INTRODUÇÃO
A matrícula e o atendimento aos estudantes que apresentam comportamento superdotado1 são garantidos pelas políticas públicas de educação especial brasileiras, sendo que os primeiros escritos sobre a temática datam de 1929 (PÉREZ, 2004).
A Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008), caracteriza esses indivíduos como aqueles que:
[...] demonstram potencial elevado em qualquer uma das seguintes áreas, isoladas ou combinadas: intelectual, acadêmica, liderança, psicomotricidade e artes. Também apresentam elevada criatividade, grande envolvimento na aprendizagem e realização de tarefas em áreas de seu interesse. (BRASIL, 2008, p. 15).
No Brasil, não há um consenso sobre a terminologia e o referencial teórico adotado para conceituar a superdotação. Assim, dentre os diferentes modelos existentes, destacamos o Modelo dos Três Anéis (RENZULLI, 1986). Segundo o autor,
[...] [o] comportamento superdotado consiste em pensamentos e ações resultantes de uma interação entre três grupos básicos de traços humanos: habilidades gerais e/ou específicas acima da média, altos níveis de comprometimento com a tarefa e altos níveis de criatividade. Crianças que manifestam ou são capazes de desenvolver uma interação entre os três grupos requerem uma ampla variedade de oportunidades educacionais, de recursos e de encorajamento acima e além daqueles providos ordinariamente por meio de programas regulares de instrução (RENZULLI, 2014, p. 246).
Apesar de não ser uma temática nova, ainda é permeada por muitos mitos (WINNER, 1998; RECH, FREITAS, 2006). Ademais, existem ainda alguns fenômenos que se expressam em comportamentos similares aos apresentados por esses estudantes, como é o caso do Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH). A falta de informações faz com que esses estudantes não sejam identificados corretamente e, consequentemente, atendidos em suas necessidades.
No CID-11, em vigor a partir de 2020, o TDAH está colocado junto aos Distúrbios do Desenvolvimento Neurológico, nos Transtornos Mentais, Comportamentais e do Neurodesenvolvimento, e é caracterizado por:
[...] um padrão persistente (pelo menos 6 meses) de desatenção e / ou hiperatividade-impulsividade, com início durante o período de desenvolvimento, tipicamente no início até a metade da infância. O grau de desatenção e hiperatividade-impulsividade está fora dos limites da variação normal esperada para a idade e o nível de funcionamento intelectual e interfere significativamente no funcionamento acadêmico, ocupacional ou social. Desatenção refere-se a dificuldade significativa em manter a atenção para tarefas que não fornecem um alto nível de estimulação ou recompensas frequentes, distração e problemas com a organização. A hiperatividade refere-se à atividade motora excessiva e às dificuldades de permanecer imóvel, mais evidentes em situações estruturadas que exigem autocontrole comportamental. Impulsividade é uma tendência a agir em resposta a estímulos imediatos, sem deliberação ou consideraç7o dos riscos e consequências (OMS, 2018, n. p.).
Muitas pesquisas ressaltam o fato de que professores tendem a observar os indicadores do transtorno, em detrimento da superdotação (WINNER, 1998; MOON, 2002; NEIHART, 2003; PÉREZ, RODRIGUES, 2013; MULLET, RINN, 2016), sendo que as práticas pedagógicas mais adequadas a cada um dos fenômenos são diferentes e podem ser até prejudiciais, se utilizadas de modo indiscriminado nesses indivíduos (MOON, 2002; NEIHART, 2003; OUROFINO, 2006).
Enfatizam, também, que muitos estudantes com comportamento superdotado não identificados desenvolvem condutas de desatenção e hiperatividade, pela falta de oportunidades educacionais (LOVECKY, 1999; WILLARD-HOLT, 1999), sem que realmente apresentem o TDAH.
Em contrapartida, constata-se uma aceitação cada vez maior na literatura do fato de que esses comportamentos também podem se apresentar associados no indivíduo, originando uma dupla excepcionalidade, a qual causa manifestações diferenciadas e forma um subgrupo dentro da população superdotada.
Nesse contexto, delimitar os fenômenos e considerar a possibilidade de dupla excepcionalidade demanda maior aprofundamento teórico e discussão, principalmente quando levamos em conta que a incidência desse transtorno em crianças com comportamento superdotado vem crescendo a uma taxa imprevista (WEBB, LATIMER, 1993; REIS, BAUM, BURKE, 2014), chegando essa a ser considerada como a mais negligenciada das subpopulações, entre os estudantes com comportamento superdotado (MOON, 2002).
Renzulli, Reid e Gubbins (1992) já chamavam a atenção para a necessidade de a área da educação ao superdotado priorizar o desenvolvimento de estudos sobre subpopulações especiais, por se tratar de um grupo bastante heterogêneo.
Com o objetivo de identificar e caracterizar o conhecimento científico sobre a associação da superdotação com o TDAH, o trabalho de revisão e sistematização da literatura se torna imperioso. “[...] A revisão sistemática é um método que permite maximizar o potencial de uma busca, encontrando o maior número possível de resultados de uma maneira organizada.” (COSTA, ZOLTOWSKI, 2014, p. 56).
PERCURSO METODOLÓGICO
A fim de proceder a essa revisão, seguimos os pressupostos de Costa e Zoltowski (2014), baseando-se em Akobeng (2005), os quais consistem: na delimitação da questão a ser pesquisada; escolha das fontes de dados; eleição dos descritores; busca e armazenamento dos resultados; seleção de artigos pelo resumo, de acordo com critérios de inclusão e exclusão; extração dos dados dos artigos selecionados e avaliação desses; e após essas etapas, concretização da síntese e mterpretação (AKOBENG, 2005).
Para a revisão bibliográfica, foram realizados levantamentos em cinco bases de dados: Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações – BDTD, Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, Portal de Periódicos do Scientific Eletronic Library Online – SciELO, Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde – LILACS - e na base de dados Education Resources Information Center – ERIC. Essas bases de dados foram selecionadas por apresentarem impacto e relevância no âmbito nacional e internacional.
Foram usados os descritores gifted e adhd, hyperactivity e attention deficit hyperactivity disorder2 em inglés, e também foram adotados “altas habilidades”, “superdotação”, “talento”, “dotação” e “precocidade”3, juntamente com o descritor “TDAH”, “transtorno de déficit de atenção/hiperatividade” e “hiperatividade”. Entre eles, foi utilizado o operador booleano “AND” e assim foram formadas dezoito strings4.
Como critérios de inclusão desta revisão, elencou-se: ter sido publicado no intervalo temporal de 2009 a 2018; possuir no assunto, título, resumo ou palavras-chave, os descritores citados; o objeto de análise ter sido a dupla excepcionalidade (superdotação e TDAH) ou a relação entre TDAH e superdotação; e finalmente, ser caracterizado como relato de pesquisa. Como critérios de exclusão, foram desconsiderados os livros, resenhas e ensaios teóricos, bem como os relatos de pesquisa presentes em mais de uma base de dados.
Os textos foram sistematizados em quadros de análises considerando-se o ano de publicação, os objetivos e resultados das pesquisas. Na sequência, as produções foram organizadas em categorias temáticas de acordo com o foco de estudo.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
O primeiro levantamento em bases de dados buscou por teses e dissertações. Dessa maneira, foram encontradas 102 produções. Destas, somente três contemplavam os critérios de inclusão e foram analisadas.
Nas buscas realizadas nos demais portais, foram encontrados 194 resultados, sendo 74 falsos positivos. Muitas das produções se repetiam nas diversas strings (90); assim, 33 foram consideradas para análise.
Do total de produções consideradas, 18 estavam disponíveis gratuitamente na internet. Quanto ao idioma de publicação, a maioria delas estava em inglês (21), oito em português, três em espanhol, uma em francés e uma em persa (resumo disponível em inglês). Com relação ao ano de publicação, os dados estão expostos na Figura 01.
Não foi encontrada nenhuma publicação referente ao ano de 2018, sendo 2012 o ano com maior número de publicações. Com relação ao tipo de publicação, foram levantados 26 artigos de periódicos científicos, cinco dissertações de Mestrado e duas teses de Doutorado.
Constatou-se que a revista que mais publicou na área foi a Roeper Review, veículo de quatro artigos. Os periódicos Parenting for High Potential, Gifted Child Quarterly e Gifted Education International foram responsáveis por duas publicações cada. Os outros periódicos foram local de publicação de uma única produção.
Das cinco dissertações, três tiveram origem em universidades estrangeiras (Universidade da Califórnia, Universidade de La Verne e University of Calgary) e duas na mesma universidade brasileira (Universidade Federal de São Carlos – UFSCar). Quanto às teses, uma foi defendida no Brasil, na mesma universidade das dissertações nacionais, mostrando que esse é um local que focaliza os estudos sobre a temática, em âmbito nacional. Destaca-se aqui a importância das universidades públicas brasileiras na produção do conhecimento científico. Uma tese foi defendida internacionalmente, na Universidade Nacional de Córdoba.
Após o levantamento, procedemos a uma exploração aprofundada do material e interpretação dos resultados. As produções passaram a integrar seis categorías temáticas, a saber: “Identificação”, “Avaliação”, “Atendimento”, “Revisão da Literatura”, “Habilidades Sociais” e “Características”. O número de produções em cada categoria está exposto na Figura 02 5.
A categoria “Identificação” acomodou nove produções. Nesta, foram alocadas as pesquisas que realizaram estudos empíricos de identificação, que versam sobre estratégias para identificar esse público-alvo e também sobre equívocos no processo.
Rinn e Nelson (2009) investigaram o potencial para erro diagnóstico de superdotação e TDAH. Os participantes foram 132 professores universitários e, em uma análise estatística, evidenciaram que a sugestão de superdotação é capaz de influenciar o diagnóstico de comportamentos que podem ser típicos dessa dupla excepcionalidade.
Concordando com esses achados, Rinn e Reynolds (2012) também consideraram a possibilidade de erro diagnóstico e advertiram sobre a escassez de dados empíricos para apoiar o relacionamento entre o TDAH e a sobre-excitabilidade (SE), comumente presente nos superdotados. Foram sujeitos 116 participantes de um programa de verão para superdotados de doze a 16 anos e, utilizando um questionário de avaliação específico para SE e também a escala Conners para identificação de características de TDAH, discutiram as relações entre os tipos de SE identificados e os padrões de TDAH (hiperativo/impulsivo, desatento ou misto). Os resultados indicaram uma relação significativa entre SE psicomotora e a subescala hiperativo/impulsivo do DSM-IV, entre a SE sensorial e o escore geral de TDAH e entre a SE imaginativa e os escores de desatenção. As autoras finalizaram enfatizando que falta ainda consciência e predisposição para avaliar comportamentos de superdotação, principalmente as manifestações de SE em sujeitos com indicativos de TDAH.
Niusha, Ganji e Sotodeh (2012) investigaram a prevalência de características de TDAH em estudantes com comportamento superdotado em uma província no Irã. Participaram da pesquisa 220 estudantes de diversas idades e instituições de ensino e com um QI de 127 ou mais. Por meio de um questionário de características, entrevistas e o teste Matrizes Progressivas de Raven constataram que, em média, 8% dos estudantes superdotados apresentaram indicadores de TDAH. Concluíram que as características de TDAH podem afetar o rendimento dos estudantes.
Irueste (2012) buscou identificar se estudantes designados como dispersos e hiperativos pelos professores apresentavam capacidades intelectuais diferenciadas. Participaram da pesquisa 37 docentes e 40 estudantes. Como resultados, identificaram pontuações superiores em inteligência, criatividade e motivação em 10% deles. Os professores reconheceram as dificuldades e falta de formação na temática e os resultados revelaram limitações no diagnóstico do TDAH.
Shive (2013) concebeu a possibilidade da dupla excepcionalidade e afirmou que, embora o TDAH possa ser superdiagnosticado em estudantes com comportamento superdotado, este e outros transtornos podem ser igualmente negligenciados nessa população. A autora ressaltou que muitos estudantes podem ter um desempenho suficientemente bom para mascarar suas dificuldades, mas isso os impede de atingir efetivamente seu potencial. Descreveu diagnósticos alternativos, estratégias para localizar um bom profissional para identificação e opções de atendimento.
Silva (2013) avaliou a frequência e o padrão de características de TDAH em indivíduos superdotados e sua relação com anomalias físicas menores. Os sujeitos da pesquisa foram 77 membros da Mensa6 Brasil. Foi identificada uma frequência de 37,8% de sujeitos com TDAH, e o número de anomalias físicas menores foi significativamente associado ao TDAH. Nesse fato, o autor apoiou a tese de que o TDAH é um transtorno de neurodesenvolvimento. Silva e Rodhe (2015), apresentaram os mesmos objetivos e resultados.
Reis, Baum e Burke (2014) afirmaram que, nas últimas três décadas, o número de estudantes duplamente diagnosticados empopulações superdotadas dobrou. Destacaram que esses estudantes estão em um grupo de risco para dificuldades sociais, emocionais e insucesso escolar e propuseram uma definição, para que os profissionais identificassem os alunos com dupla excepcionalidade e desenvolvessem programas para atender às suas necessidades.
Massuda (2016) verificou a presença de indicadores de superdotação em determinados estudantes diagnosticados com TDAH. Os participantes foram cinco profissionais do Centro de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi), três professoras do ensino fundamental I, com pelo menos um aluno com TDAH e indicado pelo CAPSi, três alunos diagnosticados com TDAH e 63 alunos sem diagnóstico. Foram identificados indicadores de superdotação em dois alunos com TDAH. A autora também avaliou e discutiu as atitudes sociais de professores em relação à identificação e ao desenvolvimento desses estudantes; com isso, constatou que a presença de atitudes sociais carregadas de mitos e crenças influencia a identificação e a forma como o processo de desenvolvimento da superdotação é concebido.
Ao analisar as produções, foi possível identificar que quatro delas (RINN, REYNOLDS, 2012; NIUSHA, GANJI, SOTODEH, 2012; SILVA, 2013; SILVA, RODHE, 2015) tiveram como foco a identificação de indicadores de TDAH em estudantes com comportamento superdotado; em contraponto, Massuda (2016) e Irueste (2012) focalizaram a identificação de indicadores de superdotação em estudantes com TDAH. Quatro investigações relacionaram esses indicadores com outro tópico de estudo, no caso de Rinn e Reynolds (2012), as sobre-excitabilidades; em Silva (2013) e Silva e Rodhe (2015), anomalias físicas menores, e, em Massuda (2016), atitudes sociais dos professores.
Rinn e Nelson (2009) realizaram um estudo empírico sobre os erros no diagnóstico, temática que vem gerando réplicas e tréplicas na literatura, os quais são muito comuns, quando se disserta sobre o objeto de estudo desta pesquisa.
Sobre esse assunto, Ourofino e Fleith (2005) consideraram que desconhecer a superdotação e suas especificidades leva ao diagnóstico de TDAH. Os trabalhos de Reis, Baum e Burke (2014) e Shive (2013) são produções que contemplaram estratégias para identificação e atendimento, portante, foram contabilizadas em ambas as categorias (“Identificação” e “Atendimento”).
Na categoria “Avaliação”, foram alocadas sete pesquisas, as quais versavam sobre avaliação de aspectos cognitivos e socioemocionais. Simões Loureiro et al. (2009) efetuaramum estudo com 45 crianças com alto potencial, divididas em dois grupos, de acordo com o perfil intelectual. Por meio de testes padronizados, avaliaram a atenção, funções executivas, memória de trabalho e as capacidades psicomotoras. Verificaram que há maior preponderância do TDAH, quando se apresenta um perfil intelectual desarmônico, ao passo que as crianças com alto potencial e TDAH revelaram um perfil neuropsicológico diferenciado, quando comparadas a crianças com alto potencial sem o TDAH.
Alloway e Elsworth (2012) compararam o desempenho em medidas de memória de trabalho verbal, visuo-espacial e habilidade geral (vocabulário e bloco design) de grupos de estudantes de alta, média e baixa capacidade intelectual. O perfil de estudantes de alta capacidade também foi cotejado com aqueles com diagnóstico clínico de TDAH. Os quatro grupos de estudantes totalizaram 211 participantes. Os pesquisadores constataram que o desempenho de memória de trabalho foi superior nos alunos de alta capacidade, quando comparados com os grupos de capacidade baixa e média, embora a relação entre memória de trabalho e QI enfraqueça, em função do aumento da capacidade. Os autores ressaltaram que o perfil comportamental desse grupo indica características semelhantes, em alguns aspectos, àqueles com diagnóstico clínico de TDAH, no entante, explicações subjacentes podem ser diferentes, devendo ser levadas em conta em pesquisas futuras sobre essa dupla excepcionalidade.
Foley-Nicpon et al. (2012) examinaram a autoestima e o autoconceito de estudantes com comportamento superdotado com e sem o diagnóstico de TDAH. Participaram da pesquisa 112 estudantes de seis a 18 anos. Os autores concluíram que, apesar do QI semelhante, os estudantes com comportamento superdotado e TDAH tiveram escores mais baixos em medidas de autoestima, autoconceito comportamental e felicidade geral do que os estudantes sem a dupla excepcionalidade.
Wood (2012) analisou as percepções de pais e professores sobre comportamentos exibidos por 21 estudantes com comportamento superdotado e sugestão de dupla excepcionalidade superdotação e TDAH. Por meio da escala de avaliação de comportamento Conners 3, revelou pontuações médias nas avaliações de pais e professores, nas áreas de desatenção, hiperatividade/impulsividade, funcionamento executivo e problemas de aprendizagem. Destaca a necessidade de uma análise mais aprofundada das propriedades psicométricas e uso adequado do Conners 3, no diagnóstico de estudantes com dupla excepcionalidade.
Fugate, Zentall e Gentry (2013) avaliaram a memória de trabalho e a criatividade de dois grupos de estudantes com comportamento superdotado com e sem sintomas de TDAH. Participaram da pesquisa 37 estudantes. Justificaram a importância do estudo da memória de trabalho associado à criatividade com o fato de que uma memória de trabalho deficitária pode interferir na capacidade de manter as informações na mente, o que poderia reduzir a capacidade de fazer novas combinações de informações, ou seja, a criatividade. Como resultados, os estudantes com dupla excepcionalidade apresentaram pior memória de trabalho, mas, significativamente, maior criatividade do que alunos superdotados que não atendiam aos critérios iniciais de diagnóstico de TDAH. Os autores discutiram os resultados em termos de potencial criativo e enfatizaram que este pode servir tanto como um aspecto identificador quanto como um caminho para a instrução.
Whitaker et al. (2015) exploraram os processos de memória verbal estratégica de jovens intelectualmente superiores com e sem TDAH. Foram participantes da pesquisa 125 estudantes que responderam à Escala de Inteligência Wechsler para crianças e à versão teste infantil de aprendizagem verbal da Califórnia. Os resultados revelaram diferenças significativas entre os grupos, como a melhora da memória verbal estratégica, em estudantes com comportamento superdotado com TDAH, quando fornecidas “dicas” organizacionais. Os intelectualmente superiores com TDAH obtiveram escores estatisticamente menores de memória verbal estratégica, quando comparados aos intelectualmente superiores sem TDAH. Estudantes intelectualmente superiores com TDAH atingiram maiores escores que jovens com habilidades comuns com TDAH. Os achados demonstraram novas evidências sobre o papel dessa dupla excepcionalidade na memória verbal estratégica, e sugeriram que, embora um diagnóstico de TDAH tenha uma implicação negativa nesse tipo de memória, habilidades intelectuais superdotadas podem atuar como um fator de proteção.
Gomez Arizaga et al. (2016) examinaram a autoimagem e as experiências vividas por alunos com dupla excepcionalidade com relação aos colegas e professores. A amostra foi composta por quatro estudantes com idades de oito a 15 anos, com comportamento superdotado e TDAH. Por meio da coleta de entrevistas, os resultados mostraram que os alunos tinham uma noção de suas discrepâncias e sabiam que eram motivados para a aprendizagem, mas, se sentiam entediados e tinham dificuldade de evoluir, quando as tarefas não eram desafiadoras.
Com a análise das produções alocadas na categoria “Avaliação”, constatou-se que maior atenção é dada à avaliação de aspectos cognitivos da inteligência, em detrimento dos aspectos socioemocionais, sendo que cinco das sete produções debruçaram sobre esses aspectos, com destaque para as investigações sobre a memória de trabalho. A avaliação desse construto se apresentou em quatro das sete produções levantadas (ALLOWAY, ELSWORTH, 2012; FUGATE, ZENTALL; GENTRY, 2013; SIMÕES LOUREIRO et al, 2009). As pesquisas que investigaram aspectos socioemocionais são a de Gomez Arizaga et al. (2016), sobre o autoconceito desses estudantes, e a de Foley-Nicpon (2012), que estuda, além do autoconceito, a autoestima.
Com relação a isso, Alves e Nakano (2015) alertaram que a literatura tem apontado que grandes dificuldades socioemocionais e comportamentais podem aparecer em combinação com essa dupla excepcionalidade, mas que, frequentemente, apenas aspectos cognitivos são levados em conta, nos processos de avaliação e intervenção.
Compõem a categoria “Atendimento”, as sete pesquisas que versaram sobre estratégias no atendimento do estudante com dupla excepcionalidade. Grizenko et al. (2012) avaliaram se as crianças com TDAH com diferentes níveis de QI (limítrofe, normal ou alto) respondiam de diferentes maneiras ao tratamento psicoestimulante com metilfenidato (MPH). Participaram do estudo 502 crianças de seis a 12 anos, divididas em dois grupos: o primeiro, em que foi administrado o MPH, e outro, no qual se adotou um placebo controlado. Além de diferenças no contexto socioeconômico e na educação dos pais, as crianças com QI mais alto apresentaram características menos graves, todavia, não foram encontradas diferenças significativas em relação à resposta ao tratamento, enquanto as crianças com TDAH, dentro dos níveis normais e altos de funcionamento intelectual, responderam igualmente ao tratamento com psicoestimulantes.
Moody (2014) investigou as estratégias de melhores práticas para o estudante com dupla excepcionalidade, apontadas por especialistas. Analisou também a viabilidade das práticas identificadas para o contexto de sala de aula. Esses especialistas foram divididos em dois grupos: os acadêmicos e os práticos. Constatou-se que os dois grupos julgavam que fazer a avaliação desses estudantes, acomodar e modificar a instrução, valendo-se dos pontos fortes e fracos, foram as estratégias de melhores práticas, consideradas mais eficazes e viáveis. O grupo de especialistas práticos classificou a estratégia de diferenciar para instrução e agrupamento como a prática mais viável. O grupo acadêmico apontou a estratégia de permitir que os estudantes com dupla excepcionalidade ajudassem outros alunos como a menos eficaz. Dessa maneira, o autor considerou que, apesar de os dois grupos não terem concordado na maioria dos rankings, avaliar e fazer adaptações/modificações para o estudante com dupla excepcionalidade, oferecer instrução diferenciada e o agrupamento são fortes estratégias para práticas mais assertivas.
Hua, Shore e Makarova (2014) alertaram para o fato de que, em caso de estudantes com dupla excepcionalidade, a literatura aborda, em grande parte, como remediar os déficits percebidos, contudo, menos tem sido investigado sobre como desenvolver os potenciais desses estudantes. Fizeram uma crítica a esse tipo de abordagem, assinalando que tende a recorrer a princípios comportamentalistas e de processamento de informações, para auxiliar os estudantes na compensação de seus déficits em funções executivas, memória, organização e gerenciamento de tempo. Acreditavam que apenas esse tipo de remediação é insuficiente, por não promover proativamente o desenvolvimento do potencial. Por meio de uma narrativa semiautobiográfica, propuseram que a instrução baseada em investigação seria a mais adequada e com potencial para desempenhar um papel integral, no desenvolvimento desses estudantes.
Collins (2016) descreveu as características de estudantes com dupla excepcionalidade, sublinhando que esses podem lutar contra a organização de tarefas cognitivas, devido às funções executivas deficitárias, além de poderem apresentar dificuldades com “dicas” sociais, problemas sensoriais, dificuldades de aprendizagem, ansiedade e depressão. O autor ressaltou a importância do uso de tecnologías em sala de aula, enumerou e descreveu diversas ferramentas on-line que podem auxiliar o processo de ensino-aprendizagem.
Luque-Parra, Luque-Rojas e Diaz (2017) objetivaram refletir sobre as necessidades educacionais específicas de estudantes com a dupla excepcionalidade (superdotação e TDAH). Por meio de um estudo de caso interventivo, verificaram melhora na atenção e redução de seu comportamento hiperativo, sendo que o estudante apresentou desempenho superior nas tarefas de sala de aula em atividades na área da Linguagem (corporal, verbal, artística, abordagem à linguagem escrita), bem como no autoconhecimento, autonomia e conhecimento do meio ambiente. No entanto, apresentou dificuldades relacionadas às relações sociais com pares, expressão de emoções e no controle de seu comportamento. São discutidas estratégias para pais e professores no manejo dos comportamentos indesejáveis e do processo de ensino-aprendizagem do estudante. Ressaltaram a necessidade de um ambiente acolhedor, uma metodologia flexível que inclua pesquisa e cooperação, aprimore o pensamento divergente por meio da criação de múltiplas soluções e ideias originais e desenvolva o pensamento crítico.
Ao examinar as produções sobre a temática, observou-se que cinco das sete produções versaram sobre estratégias pedagógicas para estudantes com dupla excepcionalidade, sendo destacadas: a eficiência do uso da tecnologia (COLLINS, 2016), a utilização de pontos fortes e fracos (MOODY, 2014; REIS, BAUM, BURKE, 2014), a avaliação diferencial, a realização de adaptações e modificações, o oferecimento de instruções diferenciadas, o agrupamento (MOODY, 2014) e a instrução baseada em investigação (HUA, SHORE, MAKAROVA, 2014; LUQUE-PARRA, LUQUE-ROJAS, DIAZ, 2017).
A pesquisa de Grizenko et al. (2012) se diferenciou das outras, por investigar aspectos relacionados ao atendimento farmacológico (e não pedagógico) do TDAH, em diferentes níveis de QI.
As produções alocadas em “Revisão da literatura” discutiram as contribuições até o momento para a área, somando-se seis. Orendorf (2009) efetuou uma ampia revisão de literatura, a fim de esclarecer informações sobre a dupla excepcionalidade – superdotação e TDAH, afirmando que esses estudantes têm necessidades específicas e que precisam ser identificados e atendidos. A autora apontou técnicas que podem auxiliar nesse processo, de acordo com cada área da inteligência.
Mullet e Rinn (2015), uma década após o diagnóstico errado da superdotação como TDAH ter sido investigado pela primeira vez, em Hartnett, Nelson e Rinn (2004), examinaram as lições aprendidas ao analisarem estudos empíricos sobre o diagnóstico errado, identificação e diagnóstico duplo de superdotação e TDAH publicados em periódicos acadêmicos nacionais e internacionais, entre 2000 e 2014. Destacaram que a identificação da dupla excepcionalidade deve ser realizada levando-se em conta um conjunto de características e sua interação, que, juntos, formam a base para o diagnóstico, pois existe um mascaramento de mão dupla, quando nas duas condições.
Lee e Olenchak (2015) estudaram a literatura atual sobre a dupla excepcionalidade – superdotação e TDAH. Notaram que esses sujeitos são investigados em termos de diagnósticos individuais e duais, desempenho do estudante com dupla excepcionalidade (incluindo insucesso, criatividade e desfechos psicossociais) e intervenções para esses estudantes. Concluíram que individuos superdotados com TDAH correm o risco de um diagnóstico incorreto, desempenho e resultados psicossociais ruins. Alertaram para o fato de que, até então, várias áreas não foram examinadas no campo da pesquisa científica, como, estudantes criativos com TDAH, os subtipos de TDAH e o trabalho longitudinal com indivíduos que apresentam essa dupla excepcionalidade.
Pfeiffer (2015) deu ênfase aos alunos superdotados com TDAH e os problemas de aprendizagem. Sobressaíram a falta de estudos empíricos e a complexidade na identificação, alertando para a circunstância de que, na avaliação, é necessário considerar o tipo de superdotação e de comprometimento, sendo que, nas intervenções, deve-se levar em conta questões sociais, interpessoais, emocionais, culturais e de familia, bem como acomodar os pontos fortes e interesses e planejar a superação das suas fraquezas. A autora advertiu ainda, para o cuidado no mascaramento dos indicadores de superdotação, em um caso de dupla excepcionalidade.
Alves e Nakano (2015) discutiram a presença da superdotação, na Síndrome de Asperger, TDAH e nos Transtornos de aprendizagem. Para os autores, os comportamentos sociais e a criatividade são características fundamentais para a diferenciação da dupla excepcionalidade e os comportamentos característicos ao transtomo podem ser observados nos estudantes com comportamento superdotado.
Rommelse (2016) versou sobre o mascaramento simultâneo dos indicadores dos dois fenômenos e desenvolvimento de estratégias pelo próprio estudante, abordando um conjunto específico de critérios para a validação do TDAH, no contexto de alta inteligência. Os resultados sugeriram que o TDAH era um diagnóstico válido, apresentando características clínicas e uma resposta específica ao tratamento. Alertaram para o fato de que as pesquisas demonstravam que o TDAH e o QI estavam correlacionados negativamente, sublinhando a necessidade de se considerar o QI como moderador potencial nos estudos de TDAH e estudar mais sistematicamente o transtorno, na população superdotada.
As pesquisas dessa categoria enfatizaram a necessidade de mais estudos empíricos sobre a temática (ALVES, NAKANO, 2015; RINN, REYNOLDS, 2012; PFEIFFER, 2015) e também estudos longitudinals (MOON et al., 2001).
Constatou-se que três produções corroboram de que há, na literatura, evidências sobre o mascaramento de mão dupla dos indicadores (PFEIFFER, 2015; MULLET, RINN, 2015; ROMMELSE;2016).
A categoria “Habilidades sociais” acomodou quatro produções. Três delas versavam sobre as habilidades sociais de estudantes de diversas categorias de necessidades educacionais especiais, incluídos o TDAH e a superdotação, a saber:
Freitas e Del Prette (2013, 2014) escreveram dois artigos, fruto da dissertação de Mestrado de Freitas (2011), portanto, com os mesmos participantes e comparando as mesmas categorias. Em Freitas e Del Prette (2013), foram comparadas as habilidades sociais e, em Freitas e Del Prette (2014), foi feita a análise de regressão, com a finalidade de verificar quais são as categorias preditoras de déficits, nessa área.
Os autores cotejaram, com base na avaliação do professor, o repertório de habilidades sociais de crianças de doze diferentes categorias de necessidades educacionais especiais, a saber: autismo, deficiência auditiva, deficiência intelectual leve, deficiência intelectual moderada, deficiência visual, desvio fonológico, dificuldades de aprendizagem, superdotação, problemas de comportamento externalizantes, problemas de comportamento internalizantes, problemas de comportamento internalizantes e externalizantes e TDAH. Essas foram comparadas entre si e com a amostra normativa do inventário de habilidades sociais, problemas de comportamento e competência acadêmica para crianças.
Identificaram também recursos e déficits em habilidades sociais e verificaram o grau de predição das diferentes categorias sobre o repertório dessas habilidades. Participaram da pesquisa, professores de 120 estudantes de escolas regulares ou especiais, com idades entre seis e 14 anos. Os resultados revelaram que as categorias com menor frequência de habilidades sociais, quando comparadas às outras, foram também as maiores preditoras de déficits nessa área: TDAH, autismo, problemas de comportamento internalizantes e externalizantes e problemas de comportamento externalizantes. Em contraponto, o grupo com maior frequência dessas habilidades foram os de estudantes com comportamento superdotado, com deficiência visual e deficiência intelectual leve. Desse modo, constatou-se que o grupo de estudantes com TDAH e de estudantes com comportamento superdotado se situou em limiares opostos, quando o foco da avaliação foram as habilidades sociais.
A outra investigação alocada na categoria “Habilidades sociais” é a de Reed (2013) que investigou a relação entre ansiedade e habilidades sociais em crianças com dupla excepcionalidade – superdotação e TDAH, de oito a onze anos, pareadas com crianças com TDAH de inteligência mediana e também de desenvolvimento típico. Com base nos resultados, a autora afirmou que a ansiedade foi um preditor significativo de déficits nas habilidades sociais em estudantes com dupla excepcionalidade e sugeriu que mais pesquisas fossem realizadas dando enfoque a alta inteligência como fator de risco para o desenvolvimento de ansiedade e déficits em habilidades sociais em crianças com TDAH.
Na categoria “Características”, foram alocadas duas produções que trataram das peculiaridades de estudantes com dupla excepcionalidade. Sumida (2010) desenvolveu uma lista de verificação para identificar características de superdotação específicas para o aprendizado de ciências. Tal lista consistai em 60 itens relacionados a atitudes, raciocínio, habilidades e conhecimento/compreensão. Participaram do estudo 86 estudantes de oito escolas primárias no Japão. Metade deles tinha alguma dificuldade de aprendizagem, TDAH ou autismo de alto funcionamento. A análise identificou três estilos de superdotados em ciências: estilo espontâneo, estilo expert e estilo sólido. Os estudantes com dupla excepcionalidade exibiram um estilo espontâneo, enquanto os que não se inseriram nesse diagnóstico foram caracterizados pelo estilo sólido. Em ambos os grupos, o número de participantes do estilo expert foi o menor. Discutiramse os benefícios de uma educação científica para todos os estudantes.
Fugate e Gentry (2016) examinaram as experiências vividas por cinco meninas de doze e treze anos, com comportamento superdotado e TDAH, a fim de compreender os mecanismos utilizados por elas, para enfrentamento das pressões, no ambiente acadêmico. As meninas relataram problemas como desatenção e tédio com tarefas, a exemplo da lição de casa, como desafios que afetavam sua motivação. Os autores observaram que os sintomas internalizantes podiam igualmente afetar a motivação dessas meninas, e as saídas criativas eram estratégias usadas para a autorregulação. Por fim, as meninas entenderam que apenas habilidade é insuficiente para o sucesso acadêmico, realçando que esforço e resiliência foram fatores muito importantes, assim como o apoio acadêmico e motivacional dos professores e pais, e suas expectativas. Com base nos resultados, propôs-se um novo termo: “meninas com Atenção Divergente Hiperativa Superdotada (ADHG)” – o que seria uma mudança de paradigma que altera o foco, destacando pontos fortes, motivação, perseverança e resiliência.
Por fim, ao analisar as produções dessa categoria, constatou-se ainda que Sumida (2010) realizou um levantamento de características específicas para o ensino de Ciências e Fugate e Gentry (2016), uma associação com o gênero, pois investigaram um grupo de estudantes com comportamento superdotado e TDAH composto exclusivamente por meninas.
A partir da revisão e sistematização dos estudos acerca da dupla excepcionalidade – superdotação e TDAH, foi possível observar que apesar do crescimento vertiginoso de publicações sobre os dois fenômenos isoladamente, são poucas as discussões que abrangem os estudantes com tais características associadas. Esses acabam esquecidos nas salas de aula e não são vistos em suas potencialidades, devido ao fato de tenderem a manifestar características ligadas ao transtorno, como falta de atenção, dispersão em situações específicas, baixa tolerância nas tarefas que julgam sem importância, dificuldade de manter a atenção em tarefas de rotina, dificuldade em monitorar projetos em longo prazo, julgamento aquém do desenvolvimento intelectual, tédio, questionamento de regras e autoridades e alto nível de atividade (WEBB, LATIMER, 1993).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Realizou-se uma revisão sistemática de literatura com o objetivo de identificar e caracterizar os estudos científicos sobre a associação entre Superdotação e TDAH. Com base no levantamento efetuado, foi possível constatar que há uma diferença nos padrões de comportamento dos estudantes com comportamento superdotado, quando associados ao transtorno, envolvendo dificuldades com relação tanto aos aspectos educacionais quanto socioemocionais.
Conclui-se, ademais, que esses padrões de comportamento se assemelham mais aos comportamentos do TDAH do que da superdotação, uma das razões pela qual é verificada na literatura maior propensão da identificação do transtomo. Pode-se apontar o baixo número de estudos publicados com vistas à investigação de aspectos socioemocionais desses estudantes, que podem constituir barreiras para o pleno desenvolvimento do potencial. Sugere-se a realização de novas pesquisas que abordem a associação dos fenômenos superdotação e TDAH, sobrenado nos aspectos que se referem ao desenvolvimento socioemocional desses estudantes.