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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.22 no.66 Rio de Janeiro jul./set 2021  Epub 06-Fev-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2021.57610 

Artigo

DESENVOLVENDO PRÁTICAS E VALORES PARA A INCLUSÃO SOCIAL: as contribuições das aulas de ciências da natureza e matemática em uma escola especializada para alunos com deficiência visual

DEVELOPING PRACTICES AND VALUES FOR SOCIAL INCLUSION: the contributions of natural science and mathematics classes at a specialized school for visually impaired students

DESARROLLO DE PRÁCTICAS Y VALORES PARA LA INCLUSIÓN SOCIAL: las contribuciones de las clases de ciencias de la naturaleza y las matemáticas en una escuela especializada para estudiantes con discapacidades visuales

Fábio Garcia Bernardo1 
http://orcid.org/0000-0003-3785-4184; lattes: 8578382473920859

Naiara Miranda Rust2 
http://orcid.org/0000-0002-5107-5745; lattes: 0952708163501047

1Instituto Benjamin Constant

2Instituto Benjamin Constant


Resumo

Este trabalho apresenta e discute algumas contribuições das aulas de ciências da natureza e matemática para alunos com deficiência visual, sob a perspectiva do desenvolvimento de culturas, políticas e práticas inclusivas. Considera-se que os movimentos inclusivos não devem estar vinculados apenas aos espaços escolares e precisam se basear, primeiramente, em valores inclusivos, os quais constituem-se como fundamentais para as ações. A pesquisa vem sendo desenvolvida ao longo dos últimos anos em uma escola especializada e se revela como uma investigação qualitativa, numa perspectiva de observação participante, que teve como campo de observação o próprio ambiente de trabalho dos autores. Como resultados, o trabalho tem se mostrado promissor, uma vez que as aulas se tornaram espaços de discussão crítica e reflexiva, extrapolando os limites das disciplinas. Dessa forma, propõe-se então o uso de diferentes e diversificados recursos e metodologias que respeitam as diferenças e as singularidades dos alunos em busca, acima de tudo, de inclusão social. Assim, espera-se que o trabalho possa consolidar o ideal colaborativo e desejado entre a educação especial e a educação inclusiva, tendo como fim comum a promoção dos direitos humanos.

Palavras-chave: ensino de ciência; ensino de matemática; deficiência visual; inclusão social.

Abstract

This paper present and discuss some contributions from natural science and mathematics classes to visually impaired students, from the perspective of the development of inclusive cultures, policies and practices. It is considered that inclusive movements must not be linked only to school spaces and must be based, first, on inclusive values, which are fundamental to actions. The research has been developed over the past few years in a specialized school and it revealed as a qualitative investigation, in a perspective of participant observation, whose field of observation was the authors' own work environment. As a result, the work has proved to be promising, since the classes have become spaces for critical and reflective discussion, exceeding the limits of the disciplines. Thus, it is proposed to use different and diversified resources and methodologies that respect the differences and singularities of students in search, above all, of social inclusion. Thus, it is hoped that the work can consolidate the collaborative and desired ideal between special education and inclusive education with the common purpose of promoting human rights.

Keywords: natural sciences teaching; mathematics teaching; visual impairment; social inclusion.

Resumen

Este artículo presenta y discute algunas contribuciones de las clases de ciencias naturales y matemáticas para estudiantes con discapacidad visual, desde la perspectiva del desarrollo de culturas, políticas y prácticas inclusivas. Se considera que los movimientos inclusivos no deben vincularse solo a los espacios escolares y deben basarse, en primer lugar, en valores inclusivos, fundamentales para las acciones. La investigación se ha desarrollado durante los últimos años en una escuela especializada y se revela como una investigación cualitativa, en una perspectiva de observación participante, cuyo campo de observación fue el propio entorno de trabajo de los autores. Como resultado, el trabajo se ha mostrado prometedor, ya que las clases se han convertido en espacios de discusión crítica y reflexiva, superando los límites de las disciplinas. Así, se propone utilizar recursos y metodologías diferentes y diversificados que respeten las diferencias y singularidades de los estudiantes en busca, sobre todo, de la inclusión social. Así, se espera que el trabajo consolide el ideal colaborativo y deseado entre la educación especial y la educación inclusiva con el propósito común de promover los derechos humanos.

Palabras clave: enseñanza de las ciencias; enseñanza de las matemáticas; discapacidad visual; inclusión social.

INTRODUÇÃO

A falsa dualidade escola inclusiva versus escola especializada existe desde longa data e persiste até os dias de hoje, uma vez que há uma quantidade considerável de pessoas que defendem a ideia do “todos juntos e misturados” e que, nesse contexto, sugerem que as escolas especializadas se revelam como segregadoras, pois impossibilitam o convívio diário com os “diferentes” e com as pessoas sem deficiências.

Mader (1997) sugere que a inclusão é o termo que se encontrou para definir uma sociedade que considera todos os seus membros como cidadãos legítimos. Nesses termos, tratase, então, de se pensar em uma sociedade na qual existe justiça social, em que cada membro tem seus direitos garantidos e as diferenças são aceitas como algo natural. Mitler (2003, p. 21) destaca que “[...] a inclusão é uma visão, uma estrada a ser viajada, mas uma estrada sem fim, com todos os tipos de barreiras e obstáculos, alguns do quais estão em nossas mentes e em nossos corações”. Além disso, o autor considera que a inclusão escolar “[...] envolve um processo de reforma e de reestruturação das escolas como um todo, com o objetivo de assegurar que todos os alunos possam ter acesso a todas as gamas de oportunidades educacionais e sociais oferecidas pela escola” (MITLER, 2003, p. 25).

Dentro dessa perspectiva da falsa dicotomia entre escola inclusiva versus escola especializada e, considerando os esforços da sociedade e da legislação brasileira, como a Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva de 2008, que apontam a educação inclusiva como principal diretriz da educação de pessoas com deficiência, propomos a seguinte reflexão: nossas escolas regulares comuns, estão garantindo o direito pleno e convicto, em condições adequadas, à escolarização de pessoas com deficiência? Deixamos a questão como reflexão ao leitor, mas é a partir desse questionamento que este trabalho apresenta, discute e reflete sobre o ensino de ciências da natureza e matemática para alunos com deficiência visual (DV) apoiados nas ideias de Booth e Ainscow (2011) que defendem a inclusão como sendo um processo que deve se dar por meio do desenvolvimento de três pilares conectados entre si: políticas, culturas e práticas. De acordo com os autores, os movimentos inclusivos devem se basear, primeiramente, em valores inclusivos, os quais constituem-se como guias e sugestões fundamentais para as ações. A clareza em relação ao desenvolvimento desses valores revela-se como um fator primordial para se colocar em prática um projeto inclusivo. Esses valores estão relacionados com “[...] igualdade, direitos, participação, comunidade, respeito pela diversidade, sustentabilidade, não-violência, confiança, compaixão, honestidade, coragem, alegria, amor, esperança/otimismo e beleza” (BOOTH, AINSCOW, 2011, p. 22). Cada valor resume uma área de ação e aspiração à educação e à sociedade mais amplamente e todos são importantes para o desenvolvimento educacional inclusivo.

Nesse sentido, consideramos que caminhar em direção a um processo de inclusão perpassa por relacionar ações com valores e isso está muito acima de apenas atender a determinações legais. Significa, entre outros aspectos, respeitar as diferenças e individualidades de cada pessoa, sejam elas crianças, adultos, pessoas com deficiência e fazer uso de suas experiências e histórias de vida como um recurso para a aprendizagem. E é dentro dessa perspectiva mais ampliada sobre o conceito de inclusão, que nos colocamos neste trabalho, acreditando que não deve haver oposição, sobreposição ou dicotomia entre a escola inclusiva e a escola especializada, uma vez que ambas precisam se (re)inventar no sentido de promover, acima de tudo, inclusão social. Sendo assim, vamos apresentar e discutir as reflexões resultantes de nossas práticas e investigações, enquanto professores de ciências da natureza e matemática, referenciados teoricamente pelas ideias de Booth e Ainscow (2011) e desenvolvidas em uma escola especializada na educação de pessoas com DV. O trabalho vem sendo desenvolvido pelos autores ao longo dos últimos anos e se revela como uma pesquisa qualitativa, numa perspectiva de observação participante, que teve como campo de investigação o próprio ambiente de trabalho dos autores.

Como objetivo, espera-se que a partir das experiências aqui reveladas o leitor possa refletir sobre a importância de entendermos e respeitarmos as especificidades individuais dos alunos e que a educação especial, na perspectiva da educação inclusiva, deve se dar de forma colaborativa entre os profissionais especializados e os não especializados, desde o planejamento, discussão de metodologias, perpassando pelo uso de recursos de tecnologia assistiva, desenvolvimento de materiais voltados para a sala de aula e o compartilhamento de saberes e experiências.

O TRIPÉ QUE NOS ORIENTA

Organizado e publicado na Inglaterra por Booth e Ainscow (2011), o Index para Inclusão: desenvolvendo a aprendizagem e a participação na escola foi desenvolvido durante um período de três anos (2000, 2002, 2011), com a participação de professores, pais, gestores e outros pesquisadores, que possuíam uma larga experiência em incentivar o desenvolvimento inclusivo nas escolas e na sociedade. O Index foi traduzido pela professora Mônica Pereira dos Santos, em 2011 (Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro) e, desde então, vem ganhando notoriedade e vem sendo utilizado em diferentes realidades e contextos para além da escola. O trabalho se refere a um conjunto de ideias que visam incentivar uma profunda reflexão nos aspectos escolares, e na sociedade, com o objetivo de encorajar a todas as pessoas, funcionários, pais/responsáveis e crianças a contribuírem com um plano de desenvolvimento inclusivo e a colocá-lo em prática.

Em síntese, Santos et al (2017, p. 2) apontam que o Index:

[...] trata-se de um documento riquíssimo que possibilita reflexões acerca da construção de culturas, do desenvolvimento de políticas e da orquestração de práticas de inclusão em educação em instituições de ensino (ou em grupos/equipes, por exemplo, que estão em busca do movimento de (re) visão de seus valores, intenções e ações). O Index, portanto, é um conjunto de materiais, como define Booth; Ainscow (2011) com a potencialidade de apoiar um processo de auto revisão das escolas em direção à ampliação da aprendizagem e da participação dos sujeitos nela inseridos.

Apoiado no desenvolvimento desses três pilares, o Index tem um caráter de construção coletiva e por isso pode ser perfeitamente adaptado a qualquer contexto e é exatamente por esse aspecto que acreditamos ser possível utilizarmos em nossas escolas, embora tenha sido desenvolvido em outra realidade. O Index não se refere a um único aspecto da educação escolar e nem se propõe a listar objetivos a serem alcançados, como se fosse uma receita a ser seguida. Também não está relacionado a nenhum grupo particular de crianças, ou somente às pessoas com deficiência. De acordo com Booth e Ainscow (2011), incluir envolve ações que reduzam a exclusão, envolve uma mudança arquitetônica nos espaços escolares, a adoção e a utilização de recursos de tecnologia assistiva, de metodologias de ensino que privilegiem a participação efetiva de todos, a promoção de ações formativas, o apoio à capacitação e a qualificação profissional de todos os atores escolares.

Assim, considerando esses aspectos, respeitando e guiando-se pelas políticas voltadas para a inclusão, apoiados em práticas pedagógicas que possibilitam o acesso mais equânime aos conteúdos é que buscamos desenvolver e promover valores nas aulas de ciências da natureza e matemática. Não vamos nos debruçar sobre as ideias do Index, mas a seguir, trazemos uma compreensão mais detalhada sobre como enxergamos cada uma dessas três dimensões, que subsidiam nossa investigação e o trabalho que realizamos em sala de aula.

Desenvolvendo políticas inclusivas

Para Booth e Ainscow (2011), ao pensar no desenvolvimento de políticas de inclusão, a escola deve se organizar estruturalmente e administrativamente para assegurar que os processos de inclusão possam ser colocados em prática. Neste sentido, é preciso observar quais são os recursos, materiais e humanos, ofertados pelas escolas aos alunos, aos professores e aos demais profissionais a fim de ampliar sua capacidade de responder à diversidade.

Em relação aos alunos com DV, por exemplo, nessa dimensão, esperamos que ações conjuntas possam ser implementadas de forma que a escola adquira recursos e equipamentos, tais como: impressora Braille, computadores, notebooks ou tablets com softwares de acessibilidade, bengalas, soroban, conjunto de reglete e punção, multiplano, dentre outros recursos de tecnologia assistiva, que podem auxiliar os estudantes com DV a terem acessibilidade estrutural e pedagógica nas escolas. Espera-se ainda que a escola tenha profissionais e professores com formação adequada ao atendimento de pessoas com DV e seja capaz de se organizar para que seus profissionais interessados na temática possam se preparar para dar suporte e melhor atender aos alunos.

Essa é uma dimensão importante, uma vez que se refere aos direitos das pessoas com deficiência, garantidos por leis, políticas e documentos oficiais, como por exemplo, o Decreto n. 7611/2011, que dispõe sobre a educação especial e o atendimento educacional especializado na perspectiva da inclusão. O documento trata do apoio financeiro que a União deverá prestar aos sistemas de ensino para o aprimoramento do atendimento educacional especializado já ofertado; implantação de salas de recursos multifuncionais; formação continuada de professores, gestores e demais profissionais da escola; ações de acessibilidade, produção e distribuição de recursos educacionais para a educação dos alunos, público-alvo da educação especial. Desse modo, são investimentos nessas ações que irão proporcionar o desenvolvimento de culturas e práticas inclusivas dentro da escola, ou seja, é uma dimensão que irá possibilitar que as demais possam se estabelecer e se consolidar dentro do espaço escolar, de forma adequada.

Criando culturas inclusivas

Essa é uma dimensão que está relacionada com valores, ações e atitudes que podem ser implementadas a partir de um compromisso mútuo dos agentes escolares. Em nosso entendimento, estabelecer uma cultura inclusiva no espaço escolar é promover ações que busquem um diálogo conjunto entre todos os entes escolares e a reflexão sobre aspectos fundamentais para a consolidação de temas essenciais, tais como o direito de todos à educação e o respeito às diferenças. Esse diálogo deve envolver também os diferentes relacionamentos que se estabelecem entre alunos-alunos, alunos-professores, alunos-funcionários e escolacomunidade. Discutir tais questões perpassa por estabelecer valores éticos e comprometidos com a diversidade humana, o respeito às diferenças, a solidariedade e a empatia entre os envolvidos, que devem se ajudar mutuamente em prol de um bem comum.

De acordo com Booth e Ainscow (2011), para o desenvolvimento dessa dimensão, todos devem ser bem-vindos e todos devem cooperar. As crianças e os profissionais se ajudam, cooperam entre si em busca de um modelo de cidadania democrática dentro do espaço escolar. Os autores apontam que o desenvolvimento de culturas inclusivas permeia a discussão de temas contemporâneos, tais como o respeito ao meio ambiente, o respeito aos direitos humanos, as questões de gênero, raça, discriminação e preconceito.

Dessa forma, a escola precisa se consolidar como um espaço de promoção da equidade, em que se deve discutir e refletir sobre o que é inclusão social, quais são seus princípios, os direitos, os deveres e os papéis que todos devem assumir na sociedade. Deve ainda, discutir e refletir, coletivamente, continuamente, como pauta curricular e pedagógica, as questões que permeiam as necessidades e singularidades de seus alunos, como forma de sensibilizar os entes escolares em busca do desenvolvimento de uma cultura inclusiva.

Desenvolvendo práticas inclusivas

Booth e Ainscow (2011) apontam que esta dimensão se refere à construção de currículos para todos e ao desenvolvimento e aprimoramento daquilo que se ensina e aprende, e como se ensina e aprende, de forma a refletir valores e políticas inclusivas. Em outras palavras, significa dizer que o desenvolvimento de práticas inclusivas perpassa por um modelo colaborativo de atuação, uma vez que sozinho, o professor não tem autonomia para modificar o projeto político pedagógico da escola e assim, transformar isoladamente um currículo historicamente pensado para a “normalidade” em outro que valorize e respeite à diferença como premissa.

Quando pensamos em práticas pedagógicas que possam atender a todos, temos em mente o desenvolvimento de um planejamento que leve para a sala de aula igualdade de condições ao aprendizado. Ao falar da educação de pessoas com DV, Vieira (2006) aponta a importância de o professor conhecer minimamente as particularidades de seus alunos e os materiais e recursos adequados à sua escolarização. Nesse sentido, o desenvolvimento de práticas curriculares inclusivas, quando falamos desse público, perpassa por oferecer condições ao aluno de ter acesso aos conteúdos, por meio de recursos e materiais acessíveis e/ou pensados para as suas singularidades. Podemos citar os textos em Braille e em formato ampliado e, sempre que possível, materiais concretos, além de modelos e representações táteis que possibilitem a materialização de conceitos e procedimentos inerentes ao desenvolvimento dos conteúdos. Não se trata, portanto, de adaptar a aula que foi pensada para alunos videntes, para o aluno com DV, mas sim possibilitar que eles participem das aulas ativamente e com o mesmo protagonismo dos demais. Desse modo, faz-se necessário oferecer ao aluno com DV diferentes formas de acesso aos conteúdos e as atividades escolares, bem como incluir os demais alunos nesse processo, por meio de tarefas em dupla e em grupos, sempre possibilitando a participação efetiva dos alunos com DV nas discussões propostas.

OS CAMINHOS PERCORRIDOS

As contribuições que aqui trazemos foram desenvolvidas no Instituto Benjamin Constant (IBC), uma escola especializada na educação de pessoas com DV, no âmbito de um grupo de pesquisas cadastrado na própria instituição, composto por professores de matemática, de química e biologia, além de alunos de graduação, que também atuavam no grupo. A pesquisa foi submetida e aprovada por comitê de ética designando pela Plataforma Brasil e o grupo se manteve ativo até meados de 2019, quando seus integrantes se dispuseram a subdividi-lo formando outros grupos.

O trabalho teve como percurso metodológico a pesquisa qualitativa, numa perspectiva de observação participante, inspirados nas ideias de Rosa (2013), e teve como local de observação o próprio ambiente de trabalho dos autores. De acordo com Creswell (2010), o ambiente natural pode ser definido como o local onde os participantes vivenciam a questão ou problema que está sendo estudado. Além disso, o ambiente natural propicia a coleta de dados e informações por meio de conversas diretas com os investigados possibilitando uma observação natural de como se comportam e agem dentro de um determinado contexto.

Utilizamos o diário de campo e a gravação de algumas aulas, por meio de aplicativos de celulares, de forma que pudéssemos registrar todos os acontecimentos das aulas. A observação participante é uma metodologia bastante usada em que não parece haver fronteira entre o pesquisador e o objeto, uma vez que ao mesmo tempo em que reflete sobre o tema, o pesquisador está inserido no contexto estudado por ser parte deste universo (ROSA, 2013, p. 63). De acordo com o autor, na observação participante “[...] o pesquisador está inserido em determinado grupo, no sentido de que faz parte dele, participando das ações, enquanto o observa”.

Investigamos turmas de sétimo e de nono ano do ensino fundamental, que possuíam cerca de 10 a 15 estudantes, formadas por alunos cegos e por alunos com baixa visão em idades variadas, uma vez que alguns se encontravam fora da faixa etária regular da turma. As discussões e reflexões que apresentamos a seguir são provenientes desses registros realizados ao longo da atuação dos autores em sala e que também foram discutidas no âmbito do grupo de pesquisa em que os autores estavam inseridos.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

As contribuições das aulas de ciências da natureza e de matemática para o processo de inclusão

Ao longo dos últimos anos temos nos questionado como abordar e desenvolver determinados conteúdos de ciências da natureza e matemática com nossos alunos cegos e com baixa visão. Quais são as melhores abordagens e os recursos mais adequados a se utilizar? Quais estratégias metodológicas devem ser utilizadas para a condução do trabalho?

O leitor pode estar ponderando que esses questionamentos são feitos diariamente por professores de turmas quaisquer, ao pensar as suas aulas. Entretanto, em turmas constituídas por alunos com DV, é imprescindível ao professor, que além de dominar os conteúdos específicos de sua disciplina e suas especificidades, este deva conhecer e estar familiarizado com a gama de materiais, recursos de acessibilidade e tecnologia assistiva disponíveis para a educação desse público. Além disso, deve procurar conhecer seus alunos, suas experiências escolares e suas necessidades, para que possa melhor conduzir o trabalho em sala de aula.

Nesse sentido, desenvolver nossas aulas, tendo como orientação o desenvolvimento de culturas, políticas e práticas inclusivas tem se mostrado um caminho enriquecedor, tanto para nós professores quanto para nossos alunos. Não temos uma resposta pronta a essas perguntas, ou um manual de como dar aulas para o público em questão. Assim, o que buscamos trazer aqui, são as reflexões das nossas práticas que tem se revelado positivas à luz das ideias de Booth e Ainscow (2011), apresentadas na seção anterior.

Ciências da natureza e matemática possuem inúmeros pontos de confluência e são disciplinas que apresentam grande apelo visual e um elevado grau de abstração, que nos desafia em cada temática a ser abordada. Não há um livro didático pensado para esse público, o que faz com que os planos de aula necessitem ser desenvolvidos e produzidos pelo professor, sempre pensando em criar estratégias para tornar o conteúdo acessível aos alunos. Para essa discussão vamos apresentar e discutir de que forma abordamos algumas temáticas nas aulas de ciências da natureza e de matemática, os recursos que utilizamos e as estratégias implementadas, de modo a contribuir para um ensino que promova, acima de tudo, inclusão social.

Considerando as aulas de ciências da natureza escolhemos os conteúdos de biodiversidade e ecologia, que são repletos de conceituações que requerem elevado grau de abstração, além de compreensão ampla das interações existentes entre os seres vivos e desses com os fatores abióticos (aspectos físicos, químicos ou físico-químicos) do ambiente. Materializar esses conteúdos para o público em questão se revela de forma desafiadora e nossa experiência tem apontado que apenas a teorização desses conceitos não possibilita ao aluno a sua adequada compreensão.

Dessa forma, buscamos apresentar os conteúdos utilizando diversas abordagens, recursos e, principalmente, explorando os sentidos remanescentes dos alunos, com intuito de proporcioná-los maiores possibilidades de aprendizagem. Acima de tudo, procuramos discutir valores e inserir temas contemporâneos e de urgência social, nas discussões e debates que promovemos em sala de aula, conforme sugerem Booth e Ainscow (2011). Para trabalhar os conteúdos descritos acima, os alunos foram conduzidos a explorar o ambiente escolar, instruídos a caminhar em silêncio e a observar todas as sensações que o trajeto da sala de aula até a área externa ao prédio, poderia proporcionar. A escola possui um amplo espaço interno e externo, que são explorados pelos alunos desde os anos iniciais e/ou quando são matriculados na instituição.

Ao percorremos o ambiente escolar até a área externa tínhamos o intuito de que os alunos observassem a diversidade de vida ao seu redor, além de identificarmos quais os conhecimentos eles traziam sobre a temática de ecologia e biodiversidade. Assim, ao chegarmos na área externa, os alunos foram estimulados a falar sobre as sensações percebidas no trajeto: “Ouço o barulho dos carros”; “estou ouvindo os pássaros”; “professora, posso sentar aqui na sombra?”; “eu prefiro ficar no sol”; “tem muitas árvores”. Para discutir sobre biodiversidade de uma forma mais ampla, os alunos foram questionados em relação a outros ambientes que já haviam visitados: “Já fui a São Paulo, é mais frio e seco que aqui”; “Teresópolis também é mais frio”; “Eu fui em uma ilha em Minas Gerais”; “Na praia tem poucas árvores”.

As observações dos alunos possibilitaram discussões sobre a diversidade de vida presente no planeta, o que são os fatores abióticos, a interação dos seres vivos entre si e com esses fatores e, como as ações humanas podem conduzir o ecossistema ao desequilíbrio. Diante da fala de um dos alunos “sinto cheiro de terra”, aproveitamos para discutir o problema recente (janeiro de 2020) ocorrido na estação de tratamento e distribuição de água do Rio de Janeiro, uma vez que a substância (Geosmina1) que provocou o “gosto de barro na água” da população de quase todo Estado é a mesma substância produzida por microrganismos presentes no solo e que dão a ele o cheiro característico. Discutimos que a proliferação excessiva desses microrganismos foi resultado da grande quantidade de lixo e esgoto que é despejada diariamente nos rios que abastecem a estação de captação de água, destacando que esse problema também foi causado pelo desrespeito humano com o meio ambiente e pelo descaso das autoridades em relação ao tratamento de esgotos.

Tratar de temas como meio ambiente e sustentabilidade, assim como abordar temas de urgência social, que afetam diretamente a vida dos estudantes, provocando os alunos a refletirem sobre suas ações na sociedade, perpassa pela ideia do desenvolvimento de culturas e valores propostas por Booth e Ainscow (2011). Dessa forma, a perspectiva da aula se amplia, fazendo com que o ensino de ciências da natureza se revele como um meio para se discutir tais temáticas. Tais discussões podem sensibilizar os alunos a atuarem em favor da preservação do meio ambiente, a refletirem sobre ações de como minimizar a produção e descarte de lixo nos espaços familiares e o entendimento que a ausência de saneamento básico nas comunidades é devido a falta de políticas públicas específicas. Não se trata de estudar conteúdos de ciências da natureza para entender o mundo, mas trazer as questões que permeiam a sociedade, os problemas que nos assolam para serem debatidos dentro dos conteúdos das disciplinas.

Devido as dificuldades apresentadas por alguns alunos em compreender alguns conteúdos ecológicos, decidimos desenvolver um material grafo-tátil, com o intuito de possibilitar que os próprios alunos pudessem experienciar os conceitos de espécie, população, comunidade e ecossistema. Para os alunos cegos, a manipulação de objetos táteis fornece elementos para a construção de uma imagem mental que contribui para a apreensão das informações apresentadas e promove igualdade de condições de aprendizado.

Dessa forma, os alunos receberam pequenos pedaços de acetato-vinilo de etileno (EVA), com formatos de triângulos, círculos e quadriláteros. Cada formato possuía cor e textura própria, respeitando assim as singularidades e heterogeneidade do grupo de estudantes, alguns cegos e outros com baixa visão. Com auxílio do texto em Braille e em tinta, no formato ampliado, e guiados pela professora, os alunos deram significações aos objetos. O conjunto de figuras com o mesmo formato representava uma população constituída de indivíduos de uma mesma espécie, a ser escolhida por eles; enquanto o agrupamento dessas populações configurava uma comunidade. Ao falarmos sobre comunidade (no contexto ecológico), um dos alunos se manifestou: “Na minha comunidade tem população de crentes e de traficantes”.

Questionei então a que espécie essas “populações” pertenciam, levando-os a concluir que “crentes” e “traficantes” são seres humanos, portanto, uma única população, uma vez que todos são da mesma espécie. Assim, mais um aluno se manifestou: “Ah... Então é população de gatos, cachorros, bananeiras, pessoas, que são espécies diferentes e juntos formam uma comunidade.” Para a construção do conceito de ecossistema, faltava a inserção dos fatores abióticos. Após a discussão, mais um aluno se manifestou: “[...] os fatores [abióticos] da favela são armas, drogas...” [Risos generalizados]. Dessa forma, para complementar o material disponibilizado inicialmente, entregamos pequenos fragmentos de papel texturizado, na cor marrom, conforme a Figura 1.

Fonte: os autores

Figura 1 Material tátil de ecologia (esquerda); alunos manipulando o material (direita) 

A prática desenvolvida utilizando o recurso tátil, possibilitou que os alunos compreendessem os conceitos apresentados de forma autônoma e autoral, proporcionando um melhor entendimento sobre as interações ecológicas existentes em um ambiente. O material proporcionou ainda momentos de descontração e suscitou a participação de um aluno que pouco se manifestava nas aulas, trazendo o seu cotidiano para contribuir com as aulas.

Por conta das discussões e diretrizes adotadas em nosso grupo de pesquisas, nas aulas de matemática também procuramos empregar a estratégia de se utilizar diferentes abordagens e o uso de recursos variados para trabalhar os conteúdos, uma vez que atuar na perspectiva de se desenvolver políticas, culturas e práticas inclusivas, envolve ações no sentido de se trabalhar e de se desenvolver valores que possibilitem a participação efetiva dos alunos nas aulas e nas discussões. Nesse sentido, a disciplina e o conteúdo em si, tornam-se meios e não fins.

Para trazer uma experiência das aulas de matemática, escolhemos o conteúdo de conjuntos numéricos, que foi trabalhado em uma turma do nono ano, com alunos cegos e alunos com baixa visão. Dentro dessa temática, procuramos retomar conceitos já discutidos em outros anos de escolaridade, estratégia essa sempre presente em nossas abordagens, pois os alunos se apresentam com diferentes histórias e experiências escolares. O trabalho com o conteúdo de conjuntos exige elevado grau de abstração, uma vez que se discute cardinalidade, pertinência, inclusão, operações entre os conjuntos e as ideias sobre infinito, que são assuntos rebuscados para qualquer aluno da educação básica. Na abordagem dessas ideias, por exemplo, é difícil se pensar na confecção de representações táteis para os alunos e apenas a transcrição dos textos de tinta para o Braille não se revela como suficiente para um aprendizado mais compreensivo.

O professor da escola regular comum, atuando com alunos videntes, possui o quadro como um importante recurso a ser utilizado nas aulas e este possibilita a escrita de textos, desenhos, figuras e diversos tipos de representações para estabelecer uma comunicação mais dinâmica com seus alunos. Entretanto, na presença de um aluno com DV em sala de aula, é importante que a utilização desse recurso se dê de forma a não o excluir. Dessa maneira, cabe ao professor fornecer textos e/ou materiais táteis que possibilitem aos alunos terem acesso às informações disponibilizadas aos demais alunos no quadro. Assim, deve ser difícil para o leitor imaginar uma aula de matemática sem a utilização desse recurso, como acontece na realidade em que trabalhamos.

Sugerimos então, que em um primeiro momento, o professor procure apresentar uma discussão inicial. Em nossa experiência, iniciamos retomando a ideia de número, não só como quantidade e ordem, mas também como código. Para muitos alunos isso se mostrou inusitado, uma vez que alguns revelaram jamais terem pensado como se define o número do sapato, o tamanho das calças e camisas, os canais de televisão, placas de automóvel, entre tantas outras coisas. “Professor, nem sabia que sapato tem número, minha mãe é que me veste”; “Camisa tem número? Não sabia, porque a minha tem letra. Sei que uso M”; “Eu sei calcular raiz quadrada, mas não sei para que serve”; “Eu já estudei conjuntos de coisas, objetos, mas não lembro de conjuntos de números”.

Embora acreditássemos que muitos conceitos já deveriam estar estabelecidos e consolidados em alunos desse ano de escolaridade, o relato de alguns demonstrou o quanto as experiências individuais e os estímulos que recebem desde os primeiros anos de vida impactam na formação dos alunos. Seguimos o nosso “debate”, solicitando aos alunos que explicassem o significado de números negativos em diferentes contextos, números fracionários, raízes quadradas exatas e não exatas, números muito pequenos ou muito grandes e de que forma esses números estavam presentes em seus cotidianos. “O saldo de gols do Vasco é negativo”; “Tem prédios com andares pra baixo da terra, com números negativos”; “No inverno tem cidades com temperaturas abaixo de zero”; “Tem raízes no Teorema de Pitágoras”. Esses comentários nos permitiram falar brevemente sobre geometria e outros assuntos cotidianos que enriqueceram nossas discussões e expandiram os conhecimentos dos alunos. Essa abordagem dialógica e reflexiva vai de encontro ao tradicionalismo presente em muitos livros didáticos que, inicialmente, apresentam conceitos, definições e exercícios resolvidos, para então apontar situações em que os conceitos matemáticos aparecem.

Conforme já destacamos, quando consideramos alunos com DV, a escolha dos recursos adequados a serem utilizados nas aulas se revela como condição sine qua non para um aprendizado que se proponha inclusivo. Em nossa realidade, por exemplo, há alunos que preferem os textos em Braille, há alunos que preferem receber materiais por meio digital (e-mail) e outros que preferem gravar as aulas para que possam ter acesso às discussões em outros momentos. A utilização de recursos adequados e que possibilitem aos alunos a participação nas aulas deve fazer parte da cultura escolar e deve estar atrelada às práticas pedagógicas do professor, conforme sugerem Booth e Ainscow (2011).

As discussões acerca dos números e a introdução formal dos conjuntos numéricos nos levou a discutir a ideia abstrata de infinito. Assim, ao questionarmos os alunos o que entendiam sobre esse conceito, alguns se manifestaram: “O infinito é uma coisa que nunca tem fim, que nunca chega ao final”; “O infinito é o Universo! Ele não tem fim, não tem limitação, é para sempre”; “São os números, porque nunca acabam”. Observando o quanto era imaturo esse conceito por parte dos alunos, pensamos na possibilidade de se confeccionar materiais grafotáteis, o que foi descartado, uma vez que materializar as ideias de conjuntos numéricos finitos e infinitos por meio de representações táteis se mostrou inadequada. Em seguida, pensamos na possibilidade de apresentar diferentes e diversos exemplos, usando apenas textos, exemplos e listas de exercícios acessíveis, o que também se revelou incipiente, uma vez que nossa preocupação perpassa pela ideia de colocar o aluno como protagonista nesse processo. Assim, após algumas discussões e pesquisas, decidimos utilizar um vídeo para aprofundar nossa abordagem e trazer outros/novos elementos que pudessem chamar a atenção dos alunos, provocando-os, no sentido de “desestabilizá-los”, pedagogicamente, para que pudessem construir seus próprios conceitos.

Escolhemos o vídeo intitulado “O hotel de Hilbert”, que faz parte da série “Matemática na Escola” de autoria de um grupo de pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e que possui acesso gratuito em um canal do YouTube, disponível em https://m3.ime.unicamp.br/recursos/1117. Os vídeos produzidos pelo canal procuram apresentar e introduzir assuntos relacionados à matemática usando documentários, ficções, história da matemática, recursos e representações gráficas para dar suporte ao conteúdo apresentado e foi exatamente essa gama de possibilidades que nos chamou a atenção para a utilização do recurso. Assistimos ao vídeo algumas vezes (enquanto grupo de pesquisas) e concluímos que se fizéssemos uma audiodescrição de algumas imagens e de algumas passagens, o recurso se mostraria acessível e suficiente para discutirmos as ideias ali apresentadas. Somado a isso, é importante proporcionar aos alunos com baixa visão atividades que explorem o resquício visual que possuem.

Resumidamente, o vídeo apresenta o gerente de um hotel, que possui infinitos quartos, tratando o problema de acomodar novos hóspedes quando o hotel já se encontra com os quartos todos ocupados por infinitos hóspedes. O primeiro problema surge quando à recepção chega uma pessoa querendo se hospedar no hotel, que já se encontra cheio. Para resolver esse problema, o gerente solicita que cada hóspede passe de seu quarto atual para o seguinte, abrindo assim uma vaga. Em seguida, um ônibus com infinitos passageiros procura o hotel em busca de vagas e o problema é solucionado pelo gerente que realoca novamente seus hóspedes, mas desta vez solicitando que cada hóspede vá para um quarto cujo número é o dobro do número do seu quarto atual. Assim, todos os quartos de número ímpar ficam vagos, gerando infinitas vagas para hospedar todos os passageiros do ônibus. O desafio continua quando se apresenta ao gerente uma excursão com infinitos ônibus, cada um com infinitos passageiros o que o leva a utilizar outras estratégias matemáticas para alocar os novos hóspedes, utilizando assim inúmeros conceitos matemáticos, tais como, números primos, potências, conjuntos finitos, infinitos, numeráveis e não-enumeráveis entre outras coisas.

O vídeo nos possibilitou discutir questões abstratas tais como a ideia de que o conjunto dos números inteiros, Z = {... -3, -2, -1, 0, 1, 2, 3, ...} e o conjunto dos números naturais, N = {0, 1, 2, 3, ...}, ambos infinitos, possuem a mesma quantidade de elementos, o que causou grande surpresa e curiosidade nos alunos, fazendo com que certezas se tornassem dúvidas e questionamentos, exatamente como gostaríamos. Outro ponto interessante se deu quando perguntamos quantos números existiam no intervalo de números reais compreendido entre os números zero e um: [0, 1]: “Existem dois números: o 0 e o 1”; “Não! Tem vários. Tem os decimais”; “Tem vários milésimos”.

Discutimos então a impossibilidade de ordenar os números existentes no intervalo [0, 1], devido a sua continuidade e pelo fato de “[...] sempre podermos inventar um número pra colocar no meio de outros dois”, embora fosse possível enumerar os números dos outros conjuntos (naturais, inteiros e racionais), uma vez que estes são discretos. “Os naturais dão pra ir de um em um, já no intervalo tem os milionésimos, bilionésimos”; “A matemática é muita doida, igual ao professor!!"; “Então o infinito não é um número muito grande”; “Já sei porque tem infinitos números, porque esse conjunto tem uma infinita longevidade”.

O vídeo possibilitou que explorássemos e revisitássemos episódios da história da matemática, falando brevemente sobre a vida do matemático David Hilbert, que tem muitas contribuições para a ciência e sobre a importância da história na compreensão de fatos e situações que vivenciamos nos dias de hoje, inclusive políticas e econômicas. Os alunos se sentiram motivados e passamos algumas aulas discutindo as ideias apontadas no vídeo. Alguns alunos disseram nunca terem ido a um hotel e outros disseram ser impossível um hotel com infinitos quartos. “Eu estava pensado: se tem infinitas pessoas nunca vai dar pra todo mundo trocar de quarto”. Observações estas que demonstram momentos de intensa reflexão e abstração das ideias abordadas.

Ao retomarmos a ideia dos diferentes “infinitos” e o fato de conjuntos, que aparentemente possuem mais elementos que outros, terem a mesma quantidade de elementos, um dos alunos se manifestou novamente: “Ainda não tô acreditando nisso”; “Ah... Por isso então você passou o vídeo do Hotel né, para nos convencer de que todos esses conjuntos [naturais, inteiros e racionais] têm a mesma quantidade de elementos”; “Foi pra deixar todo mundo doido aqui discutindo”.

A estratégia superou nossas expectativas, uma vez que, acima de tudo, conseguimos proporcionar aulas em que os alunos participaram ativamente das discussões, trouxeram suas experiências e contribuições e se sentiram “desafiados” a melhor compreenderem conceitos abstratos do conteúdo. Seguindo nossa proposta, apresentamos o conteúdo formalmente por meio de textos e atividades em Braille e em tinta, no formato ampliado. Usamos o Código Matemático Unificado para língua portuguesa (BRASIL, 2006) para apresentar a simbologia matemática envolvida nas aulas. Propusemos atividades e discussões em duplas para que os alunos com baixa visão, que puderam assistir o vídeo em seus celulares, pudessem compartilhar suas impressões com os alunos cegos, usando linguagem, exemplos e analogias próprias de suas experiências para discutirem os conceitos matemáticos envolvidos.

Ao pensarmos nas contribuições para as escolas regulares comuns, com alunos com DV incluídos, acreditamos ser essencial pensar em recursos que possibilitem que todos participem das aulas. A utilização de vídeos nas aulas se revelou interessante, uma vez que alunos com DV assistem TV, filmes e vídeos nos celulares com grande frequência, embora, muitas vezes necessitem de ajuda para uma melhor compreensão. Em nosso caso, o fato de apenas ouvirem o vídeo não os impôs dificuldades de compreensão, pois fizemos uma escolha planejada. A estratégia de colocar os alunos em duplas, um cego e um vidente, alternando os alunos videntes ao longo das aulas é uma forma interessante de se desenvolver uma cultura inclusiva no espaço escolar, uma vez que fortalece a ideia de que todos devem estar envolvidos nesse processo, todos são responsáveis e todos devem atuar de forma solidária (BOOTH, AINSCOW, 2011). Assim, estimular e incentivar a participação dos alunos com DV é uma ação, por parte do professor, que os possibilita participarem ativamente do processo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Iniciamos esse trabalho apontando a falsa dicotomia que parece existir entre escolas especializadas e escolas regulares comuns, uma vez que acreditamos ser essencial os recursos, as metodologias e as experiências acumuladas ao longo dos anos pela educação especial para o processo de inclusão. Assim, a educação especial não se contrapõe à educação inclusiva.

Estamos certos também de que o atendimento especializado em escolas regulares comuns deve ser complementar e/ou suplementar, o que significa dizer que este não deve substituir as aulas regulares com os demais alunos, pois acreditamos que a inclusão é um direito e uma conquista, garantidos por leis. Assim, seria interessante que as redes de ensino pudessem equipar, senão todos, alguns de seus espaços escolares, tais como escolas polo, estruturadas de forma adequada para receber e atender os alunos com deficiências e aqueles com necessidades educacionais especiais no contraturno. Esses espaços funcionariam de forma articulada com as escolas regulares dos alunos e se constituiriam por profissionais com formação em educação especial, com recursos e estrutura adequados aos estudantes. Além disso, poderiam se configurar como locais de formação/capacitação aos demais profissionais das redes de ensino, bem como possibilitariam a importante troca de experiências e o contato direto dos alunos com deficiência com seus pares e com pessoas com outras deficiências, contato esse de grande importância para estudantes cegos em formação.

Avançando nas contribuições da educação especial, propomos a utilização de diversificadas estratégias, recursos e metodologias para a educação de pessoas com DV. Apontamos o uso do Sistema Braille como essencial; o uso de representações táteis, sempre que possível e a utilização de vídeos. Destacamos também, a importância de levar os alunos a explorarem outros espaços, para além da sala de aula, necessários para a oferta de experiências diversas que, entre outras coisas, possam explorar seus sentidos remanescentes.

Não temos respostas prontas para os questionamentos que fizemos ao longo do trabalho, mas deixamos como reflexão a importância de se trabalhar em busca de desenvolvermos políticas, culturas e práticas que se revelem como inclusivas e, acima de tudo, promovam inclusão social. Cabe às redes de ensino disponibilizarem estrutura e a aquisição de equipamentos necessários para atender as especificidades dos alunos no processo de inclusão. Em relação a essas questões, nossa instituição nos subsidia com uma estrutura adequada à produção de materiais didáticos em Braille, tipo ampliado e materiais grafo-táteis. Possui uma impressa Braille, um setor de adaptação e transcrição de materiais em tinta para o Braille e equipamentos, como a máquina termo duplicadora, para a produção de materiais grafo-táteis em larga escala. Todos esses materiais produzidos, são públicos, encontram-se disponibilizados no website2 da instituição e podem ser enviados, sem custos, para outras instituições públicas. Além disso, as salas de aula, banheiros e os demais setores da escola possuem identificação em tinta, em formato ampliado e em Braille, com o objetivo de proporcionar autonomia aos alunos e favorecer ao professor expandir suas práticas para além da sala de aula, o que consideramos de grande importância. Mudanças arquitetônicas e as questões de acessibilidade estão atreladas a dimensão do desenvolvimento de políticas, algumas delas relacionadas a investimentos. Entretanto, outras mudanças mais simples, porém significativas, podem ser implementadas pelos próprios gestores, tais como a remoção de barreiras físicas no ambiente escolar e a comunicação em formato digital (e-mail) ou por meio do Sistema Braille, em comunicados, quadros de aviso e boletins escolares, por exemplo.

Assim, concordamos com Vieira (2006) quando este destaca que a escola, seja ela especializada ou regular comum, precisa ser acolhedora em todas as suas instâncias e deve buscar uma rede de apoio colaborativo, o trabalho em equipe e a aprendizagem deve se dar, também, de forma colaborativa. A busca pelo estabelecimento de parcerias é o caminho que nos parece mais efetivo, uma vez que o processo de inclusão se revela complexo e as leis, em certos casos, existem apenas no papel.

Por fim, reconhecemos que a realidade de uma escola especializada é bem diferente daquela encontrada nas escolas regulares comuns, denominadas inclusivas. O IBC possui poucos alunos em sala, em torno de dez, professores capacitados e alguns com larga experiência na educação de pessoas com DV, além de estrutura adequada e espaço acessível, pensado e planejado para as necessidades de seus alunos. No entanto, esperamos que esse trabalho possa contribuir para outras/novas discussões e que possa servir de inspiração a todos aqueles que desejem atuar numa perspectiva de formação mais ampla, abrangente e significativa para os alunos com DV.

1A Geosmina é um composto orgânico amplamente conhecido pelo agradável cheiro de terra molhada. Essa molécula pode ser sintetizada por alguns microrganismos, tais como as bactérias Streptomyces e Actinomicetos, Cianobactérias (algas azuis) e os fungos.

REFERÊNCIAS

BOOTH, Tony; AINSCOW, Mel. Index para Inclusão: desenvolvendo a aprendizagem e a participação na escola. Trad. Mônica Pereira dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: LaPEADE, 2011. [ Links ]

BRASIL. Decreto n. 7611. Brasília, 2011. [ Links ]

BRASIL. Código Matemático Unificado para a Língua Portuguesa. MEC/Brasília, 2006. [ Links ]

CRESWELL, John. W. Projeto de pesquisa: método qualitativo, quantitativo e misto. Trad. Magda França Lopes. 3. ed., Porto Alegre: Artmed, 2010. [ Links ]

MADER, Gabrielle. Integração da pessoa portadora de deficiência: a vivência de um novo paradigma. In: MANTOAN, Maria Teresa Égler (org.). A integração de pessoas com deficiência. São Paulo: Memnon, 1997. p. 20-37. [ Links ]

MITTLER, Peter. Educação Inclusiva: contextos sociais. Porto Alegre: Artmed, 2003. [ Links ]

ROSA, Paulo Ricardo da Silva. Uma introdução à pesquisa qualitativa em ensino de ciências. Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 2013. [ Links ]

SANTOS, Mônica Pereira; SILVA, Manoella Rodrigues Pereira Senna Vasconcelos da; PINTO, Regina Maria de Souza Correia; LIMA, Carolina Barreiros. Desenvolvendo o Index para Inclusão no contexto brasileiro: experiências de reflexão/ação sobre processos de inclusão e exclusão em Educação. Percurso acadêmico, Belo Horizonte, v. (7), n. (14), p. (332-350), jul./dez. 2017. [ Links ]

VIEIRA, Carmelino S. Alunos cegos egressos do Instituto Benjamin Constant (IBC) no período de 1985 a 1990 e sua inserção comunitária. 364f. Tese, Doutorado em Saúde da Criança e da Mulher, Instituto Fernandes Figueira, Fiocruz, Rio de janeiro, 2006. [ Links ]

Recebido: Fevereiro de 2021; Aceito: Abril de 2021

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