma informação insuficiente para descrever sua experiência; é necessário também conhecer outros sistemas que a atravessam, como o processo de racialização e a estratificação de classe (COLLINS, 2000). As experiências que marcam as histórias das mulheres brancas e negras são distintas, e as colocam em lugares sociais também diferenciados na estrutura hierárquica do sexismo; deste modo, quando as feministas brancas generalizam no tocante às vivências das mulheres, as feministas negras rotineiramente perguntam: “a que mulher você se refere?”.
A luta das mulheres negras contra a opressão patriarcal e racista vem desenhando novos contornos para a ação política feminista, enriquecendo tanto a discussão da questão racial, como a questão de gênero na sociedade brasileira (CARNEIRO, 2003). Para as mulheres negras, como afirmou Gomes (2017), durante o 13º Congresso Mundo de Mulheres & Seminário Internacional Fazendo Gênero 11, existir é reinventar a si mesma:
É reinventar a nós mesmas e resistir à tentativa de apagamento, de silenciamento, de invisibilidade provocada pela articulação perversa entre racismo, patriarcado, colonialismo, capitalismo e outras formas de dominação. E é na reflexão e compreensão sobre a forma como operam esses fenômenos, e a maneira como nós lidamos, enfrentamos, combatemos e o superamos, de forma emancipatória, é que se [assenta] a interseccionalidade. Eu digo de forma emancipatório porque é possível, no campo progressista, das lutas por emancipação social, que nós tenhamos e tentemos enfrentar as opressões, mas de forma reguladora dos sujeitos, dos seus corpos, das suas opiniões, das suas diferenças respectivas. Por isso tem que ser emancipatório (informação verbal).11
A escolha pela forma de pentear os cabelos, os sorrisos trocados entre mulheres/meninas negras, bem como a construção subjetiva de modo positivo de suas autoimagens representam elementos revolucionários na organização social da luta feminista negra. Nessa perspectiva, a emancipação também é construída por meio da revolução do processo de aceitação da ancestralidade alicerçada pelos traços físicos, textura dos cabelos e sororidade para com outras mulheres. Como nos explica Davis (2017), embora os laços que nos ligam à África e à América Latina foram estabelecidos pelas heranças culturais e raciais, nossos elos têm sido fortalecidos pela busca comum da dignidade e da liberdade.
Mas uma coisa é certa, e trata-se do fato de que desde o século XV esses meus antepassados e as pessoas que deles descenderam tiveram uma história comum; sofreram uma catástrofe comum e têm uma mesma memória do passado [...]. A essência real desse parentesco é a herança social da escravidão; a discriminação e o insulto; e esta herança une não apenas os filhos e as filhas da África, mas se estende [...]. É essa união que me atrai para a África (DAVIS, 2017, p. 157).
Pensar uma irmandade entre mulheres de diferentes raça/etnias implica construir uma fraternidade que ultrapasse as barreiras entre os sujeitos, pois a ancestralidade que constitui a população negra e a movimenta, assim como as experiências com o racismo e o sexismo, deve realizar, sobretudo, um novo olhar para com o outro, sem hierarquias e diferenciações que inferiorize, estigmatize e segregue os indivíduos que se relacionam em sociedade.
Frente a esse processo marcado pela colonialidade, possivelmente os/as leitores/as deste artigo podem questionar como esta discussão tem relação com a pedagogia da infância construída no cotidiano das creches e pré-escolas. Ao encontro desse pensamento, nos aventuramos e lançamos outras indagações: o que conhecemos das nossas crianças pequenininhas que frequentam as diversas instituições de educação infantil? Como pensamos as relações sociais que costuram as teias institucionais do coletivo infantil e os diversos projetos políticos pedagógicos? De que modo valorizamos as estéticas negras no coletivo das creches e pré-escolas?
Os movimentos de resistências e as transgressões nas maneiras de agir e de querer das feministas negras nos têm ajudado a pensar as experiências enquanto momentos únicos, que se entrelaçam nas relações sócio-históricas, de modo a conhecer as nossas crianças para além do conceito de indivíduo cunhado pela modernidade, o que nos proporciona um encontro mais humanizado no sentido ético ubuntu. “Sendo a infância uma produção histórica, não podemos, hoje, na sociedade capitalista, pensa-la em abstrato” (FARIA, 2002, p. 61), pois “as crianças nunca dizem respeito unicamente a elas mesmas: elas são consequência de um ciclo, de uma tradição, de uma história” (ANJOS, 2016, p. 32) que precisa ser compreendida e reconhecida por todos/as.
As mulheres negras também nos mostram cotidianamente a importância da escuta atenta dos sujeitos e, principalmente, do direito à fala. Transpondo esse elemento para a perspectiva dos bebês, será que estamos escutando-os suficientemente? Com que ouvidos procuramos compreender suas expressões e demandas? Seria com aquele que somente ouve as relações a partir de um eixo racista, hetero-patriarcal, classista e capitalista?
Como ensinou Davis (2017), em sua palestra ministrada na Universidade Federal da Bahia, as lutas das mulheres negras estão conectadas com as lutas de pessoas oprimidas em todas as partes, sendo reconhecidas pelo trabalho em manter as chamas da liberdade acesas. “Não é o tipo de liderança que visa dar visibilidade ou poder a indivíduos, baseada em carisma, o individualismo masculino carismático. Mas é o tipo de liderança que enfatiza as intervenções coletivas e apoia as comunidades que estão em luta” (Id., ibid).
Assim, como estamos nos reeducando a pensarmos um feminismo para além das demandas brancas eurocentradas, também temos que articular a esse novo eixo a perspectiva etária, pois não existe um processo revolucionário de superação das desigualdades de modo limitado, como o próprio conceito ubuntu destaca: “eu sou porque nós somos”; enquanto houver um processo de opressão para com os bebês, sobretudo, com as meninas pequenininhas negras, nenhuma mulher será livre das amarras hierárquicas.
[...] não basta improvisar, ter “um guia para seguir”, o/a docente deve refletir constantemente sobre a sua ação pedagógica, modificando aquilo que faz nas relações entre os sujeitos, procurando atentar-se aos interesses das crianças e promovendo espaços de consolidação dos protagonismos infantis e da ruptura com o adultocentrismo (SANTIAGO et al, 2017, p. 61).
É necessário conhecer as singularidades das crianças e as especificidades das infâncias em sua diversidade, pautando-se em uma compreensão cultural e social que também considere as similaridades (FINCO; OLIVEIRA, 2011). De tal forma que reconheçamos os diferentes olhares, perspectivas e lugares de fala pela emergência de se romper a história única e os diálogos monolinguísticos dessa sociedade, que exclui as diferenças e rejeita a diversidade.
A tarefa de reconhecer “o lugar de fala” deve ser a de criar espaços, por meio dos quais os sujeitos, silenciados historicamente pelas estruturas hierárquicas da colonialidade, possam falar, para que, quando o façam, possam ser ouvidos. Como afirma Spivak (2010), não podemos falar por eles, mas podemos trabalhar a favor do seu reconhecimento e contra as amarras que entrelaçam as relações de subalternidade. Essa postura potencializa um processo de luta que só ocorre na medida em que ele esteja alicerçado na coletividade, pois o sentido da mudança não se consolida defendendo exceções, mas sim na emancipação coletiva do grupo sócio-étnico-racial, ao mesmo tempo em que se desarticulam mecanismos de opressão e discriminação presentes na sociedade (COLLINS, 2000; DAVIS, 2017).
O silenciamento do outro em prol da colonização da experiência humana causa uma “morte intelectual irredutível” (SPIVAK, 2004, p. 106), elemento que não soma a pedagogia da infância, pois a ela cabe proporcionar a construção de relações horizontais, a valorização das diferenças e a estimulação dos ouvidos para a escuta das múltiplas linguagens das crianças. Nesse sentido, não podemos improvisar; a docência na educação infantil, e principalmente com bebês, exige estudo, desconstruções de posturas hetero-patriarcais, racistas, classistas, adutocêntricas, tornando-se pertinente
[...] pensar naquilo que se faz, ter consciência das razões teóricas e conceituais que sustentam as intervenções [...] Que as intervenções e os comportamentos postos em ação por uma educadora não sejam simplesmente o êxito de uma predisposição inata, de um instinto materno ou de uma espontânea e irrefletida sensibilidade pessoal, mas, ao contrário, colocar em ação escolhas profissionais fundadas teoricamente, ponderadas e deliberadamente pensadas é um objetivo importante no trabalho formativo, que concorre a definir a densidade e a dignidade profissional de uma figura - aquela da educadora - que ainda muito frequente, sobretudo no senso comum, não tem seu pleno valor reconhecido. (INFANTINO, 2015, p. 988).
Os trabalhos realizados na educação infantil devem abandonar as certezas e a busca constante de uma única forma de se fazer o cotidiano com as crianças. Também precisam constituir-se fundamentalmente pela escuta e pelas observações que levem à descoberta de cada experiência, cada lugar, cada processo que remete a uma miríade de saberes especializados e saberes convencionais, portanto, de áreas curriculares (NIGRIS, 2015).
A pluralidade de culturas, pertencimentos étnico-raciais, diferenças de gênero são ferramentas que permitem aos/as docentes construírem momentos privilegiados para ampliar as percepções e saberes acerca do outro; mas, para isso, é necessário estar aberto, traçar nos planos pedagógicos uma confiança mútua entre o tripé que constrói a educação infantil: crianças, instituição e família. Uma confiança mútua estabelecida por meio de palavras, gestões de acolhimento, mas também por silêncios, respeito à individualidade e aos tempos subjetivos, de modo a construir pedagogias que visem à equidade e às relações de alteridade para com o outro (SILVA, 2011).
Esse movimento impõe que nos eduquemos em uma perspectiva aberta para a escuta, reconhecendo e fortalecendo os diferentes modos de ser e existir dos sujeitos, mesmo que tenham alguns dias de vida, pois “meninos e meninas desde o nascimento estão a gritar por liberdade, a pedir que adultos e adultas as olhem mais devagar” (FARIA; GOBBI; SILVA, 2017, p. 25). Todavia, é fundamental destacarmos que não estamos nos referindo à potencialização de ações opressoras, sejam estas agressões físicas, ou hierarquizações sociais, mas sim a sutilezas culturais que nos marcam e constroem experiências diversificadas de relação para com o mundo.
Nessa perspectiva, os saberes e a rede de afetos não hierarquizados e sufocadores das experiências individuais potencializam as vivências cotidianas, a colaboração entre as pessoas, o cuidado mútuo, a construção de autoimagens positivas das crianças pequenininhas, o pentear de diferentes cabelos, o toque suave e não opressor da pele, a brincadeira entre meninos e meninas, negros/as e brancos/as. Assim, as interações sociais e produções das crianças tornam-se elementos significativos para se pensar a construção da pedagogia da infância, cabendo a nós, adultos/as, criar espaços, tempo e condições materiais para a consolidação das culturas infantis.
Os aportes em africanidades que reconhecem a criança desde pequenininha como um ancestral que agrega novos valores à comunidade, bem como os questionamentos das feministas negras a respeito das hierarquias de opressão capitalista, somados aos eixos condutores da pedagogia da infância nos permitem pensar a descolonização de racionalidades historicamente forjadas pela colonialidade. A partir de outra racionalidade que redimensiona processos de transformação e de mudança, a “filosofia do nós” torna-se uma contribuição valiosa para educação das crianças, pois considera em seu justo valor tanto as culturas africanas quanto as culturas infantis, postulando o humano, a alteridade e os valores como a solidariedade afetiva e a responsabilidade para com aquilo que faz bem a toda sociedade, em um movimento autocrítico permanente, para seguirmos juntos/as nos caminhos descolonizadores.
Como um exercício descolonizador, finalizamos este artigo com um Oriki12 da tradição literária oral Iorubá no contexto do poder da palavra como portadora do asè (força vital), procurando não trazer respostas prontas, mas possibilitando uma experiência de encontro com a ancestralidade negra, materializada em Òsún, força feminina que acolhe, lidera e guerreia por todos/as nós, enquanto com suavidade nos ensina a sororidade do ubuntu:
Ibá imolé Agba
Saudações ao espírito da mãe anciã Omi Olá
Água preciosa Omi wo
Água perigosa Omi a sàn rere wolé òdàlè Água que flui no rio em direção para destruir a casa dos falsos e mentirosos
Oliri Akoko Eni ilu Opàra
Poderosa, líder ancestral do povo da cidade Opara O Jedandan oloran
Aquela que ouve as palavras do queixoso, o suplicante de seu auxilio O pà ràrà ò jò bíri kalèá
Aquela que na água mata rapidamente rodopiando como o vento, sem que possamos vê-la Agbàn obìnrin tí gbogbo ayé n'pe sìn Aquela que é plena de sabedoria e, que todos juntos devem venerá-la O bá alágbára ranyanga dìde èró
a que enfrenta pessoas poderosas e as acalma com a sua sabedoria
A Gbàdàmú-gbàdàmú obìnrin yanyan bí òkúta
A grandiosa anciã resistente como uma pedra imutável Otúbù yó o ògun, jíre f’éró
Deusa que surge onde há guerras, para trazer calmaria Olòkùnkùn ire pélé
Saudações àquela que é cheia de felicidade Yèyé olómi tútù, a tò pèsè olá
Mãe anciã, dona das águas calmas que produz riquezas O wa yanrìn, wa yanrìn kówó sí
Aquela que cava e cava a areia para guardar dinheiro Irúnmólè, tí í gba ní Divindade que nos salva
Ibà mí fún gbogbo yín Iyaami Iya olomi, Iya Alalé
Saudação a todas as Iyaaami Anciãs das águas e da terra
Gbogbo l’omo Òsún
Todos somos filhos de Oxum Èrò yíì bá mònà kó será pàdé mi
Quem sabe o caminho venha juntar-se a mim Òsún è dákun, ki è gbé mi o!
Oxum, hoje peço um grande favor, me dê o seu apoio!
Oriki de Oxum, África do Oeste.