INTRODUÇÃO
A apropriação do discurso de defesa da educação escolar de crianças e adolescentes com deficiência na escola comum e as ações mobilizadas por governos, sociedade civil e movimentos sociais visando a esse fim, especialmente a partir da década de 1990, resultaram em um aumento significativo desses estudantes nas redes regulares de ensino do Brasil. No entanto, ao analisar as experiências educacionais escolares com esses alunos, além da permanência de um modelo médicopsicológico, que marca a história da instrução das pessoas com deficiência no país (JANNUZZI, 2012) e que responsabiliza o indivíduo e seu laudo clínico pelos insucessos acadêmicos (MONTEIRO, FREITAS, CAMARGO, 2014), observamos práticas de ensino que pouco investem nas capacidades simbólicas e no desenvolvimento cultural desses estudantes (DAINEZ, SMOLKA, 2019; FREITAS, MONTEIRO, 2010).
No tocante à formação de professores, as ações governamentais, na sua maioria, estiveram centradas na formação continuada a partir de sistemas multiplicadores e à distância (KASSAR, 2014). Tais ações, por um lado, objetivavam otimizar tempo e recursos e, por outro, traduziam a crescente desvalorização da formação inicial e teórica em detrimento da formação em serviço e prática (MICHELS, 2011; VAZ, GARCIA, 2015). Considera-se ainda a intrínseca relação dessas questões com outros problemas do percurso histórico da formação de professores no país, marcado, além da heterogeneidade das instâncias formativas, pelas dissociações da formação das condições de trabalho e, sobretudo, nos cursos voltados para atuação nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio, pela pouca atenção destinada à preparação didático-pedagógica (SAVIANI, 2009).
Mais recentemente, o debate da formação de professores para a educação especial em uma perspectiva inclusiva ganhou novos contornos, uma vez que, além da aprovação e da homologação, a portas fechadas, de novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores para a educação básica (BRASIL, 2019, 2020), documentos que reforçam um modelo tecnicista de educação, fortalece-se um discurso que, ao nivelar as contradições e os paradoxos da proposta de educação inclusiva (SOUZA, 2018), culpabiliza a escola e seus agentes pelos insucessos da Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008). Dizeres que tomam forma, por exemplo, no contexto de influência e na materialização do Decreto n. 10.502/2020 (BRASIL, 2020), que, apesar de suspenso, representa um dos ataques à concretização da educação especial como direito público, gratuito, laico, de gestão democrática e de qualidade socialmente referenciada1.
Silva, Lodi e Barbieri (2015), por exemplo, ao analisar as grades e o plano de disciplinas que tratam da questão da inclusão e a partir de entrevistas com docentes universitários e discentes da licenciatura, observam que o conceito de inclusão abordado pouco tem dialogado com as práticas educacionais, concluindo que a formação para a diversidade ainda não se constitui como realidade.
Assim, no âmbito do debate proposto neste dossiê, questionamo-nos acerca dos encontros possíveis da formação nas licenciaturas com as práticas pedagógicas inclusivas na educação básica. Temos como objetivo analisar as possibilidades formativas na licenciatura para as/nas práticas pedagógicas inclusivas na escola comum.
Para esse fim, tomamos como base um estudo de campo realizado no Estágio Supervisionado em Educação Inclusiva de um curso de licenciatura, interpretando os sentidos em (re)construção nos diálogos entre pesquisador, professora formadora e professores em formação.
Partimos do pressuposto da constituição histórica e cultural da consciência nas relações humanas (VIGOTSKI, 2009), mediadas por significados e sentidos que engendram forças sociais concretas (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2014). Nessa direção, ao analisar os processos de significação, atentamo-nos às formas de participação do indivíduo em uma corrente de comunicação verbal ininterrupta e aos modos que, nas relações com os outros, os professores em formação apropriam-se (das) e (res)significam as práticas de ensino com os alunos com deficiência.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
O estudo de campo foi realizado na supervisão do Estágio em Educação Inclusiva, componente ministrado para alunos do sétimo semestre de um curso de licenciatura em Letras - Língua Portuguesa, como parte de uma pesquisa de mestrado acadêmico (AMARAL, 2019). Participaram do trabalho quinze estagiários, professora formadora e pesquisador.
No tocante aos aspectos éticos, os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido concordando com a participação, a gravação de áudios e a divulgação de transcrições dos episódios, desde que resguardadas as identidades. Desse modo, os nomes utilizados são fictícios2.
No total, foram acompanhados quatorze encontros na universidade, entre os meses de fevereiro e junho de 2017. Para compor este texto, selecionamos três episódios que indiciassem os modos como os futuros professores se apropriam da prática pedagógica com alunos com deficiência na escola comum.
As análises dos episódios se fundamentam nas proposições de Vigotski acerca da gênese social do psiquismo, no diálogo com a perspectiva enunciativo-discursiva de Bakhtin e seu Círculo. Como unidade de análise, voltamo-nos à palavra enquanto materialidade histórica e cultural, carregada de sentidos e enquanto motor da consciência que reconfigura e move as compreensões de mundo e a relação dos indivíduos com os outros, consigo e com a realidade. Com base em Vigotski, entendemo-la ainda como propriedade tanto do âmbito do pensamento quanto da linguagem (VIGOTSKI, 2009), que transpõe o mais íntimo do/no humano, (re)constituindo, em constante negociação com os signos internamente apropriados, a coletividade humana, em um desenvolvimento marcado por um movimento não linear e contraditório.
Assim, enquanto procedimento de análise, guiamo-nos pela interpretação de um fenômeno em curso (VYGOTSKI, 2000) a partir da penetração nos sentidos mais gerais da palavra e naqueles assumidos em dado contexto (BAKHTIN, 2011). Encaramos, pois, o papel constitutivo do signo e os modos que dialogicamente a palavra se insere nas relações analisadas.
FORMAÇÃO NA LICENCIATURA E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS INCLUSIVAS: SENTIDOS EM (RE)CONSTRUÇÃO
A seguir, analisamos três situações que estão dispostas conforme o tópico discutido. O primeiro episódio apresenta uma discussão voltada para a avaliação dos alunos com deficiência intelectual na escola comum, já os outros dois trazem debates sobre práticas pedagógicas no ensino de língua portuguesa para estudantes surdos.
Situação:3 Fernanda relata uma situação vivenciada na escola em que realiza o estágio, indicando o modo como os professores atribuem conceitos para os alunos com deficiência.
1-3. Fernanda:
Essa semana teve uma discussão muito grande na escola porque o terceiro do médio tem dois alunos que são de inclusão. [...] E é claro que eles não têm o mesmo rendimento que os outros, até porque os professores não param para preparar aula especificamente para eles. [...] Eles tiveram nota abaixo da média, e, na hora de fazer os fechamentos, os professores colocaram seis, entendem? Colocaram a média para que eles acompanhassem. Uma parcela dos alunos também ficou de recuperação. Esses alunos ficaram revoltados e começaram a fazer um monte de postagens em redes sociais, dizendo que eles achavam injusto aqueles alunos terem passado enquanto eles ficaram de recuperação. [...] Enfim, deu o maior bafafá, e eu fiquei pensando sobre o assunto. Olha como é essa questão de o aluno estar em sala de aula e os outros não entenderem que ele também é parte deles, né? Não defendem a causa nem entendem a importância de eles estarem ali.
4. Professora:
Mas, talvez, aí, Fernanda, tem uma coisa que é um pouco contraditória. Por um lado, eles quererem exigir que o outro aluno [com deficiência] também seja tratado igual a eles significa que eles estão tratando esse aluno como um colega que também tem que ser cobrado. É um pouco contraditório, né? O problema no relato que você conta é que, na verdade, a escola promove uma competição entre os alunos e uma valorização muito maior da nota, do produto final, e não do processo de aprendizagem. O pior é que nossas escolas geralmente fazem isso, o que vai acarretando numa falta de interesse dos alunos por aprender. [...] o problema é que você teria que investir no interesse por estudar. Levar o aluno a estudar porque quer conhecer as coisas, porque quer saber fazer, porque tem interesse no conteúdo.
5. Eni:
Nesse caso, acho que não é tanto a falta de empatia. Talvez eles pensem assim “Se eu fui mal e ele foi mal, qual é o critério? Só por que é aluno especial?”.
[...]
10. Professora:
Esse tipo de avaliação incentiva você a dar importância para o produto, para a nota, não para o aprender. Mas a gente está na escola para aprender, não é? [...] Eu fico pensando que isso não é problema de conscientização dos alunos, é um problema de conscientização da escola, de que a escola tem como função ensinar, trabalhar o processo de desenvolvimento, e não avaliar aluno para passar, ou não passar, né?
[...]
13-15. Pesquisador:
[...] A gente tem um sistema no qual quanto menos alunos você reprova na escola, maior é o retorno financeiro, a questão do bônus [...]. O sistema influencia para que se faça isso. Ele diz que se reter o aluno, você não vai ganhar bônus, então você vê que…
16. Eni:
É uma empresa, né?
[...]
20. Fernanda:
Essa questão da competitividade é só o que é válido. É como a
Eni estava relatando outro dia, é ensinar o aluno a acertar o xis. É a nota final…
24. Eni:
É. E a escola ensina para os alunos, independentemente se eles têm deficiência ou não, seja melhor, tenha a melhor nota, isso vai fazer você ser e ter um futuro. E está mentindo! Mesmo que estivesse certo, está errado. É mentira, porque quem vai conseguir as melhores coisas vai ser quem indica, vai ser o QI.
[risos]
25. Fernanda:
É essa meritocracia que é pregada, né?
26. Eni:
Não existe a meritocracia, e aí eles pregam isso. E é uma mentira! Se fosse verdade, seria ruim, mas é ainda pior porque eles estão ensinando algo para o aluno que na vida profissional, ou se eles forem para o ensino superior, não é assim que funciona. [...] É pior para eles porque daí eles já começam com a desvantagem de não ter tido o mesmo percurso que uma pessoa comum teve.
(Transcrição de áudio, 4 de maio de 2017).
No turno 1, está pressuposto a noção de que o aluno de inclusão é aquele que não é da escola, o que autorizaria sua exclusão dos processos avaliativos, questão que é (re)afirmada quando Fernanda declara que os estudantes com deficiência “não têm o mesmo rendimento que os outros”. Os alunos se encontram inseridos na trama das relações da escola, afetando-as, porém, excluídos do conhecimento, já que as suas formas de participação não são avaliadas.
Freitas (2004, p. 163) trata da viabilização, com as reformas educacionais da década de 1990, de novas formas de exclusão pelo interior do sistema escolar que se apoiam numa avaliação informal:
[...] que afeta a autoestima do aluno (positiva ou negativamente) e conduz à montagem de um novo metabolismo escolar baseado em trilhas de progressão diferenciadas [...] num processo que adia a exclusão até pontos mais altos da cadeia escolar.
Ainda para o autor, alguns dos pontos de ancoragem da exclusão dentro da escola estão na seriação intra e extraclasse das atividades concentradas em um tempo único, bem como pela inexistência de serviços apropriados disponíveis.
De início, no relato de Fernanda, o laudo reafirma o (não) rendimento dos alunos. A palavra rendimento, um signo que não é neutro, mas atravessado por uma história e por uma visão de mundo, marca as relações na escola, já que traz, entrelaçado no discurso educacional, o campo econômico capitalista, a noção de lucro. Sobre isso, como assinalam Bakhtin/Volochínov (2014), a palavra é uma arena de luta, povoada por uma multiplicidade de vozes. A aparente neutralidade dá indícios dos modos que o discurso educativo incorpora tais lógicas no seu funcionamento e as maneiras que esses dizeres marcam as relações na escola.
As compreensões da avaliação dos alunos, com ou sem deficiência, na escola comum vão se (re)constituindo no espaço de interlocução no estágio. No turno 4, a professora supervisora indica o que, aparentemente, Fernanda ainda não se atentava, ao sinalizar que o problema não está necessariamente nos alunos, mas no clima competitivo e na valorização da nota. A fala da professora desencadeia outras compreensões sobre a avaliação, já que, logo em seguida, Eni diz que entende que o problema não estaria concentrado na (falta de) empatia dos outros alunos.
Nos turnos 10 e de 13 a 15, a professora supervisora e o pesquisador ainda apontam as formas alienadas das relações na escola, as quais expropriam os reais motivos da atividade de ensino, que adquire um sentido voltado somente ao alcance de índices.
Sobre isso, Varani e Balsamo (2015, p. 132) dizem que a avaliação externa induz o trabalho dentro da escola, consolidando-se enquanto um fim a ser alcançado. Como apontam, exigem-se “[...] padrões de qualidade total para a educação pública, com escolas eficientes, professores executores dessa demanda e alunos capazes de produzir o que o sistema determina”. Em outro estudo, Nogueira e Varani (2016) apontam que os professores, diante das exigências hasteadas por essas avaliações, encaram a deficiência como um elemento a mais a ser superado em nome do índice.
No episódio, quando são introduzidos o funcionamento produtivo da sociedade capitalista (t. 13; t. 16) e a meritocracia (t. 26), isto é, a ideologia política pautada na ideia daqueles que têm mais mérito, os estagiários encontram terreno no funcionamento da escola e nas relações estabelecidas nesse espaço para noções abstratas apreendidas e que, na interlocução do estágio, incorporam novas relações de generalidade (VIGOTSKI, 2009).
Nesse movimento, como se vê nas falas de Eni e Fernanda entre os turnos 24 e 26, a meritocracia entra no horizonte apreciativo dos estudantes, ganhando um contorno valorativo negativo, vinculado à injustiça - diferente, portanto, das ideologias liberais.
Situação:
Anna, Luiz Antônio e Roxane apresentam um seminário com base na leitura de um artigo que discute o ensino de Português para estudantes surdos. Na apresentação, Anna, que, além do estágio, atuava como professora de inglês em uma escola pública estadual, relata que seus alunos surdos, na educação básica, não conjugam verbos na língua portuguesa e que, por isso, não corrigia a desinência verbal nessas produções. Ao considerar tal relato, a professora formadora problematiza o domínio de língua portuguesa como segunda língua para estudantes surdos.
1-4. Vanda:
Não é questão de errado. Quanto mais ele tem contato com a primeira língua, mais fácil ele vai aprender a segunda língua. Aprender as duas línguas simultaneamente é muito difícil. Por exemplo, conjunção e preposição, eles também não falam. Eles não dizem “Eu vou junto com você”, é “Eu junto você” [faz gestos]. Isso porque a língua dele é constituída assim. Então, como na língua dele não tem essa necessidade das conjunções ou dos verbos no passado, eles indicam com o “ontem” [faz gestos]. [...] Quanto maior a apropriação da língua materna deles, melhor será o desenvolvimento da segunda língua. Se ele sabe uma, ele tem mais facilidade para aprender a outra.
5. Professora:
Muitas vezes, o surdo chega à escola sem a língua de sinais, o que não acontece com o ouvinte. O ouvinte já chega à escola com uma língua. Esse é um problema que acontece porque o surdo não teve contato...
6. Eni:
Por isso falam que ele tem dificuldades intelectuais também...
[...]
10. Pesquisador:
Temos que ter um outro olhar para o texto do surdo, principalmente quando consideramos essa passagem de uma língua visual para uma verbal, para um sistema silábico, como a Lourdes4 disse na semana passada. Quando pegamos o texto de um aluno surdo, é importante ter essa percepção de que é uma segunda língua para ele, e se questionar “O que eu posso corrigir primeiro?” Será que vale a pena fazer todas as correções? Coerência, coesão, ortografia... o aluno vai receber esse texto e vai fazer o quê?
11. Eni:
Não vai refazer. É mais fácil começar pelo sentido, considerando o grau de apropriação da língua portuguesa que ele tem.
12. Pesquisador:
Sim! Temos que ter todo um cuidado com esse texto. Mas também não é chegar e falar “Ah, ele é surdo, então deixa assim”.
13. Professora:
Sim. Você tem que ensinar o correto...
14. Luiz Antônio:
Mas ponderar, né?
15. Professora:
Sim. Temos que trabalhar pensando que isso tem que ser considerado, mas não com o mesmo rigor que é no ensino da primeira língua.
16. Eni:
É como o ouvinte. Nós sabemos que pedagogicamente não é bom corrigir tudo no texto...
17. Pesquisador:
É! Senão, ele desanima...
18. Eni:
Ele desanima... e a questão do surdo, além de você considerar que ele não tem acesso total e não é fluente na língua portuguesa, é pensar “O que corrigir?”. Acho que podemos começar pelo sentido e, depois, se ele está aprendendo verbo, é verbo que ele vai aprender. Se for pronome, é pronome que ele vai aprender. É como fazemos com o ouvinte, mas considerando que é o ensino de uma segunda língua. E ainda de uma língua que é... gesto-visual.
(Transcrição de áudio, 23 de março de 2017).
Entram em jogo, nos dizeres acima, concepções de deficiência e educação. A esse respeito, na psicologia histórico-cultural e na perspectiva enunciativo-discursiva, a própria individualidade pode ser compreendida enquanto signo se considerarmos que ela é passível de ser significada, adquirindo sentidos e constituindo o eu para o outro e para si. De fato, os modos que a criança e o adolescente com deficiência são significados dão indícios das práticas pedagógicas desenvolvidas, assim como as embasam.
Jannuzzi (2012) sintetiza algumas concepções que historicamente orientam as práticas educativas formais com as crianças e os adolescentes com deficiência no Brasil. Enquanto fruto da forte influência exercida pela medicina e pela psicologia no trabalho educativo com essas pessoas, a autora destaca um bloco de concepções centradas apenas na deficiência, na diferença em relação ao considerado normal. Enquadram-se, nesse bloco, as vertentes médico-pedagógica e psicopedagógica: a primeira caracterizada pela subordinação às determinações do diagnóstico médico; e a outra, não independente do modelo médico, que enfatiza os princípios organicistas.
Lehmkuhl (2015) e Camizão e Victor (2015), ao analisarem propostas formativas e discursos de profissionais que atuam no Atendimento Educacional Especializado, identificam que o maior foco da formação de professores não rompe com as vertentes médico-pedagógica e psicopedagógica. Realçam também a hegemonia do modelo médico-psicológico, o que secundariza a formação, o saber pedagógico e a autonomia do professor.
No episódio, as marcas desse predomínio aparecem inicialmente no relato de Anna, uma vez que ela compreende a surdez como condição que limita as relações de ensino de língua portuguesa como segunda língua. A professora supervisora, ao problematizar a afirmativa da estagiária, indica que a instrução não está restrita às condições orgânicas, já que é, na realidade, da esfera da cultura, em uma concepção que se volta ao indivíduo (com deficiência) da/na história (VYGOTSKI, 1997). A partir daí, a discussão vai assumindo outros contornos quando Vanda, que atuava como intérprete de Libras, trata de elementos específicos da língua de sinais, como a construção de períodos sem a necessidade do uso de alguns conectivos e da indicação do tempo verbal pela sinalização do advérbio ontem.
Entre os turnos 1 e 4, Vanda aborda também a questão da apropriação linguística. Indica que, quanto maior for o domínio pelo surdo da língua de sinais, maior será a facilidade para aprender o português. A discussão desse ponto permite que Eni considere os modos sociais de produção do déficit: “Por isso falam que ele tem dificuldades intelectuais também”. Essa fala polemiza (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2014) com um discurso (hegemônico) que centraliza o problema no aluno.
Respaldados pelos sentidos e significados em circulação, constroem-se modos de atuação com os alunos surdos. Isso fica nítido na maneira que, entre os turnos 10 e 18, estagiários, professora supervisora e pesquisador negociam as práticas de ensino em língua portuguesa, considerando aquilo que é específico (a importância da Libras como língua materna e o português como uma segunda língua) e geral (o trabalho com o sentido do texto).
Portanto, os modos de atuação docente emergem orientados pelos sentidos em circulação na supervisão, o que subsidia e constitui as práticas de ensino com o alunado da educação básica. Assim, entendemos que a docência e sua formação ultrapassam a mera aquisição de determinadas técnicas, envolvendo concepções e sentidos de escola, de aluno, do papel do ensino e do professor.
Situação:
Os alunos debatem um plano de ensino elaborado por Anna, Luiz Antônio e Roxane. Os estagiários apresentaram uma sequência didática do gênero debate regrado para uma turma de nono ano com dois alunos surdos. Neste dia, havia duas professoras convidadas que lecionavam na universidade, com o intuito de dar sugestões para a elaboração da segunda versão dos planos de aulas.
1. Eni:
Debate regrado tem que envolver necessariamente pessoas que são a favor ou contra algo. Vocês falaram que será feito debate, mas eu não entendi como eles [alunos surdos] participariam com frases... só se eu entendi errado... se foi isso mesmo, só para não falar que eu apontei algo e não entreguei sugestão, o que eu faria... debate regrado, além de envolver turnos, tem que envolver tempo. E é óbvio que o aluno surdo vai precisar de mais tempo, seja se for para a intérprete falar para o professor e ela fazer a voz, ou para ele [aluno] escrever. Poderia mudar isso. Se o grupo tem direito de falar três ou quatro minutos, ele poderia falar mais... Falar não, né, escrever. Escrever a argumentação. Senão, não é debate regrado, é conversa...
[...]
6. Anna:
O problema é que nosso grupo levou em conta a dificuldade que a gente encontra na sala de aula para incluir. Realmente é muito difícil...
7. Eni:
Mas aí eles não vão fazer debate, eles só irão estudar o assunto.
8. Luiz Antônio:
Sim. Na proposta, a gente tira essa ideia da regra... de como dar tempo...
9. Eni:
Mas pode adaptar a regra...
10. Luiz Antônio:
A gente pensa em oportunizar a opinião dele através do que estamos fazendo com o banco de imagens... a gente realmente vai ter que introduzir ele no contexto, né? Daí pensamos em inicialmente fazer o gênero bilhete.
[...]
18. Professora convidada:
E aí você tem que encontrar caminhos alternativos.
19. Anna:
A nossa proposta não foi definir tanto as regras... a nossa proposta foi incluir o surdo na discussão.
20. Vanda:
Mas aí que está. Se o surdo tem a intérprete, ele vai ser incluído a partir da intérprete...
21. Professora convidada:
Mas ele não pode ser incluído só pela intérprete. Ele tem que fazer parte.
22. Vanda:
Não, sim...
[falas simultâneas]
23. Beth:
A proposta do plano é fictícia. Tinha que criar como se fosse...
24. Eni:
A apostila traz esse tema [meio ambiente]. Mas a gente está aqui para adaptar. Sem contar que, em sala de aula, nós somos soberanos. Se a gente quiser mudar o tema, a gente muda. Se você abrir esse caderno, está escrito “material de apoio” [referindo-se ao material didático]. Então é para apoiar. Não é para você ficar engessado. Ela [professora convidada] falou que o tema pode ser polêmico, mas se você quiser escolher outro tema, você pode.
25. Anna:
Mas, num primeiro momento, nós adaptamos a proposta.
26. Maria Helena:
O que poderia ser feito...
[falas simultâneas]
27. Luiz Antônio:
Sem brigar, gente!
28. Eni:
Fiquem calmos!
[falas simultâneas]
29. Beth:
Aqui está todo mundo calmo! [risos]
30. Maria Helena:
O que poderia fazer é pegar a questão visual da charge, que, além de visual, é argumentativa. E aí trabalhar com a opinião...
(Transcrição de áudio, 11 de maio de 2017).
O episódio apresentado é a situação mais recente analisada. Isso é sinalizado porque observamos nele maior participação dos estagiários no debate sobre a prática de ensino com o aluno com deficiência. As outras situações nos dão alguns indícios do percurso formativo e do movimento intencional que mobilizou maior autonomia na defesa de distintos pontos de vista acerca das relações de ensino na educação inclusiva.
Eni chama atenção para dois aspectos do plano de aulas elaborado pelo grupo de Anna, Luiz Antônio e Roxane. O primeiro está relacionado à participação dos alunos surdos no momento do debate regrado, que estava restrita à elaboração de frases; e o outro é em relação à temática escolhida, meio ambiente. Na exposição da sequência didática, o grupo sugere que a participação a partir de frases foi proposta com o intuito de contribuir com o enriquecimento do vocabulário dos surdos. Eni, contudo, contesta a proposta, vendo-a como minimalista, uma vez que não proporciona a participação efetiva dos estudantes na produção do gênero textual: “Senão, não é debate regrado, é conversa”, o que corrobora aquilo que é assinalado por Góes (2007, p. 74) quando aponta as limitações das adaptações curriculares que ocorrem na própria sala de aula. A autora diz que “Para uma educação especial, mesmo (ou sobretudo) na inclusão, são indispensáveis projetos diferenciados e não apenas pequenos ajustes”. Notamos, na fala da estagiária, a importância conferida à participação dos alunos nas práticas discursivas e textuais.
Voltando-se a um fim formativo comum, um dos caminhos indicados por Eni é a sugestão de um tempo maior de fala para os alunos surdos subsidiado pela tradução da intérprete ou pela escrita dos argumentos.
A discussão que se desdobra entre os estagiários sugere as múltiplas (im)possibilidades das práticas pedagógicas inclusivas em sala de aula. Ademais, indica a maneira que as dimensões sociais, políticas e econômicas afetam a atuação do professor: “nosso grupo levou em conta a dificuldade que a gente encontra na sala de aula para incluir”. Em outros momentos, Anna explicita que essas dificuldades estão relacionadas à falta de intérpretes nas escolas, à pesada carga horária de trabalho e ao escasso tempo para a preparação de aulas.
Enquanto sujeitos históricos marcados pelos valores e dizeres de determinados tempos e espaços, percebe-se o modo que o discurso da inclusão aparece nos dizeres dos licenciandos. No episódio, incluir está relacionado com uma ação (a ser) realizada por outras pessoas, no caso, pelo professor e/ou pelo intérprete.
A despeito desse verbo, como analisa Cury (2016), tomando-o em seu significado mais estável, incluir está associado à ação de colocar algo ou alguém dentro de outro espaço do qual se encontra necessariamente excluído. Reveste-se, então, de sentido a partir da relação entre a inclusão e a exclusão. Identifica o autor que o verbo provém do latim includere - in/claudo/ere (cludo, cludere) -, que significa fechar, encerrar. O termo claustro participa da origem da palavra enquanto espaço do qual alguns fazem parte. Nessa direção, incluir é “[...] entrar no claustro, entrar em um lugar que encerra determinadas vantagens” (CURY, 2016, p. 17).
No decorrer do episódio, observamos que o aluno não aparece como o sujeito que realiza a ação de ser incluído. Pelo contrário, há certo consenso no sentido de entender que o estudante com deficiência é, na realidade, o objeto da inclusão realizada por outra pessoa. Entretanto, essa ação não apresenta sentidos uniformes. No episódio, uma prática pedagógica inclusiva aparece como: possibilidade de participação na escola (t. 6); participação em sala de aula, mesmo com conteúdo paralelo e/ou reduzido (t. 10; t. 19); ligado aos serviços de apoio oferecidos em sala de aula e na escola (t. 20); e participação plena no grupo, não se esgotando no oferecimento dos serviços especializados (t. 21). Além disso, há o sentido defendido por Eni, que está vinculado à participação plena do aluno nas atividades da turma, com tempos e modos diferenciados, visando aos mesmos fins formativos (t. 1; t. 7; t. 16). Esses diferentes sentidos mostram como as práticas de ensino e a participação na escola comum tendem a ser negociadas, entendidas e significadas.
Apoiados nos argumentos de Bakhtin/Volochínov (2014), compreendemos que o conteúdo interno da palavra concentra mudanças sociais ocorridas e pressiona movimentos a partir das constantes negociações de sentidos. O verbo incluir e suas formas de materialização nos cotidianos das escolas vão sendo (res)significados em tramas histórica e socialmente (re)definidas. Hoje, no campo da educação, enquanto reflexo do discurso predominante sobre a inclusão, partese da responsabilidade de outros agentes pela participação do aluno com deficiência. No entanto, essa participação entra em negociação permeada pelas condições concretas e pode ser entendida de diferentes modos: como uma suposta socialização, pela apropriação dos conhecimentos historicamente construídos ou até mesmo pela simples frequência do aluno nas aulas e/ou no Atendimento Educacional Especializado.
É importante, dessa maneira, que esses sentidos sejam pensados e problematizados em espaços específicos nos cursos de licenciatura e, especialmente no caso do estágio, a partir de situações concretas e vivenciadas nas escolas de educação básica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008), embora alvo de pertinentes críticas, permitiu traçar delineamentos diferenciados na organização escolar. Quando consideramos o percurso histórico da escolarização da criança e do adolescente com deficiência no Brasil, trata-se de uma conquista, uma vez que a compreensão da educação especial como modalidade de ensino transversal, além de indicar a preocupação com a educação desses estudantes como compromisso público, sinaliza as necessidades de mudanças das práticas pedagógicas na escola comum.
A implementação dessa política, no entanto, como já indicado, nivelou a base societária altamente excludente em que é proclamada, responsabilizando quase exclusivamente o aluno com deficiência, o professor e sua (falta) formação pelos (in)sucessos da proposta inclusiva.
Em outubro de 2020, na mesa Formação inicial e continuada de professores regentes e de educação especial5, a professora Denise Meyrelles de Jesus disse que, tanto na formação de professores regentes quanto especializados, precisamos criar subjetividades rebeldes, que seriam aquelas que não se acomodam às condições postas. Corroborando o apontamento, no cenário atual, entendemos a rebeldia enquanto via de luta e de garantia de uma educação especial como direito público.
Neste estudo, tomamos os processos de significação enquanto instâncias potenciais de reconfiguração de sentidos, encarando as interlocuções na supervisão do estágio como formas de desestruturar o dado, de questionar a realidade. Como se vê na análise dos episódios, uma prática pedagógica inclusiva se constrói subsidiada por diferentes conceitos, como de educação, deficiência e inclusão, ideias que podem se (re)constituir nos diálogos com os professores em formação. Conceitos que indicam ainda as formas de apropriação do real como maneiras ideologicamente orientadas e que remetem a discursos socialmente (re)construídos.
A expropriação do caráter crítico da educação escolar guiada, entre outros elementos, por políticas e movimentos conservadores, assim como pela tendência tecnicista de educação que tem embasado os atuais marcos regulatórios, leva-nos a realçar a importância de um projeto intencional formativo voltado para o compromisso com a participação de todos os alunos nas práticas pedagógicas, ampliando as possibilidades e as formas de relação dos estudantes com deficiência com a cultura (DAINEZ, SMOLKA, 2019). Indicamos também a necessidade de espaços, no currículo das licenciaturas, que não só garantam o debate acerca das práticas com os estudantes com deficiência nos diferentes componentes curriculares, como componentes específicos que permitam desvelar as condições concretas em que a inclusão desses alunos é proclamada, (re)pensando formas de construção de novas relações nos diferentes espaços sociais.