É possível existir com o “outro” sem reduzir esse encontro a lógicas de desqualificação do diferente? Essa é uma questão que, na condução deste trabalho, tanto nos foi importante quanto igualmente nos inquietou, uma vez que não tivemos a pretensão de limitar o “outro” exclusivamente a uma expressão individualizada. Se o “outro” se apresenta aqui encarnado em algum indivíduo, foi apenas para intensificar a sua maior característica: o efeito da produção de um estranhamento. E é nesse estranhamento que assumiremos o “outro” como a própria experiência na diferença; mas uma diferença que não é substantiva, mas rítmica, uma vez que coloca em vibração uma diversa - e tantas vezes conflitante - maneira de se compor em um mundo.
Assim, aquilo que pela sua expressão difere de um ritmo já estabelecido em sua regularidade, tem o potencial de colocar em questão a validade de naturalizadas ações e condutas estabelecidas em projetos de verdade e proposições de lógicas de realidades que se pretendem eternas. Contudo, mesmo tentando pensá-lo, averiguá-lo ou analisá-lo, não se consegue controlar completamente a emergência desse estranhamento, desse “outro”, que pode ganhar consistência em lugares insuspeitos nas vivências cotidianas. Foi, portanto, na proposta de seguir os efeitos desse “outro” na convivência que optamos por acompanhar algumas tessituras relacionais nos cotidianos de uma escola. O estudo de tais tessituras se tornou importante neste trabalho, pois, na complexidade das produções de realidades nos cotidianos escolares, movimentos na diferença tensionam modelos de escola, de aluno e de professor, interferindo nas composições identitárias dos sujeitos bem como em suas relações.
Assim, no ano de 2012, iniciamos uma pesquisa na Escola Andorinhas1, localizada em uma cidade de porte médio na Zona da Mata Mineira. Em um aspecto específico, aquela pesquisa se comprometeu em investigar as maneiras como crianças de uma turma de 5º. ano do Ensino Fundamental lidavam com experiências que suscitavam o emergir do diferente nas relações na sala de aula. Foi escolhida uma turma do 5º. ano por ser este um momento de transição de ciclo escolar, além de comportar um período que também coincide com a pré-adolescência e com a emergência de potenciais tensões no que se refere a afirmação de identidades.
Logo no início da investigação - durante a qual nos dedicamos, por quatro meses, a diariamente acompanhar uma professora (chamada aqui de Cláudia2) e seus alunos - destacou-se, na dinâmica da turma pesquisada, a expressão de um jovem que chamaremos de Mateus. Mal havíamos começado o movimento de observação participante na sala regida por Cláudia, quando Mateus - doze anos de idade, pardo, cabelos despenteados, corpo forte e volumoso do qual rescendia um odor de suor que era intensificado por uma precária higiene pessoal -foi transferido para a escola Andorinhas, após ter apresentado condutas agressivas em outras instituições de ensino. Contudo, tais condutas não eram necessariamente justificadas pelo fato de ele ser indisciplinado ou questionador de autoridades, mas por ter sido qualificado como portador de um retardo mental. Na ficha de matrícula de Mateus constava que ele tinha “Necessidades Educacionais Especiais”, bem como era especificado na mesma o registro F-70, referente à Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID-10, 2014). Este código corresponde a “Retardo Mental Leve”e fora atribuído a ele por uma psicóloga. Diante de tal diagnóstico, aquela criança foi recebida na instituição sob um véu de suspeita e estranhamento. Esta suspeita se materializou pela primeira vez para nós na fala da professora Cláudia, quando esta nos relatou que “Mateus veio da ‘escola Y’; ninguém queria mais ele por lá. Daí, vocês sabem, né; a diretora aceitou ele aqui. Mas vocês vão ver ainda do que eu estou falando”.
Assim, Mateus entrou na sala onde fazíamos nossa pesquisa após já ter sido expulso de outras três escolas, classificado como portador de um retardado mental e, consequentemente, tendendo a ser fixado em uma posição de inferioridade cognitiva em relação a outras crianças situadas como “normais”.Na turma que acompanhávamos, ele encarnava um “outro”, sendo que seu porte físico, sua idade avançada para aquela sala e seu rótulo psicológico/psiquiátrico o diferenciavam (de maneira desqualificadora) do restante da turma. Tal situação nos remeteu às considerações de Duschatzky e Skliar (2001), para quem as narrativas que atribuem a um determinado grupo uma posição de inferioridade podem ser pensadas como uma estratégia de regulação e controle da alteridade. Segundo Silva (2010), a palavra “alteridade” vem do latim alteritas, e significa ser outro; carrega consigo o significado de se colocar no lugar do “outro” ou se constituir considerando a existência do “outro” na relação. Em que pese ter adquirido outros significados, o conceito de alteridade será aqui entendido como sendo aquele que difere de mim.
Duschatzky e Skliar mencionam também que essa forma de narrar a alteridade tem por base o entendimento do “outro” como fonte de todo o mal, transforma-o em:
[…] sujeito ausente, quer dizer a ausência das diferenças ao pensar a cultura; a delimitação e limitação de suas perturbações; sua invenção, para que dependa das traduções oficiais; sua permanente e perversa localização do lado externo e do lado interno dos discursos e práticas institucionais estabelecidas, vigiando permanentemente as fronteiras - isto é, a ética perversa da relação inclusão/exclusão -; sua oposição a totalidades através de uma lógica binária; sua imersão e sujeição aos estereótipos; sua fabricação e sua utilização para assegurar e garantir as identidades fixas, centradas, homogêneas, estáveis etc. (DUSCHATSKY; SKLIAR, 2001, p. 121, grifos dos autores).
Assim, é atribuído ao “outro” uma negada autenticidade em um processo de desqualificação da expressão que esse “outro” afirma, uma vez que ele só é pensado em referência a parâmetros de identificação considerados legítimos, pois normatizados. Nesse sentido, a produção desse “outro maléfico”, tratada por Skliar como uma operação de alterização3, gera consequências na vida cotidiana das pessoas, pois estão colocadas em uma relação de dessemelhança às demais.
Portanto, já em sua entrada naquela instituição de ensino por nós pesquisada, Mateus parecia já vir marcado por uma diferença significada como “maléfica”. Assim, apesar de a escola aceitar a matrícula do aluno, sua presença era a de um “outro”, um estrangeiro na instituição, ocupando um espaço que Skliar qualificou como sendo um espaço colonial. Para este autor, o conceito de “espaço colonial” se ativa na perspectiva de que a relação de colonização é uma relação de poder onde o colonizador traz consigo as normas acerca do que é legítimo; por sua vez, os saberes do colonizado são desqualificados em sua autoridade. Assim, ocupar um espaço colonial se congratula com a ideia de inferiorização daquele que, como “outro”, difere dos modos hegemônicos de sentir, pensar e existir de determinado grupo ou comunidade. O que nos faz afirmar que a espacialidade colonial é, antes de tudo, um aparato de poder que se exerce como efeito da produção de saberes do colonizador sobre o “outro”; saberes estes que pouco a pouco passam a ser assumidos como legítimos e naturais (SKLIAR, 2003).
Voltando, portanto, à história de Mateus, entendemos que a partir das estratégias de colonização do “outro” produzidas não apenas pela escola, mas em meio às tramas sociais em que estava inserido, o jovem em questão foi colocado em uma posição de inferioridade social e igualmente cognitiva. Todavia, quando tivemos a oportunidade de nos aproximar de Mateus, percebemos que ele ativava em suas ações cotidianas outros elementos que não se restringiam aos rótulos (de retardado, desajustado, agressivo) que lhe foram atribuídos. Nesse sentido, após realizar as atividades de soma e subtração simples que lhe foram propostas pela professora, Mateus resolveu conversar conosco sobre sua vida e, dentre os vários assuntos que abordou, disse-nos que tinha paixão por carros. Comentava ele que:
[...] meu primo tem uma Parati. Ele colocou um sonzão nela, mas ainda tem que comprar um módulo melhor e mais duas cornetas. Também precisa mexer no motor, na bomba de água. Sabe como funciona o motor?
Começou, então, a explicar, nas suas palavras, o processo de funcionamento de um motor a combustão. Mateus estava, naquele momento, conversando em um idioma que não dominávamos: o “mecaniquês”. Mas o saber afirmado por ele em nossa conversa era legítimo para a escola? Afinal, quem seleciona o que deve ou não ser reconhecido como legítimo? Tal questão se faz relevante porque os conhecimentos considerados legítimos em um ambiente escolar giram em torno de quais saberes são considerados como importantes e válidos em uma sociedade. Tal seleção de saberes constitui o que vem a ser definido como sendo o currículo oficial da escola. Contudo, tal currículo não é gestado em dimensões de harmônica concordância, mas em meio a debates que, se ganham seu campo de síntese documental nos corredores do Ministério da Educação, constituem um território em disputa (ARROYO, 2011) em que concepções diversas tentam ganhar protagonismo na definição de realidades. Assim, seja nas tramas a ganharem consistência nas reuniões de associações docentes, nas nos corredores e salas do Ministério da Educação, nas secretarias estaduais de ensino ou nas negociações dentro da própria escola, os currículos ganham diferentes sotaques e interpretações, tornando-se muitas vezes representações de grupos externos à escola que, com seus modos de pensar, ocupam o local de “colonizador” no intuito de instruir os “ignorantes”. Portanto, essas disputas por definição de verdades se estendem a uma conflitualidade de interesses curriculares em que Silva (2004) considera que a produção de um currículo envolve a seleção de conhecimentos considerados importantes na formação de um modelo de sociedade e, consequentemente, de um modelo de ser humano. Temos, então, que as teorias de currículo estão envolvidas na produção de modos de pensar e de existir, sendo que é diante dessa perspectiva que Veiga-Neto (2004, p. 166) afirma que:
Em suma: currículo e mundo social e da cultura guardam íntimas e mútuas relações de interdependência, tendo a escola (obrigatória e universal) como, digamos, mediadora. Em outras palavras, o currículo ajuda a construir/constituir a sociedade e a cultura ao mesmo tempo em que é por essas construído/constituído.
Dessa maneira, apesar de ter sido criado como um artefato a serviço da ordem, os conhecimentos que constituem um currículo são indissociáveis daquilo que nos tornamos e do mundo que produzimos coletivamente. No momento, pois, que consideramos que os seres humanos compõem (e são compostos em) processos relacionais, temos que estes se tramam no urdir de diferentes redes que, num fazer e desfazer contínuos, indicam a pluralidade de realidades sociais e, consequentemente, das relações que as formam e conformam. Os modos hegemônicos de produção de maneiras de existir sustentam referenciais de mundo compartilhados que buscam estabelecer uma constância às maneiras como determinado grupo produz realidade. Por sua vez, tudo o que escapa aos modos hegemônicos dessa produção - tudo o que vem da ordem da surpresa, da novidade e que coloca tensão nos quadros referenciais estabelecidos - pode igualmente vir a produzir crises e/ou tender a ser capturado pelas maneiras já cristalizadas de se vivenciar uma realidade sociocultural. Todavia, as produções marginais de realidade - e outros currículos delas derivados -, nascidas em meio a tais crises, podem ativar movimentos singulares que se recusam a uma passiva modelização:como quando Mateus, insistindo em afirmar seu conhecimento sobre motores a combustão e mecânica de carros, resistiu a ser reduzido à definição de “retardado”. Mateus tentava, pois, escapar ao processo de “mesmidade” (SKLIAR, 2003), o qual se refere ao movimento da proibição do diferir e, dessa maneira, o outro é sempre “outro”, tornando-se, muitas vezes, ameaça que traz consigo um estranhamento que deve ser contido, normalizado ou excluído.
Tomemos, então, uma cena cotidiana daquela sala de 5º ano como exemplo da sutil prática do silenciamento pela “mesmidade”. A professora Cláudia, como várias outras professoras daquela escola, costumava estimular a competição entre seus alunos, objetivando, com isso, que eles ficassem motivados a fazer as atividades indicadas para serem feitas em casa. Ao passar a tarefa, ela avisava os discentes que conferiria, no dia seguinte, a resolução das atividades, sendo que cada uma corretamente realizada seria carimbada com a imagem de uma corujinha. A cada dez corujinhas conquistadas, o(a) aluno(a) tinha o direito de ganhar uma estrela em um grande quadro fixado em uma das paredes da sala. Naquele quadro, chamado de “Quem vencerá?”, estavam apresentados os nomes das crianças da turma e a estrela era fixava ao lado do nome daquela que tinha coroado com êxito suas atividades.
Em determinado dia, chegou à sala um novo aluno, chamado Alexandre, que foi recebido pela turma com alegre acolhimento. Aquele novato se sentou ao lado de Mateus e perguntou: “Que estrelas são aquelas?” Então, Mateus explicou para Alexandre como funcionava o “Quem vencerá?” e fez questão de contar, orgulhoso, que ele próprio já havia conquistado dezesseis corujinhas. Contudo, Alexandre percebeu que o nome de Mateus não estava fixado no quadro e perguntou-lhe o motivo. Constrangido, o menino explicou ao novato que seu nome não foi fixado ali, junto com os outros nomes, pelo fato de que as atividades que ele desenvolvia eram diferentes das do restante da turma. Logo em seguida, Mateus perguntou à professora por que seu nome não estava no quadro; ela respondeu que ainda colocaria o nome dele lá, mas isso nunca chegou a acontecer.
No interior da sala da professora Cláudia - e, consequentemente, também dentro da escola -, Mateus parecia estar sendo produzido em um local de “mesmidade”, sendo que as práticas educacionais nas quais ele era envolvido o confirmavam numa identidade de deficiente, sendo que era difícil a ele sair daquele “mesmo”. Isto porque aquela identidade o delimitava em um território rígido em que ela localizado por uma marca fixa de inferioridade e fracasso. Se a produção de uma identidade fala sobre a construção de atributos relativamente estáveis, pertencer a um círculo identitário significa se manter em uma relação de semelhança com aqueles que o integram. Portanto, a identidade constituída indica uma relação de reconhecimento, sendo que a representação que se faz de alguém é confirmada a priori e reforçada através de comportamentos que favorecem tal identificação nas relações sociais. Nessa perspectiva, Mateus parecia estar identificado em um local de fixada anormalidade, em que era produzido “deficiente” por diferir dos modelos identitários esperados para um aluno de sua idade. O fato de seu nome ter sido excluído do quadro estrelado foi, para nós, um indicativo de que ele fora pré-definido como um “perdedor”, alijado que estava de poder competir no quadro do “Quem vencerá”.
Assim, Skliar (2003) defende que os modelos estabelecidos como padrão são uma forma primária de subjetivação, tanto para o colonizado quanto para o colonizador. A originalidade, em seu incômodo não mapeado pelas ordenações identitárias, tende a ser negada e desautorizada por ameaçar os modelos já conhecidos. E se há uma operação para identificar e reconhecer o “outro”, esta se faz no sentido de localizá-lo para, assim, neutralizá-lo e ou desqualificá-lo em sua expressão. Nesse sentido, Skliar (2003, p. 114) considera que:
Há uma estratégia de contenção em que o outro nunca é um agente ativo de articulação. O outro é citado, mencionado, iluminado, encaixado em estratégias de imagem/contra-imagem etc., mas nunca cita a si mesmo, nunca se menciona, nunca pode inferir nos jogos de imagens e contra-imagens estabelecidos a priori.
A operação de alterização proferida permite amenizar as ambiguidades que o “outro” põe em jogo, dando-lhe um nome e uma identificação. Dessa forma, podemos mais uma vez sinalizar que a identificação de Mateus como “retardado mental” é um movimento que investe na tentativa de lidar com as incertezas que sua existência colocava em jogo, situando em segundo plano as condições sociais desta existência; silenciando seus conflitos no movimento de:
Mitologizar o outro. Fixá-lo em um ponto estático de um espaço preestabelecido. Localizá-lo sempre no espaço outro de nós mesmos. Traduzi-lo para nossa língua, para nossa gramática. Despojá-lo de sua língua. Fazer do outro um outro parecido, mas um outro parecido nunca idêntico ao mesmo. Negar sua disseminação, sua pluralidade inominável, sua multiplicidade. E designá-lo, inventá-lo, fixá-lo, para apagá-lo (massacrá-lo) e para fazê-lo reaparecer cada vez, em cada lugar que (nos) seja necessário (SKLIAR, 2003, p. 116).
Portanto, o “outro” é necessário para determinar e manter o próprio conteúdo da “mesmidade”. A produção do “outro” (e sua essencialização no “mesmo” lugar de erro, de demoníaco, de fracasso) reflete a própria necessidade de definição da normalidade. Para o colonizador se sentir superior, há a necessidade de existir um “outro” para ser rebaixado. E foi o que aconteceu no dia 21 de julho de 2012, quando, após o toque do sinal para o recreio, as crianças se dirigiram para o pátio da escola em gritante alegria. Depois daqueles vinte minutos dedicados à alimentação e brincadeiras, voltaram lentamente para a sala de aula; exceto Mateus. As crianças da turma já estavam a perguntar à professora sobre o motivo da ausência do mesmo, quando Mateus entrou na sala e se sentou silenciosamente em sua carteira. Contudo, se sua tentativa foi a de passar despercebido, falhou nesse intento. A professora Cláudia logo percebeu a chegada do menino e perguntou “onde o senhor Mateus estava?”. Na porta da sala, uma cantineira contou à professora que o atrasado “rapaz” estava com uma vassoura à porta do banheiro masculino dando pancadas nas crianças do 1º ano do Ensino Fundamental.
Em sala, Mateus nos narrou aquele episódio do banheiro com um sorriso no rosto, dizendo que também batia nas crianças quando estava nas outras escolas pelas quais já passara, e que isso o divertia. Partilhava com o primo da Parati, um jovem de 22 anos, essas “aventuras”; trocavam eles confidências a respeito dessas “pequenas crueldades” e se divertiam. Contudo, a atitude de Mateus apenas legitimava o quanto ele próprio parecia apreciar a identidade de “retardado” e “agressivo”; identidade esta conquistada em seu trajeto pelas diferentes escolas que frequentou. Qualificado como incapaz, havia, pois, a possibilidade de Mateus assumir para si um lugar identitário que o envolvesse em segurança: o de que ele era um fracasso, legitimando-se também como sendo um “outro” incompetente e maléfico. Diante, pois, de situações como aquela, a professora Cláudia se viu na incômoda posição de ter que tocar numa diferença com a qual sentia não saber lidar. Ela, então, nos disse que “podiam tirar o Mateus daqui ou me darem uma aula sobre como lidar com ele”. Contudo, a aula que a professora Cláudia gostaria que existisse não aconteceu, pois, no viver uma experiência de estranhamento não há cartilhas que previnam qualquer pessoa das intensidades que forçam passagens na composição de diversas, e tantas vezes incômodas, expressões. Assim, a emergência do estranho torna impossível a absolutização da “mesmidade”, pois ele pode vir a romper os limites do que é semelhante ou idêntico, inaugurando abruptos movimentos no existir.
Dessa forma, naquele mesmo dia, depois que a cantineira foi embora e as crianças pareciam mergulhadas no silêncio de um exercício de Matemática, um abrupto movimento ganhou vida na sala.Mateus havia se levantado de sua carteira e se dirigiu a um colega a fim de confessar a ele que durante aquele recreio havia dado um beijo na boca de Priscila, sua colega de turma.A afirmação de Mateus fez com que a sala começasse a se movimentar, o silêncio se fragmentou e os alunos passaram a rir de Priscila que, sentada em sua carteira, pôs-se, em revolta, a dar explicações sobre o fato narrado por Mateus. Luana, outra aluna da turma do 5º ano, foi ao socorro da amiga e disse a Priscila para não se importar, pois Mateus já havia falado o mesmo sobre ela. De repente Priscila começou a chorar e todos se calaram. Naquele momento, entre as lágrimas de Priscila e o silêncio dos demais, a professora Cláudia interveio: “O que está acontecendo aí? Mateus, vá se sentar no seu lugar. Por que Priscila está chorando?”. Depois de explicarem para a professora o que havia acontecido na sala, Cláudia proferiu a seguinte frase em direção a Priscila: “Deixe de ser boba menina! Você sabe que é mentira de Mateus; todo mundo sabe!Afinal, quem quer ficar com ele?”.
Considerando os trânsitos de Mateus pelas instituições escolares que também não quiseram “ficar com ele”, temos que a afirmação da professora ia além da situação descrita entre Priscila e Mateus. O que ela afirmou era uma condição de estranhamento e exclusão de uma criança que não se encaixava em um ritmo social e estético definido como adequado. Assim, temos que Mateus tendia a se bater contra os modos hegemônicos de expressão discente daquela sala e igualmente daquela escola, fazendo com que a instituição estivesse sensível a qualquer ação desviante do mesmo e, consequentemente, disposta a expulsá-lo frente a qualquer contratempo mais grave. Em outras palavras, “a mesmidade da escola proíbe a diferença do outro” (SKLIAR, 2003, p. 46), e Mateus, encarnando-se no papel do “outro maléfico”, efetivamente acabou por oferecer motivos mais do que concretos que justificassem sua expulsão daquela escola.
Tal expulsão se processou em uma tarde de quarta-feira, em que a calma no ambiente dava aos presentes a impressão de que tudo parecia estar em seu lugar. As crianças foram para as salas e, durante as aulas, Mateus estava quieto, mas desatento. Quando do recreio, porém, Mateus se pôs à porta do banheiro para “vigiar” os meninos do 1º ano. Percebendo que as crianças, a fim de brincar, dirigiam-se a um pequeno beco localizado na lateral do banheiro, Mateus as acompanhou e, de posse do estilete, disse a um dos meninos pequenos que iria matá-lo: colocou o objeto cortante no pescoço da outra criança e insinuou que lhe cortaria a garganta.
Naquele instante, algumas meninas da turma do 5º ano saíram do banheiro feminino e viram o momento em que Mateus segurava o estilete no pescoço do colega de escola. Ficaram, então, desesperadas, no mesmo momento em que as crianças menores também começaram a chorar e pediam para que Mateus não machucasse o colega. Foi quando uma cantineira passou pelo local e interviu naquela cena. Ao término do recreio, os(as) alunos(as) do 5º ano voltaram para a sala de aula em silêncio: conduta esta que não era rotina entre eles. Quando estavam já na sala, Cláudia pediu que Mateus lhe contasse onde estava o estilete que ele levara para a escola: “meu filho, você precisa me contar onde está, caso contrário eu não vou poder te ajudar. Isso é muito sério.” O jovem, entre intimidado e assustado, retirou da mochila o estilete que trouxera de casa, sendo, em seguida, conduzido à secretaria da escola. Daquele momento em diante, ele não mais voltou a frequentar aquela instituição. E naquele dia, ao final da aula, a professora Cláudia resolveu dar um conselho à turma, dizendo que:
[...] provavelmente Mateus não irá voltar para essa escola; o que ele fez foi muito grave. Eu aconselho vocês a não contarem a ninguém (de menos a seus pais) o que aconteceu aqui. E se encontrarem com Mateus na rua, não conversem com ele; fiquem longe dele. Ele é muito perigoso!
De fato, a manifestação agressiva de Mateus naquela ocasião pôs em risco a integridade física dos colegas e não podemos negar que o fato gerou muitas preocupações concernentes à questão da violência na escola. Contudo, não houve maiores apurações do acontecido, sendo que Mateus foi imediatamente fixado como pessoa agressiva e socialmente disfuncional. Se houve alguma mínima apuração, esta se deu na delegacia de polícia, onde os pais dos alunos envolvidos tiveram que se dirigir à mesma para prestarem esclarecimentos sobre o ocorrido.
Se a circunstância do estilete foi séria o suficiente para que aquela criança fosse repelida do ambiente escolar, os movimentos existenciais de Mateus já colocavam incômodos à instituição e ele já se configurava como sendo uma expressão excluída antes mesmo de dar a todos os motivos concretos para que tal expulsão fosse efetivada. Mas quando pensamos na breve trajetória de Mateus por aquela escola, temos que igualmente problematizar que um processo de exclusão - como este relatado - possui muitos protagonistas e contextos, não podendo ser reduzido às características individuais daquele que foi expulso do convívio.
Dessa maneira, tal exclusão não pode também recair em fácil culpabilização de professores e gestores escolares; ou mesmo centrar fogo nas famílias, em seus arranjos diversos, tramados em diversificadas negociações de limites relacionais. Falar sobre a exclusão de Mateus envolve também colocar em questão o próprio processo da construção de diagnósticos psicológicos e os contextos nos quais eles são fabricados, pois, quando não articulados à complexidade social dos envolvidos, tais diagnósticos podem sentenciar crianças a carregarem consigo uma marca desqualificadora difícil de ser apagada no futuro. Consequentemente, falar sobre a exclusão de Mateus, envolve também discutir elementos não abordados neste trabalho, como o meio social e familiar do qual aquela criança emerge: meio este tramado em relações de famílias de camadas populares, vivendo em situação de baixa renda e igualmente de baixa perspectiva de estudo.
Falar sobre a exclusão de Mateus envolve discutir um projeto de sociedade, onde as condições econômicas de uma população priorizam escolhas coletivas em que a escola e a própria educação são vistas como secundárias diante das urgências pela sobrevivência a que muitas famílias - vivendo em precariedade social e econômica - são lançadas. Portanto, problematizar uma exclusão se compromete no debruçar sobre questões que vão muito além da instituição escolar e está longe de ser responsabilidade unicamente de um agente específico.Isso porque a educação, entendida como um processo complexo de ampliação de modos de pensar e possibilidades de viver,está envolvida com o fomento de investimentos sociais amplos: seja na estrutura das escolas, na formação dos professores, na melhoria salarial dos docentes, no questionamento de lógicas biologizantes crescentes entre agentes sociais (como entre alguns pedagogos, psicólogos e médicos que abraçam, com pouca problematização social, um discurso depatologização/medicalização da infância e da adolescência, na busca de maior “controle de sala”); no fortalecimento das associações de bairro, na melhoria da perspectiva de vida das famílias; na construção de possibilidades sociais a todos. Essa ampliação de possibilidades coletivas conversa com a ampliação também de maneiras de pensar as comunidades e os “outros” em sua alteridade. Pois quem se nutre em perspectivas limitadas de mundo tende a só enxergar como possibilidade o horizonte de suas próprias limitações.