INTRODUÇÃO
A sociedade atual foi construída sobre pilares excludentes e preconceituosos. Depois de quase quatro séculos de escravização, a chamada abolição da escravatura não foi acompanhada de políticas e estratégias que pudessem inserir o negro na sociedade em plenas condições de liberdade. Ao contrário, verificou-se o seu completo abandono pelo Estado:
[...] nenhuma política de reversão do racismo, nenhuma política de reparação, nenhuma estratégia para passar a remunerar quem trabalhava escravizado(a). Pelo contrário, o que sobrou aos(às) negros(as) foi a margem (geográfica e social), estratégias e leis do governo brasileiro para eliminar esse que agora era um incômodo sem utilidade, o elemento negro na constituição do povo brasileiro, e ainda lhes foi imposta a ausência de remuneração, de reconhecimento de suas contribuições e de oportunidade de trabalho (PRESTES, 2013, p. 29).
Nas primeiras décadas do século XX, oprimida e às margens da sociedade, a população negra entraria em contato com a perversidade dos discursos e das práticas eugenistas dedicadas ao chamado projeto de branqueamento da nação brasileira. Representantes da elite intelectual entusiasmada com o projeto à época, Nina Rodrigues e Sílvio Romero postulavam a necessidade de embranquecer a população brasileira, com a suposição de que esta seria a melhor estratégia para o “aprimoramento da raça” e o consequente desenvolvimento da nação (BOLSANELLO, 1996).
Médicos, juristas, escritores, políticos e outros agentes de influência na sociedade legitimavam o racismo sob o véu da autoridade. A população negra era constantemente posta em condição de inferioridade em relação aos brancos:
Tendo que livrar-se da concepção tradicionalista que o definia econômica, política e socialmente como inferior e submisso, e não possuindo uma outra concepção positiva de si mesmo, o negro viu-se obrigado a tomar o branco como modelo de identidade, ao estruturar e levar a cabo a estratégia de ascensão social. A sociedade escravista, ao transformar o africano em escravo, definiu o negro como raça, demarcou o seu lugar, a maneira de tratar e ser tratado, os padrões de interação com o branco e instituiu o paralelismo entre cor negra e posição social inferior (SOUZA, 2019, p. 23).
Segundo Bento (2001), os brancos estabeleceram-se como padrão de referência. Deste modo, na medida em que relações de poder e de dominação entre brancos e negros são engendradas, reitera-se a suposta superioridade branca. Assim, enquanto a autoestima e o autoconceito dos brancos ganham tônus, a população negra sente os efeitos subjetivos do racismo em forma de sentimento de desvalia, insegurança, sensação de impotência e estranheza em relação à própria imagem.
Tendo em conta esses tensionamentos permeados pelo racismo, é possível compreender o motivo pelo qual muitas pessoas, principalmente as mulheres negras, enfrentam diversos problemas para se entenderem no mundo. Há uma demora até que se percebam em um corpo e em uma potência subjetiva negra. Em muitos casos, infelizmente, a tomada de consciência acerca da negritude feminina não ocorre. A lógica socialmente racista que perpassa a sociedade e atravessa a nossa vida impõe desafios ao conhecimento de nossa origem e à compreensão sobre quem nós somos (KILOMBA, 2019). Ser mulher negra no Brasil implica, primeiramente, em não ser. Como apontado por Souza (2019), ser negro quando a sociedade já possui um modelo claro, é ser marcado pela diferença. Isso mesmo: claro! Um termo eurocêntrico com raízes racistas, amplamente usado no dia a dia.
Logo, assim como branquidade (PIZA, 2005) é colocada como referência universal, devemos universalizar o debate sobre a importância do despertar da mulher negra para a sua negritude. Vale salientar que, as mulheres negras constituem a força motriz desta sociedade estruturalmente racista (RIBEIRO, 2018). Perceber-se como negra pode ser um processo extremamente potente, em termos individuais e coletivos, principalmente quando nos conscientizamos de estarmos enredadas por uma lógica completamente racista e misógina onde somos alvo para todos os tipos de agressão (KILOMBA, 2019).
O termo despertar traz alguns significados importantes para a nossa discussão. Conforme definido no dicionário Caldas Aulete, pode significar: (1) fazer sair ou sair do sono - acordar; (2) fazer sair ou sair de (ilusão, inércia, distração, ignorância etc.); (3) provocar, estimular; (4) dar origem a; (5) acordar ou amanhecer (em certo estado); (6) surgir, manifestar-se (AULETE, 2001). Neste sentido, despertar implica em movimentos objetivos e subjetivos atrelados a uma sucessão de lutas. Sim! Ser mulher negra em uma sociedade estruturalmente racista, sexista e misógina demanda o engajamento em batalhas pela sobrevivência em um cenário repleto de trincheiras.
Na urgência desse debate, propusemos uma análise sobre o despertar de mulheres negras para a negritude feminina. Quais são os fatores envolvidos no que estamos chamando de despertar? Existem condições mais propícias para esse movimento de fortalecimento subjetivo? O que as mulheres negras nos dizem sobre os processos envolvidos em seu despertar?
O artigo está organizado do seguinte modo. Além desta introdução, discorremos sobre as dimensões do existir na condição de mulher negra em um diagrama de forças atravessado pelo racismo em seus diferentes níveis de funcionamento. Em seguida, apresentamos o método da pesquisa. Na seção seguinte, expomos os resultados das análises. Por fim, tecemos as considerações finais.
ENTRE A NEGAÇÃO DO EU E O DESPERTAR PARA A NEGRITUDE FEMININA
Em geral, as mulheres negras são percebidas no mundo como estrangeiras, como o Outro (KILOMBA, 2019). Ou seja, o despertar ocorre porque existe um padrão universal preestabelecido que normaliza o corpo da mulher branca e torna o corpo da mulher preta anormal, supostamente feio, estranho e passível de rejeição (BENTO, 2001).
Segundo Kilomba (2019), no racismo os corpos negros estão sempre fora do lugar, erráticos, não pertencentes. Em contrapartida, os brancos encontram um lugar de pertencimento. Assim, a busca pela aceitação pode despontar por intermédio de excessivo empenho, sacrifício e sujeição, instituindo um modo de existir para o negro. Todavia:
[...] ser o melhor, a despeito de tudo, não lhe garante o êxito, a consecução do Ideal. É que o Ideal do Ego do negro, que é em grande parte constituído pelos ideais dominantes, é branco. E ser branco lhe é impossível. Dilacerante, crua, cruenta descoberta [...] (SOUZA, 2019, p. 38).
Nessa busca por um lugar recusado, fragilizada pelos constantes ataques em relação à sua existência, a subjetividade negra se manifesta em forma de culpa, insegurança, medo e dor. De acordo com análises expressas na obra, intitulada, Tornar-se negro: ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social (SOUZA, 2019), as pessoas pretas, principalmente as mulheres, vivenciam experiências advindas do racismo sob as sequelas do próprio racismo, tais como: autodesvalorização, tristeza, conformismo em relação aos lugares em que são colocadas por aqueles que produzem e reproduzem discriminação. Nas palavras de Kilomba: “esse é o trauma do sujeito negro; ele jaz exatamente nesse estado de absoluta ‘Outridade’ na relação com o sujeito branco” (KILOMBA, 2019, p. 27).
Os estranhamentos em relação a si mesmo não se restringem à dimensão subjetiva. Aspectos físicos e estéticos das mulheres negras são constantemente enredados em uma trama de objetificação. Deste modo, o corpo, os cabelos, os gestos, a linguagem, dentre outros elementos e manifestações tornam-se alvo da violência opressora do racismo. Neste sentido, Zamora (2012) relembra que “[...] os atributos físicos ditos dos negros são geralmente pensados no negativo e sempre postos em comparação desfavorável aos ideais estéticos etnocêntricos” (p. 567). A título de ilustração, a autora aponta para as visões que permeiam o imaginário social sobre o cabelo crespo ser o “ruim”, “duro” e “mal cuidado”, enquanto os cabelos lisos seriam “bons”, “bem cuidados” e dignos de inveja.
Faz-se importante considerar o fato de que, invariavelmente, racismo e sexismo são reforçados e intensificados em relações de poder e dominação, especialmente nas interações entre mulheres negras e homens brancos (BERNARDES, MENEGHEL, OLIVEIRA, 2009). Kilomba (2019, p. 190) assegura que:
[...] mulheres negras, por não serem nem brancas nem homens, passam a ocupar uma posição muito difícil dentro de uma sociedade patriarcal de supremacia branca. Nós representamos um tipo de ausência dupla, uma Outridade dupla, pois somos a antítese tanto da branquitude quanto da masculinidade. Nesse esquema, a mulher negra só pode ser a/o “Outra/o” e nunca o eu.
Ser o outro e não o eu significa estar exposta e vulnerável a todo e qualquer tipo de exercício de poder ou dominação. Ser o outro significa não existir como sujeita1. Para viver na condição de sujeita é preciso enfrentar a perversidade do racismo, acoplado ao sexismo, que vem mantendo a mulher negra na base da pirâmide desse sistema político-econômico-social violento e cruel.
Percebemos como essa realidade demanda resistências e lutas. A complexidade da situação nos diz sobre a necessidade de identificarmos as forças opressoras a fim de combatê-las. Racismo, machismo e sexismo estão no alvo de nossos enfrentamentos.
Contudo, como nos lembra hooks (2019), a experiência de ser uma mulher negra precisa ser lembrada para além da dor e do sofrimento, pois, muitas vezes, a não exaltação de suas experiências de prazer, de outras afetações da existência, faz a mulher negra padecer em si e em ser. Além da força, há de se ter oportunidade para desejar, criar e amar. A luta também passa pelo desejo, bem como pelos atos de imaginar e criar conexões e possibilidades. Desejo, imaginação e criação em conexão com o amor. A propósito, nas palavras de Prestes (2018, p. 170), “[...] o amor deve ser pauta da luta visando o resgate da dignidade e da integralidade, como forma de enfrentamento à tentativa de desumanização, além de estratégia de promoção e manutenção de saúde psíquica.”
Nessa conjuntura permeada de afetações e de afetos, despertar para a negritude feminina emerge como condição para existir em potência e movimento. Mitigar o sofrimento do racismo para se conectar com a própria história e percorrer os caminhos da vida, em um movimento de fortalecimento subjetivo atrelado à afirmação de si.
Na próxima seção, apresentamos os caminhos percorridos nesta pesquisa para analisarmos relatos e narrativas de mulheres negras que despertaram para a negritude feminina.
MÉTODO
Em um primeiro momento, realizamos uma revisão bibliográfica em busca de memórias e narrativas de mulheres negras que tivessem vivenciado o que tem sido chamado de “despertar para a negritude”. Recorremos a autoras negras como Djamila Ribeiro, Grada Kilomba e Maria Aparecida da Silva Bento. De um modo mais específico, fizemos uma leitura minuciosa do livro escrito pela psicóloga e escritora portuguesa Grada Kilomba, intitulado, Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano (KILOMBA, 2019).
O referido livro foi um norteador para a elaboração de análises ao longo do percurso de pesquisa. Em uma parte específica da obra, Kilomba (2019) diz sobre o próprio despertar para a negritude, quando narra experiências vivenciadas a partir de sua saída de Portugal rumo a Berlim para fins de aprimoramento de sua formação acadêmica: “[...] não havia nada mais urgente para mim do que sair, para poder aprender uma nova linguagem. Um novo vocabulário, no qual eu pudesse finalmente encontrar-me. No qual eu pudesse ser eu.” (KILOMBA, 2019, p. 11).
Em uma segunda etapa do trabalho, analisamos narrativas e relatos de mulheres negras a partir do acesso de conteúdos publicados na internet. Selecionamos três vídeos que foram assistidos, tiveram seus conteúdos de áudio transcritos e submetidos a uma Análise de Conteúdo (MINAYO, 2012). A escolha se deu em virtude do engajamento de suas protagonistas no enfrentamento e na partilha de análises sobre racismo e gênero. Além disso, consideramos o período em que foram publicados: 2016 e 2017, anos marcados pela instabilidade da ordem democrática e pela intensificação de ameaças e práticas racistas na sociedade brasileira.
Na próxima seção apresentamos análises sobre o conteúdo levantado, a partir do referencial proposto.
ANÁLISE E DISCUSSÃO
Para procedermos à análise de conteúdo dos vídeos, faz-se necessário salientar que os contextos social e político do Brasil à época em que foram publicados eram bastante turbulentos. Após um processo de impeachment na presidência da República, em 2016, o país passava por momentos de incertezas que influenciaram o debate sobre as causas sociais, como, por exemplo, o combate ao racismo e a luta por equidade de direitos a todos os sujeitos. Observaram-se, inclusive, cenas fortes propagadas pelas mídias sociais em que mulheres negras posicionadas politicamente contra as injustiças vinham sendo silenciadas. Na mesma época, todavia, manifestações e atos de afirmação da negritude refletiam em espaços associados com a estética e a beleza da negritude feminina. Começaram a surgir diversos produtos especializados para cabelos crespos e cacheados, com ampla divulgação e valores acessíveis.
Assim, ética, estética e política associadas com as mulheres negras compuseram elementos cruciais para mobilizações no campo das discussões sobre raça e subjetividade. Canais vinculados a uma plataforma de vídeos divulgados na internet surgiam para conectar jovens mulheres negras em torno de discussões no campo das relações étnico-raciais. Tutoriais de beleza feminina negra, análises e discussões sobre tratamento capilar em meio ao racismo, dentre outros assuntos, ganharam visibilidade e mobilizaram milhares de pessoas.
Título do vídeo | Narradora | Data |
---|---|---|
Colorismo, ser negro e os três mitos da mulher negra | Nátaly Neri | 2016 |
A mulata que nunca chegou | Nátaly Neri | 2017 |
Eu quero poder ser fraca | Stephanie Ribeiro | 2017 |
Fonte: Elaborado pela autora e pelo autor.
Os fragmentos das narrativas e dos relatos expressos nos vídeos dizem sobre os processos subjetivos engendrados pelas mulheres negras em um diagrama de forças permeado pelo racismo. Saídas encontradas em movimentos de resistência se dão, frequentemente, distante das condições de conforto e tranquilidade. Pelo contrário, a perversidade atrelada aos pactos da branquitude tornam a situação um tanto quanto complexa.
Ainda que um povo consiga enegrecer, a resistência e a opressão associadas com a branquitude e com os privilégios brancos farão frente aos gestos e aos movimentos de afirmação da população negra. Por este e outros motivos explanados adiante, entender-se como uma mulher negra pode ser um processo intensamente doloroso:
Eu sempre fui considerada uma menina feia, pelo menos por mim ou pela maioria das pessoas à minha volta. Meus pais, no caso, eram os únicos que realmente apreciavam essa beleza singular. Apesar de sempre ter tido uma autoestima muito baixa, como toda criança negra com essa idade, existia um grupo específico de pessoas que me tratava de uma forma diferente. Com essa idade existe um grupo de pessoas que de fato sabia que eu era uma menina não muito bonita, meio desajeitada, desengonçada e também sabiam, de alguma forma, que eu me tornaria uma mulher muito bonita quando eu crescesse (A MULATA QUE NUNCA CHEGOU).
O fragmento acima ilustra as considerações de Zamora (2012) sobre o fato de cabelos, corpos, gestos e de toda a estética das mulheres negras situarem-se no pólo negativo da norma em que os padrões de beleza estão instituídos. Conforme abordam Thomaz e Vieira (2019) “[...] a ideia acerca da beleza traz consigo uma exclusão sistemática de corpos que não adentram as classificações sócio-culturais daquilo que é considerado e propagado enquanto belo em termos estéticos” (p. 217). Ao direcionar essa reflexão para a noção de beleza socialmente difundida em uma história racista, entendemos como estes padrões permeiam os modos de subjetivação das mulheres negras, suscitando uma autopercepção inferiorizada sobre seus corpos pretos.
O corpo humano vai além de uma matéria biológica, é o meio pelo qual nos relacionamos com o mundo, é espaço para relações de poder. Dependendo da época, sua história e critérios de classificação dominantes também mudam (BOSI, VIEIRA, 2013). Logo, seguindo uma lógica classificatória e excludente, as noções de valorização e desvalorização desses corpos alteram-se a depender do contexto em que estão inseridos. Ou seja, segundo Thomaz e Vieira (2019), “[...] o corpo-ideal tem muito mais que ver com os ideais propagados pelas classes dominantes de determinada sociedade e as demandas daquele tipo de organização social do que com o quê, de fato, aquele corpo configura” (p. 217):
Esse grupo de pessoas é formado majoritariamente por homens, homens mais velhos. Geralmente primos de segundo grau, amigos de primos de segundo grau ou então desconhecidos que quando tava [sic] na rua com meu pai atrás de um balcão devolvendo o dinheiro do troco do almoço, falaram para ele “nossa a sua filha é linda, vai dar muito trabalho, vai ter um monte de gavião” e ria. Oito ou nove anos eu tinha. Eu ficava me perguntando o que faz ou o que fez com que homens como aqueles atrás do balcão e com que tantos outros homens enxergassem em uma criança de 8 ou 9 anos alguma possibilidade de beleza. Como eles entendiam que de alguma forma eu daria trabalho, como eles entendiam que de alguma forma eu teria pretendentes, como eles entendiam que uma menina que não se esforçava em nada para ser sensual, não sabia sobre maquiagem, que não sabia sobre decote, era só uma criança, como eles sabiam que essa criança feia daria trabalho? (A MULATA QUE NUNCA CHEGOU).
Esses relatos nos mostram como, desde muito cedo, as opções de identificação e reconhecimento apresentadas às mulheres negras, ainda durante a infância, são extremamente injustas e sádicas. A autora do fragmento acima relata que antes mesmo de ter pleno conhecimento do que sua existência representava ao mundo, uma parcela da sociedade, majoritariamente composta por homens, já a direcionava para um lugar. Já colocavam o seu corpo infantil no foco da sexualização. Estes modelos de discriminação se encontraram no período escravocrata, onde as mulheres de cor, na sua grande maioria, tinham como destino a submissão ao trabalho e a servidão sexual.
Neste ponto, destacamos o conceito de racismo genderizado (KILOMBA, 2019). Não podemos analisar e discutir racismo e subjetividade da mulher negra sem considerar as desigualdades e até mesmo a violência atrelada ao gênero. Nas palavras de Kilomba (2019):
[...] raça e gênero são inseparáveis. [...] Raça não pode ser separada do gênero nem o gênero pode ser separado da raça. [...] Gênero tem um impacto na construção de raça e na experiência do racismo. O mito da mulher negra disponível, o homem negro infantilizado, a mulher muçulmana oprimida, o homem muçulmano agressivo, bem como o mito da mulher branca emancipada ou do homem branco liberal são exemplos de como as construções de gênero e de raça interagem (p. 94, grifos da autora e do autor).
Na complexidade das intersecções de gênero e raça, Nátaly Neri se perguntava:
[...] por que eu me vejo feia? Por que as pessoas me veem feia? Por que existe uma parcela, masculina, que tem certeza de que eu serei bonita? De onde sai isso? Eu passei a me perguntar e eu passei a deixar de me questionar, porque eu era uma pessoa que eu me sentia feia, então era melhor alguém falar: “Nátaly, você é feia, mas você pode se tornar bonita” do que alguém falar: “Nátaly, você é feia e você vai ser sempre feia” (A MULATA QUE NUNCA CHEGOU).
Desta forma, em um contexto completamente desfavorável para o desenvolvimento de uma criança preta, sem alternativa, ela sucumbe ao que é imposto. Afinal, é compreensível que, antes mesmo de entender o significado dessas imposições houvesse o questionamento: qual é o meu lugar no mundo senão esse que estão me colocando? Fora o que me apresentam, o que eu tenho? É muito cruel para um indivíduo em processo de formação ser a primeira e mais fácil vítima do racismo e do machismo. Logo, como bem lembra Kilomba (2019), à mulher negra resta o nãolugar, o não pertencimento. Deste modo, dificilmente uma criança negra terá um tratamento à altura. A tendência é de que seja objetificada e até mesmo fetichizada, sobretudo na presença de racistas perversos, machistas, insensíveis à dor alheia.
Na obra O que faz o brasil, Brasil? (DA MATTA, 1984), o autor traz à tona alguns dos símbolos sociais característicos da sociedade brasileira. Um deles é a infeliz relação entre comidas e mulheres, por meio do emprego do verbo comer associado aos processos de objetificação da mulher. O autor nos conta sobre a criação e a difusão da ideia de que existem mulheres para se casar e outras somente para se “comer” (DA MATTA, 1984, p. 40). No entanto, vale salientar que, apesar de algumas considerações feitas a respeito das relações raciais, Da Matta (1984) não se aprofunda em relação aos efeitos do racismo capaz de manter no imaginário social ideias de que mulheres para se casar são brancas, loiras, e mulheres para se “comer” são negras, em geral hiperssexualizadas.
Essas primeiras análises nos indicam a complexidade do racismo entendido como um sistema operado nas dimensões estrutural, institucional e individual (ALMEIDA, 2019), com potencial para sustentar e legitimar táticas e estratégias de controle e dominação da população negra. Observa-se uma estrutura em que a mulher negra recebe todos os estímulos e limites para permanecer na base da pirâmide social (RIBEIRO, 2018).
Os mitos sobre as mulheres negras
Em meio aos processos de objetificação e fetichização dos corpos das mulheres negras, em associação com a recusa frente às múltiplas possibilidades de existência (KILOMBA, 2019), o imaginário social constitui o que chamaremos aqui de mitos sobre as mulheres negras. Observem como os estereótipos ratificam a referida condição de outridade e, em muitos momentos, de dupla outridade (KILOMBA, 2019).
A barraqueira
Circula na sociedade a ideia de que toda mulher negra é raivosa. Este mito está muito presente em programas de comédia (hooks 2019). Se você nasceu após os anos 2000, provavelmente já ouviu falar da Rochelle, mãe do personagem principal da série americana Todo mundo odeia o Chris (2004). A personagem é bastante caricata e pode exemplificar a presença da mulher negra barraqueira no imaginário social:
O primeiro mito sobre a mulher negra é o mito da mulher negra barraqueira: a mulher negra forte, a mulher negra que se impõe, a mulher negra que não leva desaforo pra casa. A mulher negra que não só tem uma constituição psicológica muito forte e aguenta apanhar, aguenta a fome, aguenta tudo, como também tem um corpo muito forte (COLORISMO, SER NEGRO E OS 3 MITOS DA MULHER NEGRA).
A despeito do tom de voz utilizado para se comunicar, para reivindicar seus direitos, a mulher negra estará sujeita a esse estereótipo. Afinal, durante décadas a sujeitaram ao silêncio. Vale ressaltar que, muitas vezes, a raiva acomete a mulher negra, de fato, sobretudo porque as experiências e vivências diante do racismo são quase uma constante. Conforme nos lembra Ribeiro (2018):
[...] estamos com raiva e temos esse direito. Você também estaria se vivesse uma realidade violenta e desumana. Se rissem e excluíssem você desde a infância pelo fato de ser negra. E, por fim, não cabe ao opressor dizer ao oprimido como ele deve reagir à violência (p. 99).
Em meio às pressões para ser e não ser forte, resistir e não resistir, gritar e falar baixo. Em outras palavras, diante da perversidade e do cinismo que visam aniquilar a subjetividade da mulher negra, processos subjetivos nos apontam para múltiplas e diversas maneiras de re-existir em confronto com as tentativas de assujeitamento fomentadas pelo racismo.
Nas situações em que a voz alta e forte é substituída pelo choro silencioso, a mulher negra pode ser tratada como vitimista. Culpa, insegurança, medo e dor costumam figurar como sentimentos frequentes na subjetividade negra. Entretanto, estando na base da pirâmide social, desempenhando a força motriz da sociedade (RIBEIRO, 2018), a mulher negra correrá o risco de não se adequar às exigências do meio. Assim, invariavelmente, quaisquer expressões causarão incômodo, estranhamento:
A sociedade diz que eu tenho que ser forte, que eu não posso vir aqui e chorar. A sociedade diz que eu não posso ir lá na minha rede social dizer o quanto é difícil viver sem um pai, por exemplo. A sociedade diz que eu tenho que aguentar tudo nas minhas costas. A sociedade diz que eu tenho que ser forte, forte, forte, eu não aguento mais! Eu não quero mais ser forte! Eu quero poder ser fraca, então eu escrevo para não sentir tanta culpa e para me perdoar. (EU QUERO PODER SER FRACA)
O fragmento acima demonstra a perversidade das imposições legitimadas com base nesse estereótipo da mulher negra barraqueira, forte, pronta para aguentar todo tipo de opressão. Ao mesmo tempo, aponta para caminhos contrários às tentativas de desumanização da mulher negra. Reivindicam-se possibilidades de ser frágil. A mulher negra sofre e merece toda sorte de cuidados. Além disso, não precisa e nem deve lidar com as situações da vida de um único modo. Como nos adverte Tássia Reis: “[...] não que eu lhe deva dizer/como é que se deve sofrer/ Chore se quiser chorar/ Corra se quiser correr” (REIS, 2016).
Ademais, é possível resistir e se afirmar de modo criativo. No fragmento acima, a escrita aparece como uma estratégia de resistência. Os atos de olhar para si, perceber e analisar o contexto em que se está inserida, e de expressar em palavras pensamentos, ideias, sentimentos e desejos pode ser crucial para o fortalecimento subjetivo. Vide a relevância da escrita nas trajetórias de mulheres como Grada Kilomba, Neusa Santos Souza, Maria Aparecida da Silva Bento, bell hooks, dentre outras.
A Mãe Preta
Outro estereótipo propaga a “[...] imagem da doméstica, assentada na mucama, a escravizada que trabalha no serviço da casa” (RIBEIRO, 2018, p. 18). Comumente conhecido como o mito da “mãe preta”, esse arquétipo existe desde o Brasil Colônia, quando:
[...] após a abolição do regime escravocrata, os africanos e seus descendentes continuaram subordinados aos senhores por não ter havido nenhum tipo de reparação que pudesse integrá-los à sociedade em condições igualitárias (SOUZA, 2018, p. 39).
Desta forma, sem nenhuma possibilidade de ascensão social, as mulheres negras tiveram de permanecer na Casa Grande trabalhando em troca de condições mínimas para a subsistência:
O segundo mito sobre a mulher negra é ligado à ideia da mãe preta. É o mito da mãe preta. Aquela mulher negra que é senhora mais velha, que cozinha, que é subserviente, abaixa sempre a cabeça, limpa, cuida da casa. Ama de leite... É a tia Anastácia. É o mito da tia Anastácia! (COLORISMO, SER NEGRO E OS TRÊS MITOS DA MULHER NEGRA)
Em geral, mulheres negras submetidas a trabalhos domésticos análogos àqueles realizados de maneira forçada ao longo da escravização, ouvem de seus patrões comentários do tipo: “você faz parte da nossa família”, “você é a mãe preta de nossos filhos”. Cá entre nós, por vezes, tais comentários operam como um potente silenciador.
Assim, silenciadas seguem seu curso, sempre na base, conforme abordado anteriormente. A propósito, Kilomba (2019) dedica um capítulo para abordar o silenciamento da mulher negra. No texto, intitulado, A Máscara, a autora remonta a história e as memórias sobre as práticas de silenciamento da população negra nos tempos de escravização. A autora resgata a figura da escrava Anastácia3 e discorre sobre a máscara do silenciamento como:
[...] uma peça muito concreta, um instrumento real que se tornou parte do projeto colonial europeu por mais de trezentos anos. Ela era composta por um pedaço de metal colocado no interior da boca do sujeito negro, instalado entre a língua e o maxilar e fixado por detrás da cabeça por duas cordas, uma em torno do queixo e a outra em torno do nariz e da testa. Oficialmente, a máscara era usada pelos senhores brancos para evitar que africanas/os escravizadas/os comessem cana-de-açúcar ou cacau enquanto trabalhavam nas plantações, mas sua principal função era implementar um senso de mudez e de medo, visto que a boca era um lugar de silenciamento e de tortura (p. 33).
A mãe preta deve manter-se em silêncio. Testemunha ocular de atos de violência, vítima direta de toda sorte de abusos, manter-se calada é sua obrigação. Além disso, o amordaçamento aponta para uma fantasia do branco em torno da ideia de que o negro deseja tomar e incorporar o que não lhe pertence (KILOMBA, 2019). De boca fechada, não pode dizer, tampouco abocanhar. Restringe-se aos atos de servir, apoiar e sustentar aquele ou aquela que a oprime.
Vale observar que, as referidas fantasias presentes na mentalidade racista encontram na cisão entre brancos e negros um solo fértil para prosperar. Como nos ensina Mbembe (2014), o branco inventou o racismo e precisa se haver, portanto, com as inverdades e as irracionalidades vinculadas ao conjunto de ideias e atos dedicados à manutenção da suposta superioridade branca.
Mulata Exportação
O terceiro e último mito a ser mencionado é o da mulata exportação. Esse mito é sustentado pelo estereótipo da mulata sensual, fogosa (hooks, 2019), que nasce sabendo sambar e serve para se comer (DA MATTA, 1984); serve de representante da beleza brasileira, invariavelmente oferecida aos estrangeiros como objeto de desejo sexual. Segundo Ribeiro (2018), desde os idos de 1980, estudiosas observam esse movimento em que mulheres negras são definidas como mulatas e colocadas em espaços públicos voltados ao entretenimento, especialmente no carnaval. Segundo a autora, a figura da mulata que “[...] permeia o imaginário colonial e escravista brasileiro se constituiu no primeiro período republicano, quando floresceu o mito da ‘democracia racial’, ou o racismo à brasileira” (p. 17):
Foi com 11, 12 anos que eu entendi o que eu era, eu entendi que eu era a mulata, eu entendi que as pessoas me tratavam e me viam como a mulata. E o que era a mulata naquela época? Naquela época, para mim, mulata era uma categoria menos pior de negra. (A MULATA QUE NUNCA CHEGOU)
Para melhor compreender o trecho da fala de Nátaly Neri, faz-se necessário entendermos o que é colorismo e como esse conceito afeta a vida das pessoas negras. Colorismo foi um termo cunhado em 1982 pela escritora e ativista Alice Walker, que buscou explicar como funciona a distribuição de vantagens para as pessoas de cor. Afinal, os privilégios são oferecidos, de fato, somente aos brancos. Também podendo ser associado com a ideia de pigmentocracia, o termo indica o seguinte: quanto mais retinta for a tonalidade da pele, mais escancarada e intensa será a discriminação sofrida pela pessoa negra. Em contraponto, quanto mais próximos do padrão de beleza europeu estiverem os traços fenotípicos (isto é, o conjunto de características físicas), mais vantagens a pessoa terá. Ou melhor, mais velado será o racismo contra a sujeita ou o sujeito nãobranco (FRANCISCO, 2018). Na canção Ismália, o cantor Emicida contribui com nossa análise, quando diz: “[...] ela quis ser chamada de morena/ que isso camufla o abismo entre si e a humanidade plena” (EMICIDA, 2019).
O colorismo reflete uma herança das políticas de branqueamento da população brasileira. Diferentemente do que ocorre em outras partes do mundo, onde se é branco ou preto - black or white -, no Brasil há uma gradação capaz de viabilizar acessos e restrições, conforme apontado acima. A mulata nunca chega porque permanece na ponte, aprisionada na passagem. Não é branca, embora não seja preta, sob o prisma do colorismo. Onde se situa? Qual seria o seu lugar? Não estando enraizada, tornar-se-ia alvo direto dos intentos cruéis colonialistas? A passabilidade tornaria a mulata mais suscetível à violência de quem se vale do vil metal para importar mulheres?
Durante entrevista cedida ao rapper Mano Brown, em um programa veiculado em uma plataforma de streamming, a ativista negra Sueli Carneiro contou que, na passagem dos anos 80 para os anos 90, o movimento negro operou estrategicamente a junção das categorias preto e pardo para compor a categoria negro. Desde então, pretos e pardos no Brasil passaram a ser considerados negros, especialmente nos contextos em que a crítica se faz possível. Em espaços acadêmicos, ou nas trincheiras de luta, aumentou consideravelmente a quantidade de pessoas autodeclaradas negras. No entanto, o debate sobre a identidade negra no país segue em meio a dúvidas e contradições, sobretudo porque a perversidade do racismo se apoia no colorismo e insiste em turvar a consciência negra.
Quando pensamos no mito da mulher negra raivosa ou da mãe preta, qual tonalidade de pele emerge à nossa consciência? É comum que, ao se fazer esse exercício, as pessoas imaginem uma mulher de pele retinta, com traços fenótipos mais demarcados (lábios grandes, nariz largo, cabelo crespo...). Por outro lado, ao se pensar no mito da mulata exportação, provavelmente as pessoas imaginem uma mulher negra com tom de pele claro, curvas acentuadas, cabelos cacheados, entre outras características (RIBEIRO, 2018). Se para as duas primeiras - a barraqueira e a mãe preta - o destino é a marginalização, para a mulata são oferecidos os falsos privilégios.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O despertar para a negritude feminina envolve diversos processos. Passa pela conscientização racial, bem como pela possibilidade fazer circular palavras e afetos. Precisamos expressar múltiplas experiências entremeadas pelas forças opressoras do racismo interseccionado no contexto das diferenças e desigualdades de gênero e classe social.
A complexidade na transição da fase entre recusar o contato com a própria origem e a conscientização acerca da negritude faz com que, inicialmente, algumas mulheres (geralmente as que não tiveram suporte adequado) passem por momentos de crise. Muitas se mantêm nos papéis de embranquecidas, em termos estéticos e até mesmo políticos. Outras, no entanto, encontram saídas a partir do contato com a ancestralidade, tornando-se fortes dos pontos de vistas subjetivo e objetivo. Nestes casos, reconhecem os efeitos do racismo na própria história e se afirmam como mulheres negras.
Em geral, o branco não se considera racializado. Deste modo, uma raça estará sempre no lugar de um outro, do ponto de vista eurocêntrico. Portanto, mesmo tendo despertado para a negritude feminina, mulheres negras não se livram facilmente da perversidade e da violência do racismo, pois, estarão no lugar de estrangeiras. Mesmo assim, vale salientar que, o fortalecimento subjetivo atrelado à tomada de consciência sobre a condição racial opera como força de resistência diante da violência do racismo.
Por fim, apesar de termos alcançado os objetivos propostos neste trabalho, o debate está longe de avançar. Por hora, fica o nosso desejo de produzir outras análises e reflexões. Estudos futuros podem considerar a produção subjetiva de mulheres negras que fazem parte da comunidade LGBTQIA+, e que buscam saídas perante as forças opressoras e violentas do racismo na intersecção com outras com outras manifestações de poder e dominação.