INTRODUÇÃO
O estudo da educação para as relações étnico-raciais (Erer) faz parte de um conjunto de temas dos quais se ocupa a formação inicial e continuada de professores/as, especialmente a pensada para a educação básica. A diversidade étnico-cultural brasileira presente no contexto da educação escolar tem suscitado discussões diversas entre os/as professores/as, sendo entendida como um dos principais eixos da experiência humana (BRASIL, 2014). Pensá-la a partir da produção científica, especialmente em artigos no período de 2015 a 2019, parece-nos algo imperioso no contexto político-educacional contemporâneo.
Como sugere Jamil Cury (2008), a educação básica é um direito, uma vez que a formação escolar se apresenta como imprescindível para o desenvolvimento de cidadãos/ãs e para o acesso a diversos direitos sociais. O direito à cidadania é assegurado, entre outros modos, por meio de uma educação comum, indispensável para o exercício da cidadania e para a preparação para o trabalho de forma digna e legítima (BRASIL, 1996; 2013). Sendo assim, educação comum deve necessariamente comprometer-se com uma abordagem que reflita a temática da diversidade étnicocultural brasileira como algo intrínseco à sociedade brasileira.
A despeito dessa temática ser parte crucial para tratar a diversidade na escola básica, a sua importância extrapola as dimensões do ensino e da aprendizagem no contexto da sala de aula. É imperativo discutir também a formação inicial de professores/as, profissionais que devem saber lidar pedagogicamente com a diversidade étnico-cultural, conforme proposto por Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e Nilma Lino Gomes (2002) e Nilma Gomes (2012). Apesar dessa sabida importância, na prática temos verificado que a educação básica está longe de explorar devidamente tal discussão, sobretudo quando há interesses de grupos hegemônicos em impor ao contexto escolar uma única narrativa sobre a diversidade étnico-racial. Tal narrativa insiste em manter “privilégios e desvalorizar saberes” (PEREIRA, 2013). Considerando essa conjuntura, percebemos a necessidade de uma problematização persistente sobre as significações acerca da educação para as relações étnico-raciais, especificamente no que diz respeito às produções encontradas na literatura especializada, com objetivo de identificar as suas contribuições para o avanço do tratamento dessa temática no Brasil. Essa é a proposta desse artigo.
Mauro Coelho e Wilma Coelho (2014, p. 365) consideram que, no contexto da educação básica, após a promulgação das Leis n. 10.639/2003 e n. 11.645/2008, uma alteração na abordagem às questões étnico-raciais, com vista à adoção de uma perspectiva prática, que vá além dos conteúdos, pressupõe “[...] incorporar agentes e processos desprezados ou subdimensionados nas narrativas que dizem respeito à conformação do Brasil e da nacionalidade”. Segundo Miguel Arroyo (2011), essa abordagem é mandatória em um país como o Brasil, uma vez que a escola se constitui como um “espaço plural de direitos à cidadania”, à aprendizagem, ao acesso aos bens culturais e à socialização de diferentes histórias de vida e respeito à diversidade. Desse modo, devemos construir um ambiente no qual esse debate permaneça sempre ativo, pois as diversas narrativas devem ser respeitadas.
Para essa produção, propusemos uma análise de artigos produzidos no período de 2015 a 2019, publicados em periódicos da área educação, que discutam as significações (NEVES, D. R. et al, 2018) acerca do tema da educação para as relações étnico-raciais nos currículos brasileiros. Para tanto, valemo-nos das recomendações teórico-metodológicas de Laurence Bardin (2016) e Menga Lüdke e Marli André (1986) e, no que diz respeito à diversidade étnico-cultural, às reflexões de Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e Nilma Lino Gomes (2002) e Nilma Gomes (2012). Pretendemos ainda refletir sobre a ampliação desses estudos para a compreensão da escola básica, especificamente em relação à educação para as relações étnico-raciais1 . A metodologia adotada é de abordagem qualitativa. Foram também adotadas como base a literatura especializada e a legislação educacional vigente para a definição das categorias centrais do estudo, dimensionadas como desdobramentos temáticos apresentados a seguir. O período objeto desse artigo (anos de 2015 a 2019) é relevante, pois demarca a importância da constante sistematização e análise dos artigos sobre o tema, a exemplo da pesquisa “Educação das relações étnico-raciais: o estado da arte”, de Paulo Vinícius Baptista da Silva, Kátia Regis e Shirley Aparecida de Miranda (2018), que analisou a produção acadêmica com base no período de 2003 a 20142 . Desse modo, o período selecionado para a reflexão nesse artigo (2015 a 2019) insere-se na perspectiva da constante necessidade de balanço crítico acerca da produção sobre o tema para que seja possível: a) a verificação das temáticas recorrentes na área; b) a identificação das possibilidades de temas para a realização de novas investigações; e c) a apreensão das recomendações dessa produção para a implementação da Lei n. 10.639/2003.
Considerando o objetivo estabelecido, entre os meses de abril e junho de 2019, analisamos 23 artigos produzidos nos anos de 2015 a 2019. O levantamento foi feito tendo como base de dados fundamental a plataforma de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Foram 16 as revistas que compuseram o corpus empírico: Revista Teias;Revista África e Africanidades; Currículo sem Fronteiras; Revista ABPN; Cadernos de Educação; Contrapontos; Práxis Educacional; Revista E-Curriculum; Revista de Educação Popular; Revista HISTEDBR; Cadernos da Pedagogia; Linhas Críticas; Padê: Estudos em Filosofia, Raça, Gênero e Direitos Humanos; Poiésis; Reflexão e Ação; e Revista Didática Sistêmica.
Foram utilizadas as seguintes palavras-chave: “interculturalidade”, “currículo” e “relações étnico-raciais”; “diversidade étnico-racial”; “africanidades” e “currículo”; “História e cultura africana e afro-brasileira”, “Lei n. 10.639/2003”; “Lei n. 11.645/2008”; “Educação escolar quilombola”; e “currículo decolonial”. Essa diversificação de palavras-chave tem sido usual no campo da pesquisa em educação para as relações étnico-raciais no contexto dos currículos. Além disso, nesse levantamento, esse número expressivo de termos e expressões teve o propósito de alcançar maior precisão na abrangência da empiria no período considerado.
Para o desenvolvimento do processo de análise, estabelecemos as seguintes etapas: a) levantamento e leitura completa dos artigos; b) organização dos artigos em planilha do programa Microsoft Excel, com os dados essenciais dos trabalhos (autor/a/es/as), título e qualificação das revistas, palavras-chave do artigo, link e ano de publicação); c) sistematização e organização dos artigos à luz da análise de conteúdo de Laurence Bardin (2016); e, por fim, d) definição de três categorias a partir da leitura dos artigos, de acordo com diferentes desdobramentos temáticos: 1) relações interpessoais no cotidiano escolar; 2) educação para as relações étnico-raciais e práticas curriculares; 3) educação para as relações étnico-raciais e formação de professores/as. Verificouse, ainda, a predominância de artigos da autoria de mulheres.
Esse artigo adota as ponderações teórico-metodológicas utilizadas por Paulo Vinícius Baptista da Silva, Kátia Regis e Shirley Aparecida de Miranda (2018) para o encaminhamento reflexivo da empiria aqui desenvolvida. Reiteramos que, para a sistematização, organização e análise dos dados, inspiramo-nos nos trabalhos de Menga Lüdke e Marli André (1986) e Laurence Bardin (2016). Além dessa introdução e das considerações finais, o artigo está organizado em outras três seções, com os três desdobramentos elencados anteriormente.
ESPECIFICANDO A LEITURA ANALÍTICA DOS ARTIGOS
Para o esquadrinhamento sistemático dos 23 artigos analisados, baseamo-nos, tal como Paulo Vinícius Baptista da Silva, Kátia Regis e Shirley Aparecida de Miranda (2018), em alguns dos encaminhamentos realizados em uma pesquisa voltada para o estado da arte sobre a educação para as relações étnico-raciais no Brasil. No que diz respeito ao ano de produção desses artigos, metade deles foi produzida em 2015; a outra metade encontra-se distribuída entre os anos de 2016 e 2019. Em relação à qualificação dos periódicos de acordo com o sistema de classificação da Capes, há um predomínio do Qualis B2, atribuído a dez artigos, seguido do B1, com cinco. Três artigos são Qualis B3, um é A1, e dois são A2. Há ainda uma produção B4 e uma B5. Nessas produções, encontramos 24 autoras e 14 autores. Nesse estudo, voltamos a nossa atenção para os seguintes aspectos: abstração - quando existente - dos agentes mobilizados na elaboração dos artigos; objetivos; aporte teórico; e principais resultados e desafios.
Com base nos resultados encontrados nos artigos publicados no período compreendido entre 2015 a 2019 sobre a temática educação para as relações étnico-raciais, fazemos eco às pontuações de Nilma Gomes (2012) e de Paulo Vinícius Baptista da Silva, Kátia Regis e Shirley Aparecida de Miranda (2018), autores segundo os quais, a despeito dos avanços havidos após a promulgação e a regulamentação da Lei n. 10.639/2003 nos estabelecimentos de ensino, faz-se necessária uma reflexão permanente para a ampliação da visibilidade dos estudos e pesquisas sobre tal temática, para possibilitar a efetivação da legislação vigente nas práticas pedagógicas no âmbito da escola básica e na educação superior. Tal orientação norteará os três desdobramentos temáticos apresentados a seguir, estabelecidos para analisar a empiria que compõe os 23 artigos científicos.
Desdobramento temático 1: Relações interpessoais no cotidiano escolar
A ampliação de estudos sobre as relações interpessoais no cotidiano escolar relaciona-se à reflexão permanente desenvolvida por estudos anteriores e por oito dos artigos analisados, os quais desenvolvem uma abordagem dos seguintes tópicos: concepções docentes sobre as relações étnico-raciais (OLIVEIRA, 2015); Educação para as relações étnico-raciais nas experiências escolares (MOREIRA, BILHÃO, 2018); interações socioculturais e educacionais cotidianas de crianças negras (BOTEGA, 2015); interações sociais entre crianças negras e brancas na educação infantil (RIBEIRO, SANTOS, 2017); discriminação racial de crianças negras e pobres nos espaços escolares (MOREIRA, AGUIAR, 2015); discriminação racial no cotidiano de creches e pré-escolas (AGUIAR, PIOTTO, CORREA, 2015); interações sociais e escolares entre crianças quilombolas (PAULA, NAZÁRIO, 2017); práticas escolares, superação do racismo e direitos humanos (AZEVEDO, OLIVEIRA, 2017).
Os agentes investigados nesses trabalhos são professores/as e alunos/as. Esses agentes figuram, quase sem exceção, como interlocutores/as ativos/as dos processos dessas pesquisas. Além disso, as crianças estão em evidência na maioria dos artigos. Contudo, não se trata de quaisquer crianças; são principalmente abordadas aquelas que, nos contextos socioculturais e educacionais estudados, ainda sofrem discriminação racial e preconceitos diversos, em especial as moradoras de comunidades quilombolas. Ao promoverem um trabalho com esses agentes, em especial crianças negras de creches e da educação infantil, e ao problematizarem o autoconceito de crianças negras no contexto escolar, a partir de interações cotidianas, os trabalhos representam um avanço no campo dos estudos sobre educação para as relações étnico-raciais. Nesses contextos sociais e culturais é que se inicia a formação escolar dessas crianças, mediadas por professores/as com formação consubstanciada para lidar com a Erer e enfrentar pedagogicamente a complexidade requerida no início da formação escolar.
Nos objetivos dos artigos estudados, emergem com grande expressividade os conflitos étnico-raciais e as tensões nas relações de igualdade e de diferença nas subjetividades e nas concepções dos/as professores/as e de estudantes sobre a educação para as relações étnico-raciais. Os trabalhos abordam questões como o autoconceito de crianças negras moradoras de comunidades quilombolas; a escuta de crianças pobres e negras sobre as formas de discriminação racial vivenciadas no espaço escolar; situações de discriminação e preconceito vivenciadas na educação infantil; o debate sobre o racismo no contexto educativo enquanto um problema de direitos humanos; as interações sociais e as relações étnico-raciais entre crianças negras e brancas em sala de aula; e as relações educativas e o lugar ocupado pelas crianças pequenas moradoras de comunidades quilombolas. Essas questões são abordadas a partir de um diálogo com a literatura especializada e com a legislação educacional vigente para a diversidade, seja na escola ou em contextos socioculturais diversos.
Nos artigos contemplados nesse desdobramento temático, alguns conceitos e autores/as se fizeram bastantes presentes nas discussões propostas. Entre eles, destacamos: cotidiano, abordado a partir de Michel de Certeau; crianças e relações raciais, a partir de Eliane Cavalleiro, Lucimar Dias, Rita de Cássia Fazzi, Fúlvia Rosemberg, Paulo Vinícius Baptista da Silva e Gizele Souza; cultura, a partir de Clifford Geertz; currículo em diversas dimensões epistemológicas, a partir de Tomaz Tadeu da Silva; diferença, sob diversas perspectivas epistemológicas, mas especialmente a partir de Boaventura de Sousa Santos e Carlos Skliar; discurso, a partir de Mikhail Bakhtin; educação e relações étnico-raciais, a partir de Wilma de Nazaré Baía Coelho e Nicelma Josenila Soares, Nilma Lino Gomes e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva; estudos sobre etnografia da prática escolar, a partir de Marli André; formação humanista, a partir de Paulo Freire; gênero, a partir de Guacira Louro; identidade, a partir de Nilma Lino Gomes; infância, a partir de William Corsaro, Sonia Kramer e Lev Vygostsky; racismo, preconceito e desigualdades, a partir de Roger Bastide, Florestan Fernandes, Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, Carlos Hasenbalg, Oracy Nogueira e Edward Telles; e reforma educacional, a partir de Richard Bowe, Stephen J. Ball e Anne Gold.
Ressaltamos a existência de uma diversidade epistemológica no corpus teórico utilizado pelas/os autoras/es dos oito artigos que compõem esse desdobramento temático. Nas reflexões apresentadas, as questões estruturais acerca dos conceitos encontram guarida na literatura especializada. Contudo, no que diz respeito aos contextos analisados, as especificidades dessas pesquisas necessitam de um diálogo de maior densidade entre a literatura e as dimensões apresentadas pela empiria, principalmente quando se trabalha com relações interpessoais no cotidiano escolar.
Os resultados e desafios encontrados nos oito artigos não diferem dos de outras pesquisas. Em relação aos resultados, destacamos os seguintes aspectos: os estudos sobre a educação para as relações étnico-raciais são relevantes para o enfrentamento à discriminação e ao preconceito em âmbito escolar; verifica-se a necessidade de uma ampliação no trabalho com a formação inicial e continuada de professores/as; devem ser ampliados os estudos sobre uma educação antirracista; há a necessidade de ampliação e valorização de uma educação escolar quilombola; e as ações relacionadas a estratégias pedagógicas de aproximação e interlocução em diferentes contextos socioculturais nos quais crianças negras transitam devem também ser ampliadas. Como desafios, os/as autores/as ressaltam a necessidade de uma ampliação das produções para o trato da temática da educação para as relações étnico-raciais na educação infantil, foco da maioria dos artigos e, também, no ensino fundamental. Eles reiteram, ainda, a urgência de uma educação atenta à diversidade étnico-racial no âmbito escolar em todos os níveis de ensino.
Desdobramento temático 2: Educação para as relações étnico-raciais e práticas curriculares
Nesse desdobramento temático, analisamos nove artigos que fundamentam seus argumentos a partir da legislação educacional para a diversidade. Os seguintes tópicos foram identificados: propostas das Diretrizes Curriculares Nacionais voltadas para a Educação para as Relações Étnico-raciais, para o ensino da História e cultura afro-brasileira e africana e o Programa Mais Educação (BRITO, 2015); implementação da disciplina História da cultura afro-brasileira (EUGÊNIO, SANTOS, SOUZA, 2016); a educação para as relações étnico-raciais e o ensino de ciências na educação infantil (FERRARO, DORNELLES, 2015); redes sociais e educação para as relações étnico-raciais e interculturalidade (FONSECA et al., 2018); ensino de História e cultura africana e afro-brasileira e identidade negra (SILVA JR., SILVA, 2016); sociologia e educação emancipatória (LIMA, 2015); cultura africana e literatura infantil (RAMOS, AMARAL, 2015); unidade curricular e relações étnico-raciais na educação superior (ROQUE, VIEIRA, 2017); e afrocentricidade e educação intercultural crítica (SANT’ANA, SUANNO, CASTRO, 2019).
Em relação aos agentes envolvidos, os professores/as e os/as estudantes respondem a chamada, com destaque para os/as do ensino fundamental, da educação infantil e da educação superior. As instituições públicas municipais destacam-se entre produções que retratam a realidade de diferentes estados da federação, como Bahia, São Paulo e Minas Gerais. Os seguintes objetivos foram localizados: identificar as possibilidades do ensino da História e cultura africana e afrobrasileira em diferentes áreas de conhecimento; analisar a representação da cultura africana na literatura infantil; discutir obras literárias sobre a educação para as relações étnico-raciais na infância; desenvolver e analisar uma sequência didática no ensino de História; identificar possibilidades de trabalho com a educação para as relações étnico-raciais no ensino de ciências para crianças; discutir a inclusão da disciplina de História e cultura africana e afro-brasileira nos currículos brasileiros; discutir a implementação da unidade curricular das relações étnico-raciais e cultura afro-brasileira na educação superior; analisar perspectivas epistemológicas e desenvolver uma problematização dos currículos hegemônicos; analisar como as aulas de sociologia podem promover uma educação emancipatória; e, por fim, problematizar o paradigma da afrocentricidade para a construção de uma educação intercultural crítica.
Quanto ao aporte teórico e à literatura especializada, destacamos a presença da professora Nilma Lino Gomes - trata-se de uma autora onipresente nos textos analisados. Ressaltamos ainda a abordagem aos seguintes conceitos: afrocentricidade, a partir de Elisa Nascimento e Renato Nogueira; currículo, a partir de Tomaz Tadeu da Silva, Ivor Goodson, Alice Casimiro e Elisabeth Macedo; diferença, multiculturalismo e diversidade; a partir de Anete Abramowicz e Vera Candau; educação para as relações étnico-raciais, a partir de Raquel Amorim e Wilma Coelho, Wilma Coelho e Mauro Coelho, Rosângela Silva e Wilma Coelho, Franklin Thijm e Wilma Coelho; escola e juventude, a partir de Juarez Dayrell; identidade, a partir de Stuart Hall; identidade negra, a partir de Kabengele Munanga e Gislene Aparecida dos Santos; interculturalidade, a partir de Catherine Walsh e Reinaldo Fleuri; relações raciais no Brasil e racismo, a partir de Roberto DaMatta, Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, Gilberto Freyre, Antônio Sérgio Guimarães e Carlos Hasenbalg; sociedade em rede e mídias digitais, a partir de Manuel Castells e Luís Martino.
A literatura especializada tem sido pródiga em pontuar a relevância do trabalho de professores/as no sentido de problematizar a educação eurocêntrica para o enfrentamento da discriminação e dos preconceitos nos diversos contextos sociais. Os trabalhos incluídos nesse desdobramento temático reafirmam o compromisso com tal premissa. Além de assumirem uma postura otimista, apesar das dificuldades de implementação da Lei n. 10.639/2003, os/as autores/as reafirmam a possibilidade de desenvolvimento de um conjunto de ações, estratégias, projetos e pesquisas que promovam a subversão de uma narrativa monolítica e pouco inclusiva.
Desdobramento temático 3: Educação para as relações étnico-raciais e formação de professores/as
Esse desdobramento temático agrupa seis artigos, que se reportam a todos os níveis, etapas e modalidades de ensino, guardando entre si, como similaridade, o fato de problematizarem a formação inicial e continuada de professores/as para a educação para as relações étnico-raciais como aspecto relevante para pensar um ensino antirracista. Os tópicos abordados foram os seguintes: manual didático e estratégias para o ensino de História e cultura afro-brasileira (FELIPE, MOREIRA, 2019); formação inicial de professores, prática intercultural e relações raciais (SOUZA, FRETZNER, 2016); currículos e relações étnico-raciais na educação superior (CARDOSO, CASTRO, 2015); educação étnico-racial e infância (DIAS, 2015); formação de professores e relações étnico-raciais na educação infantil (AGUIAR, PIOTTO, CORREA, 2015); e formação de professores, relações étnico-raciais e produção científica (COELHO, 2018).
Os agentes participantes das pesquisas foram crianças e jovens do ensino fundamental, professores/as da rede pública, estudantes de graduação e professores/as da educação superior. Os objetivos estão ligados à exploração dos seguintes tópicos: questões relacionadas à temática étnico-racial por meio de materiais didáticos direcionados aos professores/as; ampliação da formação inicial de estudantes de licenciaturas com base em práticas interculturais críticas; problematização da educação para as relações étnico-raciais tratada nos cursos de pedagogia; promoção da igualdade étnico-racial em escolas de educação infantil; e compreensão da literatura especializada sobre a educação para as relações étnico-raciais e formação de professores/as em artigos, teses e dissertações.
No que diz respeito ao aporte teórico, destacamos alguns conceitos e autores/as presentes nesses seis artigos: cultura, multiculturalismo e currículo, a partir de Ana Canen e Antonio Flavio Barbosa Moreira, Tomaz Tadeu da Silva e Michael Apple; campo científico, a partir de Pierre Bourdieu; representação, a partir de Roger Chartier; análise de conteúdo, a partir de Laurence Bardin; raça, racismo e cultura africana e afro-brasileira, a partir de Giralda Seyferth, Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, Kabengele Munanga e Lilia Schwarcz; ensino de História, a partir de Hebe Maria Mattos; interculturalidade e educação, a partir de Vera Candau, Reinaldo Fleuri e Catherine Walsh; formação de professores, produção acadêmica e políticas docentes, a partir de Bernardete Angelina Gatti, Marli André e Iria Brzezinski; formação de professores e relações raciais, a partir de Iolanda de Oliveira, Nilma Lino Gomes, Wilma Coelho, Wilma Coelho e Mauro Coelho, Maria Lúcia Müller e Luiz Fernandes de Oliveira e Vera Candau; educação para as relações raciais e infância, a partir de Eliane Cavalleiro; Fúlvia Rosemberg e Lucimar Rosa Dias; educação étnico-racial e escola, a partir de Fúlvia Rosemberg e Regina Paim e Marcelo Paixão; política da branquidade e branquitude, a partir de Henry Giroux e Maria Aparecida Bento.
Os resultados e desafios apresentados nos seis artigos estão de acordo com os principais aspectos da relação entre o referencial teórico adotado pelas/os pesquisadoras/es e as ações metodológicas das pesquisas. Uma possível síntese desses resultados pode ser formulada do seguinte modo: sob o eco da literatura especializada, os trabalhos enfatizam que a educação para as relações étnico-raciais tem sido efetivada parcialmente no âmbito escolar. Tal lacuna se deve, ainda, à ausência de uma discussão consubstanciada sobre a temática e, por conseguinte, sobre a legislação educacional a respeito da diversidade nos cursos de formação inicial de professores/as e nos documentos orientadores da escola básica. A fragilidade do não enfrentamento dessa temática em âmbito macro e micro, desde a formação inicial até o “chão da escola” resulta em ações discriminatórias de toda ordem. Desse modo, reitera-se a relevância de ampliação de campos educativos para a discussão da interculturalidade crítica nos processos de formação inicial e continuada, com vista à criação de um projeto educativo emancipatório que enfrente o preconceito e a discriminação com a formação de uma pedagogia antirracista na escola.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os trabalhos analisados oferecem importantes elementos para a reflexão acerca da implementação da Lei n. 10.639/2003, tanto na formação inicial quanto continuada, como também à consolidação de uma educação antirracista que integre, respeite e valorize a diversidade étnicocultural. De modo recorrente, os 23 artigos problematizam a perspectiva curricular eurocêntrica e evidenciam os limites para o desenvolvimento de uma educação antirracista em diferentes aspectos: nas práticas curriculares, na formação de professores/as e nas relações interpessoais no cotidiano escolar. Esse estudo mostra que, a despeito do arcabouço legal que determina a obrigatoriedade do ensino da História e cultura africana e afro-brasileira, ainda há muitos desafios para que as instituições educacionais realizem efetivamente o ensino da temática para propiciar práticas curriculares interculturais e o reconhecimento e a valorização da diversidade étnico-racial do Brasil. Desse modo, destacamos algumas das inflexões, dos desafios e dos resultados encontrados nos artigos científicos analisados:
o cotidiano escolar revela-se um momento fértil para o desenvolvimento das relações interpessoais e aponta para a necessidade da construção da identidade de crianças negras e crianças não negras, com base em uma pedagogia antirracista, sem a reiteração de estereótipos;
os estudos sobre a educação para as relações étnico-raciais são relevantes para o enfrentamento da discriminação e do preconceito em âmbito escolar; identifica-se a necessidade de ampliação dos trabalhos voltados para a formação inicial e continuada de professores/as e para os estudos sobre uma educação antirracista. Verifica-se, ainda, a necessidade de ampliação e valorização de uma educação escolar quilombola e de ações relacionadas a estratégias pedagógicas de aproximação e interlocução em diferentes contextos socioculturais nos quais crianças negras transitam;
sobre a “imperiosidade” (GATTI, 2008, p. 83) do trabalho com professores/as no sentido de problematizar a educação eurocêntrica para o enfrentamento da discriminação e dos preconceitos nos diversos contextos sociais, há motivos para uma postura otimista, pois, apesar das dificuldades de implementação da Lei n. 10.639/2003, existe um conjunto de ações, estratégias, projetos e pesquisas que promovem a subversão de uma narrativa monolítica e pouco inclusiva;
a educação para as relações étnico-raciais tem sido efetivada parcialmente no âmbito escolar; tal lacuna se deve à ausência de uma discussão consubstanciada acerca da temática e, por conseguinte, da legislação educacional sobre a diversidade nos cursos de formação inicial de professores/as e nos documentos orientadores da educação básica. A fragilidade desse não enfrentamento em âmbito macro e micro, desde a formação inicial (COELHO, W., 2005) até o “chão da escola”, implica ações discriminatórias de toda ordem;
a importância da discussão acerca da interculturalidade crítica nos processos de formação inicial e continuada, com vista à criação de um projeto educativo emancipatório, que enfrente o preconceito e a discriminação, por meio de formação de uma pedagogia antirracista na escola;
a formação inicial e continuada exige a revisão das propostas das disciplinas pedagógicas, notadamente em relação à graduação e à pós-graduação. Em relação a esta, é imprescindível que os objetos pesquisados nos níveis lato sensu e stricto sensu reflitam os problemas reais da educação básica. Isso deve ser feito, de maneira especial, por intermédio da ampliação dos investimentos às agências de fomento à pesquisa e de aumento das linhas de pesquisas nos programas de pósgraduação, inclusive, das que estão em andamento. Rever currículos, repensar pesquisas, problematizar aportes, criticar lugares consagrados, desafiar os cânones são algumas das ações para fazer frente a esse desafio (COELHO, W., 2018).
As temáticas aqui abordadas convidam-nos a interpelar o nosso tempo, com vista a “[...] alterar visões de mundo, redimensionar a memória, criticar mitos e enfrentar preconceitos” (COELHO, W., COELHO, M., 2013, p. 71). A problematização dessas temáticas nunca esteve tão viva e proeminente nos debates e estudos em todos os âmbitos da formação inicial e continuada de professores. Os seus reflexos na escola são cada vez mais evidentes e, por conseguinte, nas trajetórias escolares de crianças e adolescentes negros e negras. Miguel Arroyo (2011, p. 3) alertou para a impossibilidade de atribuir fragilidades, de qualquer ordem, aos/às alunos/as e aos seus coletivos, sem que questionemos “[...] o sistema, suas estruturas, seus ordenamentos, suas lógicas, seus rituais e seus valores reprodutores e legitimadores das desigualdades sociais, raciais, de gênero, campo, periferia”, para que evitemos o “risco de uma história única” (ADICHIE, 2019). Esse momento político-educacional e cultural mostra-se fértil para que consideremos a “imperiosidade” da chamada de Arroyo.