INTRODUÇÃO
Historicamente, a criação da identidade nacional brasileira esteve relacionada com os processos de imigração, os quais foram responsáveis pela formação de uma sociedade plural e multicultural, afirmam Beatriz Hiromi da Silva Akutsu, Eder Fernandes Monica e Gabriel Cerqueira Leite Martire, no artigo Dos quase brancos ao perigo amarelo: representações sociais sobre os nikkeis, a partir do processo de imigração no Brasil (2019). A vinda das/os2 imigrantes no final do século XIX e início do século XX ocorreu em um contexto de pós-abolição da escravidão e de instituição da República no Brasil. Apesar dessas mudanças, é preciso destacar que, ainda assim, predominava-se a hierarquia social, a qual considerava que os sujeitos brancos estariam acima da negritude e dos povos indígenas. Dessa forma, a política de imigração esteve ligada com a ideologia do branqueamento, a qual almejava a miscigenação da população negra e indígena com a branca, sendo que o suposto “sangue branco forte” prevaleceria sobre o sangue das/os não-brancas/os.
No que diz respeito às questões raciais, em específico da negritude, Andrey Gabriel Souza da Cruz e João Paulo Baliscei (2020), no artigo “Não é uma fantasia, este sou eu”: Discussões sobre a representação e performance da masculinidade negra na série Sex Education (2019), abordam a identidade de Eric Effiong, personagem que apresenta características identitárias dissidentes, por ser um homem jovem, negro e gay. Nesse contexto, Cruz e Baliscei (2020) debatem sobre os desafios de algumas pessoas no processo de se compreenderem racialmente. De acordo com os autores, tais dificuldades guardam relações com o conceito do colorismo que, em suas palavras, presume “[...] a ideia de que quanto mais retintos os indivíduos forem, menos acessos, direitos e “privilégios” terão, contrapondo-se aos menos retintos, que obterão maiores possibilidades de acessos aos direitos por uma suposta proximidade às visualidades da branquitude.” (CRUZ; BALISCEI, p. 102, 2020)
Semelhantemente, Alessandra Devulsky (2021), no livro Colorismo, argumenta que o colorismo é um mecanismo racista que apresenta uma hierarquização das diferenças no corpo social, em especial no Brasil, e que propõe uma lógica a partir da qual ser homem e branco se torna almejável. Em contrapartida, quanto mais distantes desse padrão, mais excluídas as pessoas serão. Ao tratar de indivíduos, é importante buscar compreender os impactos que os contextos cultural, histórico e social possuem em relação à constituição das subjetividades. Em outras palavras, questões como raça e gênero interferem no processo de construção identitária.
Os estudos supracitados nos auxiliam no entendimento de que alguns sujeitos possuem a raça como um marcador bem delimitado em suas vidas. Diversos atos discriminatórios são apresentados a partir de discursos que trazem associações pejorativas e ofensivas que atingem grupos específicos, como as/os negras/os. Tais manifestações violentam esses corpos dissidentes de diferentes formas. A sociedade racista opera contra os corpos negros através da violência, rejeição e até da morte, seja ela política ou literal. Recentemente, por exemplo, em janeiro de 20223, fora registrado o assassinato do congolês Moïse Kabagambe. De acordo com registros da Cáritas, organização que promove atendimentos de apoio a pessoas refugiadas, Moïse e seus irmãos saíram da República do Congo fugindo da guerra e da fome. Chegaram ao Brasil em 2011, período quando o rapaz estava com quatorze anos de idade. Logo, o congolês vivia no país há aproximadamente dez anos e falava português. Moises trabalhava servindo mesas no quiosque “Tropicália”, localizado na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Segundo a família do rapaz, no dia 24 de janeiro de 2022, ele foi à empresa cobrar por duas diárias de trabalho que não lhe foram pagas. De acordo com imagens registradas pela câmera do quiosque, uma briga entre Moïse e um homem começou no local. Após, um grupo se aproximou de Moïse e o espancou violentamente, amarrando o corpo do congolês, até a sua morte. Tentaram reanimá-lo, porém, sem sucesso. O quiosque continuou atendendo clientes mesmo tendo percebido o corpo da vítima já sem vida, ainda amarrada, caída sobre uma escada. Depois do crime, milhares de pessoas protestaram contra o racismo, a xenofobia4, e por justiça a Moïse.
Mais recente ainda fora a manifestação de ódio e xenofobia advindas de comentários feitos pelo atual deputado do estado de São Paulo Arthur do Val (1986--), conhecido como “Mamãe Falei”. Em março de 20225, em contexto de guerra6, o deputado foi até a Ucrânia, supostamente para enviar doações às/aos refugiadas/os. Nesse contexto, porém, enviou áudios com comentários machistas e sexistas sobre mulheres ucranianas que estavam fugindo do conflito e policiais mulheres que exerciam suas atividades profissionais na fronteira do país. Nas gravações, o deputado fala da aparência das refugiadas e das policiais, chamando-as de “deusas” e discorre sobre como as mulheres que vivem em cidades menos abastadas são “acessíveis”, “interesseiras” e “fáceis porque elas são pobres”. Tais declarações graves, desrespeitosas e que violentam questões humanitárias causaram indignação às/aos políticas/os brasileiras/os, que se pronunciaram nas redes sociais. A ex-embaixatriz da Ucrânia no Brasil, Fabiana Tronenko, gravou um vídeo em resposta às falas do parlamentar, no qual pede respeito às mulheres ucranianas, que são pessoas honradas e passam por um momento extremamente difícil. Arthur do Val, que era pré-candidato ao governo do estado de São Paulo, retirou sua candidatura e também saiu do partido Patriota, com o qual tinha ligação.
Ambos os casos indicam evidente associação entre o racismo, xenofobia e misoginia. Em diversas partes do Brasil, refugiadas/os passam por situações articuladas por essas três formas de ódio, nas quais são acusadas/os, por exemplo, de “roubar” empregos, e/ou de serem foragidas/os de seus países de origem.
Carolin Emcke, em seu livro Contra o Ódio (2020), afirma que a rejeição contra as diferenças é algo que existe ao longo da história da humanidade, porém, no passado, isso nem sempre fora tratado com(o) ódio. O ódio costuma ser dirigido a/ao “outra/o”, considerada/o inferior ou detentora/detentor de um poder perigoso, o qual oprime e/ou ameaça a norma. Dessa forma, justificam-se a denúncia, o desprezo e a violência contra a/o outra/o sob a argumentação de se tratar de “medidas necessárias” para a manutenção da “normalidade”. Os sujeitos que odeiam, conforme a autora, são, de modo geral, seguros e possuem certeza absoluta daquilo em que acreditam. Os alvos de ódio, por sua vez, se tornam imprecisos e indefinidos, pois a definição, por si, implica o olhar atento e a escuta minuciosa, que considera as particularidades e individualidades das pessoas. Portanto, os alvos do ódio são, na maioria das vezes, grupos abstratos e generalizados - como “as mulheres”, “as pessoas negras”, “as pessoas asiáticas” e “as pessoas não heterossexuais” - pois, caracterizá-las, identificando-as com rostos, famílias e mesmo com nomes, seria demonstrar afeto. Esse ódio é formado coletiva e ideologicamente.
[...] Os termos empregados para humilhar; as cadeias de associações e imagens que permitem conceber e classificar; os enquadramentos da percepção usados para categorizar e fazer julgamentos - tudo isso deve ser pré-formado. O ódio não brota repentinamente do nada, ele é cultivado (EMCKE, 2020, p. 18).
A autora se refere, ainda, a pessoas invisíveis, não por uma questão “mágica” de invisibilidade, mas por não serem percebidas socialmente, por não se enquadrarem em um grupo, em um “nós”. Ser invisível aos olhos da norma é, para a autora, a mais profunda forma de desprezo. Essa invisibilidade acontece quando pessoas que possuem características que fogem ao grupo dominante são ignoradas e, com isso, suas necessidades, sentimentos, direitos, histórias e identidades são apagados.
Todas as nações modernas são “híbridas culturais”, constituídas de mais de um povo, cultura e etnia. De acordo com Hall (2006, p. 62), “A etnia é o termo que utilizamos para nos referirmos às características culturais - língua, religião, costume, tradições, sentimento de ‘lugar’ - que são partilhadas por um povo”. Assim, não é plausível unificar uma nação a partir de uma única etnia, ainda que algumas práticas sejam compartilhadas entre a maioria dos sujeitos.
Ainda segundo Hall (2006), as narrativas de uma nação conferem significado à existência dos sujeitos que partilham da comunidade. “As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a ‘nação’, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades” (HALL, 2006, p. 51). Esses sentidos são constituídos a partir das histórias, memórias e imagens que são construídas a respeito da nação, sendo que as diferenças, nesses casos, são formadas com base no imaginário que as pessoas elaboram. Ou seja, a ideia de cultura nacional unifica as pessoas em uma identidade cultural, independentemente das diferenças de classe, gênero, raça ou outras que os sujeitos podem deter. Vale ressaltar que as práticas culturais estabelecidas a partir das identidades nacionais conferem, também, influências em outros marcadores identitários.
A isso acrescentamos que o ódio mencionado por Emcke (2020) e Hall (2006) não só oprime os corpos negros, mas também de outras raças e etnias que são fenotípica e culturalmente atravessadas pela diferença, tendo como padrão de normalidade a branquitude ocidental. Neste texto, em particular, chamamos a atenção para as pessoas asiáticas e para os significados estereotipados que são construídos em torno delas. A exemplo disso, comentamos sobre o título deste artigo. A expressão “Japonesa, abre o olho!” é comumente lançada a pessoas asiáticas e que caracteriza o racismo e xenofobia que marcam seus corpos. “Japonesa, abre o olho!” é, muitas vezes, xingada, gritada, sussurrada e mesmo escrita às mulheres e homens asiáticas/os na intenção de evidenciar sua diferença e seu não pertencimento identitário. Além dessa, outras frases exemplificam as posições que são reservadas às pessoas nipônicas, tais como, “Japonesas/es são todas/os iguais”, “Homens japoneses têm pênis pequenos”, “Mulheres japonesas são mais submissas e quietas” e outras tantas que ridicularizam e generalizam os hábitos, corpos, profissões e habilidades de pessoas asiáticas a partir de estereótipos inventados pelo ocidente.
Semelhantemente, o ex-ministro da educação do Brasil, Abraham Weintraub (1971 --) acessou outro estereótipo para oprimir pessoas asiáticas. Em 2020, ele fez uma publicação em sua conta do Twitter na qual insinuava que a China teria provocado a pandemia da COVID-19 propositalmente para se fortalecer geopoliticamente, conforme indicamos na Figura 1. Em sua escrita, Weintraub fez, ainda, uma sátira, ao trocar a letra “R” pela “L” - como faz o personagem Cebolinha, criado pelo artista Maurício de Sousa (1935--) - relacionando isso à fala de pessoas chinesas, que, comumente, também fazem a troca dessas letras em sua pronúncia do português. De acordo com uma notícia publicada no site da G17, os Estúdios Maurício de Sousa se manifestaram afirmando que o uso dos personagens não foi autorizado, e que não concordam com as falas do ex-ministro.
Fonte: <https://istoe.com.br/embaixada-da-china-repudia-tuite-ironico-de-weintraub-cunho-fortementeracista/> Acesso em 12 mar. 2022.
Diante desse contexto e dessas preocupações, neste artigo lançamos o objetivo de problematizar as violências xenofóbicas, racistas e misóginas que, na contemporaneidade, atingem as identidades femininas nipônicas. Para desempenhá-lo, estruturalmente, dividimos este texto em dois momentos para além da introdução e das considerações finais. No primeiro deles, apresentamos uma breve contextualização histórica da vinda das/os imigrantes japonesas/es ao Brasil e, posteriormente, na cidade de Maringá, relacionando suas características culturais, identitárias e sociais. No segundo, abordamos as vivências de mulheres nipo-brasileiras e os significados que são construídos em torno de suas identidades.
A vinda das/os imigrantes japonesas/es ao Brasil
A chegada das/os imigrantes japonesas/es esteve relacionada à ideologia de branqueamento. As/os japonesas/es foram consideradas/os pela elite brasileira como um povo “[...] facilmente assimilável, trabalhador, tranquilo, limpo, intelectualmente superior e, de certa forma, parecido com o europeu.” (AKUTSU, MONICA e MARTIRE, 2019, p. 6). A princípio, as/os japonesas/es eram lembradas/os pelo imaginário que se construiu das gueixas, consideradas “femininas”, “delicadas” e “obedientes”. Porém, conforme apresenta Luana Martina Magalhães Ueno em O duplo perigo amarelo: O discurso antinipônico no Brasil (1908-1934), a partir de 1914, passaramse a considerar as/os japonesas/es como uma ameaça ao domínio dos brancos, devido às conquistas expansionistas do Japão. Assim, à época, fora difundido um discurso antinipônico, nomeado pela autora como Perigo Amarelo, em referência às características fenotípicas das/os japonesa/es e suas/seus descendentes. Em suas palavras, a partir de 1914 e tendo em vista a “[...] estratégia expansionista-político-militar japonesa, o discurso antinipônico ganha um novo elemento: o perigo amarelo. Esse perigo estava na possibilidade de que as conquistas militares [japonesas] permitissem o domínio da raça amarela sobre a raça branca.” (UENO, 2019, p. 3).
Referindo-se a esse mesmo contexto histórico, Claringa Matsuzaki Inumaru, em Tradição e modernidade nas identidades femininas em Nihonjin e Sonhos Bloqueados (2019), argumenta que para muitas/os brasileiras/os, o povo japonês estava cercado de incógnitas, uma vez que as informações sobre a identidade cultural do Japão eram raras no país. Uma das coisas que mais chamavam a atenção das/os brasileiras/os em relação a isso era o fenótipo de pessoas vindas do leste asiático, como japonesas/es, coreanas/os, taiwanesas/es e chinesas/os, por exemplo.
Ainda no contexto da Segunda Guerra Mundial, com a entrada do Brasil no conflito ao lado dos Aliados8 no ano de 1942, de acordo com Akatsu, Monica e Martire (2019), foi reproduzida uma propaganda anti-nipônica no território brasileiro, a qual apresentava as/os imigrantes japonesas/es como inimigas/os do Brasil, tratadas/os como um povo diferente, inferiorcuja presença seria inaceitável. Dessa forma, devido às características fenotípicas semelhantes, e para evitar que outros grupos étnicos diferentes das/os imigrantes japonesas/es fossem confundidas/os com “agentes japonesas/es infiltradas/os”, foram criados panfletos a fim de diferenciar japonesas/es de chinesas/es. Mencionando Jeffrey Lesser (2015), Akatsu, Monica e Martire apresentam que
Um outro folheto intitulado “Como distinguir um chinês de um japonês” trazia figuras e dicas úteis: “Os chineses são racialmente menos complexos que os japoneses [...]. Os japoneses são maus, os chineses são bons; os japoneses são falsos, os chineses são sinceros; os japoneses são rudes, os chineses são amáveis (LESSER, 2015, p. 226, apud AKATSU, MONICA e MOURA, 2019, p. 11).
Muito tempo após o conflito, nos anos 1970, a mídia brasileira ainda apresentava as/os imigrantes japonesas/es com discriminação. De acordo com Cristina Miyuki Sato Mizumura, em Mulheres no jornalismo nipo-brasileiro (2011), a publicidade nacional recorreu a estereótipos de japonesas/es caricaturizadas/os, com o sotaque carregado e pronúncia ruim da língua portuguesa. Essas propagandas impulsionaram a venda de diversos produtos na época e reforçaram o imaginário do “[...] japonês sorridente, solícito e com péssimo português” (MIZUMURA, 2011, p. 66).
Diferentemente de outros povos que também habitam o continente asiático, como as/os russas/os e as/os indianas/os, aquelas/es advindas/os de países do leste asiático são fenotipicamente reconhecidas/os pelos olhos puxados, pelo tom de pele mais claro, pela textura e cor dos cabelos, dentre outras coisas. A expressão “amarela/o” utilizada, inclusive, nos títulos dos trabalhos supracitados para se referir às pessoas ou às culturas do leste asiático, segundo Thaís Yurie Ishikawa e Alessandro de Oliveira dos Santos em Psicólogos orientais, estereótipos e relações étnicoraciais no Brasil (2018), não é muito utilizada no cotidiano pelas/os brasileiras/os. O termo, conforme explicam a autora e o autor, guarda relação com “[...] uma classificação demográfica criada pelo IBGE a fim de obter indicadores sociais da população com base no quesito cor-raçaetnia, sendo eminentemente uma característica analítica” (ISHIKAWA, SANTOS, 2018, p. 3). A expressão “asiática/o” também não é muito utilizada no senso comum, uma vez que, no Brasil, é dada ênfase nas características fenotípicas, e existe uma diversidade em atributos físicos das/os habitantes do continente asiático, o que torna muito difícil classificar, por exemplo, indianas/os e japonesas/es em um mesmo grupo de pertencimento.
Eva Heller, em Psicologia das cores (2013), explica que frequentemente as/os asiáticas/os consideram o amarelo como a mais bela cor. “Cada raça se considera o coroamento, o suprassumo da criação. Os brancos idealizam o branco, para os asiáticos, o amarelo é a cor mais linda - muitos europeus custam a acreditar” (HELLER, 2013, p. 171). A autora expõe que as vestimentas amarelas são apreciadas na Ásia, visto que valorizam o tom amarelado da pele desse grupo étnico. Na China, o amarelo é considerado uma cor relacionada à família imperial, ao Estado e à religião. Semelhantemente, na Índia, os deuses homens são representados utilizando roupas amarelas. Por outro lado, na Europa, as vestimentas amarelas não são tão apreciadas. Além disso, Heller (2013, p. 170) afirma: “Para os europeus, o amarelo também é sinônimo de Ásia. A rejeição europeia ao amarelo liga-se ainda, frequentemente, à rejeição aos estrangeiros. A sempre evocada ameaça da Ásia à Europa gerou o slogan político ‘o perigo amarelo’”.
Sobre a questão da imigração, Akutsu, Monica e Martire (2019) pontuam que, entre os anos de 1868 e 1962, o Japão estava na Era Meiji, caracterizada pela industrialização e ocidentalização; e que, apesar disso, a população rural passava por pobreza e falta de alimentos. Com isso, o governo japonês promoveu políticas de incentivo à emigração. Os Estados Unidos fecharam as portas de entrada para imigrantes japonesas/es, forçando-as/os a buscar outras alternativas para acolhimento. Somado a isso, o Brasil estava em expansão econômica e, portanto, necessitava de mão-de-obra (barata) para povoar e trabalhar nas lavouras de café. Assim, no ano de 1895, o Brasil e o Japão assinaram um tratado que regulamentou a imigração das/os japonesas/es, a fim de expandir as relações comerciais.
A vinda das/os japonesas/os para o Brasil aconteceu, oficialmente, no dia 18 de junho de 1908, com a chegada do navio Kasatu Maru, o qual contava com 781 tripulantes. De acordo com Lorena Bacchimam Tarabauka, em Maringá e sua atratividade nipônica (2013), a vinda das/os primeiras/os japonesas/os na cidade de Maringá, especificamente, data o ano de 1936, com a chegada da família de Mitsuzo Taguchi. Segundo a autora, a vinda das/os imigrantes japonesas/es ao norte do Paraná provavelmente ocorreu devido ao solo fértil, à proximidade de São Paulo e às boas condições para a aquisição de terras pela Companhia de Terras do Norte do Paraná.
No aniversário de 100 anos da chegada das/os japonesas/es no Brasil, inclusive, foi organizado, em Maringá9 - cidade onde residem a autora e autor deste artigo - um evento com a vinda do príncipe japonês Naruhito. Ademais, à época, houve um jantar e comemorações tradicionais na Associação Cultural e Esportiva de Maringá - ACEMA, e a inauguração de um monumento10 criado pelo arquiteto maringaense Marcos Kenji (Figura 2), o qual fora instalado no Parque do Japão. O monumento possui oito metros de altura e, a respeito dos elementos que o compõem, Marcos Zanatta apresenta que o formato circular do entorno, da base e do globo representam o sol nascente, símbolo do Japão. No globo há ainda, três anéis circulares que interligam os mapas do Brasil e do Japão11.
Fonte: <http://www2.maringa.pr.gov.br/site/noticias/2008/06/23/monumento-do-parque-do-japao-esimbolo-do-imin-100/6584> Acesso em 20 de fev. de 2022.
Na comemoração dos 110 anos da imigração japonesa, em 2018, Mako Komuto, na época princesa Mako de Akishino12, veio à cidade de Maringá participar do evento nacional Expo IMIN 110, que ocorreu no Parque de Exposições Francisco Feio Ribeiro. A princesa agradeceu pela boa recepção que teve no Brasil, e também afirmou sentir alegria e respeito pelas/os japonesas/es que vieram ao país construir a comunidade nipo-brasileira.
Antes da derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial, as/os japonesas/es que viviam no Brasil, de modo geral, tinham a perspectiva de trabalhar, reunir recursos financeiros e retornar ao seu país de origem. Entretanto, segundo Inumaru (2019), os cafeicultores brasileiros que firmaram contrato com as/os imigrantes estabeleceram péssimas condições de trabalho, preços abusivos em armazéns, além de valores exorbitantes pelas passagens de vinda ao Brasil, o que inviabilizou o retorno das/os japonesas/es à sua terra natal.
A autora também apresenta que, no início da imigração, a cultura de origem nipônica se manteve mais preservada devido à concentração de comunidades fechadas no país. Essas comunidades formaram associações, as quais eram também uma forma de manter uma memória coletiva e certa manutenção à cultura originária. “A intenção destas comunidades culturais era manter viva os costumes e preservar as práticas sociais.” (INUMARU, 2019, p. 26). Com isso, criaram-se, por exemplo, escolas e jornais onde se valorizava a língua japonesa. Esse movimento se fortaleceu de forma que os agrupamentos japoneses se fecharam cada vez mais. Esse conjunto de ações e estratégias para preservar parte da cultura nipônica foi considerado uma ameaça por parte das autoridades brasileiras, que apresentaram, à época, um discurso nacionalista que acusava as/os imigrantes de não assimilarem a cultura do Brasil.
Durante a guerra, as rotas marítimas foram fechadas e a chegada de imigrantes no Brasil diminuiu. Nessa mesma época, nasceram as/os primeiras/os nipo-brasileiras/os “genuínas/os”, isso é, as/as primeiras/os descendentes de japonesas/os nascidas/os em territórios brasileiros, das/os quais, muitas/os, ficariam em terras brasileiras permanentemente. Grande parte das/os imigrantes japonesas/es que vieram para o Brasil nessa época também tinham como objetivo ficar definitivamente no país, já que o Japão passava por péssimas situações econômicas, elevado desemprego e se encontrava derrotado moralmente, em nível mundial, após centenas de anos vitorioso em batalhas. A isso, acrescentamos o fato de que muitas/os japonesas/es que viviam no Brasil acreditavam que o Japão seria invencível, devido ao poder divino do imperador, chegando a acusar aquelas/es que acreditavam na derrota do país na guerra de traição à pátria.
O pós-guerra no Japão foi um período de grandes dificuldades, pois apresentava uma economia desajustada e alto índice de desemprego. Após 400 anos de vitórias [...], o Japão sucumbiu frente ao poderio bélico dos Estados Unidos e, principalmente às bombas nucleares. Os vencedores da guerra encontraram um país devastado, um terço de sua população dormia ao relento e muitas pessoas acometidas por doenças como tuberculose e Beribéri. A indústria japonesa foi esfacelada e o general americano Douglas MacArthur foi o responsável por administrar o país derrotado. Preservaram a figura do Imperador por comodidade política e implantaram várias reformas em setores da educação e da economia, por exemplo. Depois de intensos trabalhos de recuperação, o país inicia um processo de expansão econômica. (INUMARU, 2019, p. 27)
Após esses processos de recuperação da economia japonesa, por volta dos anos de 1980, o governo do Japão passou a ter a imigração como uma possibilidade de suprir a demanda por mãode-obra para os “trabalhos menores”, uma vez que o país também passava por uma redução populacional. Nesse período, o Brasil enfrentava uma crise econômica, o que levou as/os descendentes de japonesas/es a realizarem um movimento de diáspora, que ficou conhecido como dekassegui. Ou seja, nikkeis partiram do Brasil para trabalhar em fábricas no Japão. Muitas dessas pessoas levaram consigo suas/seus cônjuges, as/os quais não eram necessariamente nipobrasileiras/os.
Com o fenômeno dekassegui, criaram-se comunidades de trabalhadores nikkeis nas regiões mais industrializadas do Japão, cujos membros são facilmente identificados como estrangeiros. Uma grande rede de serviços - agências de turismo, restaurantes, veículos de comunicação foi estruturada para atender os brasileiros e suas famílias no Japão. Assim, no mundo de mercados globalizados, há nikkeis no Brasil com feições japonesas e passaporte japonês, por conta da dupla cidadania, mas que não falam japonês nem conhecem seus costumes atuais. E há nikkeis com feições ocidentais e cidadania brasileira vivendo desde que nasceram no Japão, que mal falam português. (MIZUMURA, 2011, p. 65)
Acerca das identidades nipo-brasileiras, especificamente, Mariany Toriyama Nakamura, em Memória e identidades nipo-brasileiras: cultura pop, tecnologias e mediações (2013), afirma que são compostas pela mistura da identidade japonesa e a identidade brasileira, as quais, ainda têm influência de características regionais e locais. Argumenta sobre um processo de aculturação, no qual a cultura japonesa (de origem) passou por mudanças após o contato com a cultura brasileira/regional/local (cultura receptora). Com isso, é possível, em um mesmo sujeito, a identificação de práticas, costumes e rituais tanto de uma cultura quanto das outras. As gerações mais velhas apresentam características mais próximas da raiz japonesa. As gerações mais novas, por sua vez, preservam a cultura a partir de uma “releitura das tradições e da estética japonesa” (NAKAMURA, 2013, p. 54). Em concordância, Inumaru (2019, p. 26) descreve que as/os descendentes de japonesas/es nascidas/os no Brasil possuíam fragmentos identitários múltiplos e, em suas palavras, “[...] a nova geração de nipo-brasileiros já apresentava uma assimilação cultural híbrida, frequentava escolas da comunidade brasileira e, assim, adotaram a Língua Portuguesa como língua materna.”. Assim, com o decorrer das gerações de descendentes nipo-brasileiras/os, a cultura de origem e a cultura receptora tornam-se, cada vez mais, integradas, mesclando e sobrepondo a identidade étnica japonesa e a identidade nacional brasileira.
No que diz respeito a rituais relacionados à morte, por exemplo, na casa de minha13 avó existe um hotokesama, um altar ligado a religiões xintoístas. Nesse altar, há elementos como fotografias de familiares antepassadas/os, placas com nomes de familiares falecidas/os em ideogramas japoneses e um espaço para acender incensos. Por outro lado, nesse altar também há imagens de Nossa Senhora Aparecida e de Jesus Cristo, próprias da religião cristã. Recordo-me de que, quando criança, visitava a minha batian e via aqueles objetos com curiosidade e medo, uma vez que não compreendia muito bem os significados acerca deles e os elementos que o compunham. Ela relatava vários rituais relacionados ao hotokesama, que poderiam trazer bênçãos ou má sorte. Lembro-me que ela sempre acendia incensos e colocava um copo de água ao lado, em memória às/aos nossas/os antepassadas/os. Já adulta, após o falecimento da minha batian, busquei mais informações sobre esse objeto, por meio de buscas pela internet e conversas com familiares. Confesso que, ainda hoje, vejo o hotokesama dotado de uma “aura” meio mística, e evito passar por ele à noite. Porém, cada vez mais, me sinto feliz por me conectar, de certa forma, através dele, com a minha avó. Assim, eu acabo por praticar e me inserir em parte das tradições japonesas, contudo, sem saber muito bem sobre os significados originários delas, pois eles se misturaram conforme a cultura receptora, isto é, a brasileira.
É recorrente a uma/um nikkei ouvir questionamentos acerca de sua origem, da descendência das/os seus/suas familiares, ou mesmo serem solicitadas/os a falarem algo em japonês, mesmo que seja nascida/o no Brasil. Dessa forma, as/os nipo-brasileiras/os podem passar por uma sensação de não-pertencimento. Gabriel Yukio Goto, em Kazuo Sem Espaço no Entrelugar (2021), trata sobre essa dualidade entre não se sentir pertencida/o nem como brasileira/o, nem como japonesa/japonês: “Basicamente, o conceito de Entrelugar é sobre um povo - normalmente em diáspora - que não se sente acolhido por sua terra natal nem pelo seu destino, estando em constante questionamento sobre o seu lugar de pertencimento” (GOTO, 2021, s/p). Sobre como lidar com essa realidade, o autor discorre da seguinte forma:
É uma resposta que continuo buscando. Permaneço no Entrelugar em que meu pai foi criado e em que meus avós nasceram. Me sinto sufocado muitas vezes, mas já lido melhor com a ideia de estar aqui. Se um dia eu conseguirei sair, não sei te responder, leitor. Provavelmente não, e mesmo você talvez esteja preso em algum lugar. Contudo, é importante lembrarmos que estar perdido é normal, dependendo do caso, esperado, e não nos impede de tentar. Eu tenho um nome, uma identidade e não há espaço para mim no Entrelugar, mas luto todos os dias para não me encaixar, e sim para moldar a vida que tanto busquei. (GOTO, 2021, s/p).
Para Goto (2021), escrever também tem sido algo terapêutico e que possibilita que tais pautas sejam mais visibilizadas. Tendo apresentado aspectos históricos que narram, sob diferentes perspectivas, a vinda das/os primeiras japonesas/os para o Brasil, e que oferecem condições para que problematizemos o (não)pertencimento das gerações decorrentes, na próxima seção desse artigo indicamos violências e conflitos mais contemporâneos que assombram a população nipobrasileira. Posteriormente a isso, no próximo tópico, dedicamo-nos a refletir sobre as questões de gênero, debatendo sobre as identidades de mulheres nipo-brasileiras e os modos como são violentadas pelo racismo, xenofobia e misoginia.
“Japonesas são todas iguais”: violências que atingem os corpos de mulheres nipobrasileiras
Certo dia, estava caminhando pela rua de casa e ouvi um homem, do lado de dentro do portão de uma casa, dizendo algo que não compreendi. Parei brevemente para tentar entender o que ele estava falando, quando notei que eram xingamentos e ofensas devido às minhas características fenotípicas. “Japoneses vagabundos têm que voltar pra sua terra” - ele vociferava. Como era adolescente e nunca tinha passado por uma situação de violência tão explícita como essa, fiquei muito assustada. Senti medo. Saí correndo. Só depois de muito tempo, percebi que se tratava de uma situação de ódio e que esse sentimento não dizia respeito a mim, individualmente, mas sim que era uma manifestação de rejeição das diferenças. Emcke (2020) apresenta que tais manifestações de ódio acontecem sob o pretexto de conter o diferente e manter a “normalidade”. Dessa forma, grupos minoritários, que divergem da norma dominante, são alvos de violência com maior freqüência do que outros. Por vezes, o ódio aparece camuflado em convenções sociais, em outras, escancarado e apresentado com orgulho. De acordo com a autora, o ódio é uma construção, sendo “formado coletiva e ideologicamente.” (EMCKE, 2020, p. 18). Sobre isso, aquelas/es que são expostos ao ódio tendem a se calarem e perderem a confiança. Porém, Emcke defende que não devemos nos habituar com tais violências.
No que diz respeito especificamente ao ódio contra pessoas amarelas, de acordo com Miwa Kashiwagi14 (2021), criadora de conteúdo digital e graduanda em Relações Internacionais na Fundação Getúlio Vargas, no Brasil, faltam dados e pesquisas que tratam do “sentimento antiasiático”. Ela argumenta que temos uma mídia que retrata os países asiáticos de maneira sensacionalista, exemplificando com o caso que apresentamos na epígrafe, envolvendo o exministro da Educação. Para além desse episódio de xenofobia contra pessoas amarelas, mencionamos os posicionamentos do atual presidente da república do Brasil, que em maio do primeiro ano de seu mandato 201915, quando estava de passagem pelo aeroporto internacional de Manaus, encontrou um homem asiático que o cumprimentou dizendo “Brasil gostoso”. Após isso, o presidente se afastou do homem, levantou os braços e disse “opa, opa”. Em seguida, o presidente fez um gesto estratégico com as mãos e dedos indicando "tamanho reduzido e perguntou: “tudo pequenininho, ai?”, fazendo referência e deboche às genitálias de homens asiáticos, reforçando estereótipos em relação aos corpos amarelos. Além disso, o mesmo presidente já afirmou, em uma palestra16 no Clube Hebraica no ano de 2017, que as/os japonesas/es não pedem esmola porque são uma raça que “tem vergonha na cara”, reforçando o estereótipo que liga as/os asiáticos a uma referência a ser seguida.
A isso relacionamos o conceito abordado por Caynnã de Camargo Santos e Cláudia Rosa Acevedo, no artigo A Minoria Modelo: uma análise das representações de indivíduos orientais em propagandas no Brasil (2013). Minoria modelo é, conforme apontam, um estereótipo que considera que “[...] a comunidade asiática seria especialmente trabalhadora, séria, ética, detentora de conhecimentos acima da média nos campos da matemática e tecnologia e, em geral, intelectualmente talentosa.” (SANTOS; ACEVEDO, 2013, p. 286). Aparentemente inofensivo, o mito da minoria modelo, além de desconsiderar a individualidade de sujeitos asiáticos e descendentes, atribuindo-os em uma imagem idealizada unificada e pressionando-os a se encaixarem nesses padrões. Além disso, de acordo com Tamilyn Tiemi Massuda Ishida e Eduardo Cardoso Braga em Fetichização da mulher leste asiática e de suas dispersões transnacionais: o papel do design em sua conscientização e resistência (2019), esses estereótipos reforçam a opressão contra outras minorias, ao declarar que outros grupos minoritários podem alcançar o sucesso se “trabalharem duro”.
De acordo com a organização Stop APPI Hate, entre março e dezembro de 2020, foram registrados, nos Estados Unidos, 126 incidentes contra estadunidenses-asiáticas/os com mais de 60 anos de idade, levando a uma mobilização contra essa intolerância, demarcada por hashtags como “#stopasianhate”17. Dentre esses casos, temos que, no dia 16 de março do ano de 2021, aconteceu um atentado em Atlanta, nos Estados Unidos. Nesta ocasião, um homem branco foi a alguns estabelecimentos de casas de massagens, nos quais as/os donas/os e empregadas/os, eram, em sua maioria, asiáticas/os e atirou contra elas/es. Neste atentado, foram mortas seis mulheres asiáticas, e uma mulher e um homem caucasiano. De acordo com sites de notícias, o assassino disse que os estabelecimentos representavam uma tentação sexual para ele18.
Relacionamos esses dados ao contexto contemporâneo da pandemia da Covid-1919. Com o advento da pandemia, o sentimento “anti-asiático” foi intensificado e revelado: diversas situações de insultos e segregação de pessoas com ascendência leste-asiática ocorreram no Brasil e no mundo atribuindo-lhes certa “culpa” e “responsabilidade” pela disseminação do vírus. Em casos mais extremos, alegaram que o vírus fora intencionalmente criado e propagado pelas/os chinesas/es, com a intenção de reduzir a população mundial, como uma espécie de arma biológica - o que posteriormente foi desmentido por pesquisas científicas. O sentimento “anti-asiático” se faz evidente quando nos debruçamos sobre manchetes de notícias tais como, Pandemia de coronavírus gera surto de racismo contra asiáticos (PORTAL R7, 15/03/2020)20 ; Coronavírus: Condomínio em SP tentou segregar chineses como “medida de prevenção” (G1, 05/02/2020)21 ; e Estudante chamada de “chinesa porca” identifica idosa: “Tomei medidas judiciais” (MARIE CLAIRE, 04/02/2020)22 . Diante dos ataques exemplificados nessas manchetes, foram criadas campanhas nas redes sociais, com o uso das hashtags23 “#iamnotavirus”, ou “#eunãosouumvírus”24 , a partir das quais, principalmente lesteasiáticas/os e descendentes de asiáticas/os que vivem em outras localidades lutaram pelo fim do ódio contra pessoas amarelas. Esses casos contemporâneos expõem a necessidade de discutirmos a respeito da (in)tolerância com a diversidade de identidades étnico-raciais, e a relevância da representatividade asiática para a quebra desses estereótipos.
Para além da problemática do aumento de ataques contra asiáticos/as no contexto da pandemia do coronavírus, esse crime traz à tona outra questão em relação aos corpos femininos amarelos: a sexualização e fetichização. De acordo com dados do site PornHub, plataforma de vídeos de conteúdos sexuais, no ano de 201925, o termo mais buscado foi japanese, ou japonesa/japonês” (tradução livre), e entre os sete primeiros termos mais buscados, também estão korean, ou “coreana/coreano” e asian, ou “asiática/asiático”. A nível de nos aprofundarmos nessa discussão, abaixo reunimos duas obras artísticas que representam a nudez de mulheres asiáticas (Figura 3 e Figura 4).
Fonte: <https://artrianon.com/2016/10/18/obra-de-arte-da-semana-a-grande-odalisca-de-ingres/>. Acesso em 7 abr. 2021.
A primeira representação, sob a perspectiva do francês Jean-Auguste Dominique Ingres (1780-1867), um homem branco e europeu, refere-se às odaliscas, termo que, segundo Marcia Dib no artigo Mulheres árabes como odaliscas: Uma imagem construída pelo orientalismo através da pintura (2011), alude à criada da casa ou criada do quarto. Ainda de acordo com a autora, as odaliscas eram mulheres árabes escravas levadas ao palácio muito novas, onde recebiam treinamentos em diversas habilidades, como tecelagem, bordado, poesia, música, dança, leitura do Alcorão e modos. Caso se destacassem, poderiam se tornar concubinas, um patamar acima na hierarquia do harém. Logo, não eram mulheres passivas, à espera de alguém. Além disso, os haréns eram espaços privados, reservado à família. Ingres fez uma representação equivocada da odalisca: desconsiderou-se o real e a representou a partir do (seu) imaginário ocidental, mostrando uma realidade distorcida. Representou os elementos com detalhes, uma vez que a esses, sim, poderia ter acesso, como podemos notar nos objetos que compõem a pintura: o leque, incensário, turbante, cortinas e almofadas. Diferente da fidedignidade deles, a mulher, nua, deitada sobre o divã, possui o rosto com traços de mulheres europeias. Sua pose passiva também não coincide com a vida das odaliscas. Além disso, possui o corpo deformado para alcançar o “belo” segundo lógicas do contexto francês, e expressar sensualidade pelas curvas.
A segunda produção, feita por Gabriela Narumi Inoue (1999--), uma mulher japonesa que vive no Brasil e representa a si mesma com suas subjetividades. Neste caso, o corpo sem roupas não é fetichizado e é representado pelas cores vermelho e azul, dualidade que marca oposições num mesmo corpo. A artista utiliza da fotografia para capturar momentos de “luz e sombra”, a fim de representar a transição26, que, segundo ela, representa suas experiências do ano de 2019.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento apresentado neste artigo indica a necessidade de repensar as referências e histórias que são contadas e compartilhadas acerca de pessoas que destoam da norma ocidental, chamando atenção para aquelas que representam mulheres amarelas. Como alternativa a essa problemática, pensamos que a educação escolar e mesmo aquela realizada em espaços não escolares - como as mídias e as políticas públicas (que são, ambas, educativas) - podem atuar na transformação daquilo que hoje parece ser generalizado às mulheres nipônicas.
Sobre a diversidade étnica e cultural atrelada aos espaços, currículos e práticas escolares, podemos acrescentar a essa discussão o documentário Escolarizando o Mundo (2010). Nele, questiona-se o processo de escolarização mundial que almeja que todas as crianças estejam na escola, de forma a romper com os valores tradicionais que não seguem o padrão hegemônico ocidental, em um movimento de monocultura humana - o qual visa que as pessoas sejam exatamente iguais umas às outras, diminuindo, se não exterminando com a diversidade cultural.
Assim, concordamos com Vera Maria Ferrão Candau, quando, em Diferenças Culturais, Cotidiano Escolar e Práticas Pedagógicas (2011), afirma que a educação escolar nas nações latinoamericanas difundiu uma cultura de base eurocêntrica, com a intenção de promover a igualdade. Contudo, esse modelo de educação acaba por tentar homogeneizar as crianças, apagando-lhes as diferenças, em práticas que enfatizam a uniformização das identidades. A autora expõe que, no continente latino-americano, possuímos diferenças culturais diversas, como as étnicas e de gênero. Para ela, essas diferenças são construtivas, e estão na essência do que se constitui a escola. A autora assinala a importância de considerar a diversidade cultural nos espaços de ensino e sublinha que “Ter presente a dimensão cultural é imprescindível para potenciar processos de aprendizagem mais significativos e produtivos para todos os alunos e alunas” (CANDAU, p. 242, 2011).
No contexto da educação e formação de professoras/es é importante nos questionarmos sobre as referências que apresentamos às/aos estudantes, pois, tradicionalmente, costumam ser contempladas imagens, histórias e produções artísticas que valorizam, em sua maioria, homens, europeus e brancos, sendo apresentados, muitas vezes, como heróis ou modelos a serem seguidos. Desconsideram-se assim, que também existam heroínas e heróis negras/os, amarelas/os e indígenas, como, por exemplo, Marielle Franco27 (1979-2018), Kishida Toshiko28 (1863-1901) e Arissana Pataxó29 (1983--), respectivamente. Como pesquisadora e pesquisador das áreas da Educação, Artes Visuais e Estudos Culturais, pensamos que podemos encontrá-las, ler sobre elas e contemplá-las em intervenções pedagógicas com o ensino de Arte. Como artistas, podemos, ainda, buscar e conhecer outras referências de narrativas que contam as nossas histórias e as histórias daqueles/as que estão ao nosso lado, recorrendo a técnicas, estéticas, padrões de representação e estilos que não necessariamente os europeus e estadunidenses.
É relevante, portanto, no âmbito da educação, apresentar às crianças e adolescentes, referências que contem outras histórias; que participem ou que tenham participado da construção do nosso país e cultura; que ofereçam outras visões de mundo e que ampliem o repertório das/os alunas/os para além do óbvio no que diz respeito às identidades étnico-raciais e às questões de gênero. Isso também contribui para que os sujeitos envolvidos na educação escolar tenham maior empatia com as diferenças.
Dessa forma, é importante trabalhar na prática educativa com múltiplas narrativas, como conhecimentos centrados em outras histórias que não sejam a do homem europeu, branco, cristão e heterossexual, uma vez que tais camadas identitárias, apesar de hegemônicas, não dão conta de representar as diferenças dos sujeitos em sua multiplicidade cultural. Pensar como determinadas ideias foram, com o passar do tempo, naturalizadas e, assim, problematizá-las; Refletir sobre as relações de poder intrínsecas na produção e circulação de imagens e sobre a importância da representatividade; e perguntar quanto a (não) representação visual dos sujeitos são, todas essas, ações que podem atravessar as práticas de ensino nas escolas. Em conformidade com a Base Nacional Comum Curricular30- BNCC (BRASIL, 2018, p.14) e com seu compromisso com a educação que acolhe, reconhece e desenvolve plenamente as diferenças e individualidades dos sujeitos, “[...] a escola, como espaço de aprendizagem e de democracia inclusiva, deve se fortalecer na prática coercitiva de não discriminação, não preconceito e respeito às diferenças e diversidades.”