INTRODUÇÃO
No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a infecção COVID-19 caracterizava-se como uma Pandemia. No Brasil, pouco antes deste anúncio da OMS, já havia sido declarado estado de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (fevereiro de 2020). Porém, somente após a declaração de Pandemia é que Estados e Municípios iniciaram a edição e publicação de decretos, instrumentos legais e normativos para o enfrentamento da COVID-19.
Nesse contexto, em 17 de março de 2020 o Ministério da Educação (MEC) manifestou-se por meio da Portaria nº 343 (BRASIL, 2020c), que trata sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais, enquanto durar a Pandemia, para instituição de educação superior integrante do sistema federal de ensino. Esta ação foi a primeira de muitas que culminaram na publicação do Parecer 05/2020 (BRASIL, 2020a) o qual contém indicativos para a reorganização do calendário escolar e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento de carga horária mínima anual, em razão da Pandemia da COVID-19. O referido documento foi elaborado de forma aligeirada, tanto em termos de consulta pública, quanto na análise das contribuições recebidas pelos movimentos em defesa da educação e demais cidadãos (MARTINS; PINA, 2020).
O Parecer 05/2020 (BRASIL, 2020a) teve impacto em todas as etapas e modalidades da Educação. Nosso olhar nesse momento se volta para a primeira etapa da educação básica – a educação infantil – a qual possui especificidades que foram completamente desconsideradas na elaboração do documento. Uma falha gravíssima do ponto de vista do desenvolvimento infantil.
Ao analisar o documento, nota-se dois vieses: autonomia dos sistemas de ensino e falta de política pública, mas também ausência de uma definição clara e objetiva do que é ensino e aprendizagem, o que deixa margem para diferentes interpretações, de modo que cada sistema poderá seguir um caminho. Esses vieses escancararam as diferenças entre as classes sociais e, consequentemente nos rumos da educação de cada sistema de ensino.
O exposto até aqui culmina em uma questão muito cara para nós que pesquisamos a Educação Brasileira, acerca da pluralidade e diversidade do nosso país. Ao se manter isento, o documento acentua as diferenças sociais, deixando de ser universal. Ademais, o Parecer 05/2020 (BRASIL, 2020a) descaracteriza a função docente quando atesta que a escolarização é o cumprimento de atividades para o cômputo da carga horária anual.
De acordo com a Teoria Histórico-Cultural – que se configura como pano de fundo de nossa análise – o ensino e a aprendizagem que ocorrem no processo educativo devem ser considerados como uma unidade dialética, ou seja, ensino-aprendizagem – que não se igualam nem tão pouco se pode separar (SOLOVIEVA, 2019). Nesse sentido, o processo educativo essencialmente é composto pela atividade docente bem como pela atividade da criança, mutuamente correspondentes.
Em específico, a Educação Infantil se sustenta sobre o tripé cuidar, educar e brincar, considerados indissociáveis. Cuidado de si, do outro, do coletivo, do ambiente. Essa é a natureza do trabalho pedagógico na educação infantil, e nem de longe se apresenta como curricularização da etapa e nem tão pouco o mero cumprimento de carga horária esvaziada de ensinamentos. Pensar a organização desta etapa é partir do vínculo de comunicação estabelecido com as famílias e com as crianças e não o utilizar para o envio de atividades remotas.
Diante do exposto, é inquietante pensar em um Documento Oficial – em nível Nacional – tão dúbio quanto o Parecer 05/2020 (BRASIL, 2020a). Não só por privilegiar questões de ordem burocrática, mas principalmente por desconsiderar – quase que por completo – as especificidades da primeira etapa da educação básica.
A questão norteadora do presente texto é: Quais os impactos do Parecer 05/2020 na educação infantil no Brasil no período pandêmico? Para responder a este problema, consideramos que a elaboração aligeirada e tendenciosa do Parecer 05/2020 (BRASIL, 2020a) não contemplou as indicações e considerações de movimentos que defendem a Educação Infantil em sua integralidade, sendo assim, elencamos como objetivo geral, verificar a percepção dos pesquisadores e dos Movimentos Sociais acerca do Parecer 05/2020 (BRASIL, 2020a) por meio da análise das contribuições geradas após a homologação do referido Parecer.
A análise proposta neste texto permite um movimento de percepção acerca do coletivo de pesquisadores que compõem diferentes lugares sociais de luta em defesa dos direitos das crianças na educação infantil. Em tempos de Pandemia, é amargo pensar na necessidade de defesa de direitos outrora conquistados, por isso, a luta precisa ser amplamente discutida e revelada para todos.
METODOLOGIA
O procedimento adotado para a análise da percepção dos pesquisadores e movimentos sociais acerca do Parecer 05/2020 (BRASIL, 2020a) foi uma revisão sistemática. A pesquisa focou apenas na base de dados do Google Acadêmico® por ser uma plataforma que disponibiliza trabalhos completos de acesso aberto e por possuir diversos indexadores, possibilitando o acesso e a ampla divulgação de artigos científicos revisados por pares, bem como demais literaturas acadêmicas (livros e trabalhos). Ademais, uma busca realizada a priori (i.e., exploratória) na base de dados da CAPES, bem como do SciELO, não trouxe resultados para nossa análise.
A busca foi realizada em julho de 2021. A estratégia se deu por meio do uso de três descritores específicos: “Educação infantil” AND Pandemia AND “Parecer 05/2020”. Foram selecionados trabalhos publicados nos últimos 12 meses (junho/2020 a junho/2021).
Ainda, no decorrer deste período temporal supracitado, acompanhamos a movimentação da comunidade acadêmica por meio dos eventos abertos em redes sociais, amplamente divulgados em Blogs1 de Projetos de Pesquisa e Extensão de Universidades Estaduais e Federais, bem como na página do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil2 (MIEIB) e do Fórum de Educação Infantil do Paraná3 (FEIPAR).
RESULTADOS
A busca realizada na base de dados do Google Acadêmico® apresentou 21 resultados entre artigos científicos, capítulos de livro e trabalhos de conclusão de curso. Destes, um artigo aparece em duplicata, totalizando, portanto, 20 resultados, distribuídos conforme o diagrama (Figura 1).
Retomando a problemática da presente pesquisa que busca compreender os impactos da publicação do Parecer 05/2020 (BRASIL, 2020a) para a etapa da educação infantil, bem como o objetivo que guia essa compreensão, versa, em especial pela percepção dos pesquisadores diante do referido Parecer, dos resultados da busca, priorizamos a análise dos artigos científicos publicados em periódicos indexados e revisados por pares. Assim, para efeitos do presente texto, os artigos considerados para a análise, são apresentados no quadro 1.
Autores | Objetivo | Principais conclusões | Periódico |
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Calderan; Calderan, 2021 | Analisar, interpretar e debater a aplicabilidade do ensino remoto na educação infantil de maneira dialética. | Falsa sensação de produtividade; não contemplamento das especificidades das crianças; agravamento da in(visibilidade) e reprodução de uma educação com pressupostos hegemônicos. | Revista Ipê Roxo |
Dias; Santos; Abreu, 2021 | Refletir sobre a relação inclusão/exclusão das crianças com Transtorno do Espectro Autista na educação infantil em tempos de pandemia. | Os limites colocados pela pandemia questionam as possibilidades educativas e apontam para a necessidade de pensar estratégias individualizadas que favoreçam o desenvolvimento dessas crianças. | Zero-a-Seis (Dossiê Especial) |
Magalhães; Lazaretti; Pasqualini, 2021 | Contribuir para traçar um panorama do período de pandemia e acumular subsídios para um futuro balanço dos efeitos e consequências da condução social e política das problemáticas que se colocaram para a educação infantil na situação de excepcionalidade pandêmica. | Constatou-se um retrocesso nas ações pedagógicas com as crianças, submetidas a cumprir uma demanda que lhes é externa; dimensão pedagógica foi secundarizada; tarefas padronizadas para faixa etária de 4 e 5 anos e a invisibilidade das crianças de 0 a 3 anos; as práticas propostas no contexto de pandemia pouco ou nada contribuem para o desenvolvimento das crianças. Existe atitudes de respeito às crianças e às famílias e um esforço na manutenção do vínculo, contudo e infelizmente não é a regra, mas sim, a exceção. A educação infantil se viu confinada ao atendimento de demandas formais, protocolares e burocráticas, e distanciada de sua tarefa humanizadora e desenvolvente. | Humanidades & Inovação |
Martins; Pina, 2020 | Apontamentos preliminares acerca do Parecer 05/2020. | A consulta pública ao Parecer 05/2020 se configura como um simulacro que serve apenas para legitimar as posições de uma concepção autocrática de administração e em tempo recorde. | Formação em Movimento |
Mascarenhas; Franco, 2020 | Refletir sobre as intencionalidades pedagógicas que estão presentes no Parecer 05/2020. | O referido parecer está alicerçado em um princípio educativo formal-tecnicista de cumprimento de carga horária; desconsidera as desigualdades sociais e tecnológicas presentes no território brasileiro e comete uma injustiça cognitiva, constituindo-se como uma proposta elitista, discriminatória e perversa aos estudantes do sistema público de ensino. | Olhar de Professor |
Monteiro; Pereira, 2020 | Análise de documentos oficiais e não oficiais sobre as crianças e a educação infantil, percorrendo o que tem sido proposto como atuação para os profissionais em relação ao atendimento da criança. | As ações de acolhimento precisam ter um lugar no aqui e no agora, nas condições que estamos enfrentando e não apenas planejadas para um futuro incerto quando do retorno das atividades presenciais. | Revista de Ciências Humanas |
Santos; Correia, 2021 | Investigar como o Brasil e a Itália pensaram a educação infantil em contexto de pandemia, quais decisões tomaram e os impactos, limites, possibilidades e desafios desta etapa da educação básica. | Importância de pensar um trabalho intersetorial, que acolha e ampare a criança da educação infantil. Em específico, o trabalho na educação infantil no período pandêmico deve priorizar a vínculo com as crianças e as famílias. Não se trata de pensar a carga horária, mas sim de (re)planejar os tempos e os espaços. | Zero-a-Seis |
Santos; Silva; Faria, 2020 | Transcrições de falas extraídas de vídeos (Lives) que versam sobre a temática relacionada à Educação Infantil em tempos de COVID-19, sob a ótica da defesa das crianças e das infâncias. | Esse número da revista funciona como um acervo documental em relação a luta dos movimentos sociais e de pesquisadores em defesa das crianças da educação infantil. Contém a transcrição de inúmeras horas de debates e apontamentos acerca do contexto pandêmico. Com participação de pesquisadores de praticamente todas as regiões do Brasil, é sem dúvidas um acervo riquíssimo para as memórias da luta durante a Pandemia. | Zero-a-Seis |
Fonte: organizado pelas autoras, 2021.
Diante deste cenário de pesquisas e reflexões traduzidas em artigos científicos, houve também nesse período de junho de 2020 a junho de 2021 intensa produção de materiais audiovisuais, incontáveis debates, rodas de conversa, formação continuada, cursos de extensão, curadorias, pequenos textos, livros, sites, blogs e incalculáveis considerações acerca do contexto pandêmico e o impacto em todas as etapas e modalidades de ensino. Seria leviano de nossa parte não fazer menção a tantas produções que, independentemente do crivo pelos pares, estão circulando nos meios digitais para contribuir com a construção da luta travada.
Em que pese não fazer parte do objetivo primário da presente pesquisa, compreendemos que a apresentação de algumas dessas produções também se faz necessária pois ajuda a responder o nosso questionamento inicial acerca dos impactos do Parecer 05/2020 (BRASIL, 2020a) para a educação infantil. A mobilização de Grupos de Pesquisa, Grupos de Trabalho e Projetos de Extensão de grandes universidades brasileiras reflete a luta travada pela defesa e manutenção dos direitos já adquiridos.
Em julho de 2020, o Laboratório de Psicologia Social e Práticas Pedagógicas da Universidade de São Paulo (LAPSAPE/FFCLRP-USP) publicou um documento em formato de lista com referência para o trabalho na Educação Infantil durante a Pandemia4. Por meio deste documento, pudemos acompanhar o trabalho de diversos Movimentos Sociais em defesa da Educação Infantil. Destacamos neste contexto, a ação do MIEIB e dos Fóruns que o compõem.
No período entre março de 2020 e junho de 2021, o MIEIB assumiu uma postura dinâmica, em âmbito nacional, em defesa dos direitos das crianças da Educação Infantil, bem como dos direitos dos trabalhadores dessa etapa da educação básica. As ações do Movimento são articuladas “com outros movimentos e entidades na proposição de documentos, notas e posicionamentos públicos, cartas abertas a órgãos estatais, dentre outras ações” (MIEIB, 2020b, p. 1).
DISCUSSÃO
É evidente a preocupação de pesquisadores, docentes da educação infantil e os demais membros da comunidade escolar em relação aos rumos tomados diante do cenário pandêmico. A legislação decretada nesse período não foi suficiente para sanar as dúvidas de como proceder, pelo contrário, suscitaram tantas outras que o debate permanece em aberto, mesmo após 17 meses de Pandemia5. Além das dúvidas, a ameaça da perda dos direitos outrora conquistados, parece estar cada dia mais intensa. A imagem que se tem, em relação aos rumos da Educação Infantil no Brasil é que a mesma ainda não superou a herança assistencialista que a acompanhou até meados da década de 1990 e a metáfora feita por Rosemberg (2003) continua assustadoramente atual. Ademais, Magalhães, Lazaretti e Pasqualini (2021) indicam que o momento atual (no contexto da pandemia) gerou um distanciamento das conquistas históricas da educação infantil e edificou a certeza de que o trabalho pedagógico realizado nas instituições dependem de condições que ainda precisam ser conquistadas.
A publicação da Portaria n. 343 (BRASIL, 2020c) e do Parecer 05/2020 (BRASIL, 2020a), deixa evidente a falta de compromisso do governo federal com a Educação e o quanto foi desconsiderada a complexidade que reside no momento pandêmico em conjunto com os processos educacionais. Os documentos menosprezaram a heterogeneidade regional, cultural e socioeconômica do território brasileiro. Mascarenhas e Franco (2020, p. 2) indicam que o Parecer 05/2020 “evoca de maneira arbitrária a continuidade do processo de aprendizagem dos sujeitos, mediante aulas não presenciais como forma de cumprimento do calendário escolar”, sem considerar as especificidades e desigualdades regionais, desconsiderando igualmente a função social da escola e o processo de ensino e aprendizagem em um contexto remoto.
Em que pese a análise presente no próprio documento do Parecer 05/2020 (BRASIL, 2020a, p. 3) o qual indica ser “importante considerar as fragilidades e desigualdades estruturais da sociedade brasileira que agravam o cenário decorrente da pandemia em nosso país” bem como “registrar as diferenças existentes em relação às condições de acesso ao mundo digital por parte dos estudantes e de suas famílias”, o próprio documento se contradiz pois, ao propor o ensino remoto para todas as etapas e modalidades de ensino, desconsidera toda e qualquer especificidade. Para Mascarenhas e Franco (2020, p. 3) isso configura-se como uma falta de “preocupação com quem recebe a educação.”
Adicionalmente, Martins e Pina (2020) apresentam três problemáticas na formulação do Parecer 05/2020 (BRASIL, 2020a) que inviabilizam a proposta: 1) o documento nega os dados da própria realidade social do País; 2) não problematizaram que as condições objetivas de acesso ao material pedagógico criarão tratamentos diferenciados entre aqueles que acessam e não acessam as tecnologias digitais e 3) desconsideram a complexidade e a especificidade do trabalho educativo, reduzindo a escolarização a meras instruções técnicas programadas através de modelos instrucionais supostamente capazes de gerar resultados mensuráveis.
A aparente falta de preocupação de quem organizou o Parecer nos parece não ser aleatória. O desmonte da educação básica que vem ocorrendo de forma sistemática desde o Governo Temer, encontrou no cenário pandêmico, o catalisador para edificação de uma proposta esvaziada de formação humana. A homologação do Parecer 05/2020 (BRASIL, 2020a) deixa evidente a exclusão de parte da população brasileira – a parte mais frágil, que não possui acesso aos meios tecnológicos – além disso, o objetivo principal do referido parecer, em nossa análise, está centrado na questão da carga horária, nos dias letivos e na flexibilização e possibilidade de que a oferta de conteúdo ‘para casa’ seja, em algum grau, considerada ensino.
Corroboramos com Mascarenhas e Franco (2020, p. 3) ao afirmarem que o ensino remoto, assim como proposto no Parecer 05/2020 “configura-se como a pior forma de educação bancária”. “É um pacote de transmissão com a preocupação única de cumprir burocraticamente a exigência de dias letivos.” (MASCARENHAS; FRANCO, 2020, p. 3).
Ao justificar a possibilidade de uma longa duração do contexto pandêmico de distanciamento social por conta da COVID-19, o Parecer 05/2020 (BRASIL, 2020a, p. 3) faz a tentativa de validar sua existência como forma de evitar “retrocessos do processo educacional e da aprendizagem aos estudantes [...], tendo em vista a indefinição do tempo de isolamento.” Contudo, o documento não apresenta um conceito de aprendizagem, tão pouco do que seria o retrocesso na mesma.
Pontuamos que a falta teórico-conceitual ao longo do documento é um posicionamento evidente da concepção empresarial da Educação, que demonstra a lógica tecnicista e a preocupação excedente com o conteúdo curricular apartado de sua dimensão social, histórica e cultural. Ademais, sem um conceito claro do que é ensino e aprendizagem, a justificativa do documento não se sustenta, muito menos ao generalizar a mesma justificativa para todas as etapas e modalidades do ensino, desconsiderado toda e qualquer especificidade.
Ao especificar as ações para a educação infantil, o Parecer 05/2020 (BRASIL, 2020a), inicia com o seguinte destaque:
Assim, convém registrar os dispositivos estabelecidos no artigo 31 da LDB ao delimitar frequência mínima de 60% da carga horária obrigatória, como uma possibilidade real de flexibilização para reorganização, ainda que de forma mínima, do calendário de educação infantil, a ser definido pelos sistemas de ensino no contexto atual de excepcionalidade imposto pela pandemia (BRASIL, 2020a, p. 9).
Monteiro e Pereira (2020) pontuam, assim como Mascarenhas e Franco (2020) a grande preocupação em relação ao cumprimento de carga horária em detrimento ao atendimento das crianças e de suas famílias. Além disso, tendo em vista que o Parecer 05/2020 indica a necessidade de haver certa intencionalidade: “as atividades, jogos, brincadeiras, conversas e histórias propostos devem ter sempre a intencionalidade de estimular novas aprendizagens” (BRASIL, 2020a, p. 10), as autoras indagam “como ensinar aos pais a ter intencionalidade (pedagógica)?” (MONTEIRO; PEREIRA, 2020, p. 5). Em nossa análise, compreendemos que essas orientações descaracterizam e esvaziam o trabalho docente.
Ademais, entende-se as ações da instituição de educação infantil bem como das famílias, sendo complementares e não sobrepostas. Nesse sentido, atividades realizadas pela família assim como propostas no referido Parecer, não se justificam (MIEIB, 2020c). Soma-se a isso, as condições de trabalho docente que há muito vêm sendo desgastadas e sucateadas devido à falta de políticas públicas que as resguardem. Magalhães, Lazaretti e Pasqualini (2021) denunciam as condições precárias do trabalho dos profissionais da educação, em especial na educação infantil, que apresenta inúmeras contradições históricas de desvalorização e precarização. Somando ao fato, os relatos de professoras e professores nesse período de pandemia, feitos por meio de notas, relatórios e materiais audiovisuais, descrevem um cenário de demissões, suspensão de contratos, salários reduzidos e a pressão e controle da produtividade por meio da produção de materiais e atividades impressas.
Adicionalmente, os relatos levantados indicam que as profissionais da educação infantil realizam o trabalho remoto no ambiente doméstico. Claramente perdeu-se o limite do público no privado e consequentemente, a jornada de trabalho soma-se a jornada doméstica na qual, muitas mulheres estão em jornada tripla, sem conseguir delimitar tempo e espaço para cada atividade ao longo do dia (COUTINHO; CÔCO, 2020; MAGALHÃES; LAZARETTI; PASQUALINI, 2021).
No sentido de contribuir para minimização das eventuais perdas para as crianças, sugere-se que as escolas possam desenvolver alguns materiais de orientações aos pais ou responsáveis com atividades educativas de caráter eminentemente lúdico, recreativo, criativo e interativo, para realizarem com as crianças em casa, enquanto durar o período de emergência, garantindo, assim, atendimento essencial às crianças pequenas e evitando retrocessos cognitivos, corporais (ou físicos) e socioemocionais (BRASIL, 2020a, p. 9).
De acordo com Santos e Correia (2021, p. 204), tendo como pano de fundo o objetivo de evitar “perdas ou retrocessos cognitivos, corporais e socioemocionais”, o referido Parecer ecoou em reuniões do MEC e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), culminando na discussão e publicação do Edital para o Programa Nacional do Livro Didático PNLD/2022 (BRASIL, 2020b), com foco também na educação infantil. Adicionalmente, o MIEIB (2020a, p. 1) indica que essa proposta “descaracteriza a profissão docente na medida em que tende a valorizar a liberdade da iniciativa privada na elaboração de materiais didáticos, estratégia alinhada aos princípios do mercado.”
A adoção de livros didáticos na educação infantil vai na direção oposta ao que preconiza a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) (BRASIL, 1996) e as Diretrizes Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) (BRASIL, 2009) no que tange os princípios e as finalidades da primeira etapa, adicionalmente deixa evidente uma concepção conteudista e a antecipação da escolarização por meio de um ensino técnico e forçado.
Para Zaporozhets (1987), as condições pedagógicas favoráveis para a aprendizagem na infância não devem acontecer por meio do ensino forçado ou pela antecipação dos conteúdos escolares e, se quisermos potencializar o desenvolvimento intelectual das crianças, precisamos aprofundar suas vivências de atividades plásticas, práticas e lúdicas e também de comunicação entre si e com os adultos. A iminência da adoção do livro didático na educação infantil reacende o debate sobre a natureza e autonomia do trabalho docente, bem como acerca das especificidades das crianças nessa etapa da educação básica.
Mello (2019, p. 95) explica que o processo de humanização é resultado da aprendizagem “que também podemos chamar de apropriação ou reprodução das qualidades humanas” e o mesmo ocorre por meio da atividade da criança, que a realiza em conjunto com as pessoas em seu meio e com os objetos da cultura (linguagem, arte, pensamento, valores, ciência, etc.). Por isso, para Leontiev (1978), quando nascemos, somos candidatos a humanidade. Nos tornamos humanos, a medida da apropriação da cultura, por meio de um processo educativo. De acordo com Magalhães, Lazaretti e Pasqualini (2021), pautadas pela perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento, consideram que a aprendizagem pressupõe a criança em atividade, atividade esta que tenha como objetivo a apropriação de conhecimentos do mundo, da cultura, possibilitando assim a promoção do desenvolvimento psíquico.
Entretanto, o que se vislumbrou nos debates travados no decorrer deste período pandêmico, é o quanto a dimensão pedagógica do ensino e da aprendizagem foi relegada (MAGALHÃES; LAZARETTI; PASQUALINI, 2021; SANTOS; SILVA; FARIA, 2020). Além disso, os relatos confirmaram a pobreza da qualidade do material oferecido para as crianças, permeado de “proposições estereotipadas6, remontando práticas já amplamente criticadas e que imaginávamos superadas na educação infantil.” (MAGALHÃES; LAZARETTI; PASQUALINI, 2021, p. 112). Além disso, as autoras indicam igualmente problemático, os relatos sobre o volume acentuado de tarefas enviadas, bem como a inadequação para a faixa etária.
Para realização destas atividades, embora informais, mas também de cunho educativo, pelas famílias, sugere-se que as instituições de educação infantil possam elaborar orientações/sugestões aos pais ou responsáveis sobre as atividades sistemáticas que possam ser realizadas com seus filhos em seus lares, durante o período do isolamento social. [...]. Outra alternativa é o envio de material de suporte pedagógico organizado pelas escolas e famílias ou responsáveis [...] também a utilização de materiais do MEC acerca de atividades a serem desenvolvidas para o atendimento das crianças que frequentam as escolas de educação infantil (BRASIL, 2020a, p. 10).
Nesse sentido, propor atividades informais (porém “de cunho educativo” como supõem o referido Parecer), seja por materiais impressos ou livros didáticos, seja para uso presencial ou remoto, indica completo desconhecimento acerca do desenvolvimento humano, das especificidades das crianças na educação infantil, bem como dos princípios e finalidade da primeira etapa da educação básica e a natureza do trabalho docente. Além disso, ANPEd (2020), MIEIB (2020c) e Santos e Correia (2021), alertam e reforçam para o risco iminente do empresariamento da educação infantil, em especial do sistema público de educação. Nesse cenário, para Magalhães, Lazaretti e Pasqualini (2021, p. 109) “O professor é convertido em “tarefeiro”, executor de propostas padronizadas, avaliado por parâmetros herdados do tecnicismo metamorfoseado em neoprodutivismo, neotecnicismo e outras variantes”, afastados de sua função primária que é a organização e a promoção da atividade de ensino (MAGALHÃES; LAZARETTI; PASQUALINI, 2021).
Além do livro didático na educação infantil, outro foco catalisado pela pandemia refere-se ao ensino domiciliar. A possibilidade de realizar atividades impressas em casa como forma de mitigar as perdas e atrasos cognitivos, além de desconsiderar a complexidade do trabalho docente, transfere para os pais ou responsáveis a responsabilidade por um trabalho que demanda tempo e formação.
Corroboramos com Santos e Correia (2021) que indicam a necessária compreensão do contexto político, econômico e social do Brasil antes da Pandemia. Por um lado, a publicação do Parecer 05/2020 (BRASIL, 2020a) foi uma resposta lenta do Governo Federal no que tange as orientações da Educação na pandemia, por outro, os encaminhamentos entre a consulta pública e a homologação foram aligeirados e superficiais, o que demonstram um evidente projeto de Educação descomprometido com o desenvolvimento humano e a emancipação dos sujeitos. Martins e Pina (2020) pontuam que a consulta pública foi um simulacro, ou seja, apenas por formalidades e para legitimar posições já definidas, reafirmando o que os autores tratam como tradição autocrática da administração pública.
Por meio do discurso promovido pelo Parecer 05/2020 (BRASIL, 2020a, p. 9) de “contribuir para minimização das eventuais perdas para as crianças”, a regulamentação de atividades remotas para crianças da educação infantil “fez com que emergissem algumas dissonâncias” como pontuam Dias, Santos e Abreu (2021, p. 107). Crianças provenientes das classes sociais mais baixas se encontram em desvantagem diante deste cenário. O ensino remoto pressupõe meios digitais para que possa acontecer e, nesse cenário, a falta de um instrumento que possibilite a conexão virtual, configura-se como um isolamento dentro de um isolamento.
Entretanto, Monteiro e Pereira (2020) parecem encontrar “uma brecha” em meio ao caos proposto pelo Parecer 05/2020, no que tange, particularmente as crianças de 4 e 5 anos:
As escolas e redes podem também orientar as famílias a estimular e a criar condições para que as crianças sejam envolvidas nas atividades rotineiras, transformando os momentos cotidianos em espaços de interação e aprendizagem. Além de fortalecer o vínculo, este tempo em que as crianças estão em casa pode potencializar dimensões do desenvolvimento infantil e trazer ganhos cognitivos, afetivos e de sociabilidade (BRASIL, 2020a, p. 10).
Estaria vislumbrado nessa orientação, um caminho para o proceder com as crianças e suas famílias nesse cenário de ensino remoto emergencial forçoso por conta da Pandemia? Envolver as crianças em situações da rotina da casa seria uma maneira de fomentar ou potencializar aprendizagens? Consideramos que é um meio possível de manter o vínculo entre as crianças, as famílias e a instituição de educação infantil. Ademais, são ações que podem se estender em todas as etapas e modalidades da educação, inclusive para crianças das creches.
Contudo, entendemos que o desenvolvimento humano requer aprendizagens que superam o cotidiano – nisso está centrada uma das funções da escola, de possibilitar o acesso aos conhecimentos elaborados de maneira sistemática. Porém, não descartamos o potencial das ações cotidianas, em especial nesse contexto de Pandemia, que força o distanciamento social. Mas não podemos perder de vista que, a depender das condições concretas e objetivas de vida de cada criança e de sua família, a dinâmica familiar pode não ser promotora do desenvolvimento.
É imprescindível a compreensão de que as crianças são, de fato, sujeitos de direito que produzem sentidos e significados sobre o mundo. Corroboramos com MIEIB (2020c, p. 2) acerca da orientação para a família a qual “poderá ser direcionada para que adultos e crianças se relacionem de modo afetuoso, pautadas na escuta atenta e diálogo, e que, sobretudo, permitam que estes produzam saberes sobre as experiências que vivenciam durante o distanciamento social.”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Parafraseando Magalhães, Lazaretti e Pasqualini (2021), se fizéssemos um minuto de silêncio para cada vida perdida no Brasil, em decorrência da COVID-19, permaneceríamos calados por mais de um ano7. As condições as quais a humanidade tem sido imposta jamais foram pensadas num mundo pós-guerra. É uma situação sem precedentes que atingiu a todos os setores da vida humana. No espaço deste texto, nos debruçamos sobre apenas um, o educacional e, ainda, tão somente na parte que versa sobre a organização do currículo na educação infantil.
Nessa direção, o Parecer 05/2020 (BRASIL, 2020a) contradiz toda e qualquer recomendação de especialistas, no que concerne ao desenvolvimento físico, emocional e pedagógico das crianças de 0 a 5 anos de idade. Uma observação digna de nota foi feita por Martins e Pina (2020, p. 263, grifo nosso):
As contribuições de 17 entidades nacionais do campo educacional, encaminhadas, em 23/04, ao CNE, no documento ‘POSICIONAMENTO sobre o Parecer do CNE que trata da Reorganização dos Calendários Escolares e a realização de atividades pedagógicas não presenciais durante o período de Pandemia da COVID-19’ (ANPEd, 2020), não foram contempladas no Parecer, por apontarem que o direito à educação, constitucionalmente assegura a todos, não pode ser suprimido pelos direitos de aprendizagem da minoria dos estudantes que possuem condições materiais para se beneficiarem do ensino remoto.
Entendemos que as ações praticadas pelo Conselho Nacional de Educação diante da Pandemia da COVID-19 fazem parte de um projeto de educação que visa ao empresariamento do sistema público de ensino. No curto prazo, é possível vislumbrar o benefício de empresários do ensino do sistema privado visto que as orientações do Parecer 05/2020 (BRASIL, 2020a) fornecem subsídios para que as atividades realizadas em casa possam ser computadas como carga horária, justificando assim o pagamento das mensalidades escolares. Em médio e longo prazo, a difusão de sistemas estruturados de ensino e reformas empresariais para a educação, visando a adaptação a um sistema composto por livros didáticos desde a primeira etapa da educação básica (MARTINS; PINA, 2020).
O Parecer 05/2020 é um precedente perigoso tanto para a adoção do livro didático por meio do Edital PNLD/2022 (BRASIL, 2020b) quanto para o homeschooling ou ensino doméstico, por meio do Projeto de Lei 3179/2012 (BRASIL, 2012) e Projeto de Lei 3262/2019 (BRASIL, 2019). Verifica-se que o Parecer 05/2020 (BRASIL, 2020a) foi elaborado de maneira aligeirada, porém muito bem articulada com as demais ações do CNE. Como bem pontua Mascarenhas e Franco (2020, p. 5)
Esse parecer, escrito de forma tão fantasiosa, ignora as impossibilidades da situação real de nossas escolas; desconhece e afronta a garantia de acesso e permanência de milhões de sujeitos que, em diferentes regiões do país, não têm garantido o acesso à internet, agrava a vulnerabilidade das populações que vivem marginalizadas e discute o processo educativo apenas pelo viés da escolarização, das competências da BNCC, precarizando o trabalho docente e pormenorizando a educação inclusiva.
Diante do que foi posto em tela, consideramos que as circunstâncias impostas pela pandemia não excluem as finalidades da educação infantil. Neste contexto, é fundamental destacar o papel do MIEIB, articulado nos seus 26 Fóruns Estaduais mobilizados, por sua vez, aos Grupos de Trabalho regionais. Essa mobilização e resistência, somada ao arcabouço teórico que fundamenta o trabalho docente configura-se, a nosso ver, como a melhor estratégia para a defesa na manutenção – e na gestação – dos direitos das crianças, dos e das profissionais da educação e das famílias. Concordamos com Calderan e Calderan (2021): a educação precisa ser ressignificada, no sentido de ampliar e fortalecer um movimento de luta.