A presente resenha busca apresentar a obra “Memórias de plantação” escrita pela Drª Grada Kilomba, a obra publicada em 2009 na Alemanha e foi recentemente traduzida para o português. As discussões trazias nesse livro promovem reflexões analíticas acerca do modo como o racismo opera nas sociedades modernas ocidentais. O livro está organizado em quatorze capítulos, e na versão traduzida para o Brasil conta também com uma carta da autora aos leitores/as brasileiras.
A autora inicia a obra com uma carta aos leitores/as brasileiras pontuando as tramas que envolveram a escrita do livro, menciona suas vindas ao Brasil e, principalmente, discute a linguagem utilizada na tradução do livro. A autora expõe sua preocupação no modo como as traduções podem acarretar interferências de gênero e que tendem a predominar para o masculino, assim, desse modo Kilomba (2019) ressalta a importância da linguagem não opressora. Na introdução, a pesquisadora, apresenta a organização do livro ao passo que também discute a importância do ato de escrever compreendendo este um ato político de tornar-se narradora da sua própria história.
Adentrando no capítulo inicial, intitulado de A máscara a autora utiliza da história da máscara que a escravizada Anastácia era obrigada a usar para discutir o processo de fala e escuta e como esses são atravessados pelo racismo. Kilomba (2019) aponta que no racismo a negação é utilizada como modo de legitimar as práticas de violência e controle dos corpos negros. Ainda, é discutido o conceito do/a Outro/a, como lugar que o sujeito negro ocupa a partir da visão dos/as brancos/as. Em outras palavras, os sujeitos brancos/as criaram fantasias daquilo que não desejam ser e projetaram isto para os corpos negros, nesse caso, o sujeito negro/a se torna aquilo que o sujeito branco teme reconhecer em si mesmo.
A máscara representa então a tentativa de silenciamento que tenta impedir que os sujeitos negros digam aquilo que os/as brancos têm receio de ouvir e ignorando o ato de ouvir como dialético. Ainda, a autora utiliza dos mecanismos utilizados por Paul Gilroy: 1. Negação; 2. Culpa; 3. Vergonha; 4. Reconhecimento; 5. Reparação; e os pontua como processos pelos sujeitos brancos necessitam passar para que tornar consciente sua branquitude.
O segundo capítulo recebe o título da obra da pesquisadora indiana Gayatri C. Spivak, Pode a subalterna falar?. Logo de início Kilomba (2019) já problematiza o masculino como linguagem que supostamente universal, para exemplificar a autora faz uso da obra de Spivak onde o título da sua obra foi traduzida no masculino: Pode o subalterno falar?, desconsiderando seu lugar de fala como mulher, indiana e pesquisadora, reforçando a ideologia colonial branca. A autora retoma o do mito do universal, algo que teoricamente contempla a todos/as, mas que reverbera no conceito de Outricidade que por não representar os sujeitos se distancia da tal universalidade. Kilomba (2019) discute o conhecimento, a objetividade e a neutralidade como mitos criados para manter sujeitos negros/as às margens das sociedades. Ainda, a autora reafirma a necessidade de visualizarmos potência e resistências nas margens reafirmando que escrever, habitando as margens, se configura como uma luta contra o silenciamento do racismo.
Adiante, Kilomba (2019) utiliza da metáfora das camadas de tinta para reafirmar que o racismo é determinante nas relações sociais e que este deixa nos sujeitos negros cicatrizes pouco visíveis e que, raras vezes, despertam interesse a comunidade branca. Aqui, mais uma vez a autora recorre ao uso da linguagem reafirmando que os sujeitos negros/as se tornam visíveis para a sociedade através de fantasias estigmatizadas criadas e representadas por brancos/as. Kilomba (2019) expõe que para possuir o status de sujeito é necessário perpassar por três níveis: político, social e individual, ou seja, os interesses individuais dos sujeitos necessitam possuir espaço nesses três níveis, assim, o racismo se configura como um impeditivo para que pessoas negras atinjam tais níveis.
Continuando na discussão e conceituação de racismo, Kilomba (2019) nos apresenta como as opressões raciais sofridas pelas mulheres negras são "[…] estruturadas por percepções racistas de papeis de gênero" (KILOMBA, 2019, P. 99). Nesse sentido, a autora discute que o feminismo branco não alcança as minucias das opressões raciais e de gênero que sofrem as mulheres negras e que acaba por invisibilizar as mulheres negras e suas experiências através do racismo genderizado. Tão logo, o conceito de sororidade, apresentado pelo feminismo branco, não contempla as experiências das mulheres negras uma vez que a relação de cumplicidade expressa por esse conceito é facilmente eliminada quando a raça é acionada, no sentido de que mulheres brancas.
Adiante, a autora realiza um cruzamento entre raça e territorialidade no sentido de que a raça é fantasiada dentro de um limite territorial específico, para exemplificar a autora utiliza da negritude e da alemanidade, categorias reproduzidas como contrárias. Utilizando as experiências de uma das sujeitas da sua pesquisa, alicia, Kilomba (2019) inicia uma discussão sobre os modos como os cabelos de pessoas negras impactam o conforto branco. Segundo a autora, o cabelo é um símbolo de poder á negritude e de descolonização, por esse motivo perturba a branquitude.
Utilizando a teoria Freudiana sobre o complexo de Édipo, Kilomba (2019) nos fala acerca das relações estabelecidas entre casais interraciais e sobre a identificação dupla da mulher negra que alterna entre a doméstica assexual obediente e a prostituta primitiva sexualizada. A autora tensiona a discussão acerca das políticas da pele, nos introduzindo na discussão através da constatação de que pessoas brancas tendem a negar a raça de sujeitos negros porque ao longo da história das sociedades a negritude foi internalizada como algo negativo.
Ainda, a autora discute as palavras Neger e Mischling, ambas são modos pejorativas de referência á sujeitos negros/as na Alemanha, Kilomba (2019) utiliza da representação social dos seus significados para refletir acerca dos olhares dos sujeitos brancos e negros sobre a raça. Seguindo, Kilomba (2019) retoma a discussão sobre o uso da palavra Niger, para tanto pontua que o racismo atua no campo do discurso.
A autora pauta que historicamente o uso da palavra Niger foi utilizado para subalternizar, desumanizar e inferiorizar sujeitos negros e quando vem a ser acionado traz todas as essas significações para o discurso. Kilomba (2019) chama a responsabilidade de pessoas brancas ao permanecerem em silêncio frente a situações de racismo porque lhes é confortável.
Há uma projeção dos sujeitos brancos de que todos/as os sujeitos negros são da África, tudo isto pautado na não superação das memórias de escravização que residem no tempo presente e que coexistem com sujeitos negros acessando espaços antes exclusivo dos/as brancos.
Temos também a performance dos sujeitos brancos ao acionarem o racismo colocando sujeitos negros em situações de igual e diferentes ao mesmo tempo, ou seja, igual porque está entre brancos/as e, portanto, se torna confidente e diferente porque o sujeito negro/a é o objeto do ódio proferido. Tal situação torna mais difícil de identificarmos o racismo. Nessa linha de pensamento, Kilomba (2019) aponta que as mulheres negras sofrem opressões raciais que podem ser personificadas por mulheres brancas, ressaltando mais uma vez os limites do feminismo branco frente às opressões de raça. Para exemplificar tal afirmação, somos apresentadas no decorrer da leitura à um relato de uma das interlocutoras da pesquisa, Kathleen, mulher negra e estrangeira que vive na Alemanha e que ouve as confissões de mulheres brancas afirmando que estrangeiros têm condições melhores que presidiários/as.
A partir de relatos das suas interlocutoras, Kilomba (2019) nos fala um pouco sobre o suicídio de mulheres negras, nesse ponto a pesquisadora aponta que dentro de uma sociedade patriarcal idealizada por uma ideologia de hierarquização racial branca, as mulheres negras habitam uma ausência dupla, visto que são “[…] a antítese tanto da branquitude quanto da masculinidade” (KILOMBA, 2019, p. 190). Ao discutir o racismo a autora pontua que este não é um problema de responsabilidade individual, do contrário este é um fenômeno estrutural e branco.
Para concluir, Kilomba (2019) retoma a metáfora da plantação para refletir acerca da história coletiva de opressão racial que acarreta num trauma colonial, reforçado pelo racismo cotidiano. De imediato a autora já sinaliza que o racismo é uma experiência traumática, e a partir disso explora o trauma colonial e individual por três perspectivas: I. Choque violento. II. Separação e III. Atemporalidade. Nesse sentido, a autora ressalta que os racismos cotidianos são tentativas de reestabelecimento da ordem colonial, tentando colocar o sujeito negro/a na posição do/a Outro/a. Por fim, a autora propõe que nos coloquemos fora da ordem colonial, revertendo nossas lógicas de pensamento, de socialização e para que narremos nossas historicidades.