A influência dos organismos multilaterais nas políticas educacionais não é novidade, notadamente as relações entre o Estado brasileiro e o Banco Mundial (BM)1. No campo educacional o resultado desta articulação até meados dos anos de 1990 focalizavam o ensino fundamental, prioritariamente, seus quatro primeiros anos. Contudo, a partir do final dos anos de 1990 e início do século XXI o Ensino Médio passa a fazer parte do rol de orientações do BM, inclusive como uma das prioridades a serem assumidas pelo Brasil.
No documento do Estratégias para a Educação 2010-20202, a centralidade parece enquadrada nos jovens3, o próprio título, Aprendizagem para todos: investindo no conhecimento e habilidades das pessoas para promover o conhecimento, contribui com esta impressão. Trata-se de uma publicação - espécie de roteiro para reformas - em âmbito mundial e destinada aos países-parceiros do Banco, incluindo o Brasil4.
No caso brasileiro, argumenta o Banco, o aumento das taxas de escolarização no ensino fundamental - segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)5, as taxas de escolarização da população de seis a catorze anos são de 99,2% - aumentaram a pressão sobre os níveis de ensino médio e superior. Estes níveis de ensino são fundamentais para o “desenvolvimento de uma força de trabalho habilidosa, produtiva e flexível” (Banco Mundial, 2011, p. 04).
Em relação ao ensino médio o documento faz três considerações centrais: a primeira salienta que a partir dos 16 anos os jovens iniciam a transição da escola para a vida profissional, portanto, é necessário que este jovem não interrompa o itinerário escolar após o ensino fundamental; segundo, a pedra angular das políticas públicas voltadas ao ensino médio é o jovem, e, neste momento de transição é preciso construir e aproveitar a vida, habilidades de trabalho, valores e atitudes dos jovens; terceiro, alavancar o setor educacional privado via estabelecimento de parcerias para a formação técnica e profissional (BANCO MUNDIAL, 2011).
Na concepção do Banco, um fator decisivo que contribui negativamente para a qualidade da educação é o descompasso entre as demandas do mercado e a organização educacional de um país. Neste sentido, é preciso redefinir o termo sistema educacional, ou seja, este deve estar aberto a:
[...] todas as oportunidades de aprendizagem em uma determinada sociedade, seja dentro ou fora das instituições de ensino formal. Nesta definição, o sistema educacional é composto por todas as partes que estão preocupadas com a prestação, financiamento, regulação e uso de serviços de aprendizagem. Assim, além dos governos nacionais e locais, os participantes incluem instituições de ensino privadas, indivíduos e suas famílias, comunidades e organizações sem fins lucrativos e com fins lucrativos. Esta rede maior de interessados é crucial para um sistema de educação no sentido amplo, assim como são os recursos e as relações de responsabilização que conectá-los. (Ibid., p. 11).
A formulação sobre sistema educacional ampliado tem três eixos centrais, quais sejam: a) Mercado: os sistemas de ensinos devem abranger todas as oportunidades de aprendizagem, sejam elas, filantrópicas, empresariais, comunitárias, religiosas, etc. Em todos os níveis de ensino o “setor privado também colabora com sucesso com o governo para melhorar tanto a relevância dos serviços de educação e expandir o acesso a esses serviços”6 (Ibid., p. 15). Este primeiro eixo, comporta também toda gama de profissionais à disposição “[...] por exemplo, professores, treinadores, pessoal não acadêmico7 e administradores” (Ibid., p. 12); b) Participação: todas as partes que compõem o sistema de ensino devem ter suas vozes ouvidas, notadamente os empregadores, que são àqueles com “força potencial para melhorar a forma como o sistema funciona” (Ibid., p. 12); c) Estado: cabe a este as funções de manutenção e execução do sistema educacional, tais como: mecanismos de dotação financeira, leis, regras e regulamentos que determinam como os professores são contratados, gerenciados e pagos, como os recursos fiscais são alocados e gastos, como as escolas e outras instituições de ensino são estabelecidas e supervisionadas e, como os alunos são ensinados e avaliados. (BANCO MUNDIAL, 2011).
O apoio técnico e financeiro do Banco Mundial depende da assunção, por parte dos países parceiros, desta concepção de sistema educacional ampliado e de cinco pontos estruturais à criação de um ambiente favorável a reformas mais profundas:
1) melhorar a qualidade e relevância do sistema de ensino, de modo a melhorar os seus laços com o mercado de trabalho e transição escola-trabalho, respondendo assim à crescente demanda por programas flexíveis de competências;
2) promover quadros políticos que garantem a qualidade dos serviços educacionais prestados;
3) melhorar a eficiência dos sistemas de ensino;
4) promover a igualdade de oportunidades de aprendizagem para as populações desfavorecidas;
5) apoiar a garantia de qualidade e mecanismos de financiamento eficientes e equitativos para o ensino superior, que está cada vez mais sob pressão para fornecer uma força de trabalho com as habilidades relevantes e gerar inovações que impulsionem o progresso econômico. (Ibid., p. 30).
Os cinco pontos estruturais e sua articulação aos três eixos são elementos necessários que antecedem reformas educacionais mais profundas, notadamente no ensino médio, àquilo que o Banco Mundial define como abordagem sistêmica ou abordagem de sistemas (system approach):
A estratégia da "abordagem sistêmica" fornece uma estrutura para ajudar os países a formular as reformas que podem alcançar melhores resultados nas esferas políticas essenciais de um sistema de educação. A abordagem de sistema permite que um país tenha um diagnóstico claro das políticas e programas que tem atualmente no local e também a referência contra aqueles que as evidências e boas práticas sugerem é mais provável para alcançar a aprendizagem de todos. Ele também fornece um roteiro objetivo para as reformas que os países podem implementar para melhorar o desempenho em um domínio político particular, que a médio prazo pode levar a melhorias no sistema educacional como um todo(Ibid., p. 31).
A abordagem sistêmica tem por objetivo alavancar o setor educacional privado, inclusão de populações sem acesso à educação escolarizada, responsabilização e prestação de contas e, preparação da força de trabalho (BANCO MUNDIAL, 2011). A alavanca ao setor privado - no caso dos jovens do ensino médio - se dá via formação técnica e profissional em instituições privadas (concomitante ou posteriormente a conclusão desta etapa de ensino) e, também, via acesso à educação superior privada.
[...] abordagem de sistema pode ampliar a agenda potencial de ação na política educacional, permitindo aos governos tirar proveito de um maior número de fornecedores e canais de entrega. Demanda por ensino superior e de ensino técnico e profissional(TVET8), por exemplo, está crescendo em todas as regiões servidas pelo Banco Mundial (Ibid., p. 15).
É importante destacar a ideia de vocação. TVET é a sigla de Treinamento e Educação Vocacional e Técnica. Na época do lançamento das Estratégias para a Educação 2010-2020, o TVET estava sendo desenvolvido em Moçambique:
O Projeto de Treinamento e Educação Vocacional e Técnica de Moçambique pretende transformar o sistema TVET existente em um sistema de treinamento puxado pela demanda que irá proporcionar mais beneficiários no mercado relevantes para as competências e oportunidades econômicas. O projeto tem como objetivo envolver o setor privado e vai estabelecer uma estrutura de governança com representação do governo, indústria e sociedade civil. Isso também irá criar um quadro de qualificações sustentado por padrões profissionais para setores visados que apresentarem crescimento do emprego e falta de habilidade e vai realinhar o sistema TVET baseado em padrões ocupacionais (Ibid., p. 37/38).
Vocação é demanda local do mercado, trata-se da preparação da força de trabalho alinhada às determinações imediata do mercado, ou como afirma o Banco, das “Ligações entre os sistemas de educação e mercado de trabalho” (Ibid., p. 21).
Melhorar a relevância do mercado de trabalho é um objetivo chave da nova estratégia. Atualmente, muitos jovens nos países em desenvolvimento estão deixando a escola e entrando no mercado de trabalho sem o conhecimento, habilidades e competências necessárias para prosperar em uma economia global competitiva. Ao concentrar-se na aprendizagem, a nova estratégia será desviar a atenção de apenas de matrícula e de conclusão para se aqueles que abandonam a escola têm os necessários conhecimentos e habilidades e o objetivo é aumentar a parcela de projetos que inclui o mercado de trabalho relacionado com os objetivos. A abordagem sistêmica adotada pela Estratégia reforça este foco, reconhecendo os empregadores como os principais interessados sob a definição mais ampla do sistema de ensino e enfatizando a responsabilidade pelos resultados. No âmbito da Estratégia, os esforços estão em curso, em colaboração com os parceiros de desenvolvimento, para desenvolver uma estrutura e as ferramentas para medir as habilidades e competências necessárias para competir efetivamente no mercado de trabalho (Ibid., p. 21).
Um dos pilares da abordagem sistêmica - no espírito do conhecer globalmente as experiências educacionais e agir localmente de modo a aumentar a aprendizagem para todos (BANCO MUNDIAL, 2011) - é a implementação de experiências exitosas9, à exemplo do TVET, em outros países10.
A seção Preparando a Ação aborda as articulações necessárias para criar a atmosfera favorável às reformas educacionais mais profundas. A primeira ação é a busca pelo consenso entre os grupos interessados na reforma:
Políticas são determinadas pela interação de muitos fatores: os interesses conflitantes de grupos diferentes; o poder que cada grupo possui para promover seus próprios interesses; os mecanismos formais e informais através dos quais os conflitos são resolvidos [...] Uma política de educação ou um programa não pode beneficiar diretamente todos os participantes e interessados no sistema e a capacidade local para tomar as ações implicadas por políticas e investimentos podem ser limitadas ou concentradas em algumas partes do governo e da sociedade. No entanto, para as reformas serem bem-sucedidas e duradouras, o apoio de uma base ampla, ativa ou tácita, são valiosas, se não essenciais (Ibid., p. 41).
A segunda ação é estar atento aos momentos favoráveis à efetivação da reforma. Está é informada pelos barômetros de prontidão11, quais sejam:
Outro aspecto da economia política é identificar e aproveitar as janelas de oportunidade para uma reforma significativa. As reformas são mais fáceis de introduzir quando há um novo governo ou quando há demanda por mudanças mais amplas, como é o caso durante as crises ou então quando outras reformas também estão sendo feitas (Ibid., p. 42).
A terceira diz respeito a preparação de quadros dentro e fora do Banco, ou seja, deste e dos países parceiros. De maneira sintética, trata-se da articulação dos intelectuais orgânicos do Banco e do Estado, em busca de elementos que justifiquem as reformas, principalmente, através dos resultados advindos das avaliações em larga escala12. Esta relação entre intelectuais orgânicos do Banco e do Estado dos países parceiros, ancorados em análises fundamentadas em resultados destas avaliações, são reafirmadas, diuturnamente, em busca do consentimento ativo da população. Este trabalho prévio é fundamental para aproveitar as brechas político-econômicas, pois são nelas que emergem as transformações mais agudas no campo educacional.
Por fim, alerta o documento do Banco, a abordagem sistêmica deve considerar três aspectos para a implementação de reformas educacionais:
(1) o ambiente propício para a reforma: o grau em que o contexto político é propício para o lançamento e sustentação da reforma;
(2) o alinhamento da reforma com o resto do sistema educativo: se as políticas e os objetivos da reforma política em um domínio particular, são consistentes com os outros domínios em todo o sistema de ensino e;
(3) a qualidade técnica da reforma: se a reforma inclui instrumentos e processos necessários para garantir o sucesso. (Ibid., p. 43).
As estratégias são objetivos a serem alcançados de acordo com a realidade -conjuntura político-econômica - de cada país. Deste modo, a adoção de determinadas táticas leva em consideração a análise da realidade e o objetivo estratégico. O momento do assalto depende do sopro de ventos favoráveis, identificável pelos barômetros de prontidão.
A MATERIALIZAÇÃO DAS ESTRATÉGIAS NA LEI Nº 13.415 DE 2017
Na documentação do Banco Mundial a implementação de reformas educacionais mais profundas deve ser planejada com antecedência para despontarem em momentos propícios à sua efetivação, e, articulado a este planejamento, os processos decisório-participativos se constituem como um mecanismo imprescindível à sua sustentação e legitimação. Entretanto, a reforma do ensino médio no Brasil foi levada à cabo via Medida Provisória (MP nº 746). Seria esta reforma uma exceção, ou seja, não houve planejamento para sua implementação e muito menos espaços de busca pelo consentimento13?
Em primeiro lugar, refutamos a ideia de que a reforma do ensino médio (Lei nº 13.415 de 2017) é uma espécie de abiogênese do governo de Michel Temer, trata-se de uma política de Estado coadunada às transformações no mundo do trabalho no atual estágio do capitalismo. Não obstante, reconhecemos que a reforma do ensino médio via Medida Provisória só poderia ter despontado neste governo, justamente por reunir as condições objetivas tidas como ideal: a) contexto de reordenação política do Estado brasileiro14 (novo governo); b) outras reformas e projetos de lei (PL) em discussão, como por exemplo, o PL 6.840 de 201315 (reestruturação do ensino médio), a reforma trabalhista (PL nº 6787/2016, transformado na Lei Ordinária 13.467/2017), Projeto de Emenda à Constituição 241/2016 (Emenda Constitucional 95/2016, que limita por 20 anos os gastos públicos) e, por fim, a Proposta de Emenda à Constituição nº 287/2016 (Reforma da Previdência, ainda não votada); c) no campo educacional, merece destaque a discussão em torno da Base Nacional Comum Curricular (na época da MP do ensino médio a BNCC estava em sua segunda versão da Base. Foi aprovada em dezembro de 2017).
Em segundo lugar, o consentimento foi buscado imediatamente após a promulgação na MP e depois desta ser tornada lei. As condições objetivas obrigaram a inversão da ordem natural da coisa16. O que faltou em espaços para o exercício democrático-participativo, à exemplo da Base Nacional Comum Curricular aprovada em 2017, foi compensado pela propaganda massiva. No caso específico do Ministério da Educação (MEC) foram e continuam a ser envidados esforços publicitários agressivos, tanto do ponto de vista da subjetividade, quanto orçamentário. O primeiro enfatiza a ideia de individualismo, vocação e escolha profissional17; o segundo é perceptível a partir do levantamento abaixo:
Orçamento publicitário do Ministério da Educação de janeiro de 2015 - agosto de 2016 (19 meses) | Gastos somente no ano de 2015 | |
Dilma | R$ 34.279.893,22 | R$ 17.476.144,41 |
Orçamento publicitário do Ministério da Educação entre agosto de 2016 e março de 2018 (20 meses) | Gastos entre agosto 2016(Pré-MP nº 746) e fevereiro de 2017 (Aprovação da Lei nº 13.415) | |
Temer | R$ 56.679.011,87 | R$ 19.617.739,93 |
A diferença entre os orçamentos publicitários ultrapassou os R$ 23 milhões de reais, porém, o que mais se destaca foram os gastos entre agosto de 2016 e fevereiro de 2017, neste período de sete meses foram gastos mais de 19 milhões de reais, dois milhões a mais que todo o ano de 2015. Somente no mês de dezembro de 2016, R$ 7.266.218,02 foram gastos com publicidade19.
Entretanto, para além do momento de implantação e dos esforços que buscam legitimar as alterações no ensino médio, é importante compreender que o ponto fundamental da Lei nº 13.415 éa ampliação do sistema educacional. Esta ampliação em sua faceta aparente busca atender as aspirações individuais dos jovens estudantes, como se estas fossem as responsáveis por impor alterações estruturais a determinado nível de ensino, contudo, no reverso da moeda o que interessa é a aproximação e conexão das demandas emanadas do mercado e a escola, o atrelamento das demandas produtivas aos arranjos educativos. Esta é uma questão-chave da reforma do ensino médio, presente, principalmente, no artigo 4º da Lei nº 13.415, notadamente nos §1º, § 6º e § 11º.
O Art. 4º dá nova redação ao Artigo 36 da LDBEN - as diretrizes para o currículo do ensino médio, que agora será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos. Estes, por sua vez, “deverão20 ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino, a saber:
I - linguagens e suas tecnologias;
II - matemática e suas tecnologias;
III - ciências da natureza e suas tecnologias;
IV - ciências humanas e sociais aplicadas;
V - formação técnica e profissional. (BRASIL, 2017).
A organização das áreas, de acordo com o § 1º do respectivo artigo, será feita de acordo com os critérios estabelecidos em cada sistema de ensino, em outras palavras, haverá maior flexibilização aos estados e municípios. Esta flexibilização - que aparece de forma positiva21 - contribui para a precarização da educação escolar pública e para o estabelecimento de parcerias como caminho a ser adotado22. No primeiro caso:
[...] a oferta de todos os itinerários por uma mesma escola não é obrigatória, a depender das condições do sistema de ensino (em muitos municípios há poucas escolas, quando não uma ou duas, que funcionam com dificuldade); a tendência será reduzir a oferta, privilegiando as áreas que dependem menos de docentes qualificados e de recursos materiais e tecnologias mais sofisticadas. Não é difícil compreender que a reforma resolveu, pelo menos, dois grandes problemas para os sistemas de ensino: a falta de professores para várias disciplinas e a dificuldade para resolver a precariedade das condições materiais das escolas, principalmente em termos de laboratórios, bibliotecas, equipamentos de informática, acesso à internet e construção de espaços para atividades culturais e esportivas (KUENZER, 2017, p. 336).
No segundo caso, a flexibilização e os estabelecimentos de parcerias, nos obriga a citar a inclusão do § 6º no Art. 36 da LDBEN:
§ 6o A critério dos sistemas de ensino, a oferta de formação com ênfase técnica e profissional considerará:
I - a inclusão de vivências práticas de trabalho no setor produtivo ou em ambientes de simulação, estabelecendo parcerias e fazendo uso, quando aplicável, de instrumentos estabelecidos pela legislação sobre aprendizagem profissional;
II - a possibilidade de concessão de certificados intermediários de qualificação para o trabalho, quando a formação for estruturada e organizada em etapas com terminalidade (BRASIL, 2017).
A flexibilização curricular vai ganhando contornos de autonomia via possibilidades de escolha e estabelecimento de critérios, seja para a composição da parte diversificada, inclusão de temas transversais, organização das áreas do conhecimento e oferta de um ou mais itinerários formativos e agora, via ênfase técnica e profissional.
A questão das parcerias é condição sine qua non para a efetivação do que está expresso no Inciso I, “levando o sistema de ensino a prescindir de seus próprios professores e da obrigação de estruturar e equipar escolas para este fim” (RAMOS, FRIGOTTO, 2017, p. 40). Em relação ao Inciso II é importante dar destaque aos certificados intermediários e a questão da terminalidade, que também aparece no parágrafo 10 “Além das formas de organização previstas no art. 23, o ensino médio poderá ser organizado em módulos e adotar o sistema de créditos com terminalidade específica” (BRASIL, 2017).
Do ponto de vista legal a terminalidade específica apresenta duas definições na LDBEN, uma relacionada à educação especial e a outra dada a partir da Lei Nº 11.471 de 2008. No entanto, entendemos que a terminalidade proposta na Lei nº 13.415 refere-se aos itinerários formativos, à exemplo das ênfases do Projeto de Lei nº 6.840 de 2013:
[...] o que está sendo indicado é a possibilidade da certificação não apenas como conclusão desse nível de ensino em geral, mas como conclusão relacionada a um campo, ou “ênfase” específica, o que poderá, posteriormente, redundar em diferenciações entre os concluintes do ensino médio com respeito à sua formação, com implicações para sua inserção em cursos de nível superior [...] (FERRETTI, 2016, p. 89).
Outro ponto que merece destaque no Art. 4º da 13.415 é o parágrafo 11 que permite aos sistemas de ensino, afim de cumprirem as exigências curriculares, firmarem convênios com instituições de educação a distância com notório reconhecimento, mediante as formas estabelecidas nos incisos abaixo:
I - demonstração prática;
II - experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência adquirida fora do ambiente escolar;
III - atividades de educação técnica oferecidas em outras instituições de ensino credenciadas;
IV - cursos oferecidos por centros ou programas ocupacionais;
V - estudos realizados em instituições de ensino nacionais ou estrangeiras;
VI - cursos realizados por meio de educação a distância ou educação presencial mediada por tecnologias (BRASIL, 2017).
Este artigo inaugura a educação a distância no ensino médio, ainda que restrita a oferta de formação técnica e profissional. A flexibilização curricular permite que - uma vez satisfeitas as exigências expressas na lei - a formação técnica e profissional seja ofertada por grandes conglomerados educacionais fixados em qualquer parte do mundo via aquisição de pacotes completos que podem ser oferecidos a distância e também nas unidades escolares (KUENZER, 2017).
A flexibilização que marca a lei nº 13.415 de 2017 deve ser relacionada as relações de produção vigentes, a aprendizagem flexível.
Diferentemente do que ocorria no taylorismo/fordismo, em que as competências eram desenvolvidas com foco em ocupações previamente definidas e relativamente estáveis, a integração produtiva se alimenta do consumo flexível de competências diferenciadas, que se articulam ao longo das cadeias produtivas. Essas combinações não seguem modelos preestabelecidos, sendo definidas e redefinidas segundo as estratégias de contratação e subcontratação que são mobilizadas para atender à produção puxada pela demanda do mercado (KUENZER, 2017, p. 340).
A aprendizagem flexível observada na Lei nº 13.415 de 2017, significa um recuo da teoria23 e inscreve-se, do ponto de vista epistemológico, no campo das teorias pós-modernas. O espontaneísmo e o pragmatismo que marcam o ensino médio atual, em consonância à possibilidade de cursar esta etapa de ensino via EaD, módulos ou cursos ofertados por instituições privadas, configura-se como um processo de flexibilização que precariza e relativiza a organização curricular sistematizada (KUENZER, 2017).
Diante do contexto brevemente assinalado, amplia-se o potencial das escolas seremconvertidas em espaços de educação minimalista, focalizando osarranjos produtivos locais e conformando os arranjos educativos locais (LEHER, 2014). Essa educação minimalista apoia-se, sobretudo, naideia de orientar os currículos para as habilidades necessárias aoatendimento das demandas produtivas locais (WORLD BANK, 2011). Em outraspalavras, o currículo deve ter uma base comum - rudimentos do conhecimento e habilidades atitudinais24 - e uma parte variável que possa ser próxima e conformável às demandas do mercado. A brecha é dada pela ideia de parcerias e flexibilidade curricular, ambas referendada com força no Artigo 4º da Lei nº 13.415 de 2017.
CONCLUSÃO
A relação trabalho e educação tem a partir do processo de reestruturação produtiva uma nova dinâmica, marcada, sobremaneira, pela ideia de flexibilização. As mudanças mais significativas no campo da produção estão relacionadas às inovações tecnológicas, organizacionais e sociometabólicas (ALVES, 2012). Dentre estas, destaca-se o cordão andon, uma tecnologia de baixo custo dentro das inovações tecno-organizacionais do Toyotismo. Trata-se de uma corda posicionada no alto acompanhando toda a linha de produção, quando surge algum problema a corda é puxada acionando automaticamente uma luz amarela que faz a produção parar, corrigindo assim eventuais falhas. Em vídeo publicitário da Toyota uma trabalhadora da linha de produção diz: “O cordão andon é acionado 1.000 vezes por dia, isso não significa que temos 1.000 problemas por dia, mas que resolvemos 1.000 problemas por dia.
Em vez de soluções definitivas a Toyota utiliza o termo contramedidas (SPEAR; BOWEN, 1999), a questão de não ter soluções definitivas explora a capacidade psicofísica dos trabalhadores. Por isso a ênfase em contramedidas, já que estas, ao contrário de soluções definitivas, são pautadas pela provisoriedade e transitoriedade, sempre sujeito a mudanças25.
A lei nº 13.415 tem potencial para tornar-se o cordão andon do ensino médio principalmente a partir dos artigos da lei destacado na seção anterior, que prevê, respectivamente, a formação técnica e profissional e a inclusão de experiência prática de trabalho no setor produtivo via estabelecimento de parcerias com instituições privadas e/ou a distância (BRASIL, 2017).
Quando - seguindo a dica teórico-metodológica de Gramsci - concordamos que a hegemonia nasce na fábrica, é preciso relacionar este processo com a financeirização do capital. Em outros termos, a reprodução do capital portador de juros parece autonomizada, descarnada, descolada da base material, contudo, este processo está umbilicalmente ligado à extração de mais-valia, o que impõem uma aceleração mais acentuada desta.
O capital portador de juros é o ápice da concentração de trabalho morto em poucas mãos e da irracionalidade da lógica capitalista: punhados de grandes proprietários de recursos precisam valorizá-los e, para tanto, convertem o próprio capital em mercadoria. O valor de uso do capital convertido em mercadoria, ou do capital portador de juros, é o de ser utilizado como capital, impulsionando a produção de valor através da multiplicação de agentes voltados para a função de extrair mais-valor (FONTES, 2010, s/p).26
Frente este contexto, onde o imperativo do tempo de compressão do trabalho necessário se impõe à classe trabalhadora como forma de valorizar o capital portador de juros, gerando desemprego e formas de trabalho cada vez mais precarizadas, bem como as constantes ameaças e retiradas de direitos historicamente conquistados - haja visto a Emenda Constitucional nº 9527 e a Lei nº 13.467/201728 - a força de trabalho é e deverá cada vez mais permanecer relutante (MÉSZÁROS, 2008). Redobram-se assim os esforços que imputam aos jovens em processo deescolarização a responsabilidade de definir seu próprio futuro de acordo com sua vocação. Esta retórica explora os indivíduos em si mesmo, exacerba o individualismo e contribui, de modo radical, para a fragmentação,
[...] os indivíduos partiram sempre se si mesmos, mas, naturalmente, de si mesmos no interior de condições e relações históricas dadas, e não do indivíduo ‘puro’, no sentido dos ideólogos (MARX; ENGELS, 2007, p. 64).
A autonomização das relações sociais, histórica, que surgem no interior da divisão do trabalho faz com que surja uma divisão na vida de cada indivíduo, sua vida pessoal e sua vida subsumida a um ramo qualquer de trabalho (MARX; ENGELS, 2017). No processo concorrencial estes indivíduos encontram-se menos livres e mais presos ao poder das coisas, e no plano da representação, na singularidade, são indivíduos mais livres sob o jugo burguês. É nesta senda que hoje se agiganta os esforços em autonomizar e descolar a esfera singular da subsunção real ao trabalho.
Neste sentido, a reforma do ensino médio permite que esta importante etapa da educação básica sirva como o cordão andon, ou seja, a escola corre o risco de ser acionada 1.000 vezes por dia, mas isso não significará que a escola terá 1.000 problemas por dia, mas que resolverá 1.000 problemas por dia.