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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.70 Rio de Janeiro jul./aet 2022  Epub 23-Fev-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.67238 

História de mulheres e educação: transgressões, resistências e empoderamentos

TRAJETÓRIAS SOCIOEDUCACIONAIS DE MULHERES NEGRAS NO AMAPÁ: rompendo relações de poder

TRAYECTORIAS SOCIOEDUCATIVAS DE MUJERES NEGRAS EN AMAPÁ: rompiendo las relaciones de poder

TRAYECTORIAS SOCIOEDUCATIVAS DE MUJERES NEGRAS EN AMAPÁ: rompiendo las relaciones de poder

Adaíles Aguiar Lima1 
http://orcid.org/0000-0002-6291-8891; lattes: 2690800880366354

Elivaldo Serrão Custódio2 
http://orcid.org/0000-0002-2947-5347; lattes: 8819683729192070

1Professora do Governo Federal - Ex-território do Amapá. Membro do Grupo de Pesquisa Educação, Interculturalidade e Relações Étnico-Raciais (UNIFAP/CNPq). E-mail: adaileslima@gmail.com

2Professor Coorientador no Doutorado em Educação na Amazônia (PGEDA), Associação Plena em Rede-Educanorte – Polo Belém-PA-Brasil. Professor do Governo do Estado do Amapá. Vice-Líder do Grupo de Pesquisa Educação, Interculturalidade e Relações Étnico-Raciais (UNIFAP/CNPq). E-mail: elivaldo.pa@hotmail.com


Resumo

O presente artigo tem por objetivo refletir acerca da trajetória socioeducacional de professoras negras na vila de Mazagão Velho, estado do Amapá. As análises a partir da perspectiva decolonial permitem-nos compreender as percepções dessas mulheres negras inseridas nos espaços sociais, seja na família, na escola, no trabalho e de que forma as experiências pessoais marcaram, marcam e demarcam sua presença nesses espaços. Como escolhas metodológicas, optou-se, como método, pelo estudo de caso, através da pesquisa qualitativa narrativa, com observação direta e entrevista semiestruturada com sete professoras moradoras da vila de Mazagão Velho-AP. Os dados coletados foram tratados através da Análise do Discurso que permitiu-nos entender, através da linguagem, a interação entre as entrevistadas e o mundo em que estão inseridas, mostrando-nos que as trajetórias das entrevistadas trazem marcas da colonização que permanecem firmes, mascaradas pelo colonialismo, mas que são diária e arduamente combatidas através da luta e resistência contra as diversas formas de preconceito, discriminação racial e de gênero em face da mulher negra.

Palavras-chave: educação; mulher negra; trajetória socioeducacional; Mazagão Velho-AP

Abstract

This article aims to reflect on the socio-educational trajectory of black teachers in the village of Mazagão Velho, state of Amapá. The analysis from the decolonial perspective allows us to understand the perceptions of these black women inserted in social spaces, whether in the family, at school, at work and in which way personal experiences marked, mark and demarcate their presence in these spaces. As methodological choices, the case study was chosen as a method, through qualitative narrative research, with direct observation and semi-structured interview with seven teachers living in the village of Mazagão Velho-AP. The collected data were treated through Discourse Analysis that allowed us to understand, through language, the interaction between the interviewees and the world in which they are inserted, showing us that the trajectories of the interviewees bring colonization marks that remain firm, masked by colonialism, but which are daily and hard fought through the struggle and resistance against the various forms of prejudice, racial and gender discrimination in the face of black women.

Keywords: education; black woman; socio-educational trajectory; Mazagão Velho-AP

Resumen

Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre la trayectoria socioeducativa de los profesores negros en la aldea de Mazagão Velho, estado de Amapá. El análisis desde la perspectiva decolonial permite comprender las percepciones de estas mujeres negras insertas en los espacios sociales, ya sea en la familia, en la escuela, en el trabajo y de qué manera las experiencias personales marcaron, marcan y demarcan su presencia en estos espacios. Como elecciones metodológicas, se eligió como método el estudio de caso, a través de una investigación cualitativa narrativa, con observación directa y entrevista semiestructurada con siete docentes residentes en la aldea de Mazagão Velho-AP. Los datos recolectados fueron tratados a través del Análisis del Discurso que permitió comprender, a través del lenguaje, la interacción entre los entrevistados y el mundo en el que se insertan, mostrándonos que las trayectorias de los entrevistados traen marcas de colonización que se mantienen firmes, enmascaradas por el colonialismo, pero que se luchan cotidiana y duramente a través de la lucha y la resistencia contra las diversas formas de prejuicio, discriminación racial y de género frente a las mujeres negras.

Palavras chave: educación; mujer negra; trayectoria socioeducativa; Mazagão Velho-AP

INTRODUÇÃO

As grandes desigualdades sociais, econômicas, políticas, culturais, educacionais na sociedade brasileira demandam por ações de enfrentamento, debates, políticas públicas, assim como, por produções científicas que abordem questões de raça e gênero, especialmente no que tange à mulher negra e suas particularidades, posto que ela foi e continua sendo lesada em dobro por ser mulher e negra, além de alvo mais contundente de práticas preconceituosas e discriminatórias.

Essa trajetória marcada pela resistência necessita de permanente reflexão acadêmica acerca da igualdade, respeito, reconhecimento e valorização da mulher negra. Estudos de Suelaine Carneiro 1 (2016) nos apontam que pesquisas sobre mulheres negras são observadas de forma acanhada no início da década de 90, ganhando maior destaque a partir de 2003 (CARNEIRO, 2016, p. 138). A autora ressalta em suas análises que:

Ainda são poucas as produções que têm por objetivo central a mulher negra nos diversos campos da sociedade. Ainda persiste na produção da pós-graduação, a invisibilidade das vozes das mulheres negras, ausência que impacta na compreensão das distintas formas de opressão, assim como da diversidade de experiências das mulheres na sociedade brasileira (CARNEIRO, 2016, p. 143).

Os estudos científicos apontam, também, que as práticas preconceituosas têm sua origem a partir do colonialismo2 com a ideia de raça que, como pressuposto de separação e dominação, os negros foram reduzidos à condição de escravos e, consequentemente, designados à raça inferior e, os brancos europeus, à raça superior, perpetuando o mesmo pensamento de segregação racial na colonialidade3. Neste sentido, Quijano (2005) faz importante debate acerca do controle europeu na América, a partir da ideia de raça, como mecanismo de validação e outorga da legitimidade do poder às relações de dominação impostas pela conquista (QUIJANO, 2005, p. 118).

Esse entendimento difundido entre colonizados e colonizadores disseminou o processo de segregação da população negra. Quijano (2005) ressalta que a partir do colonialismo a Europa criou o eurocentrismo que continua presente na sociedade atual como uma herança do poder hegemônico a ser combatida diariamente. Com bases sólidas nesse entendimento eurocêntrico, é que as escolas da colônia brasileira não estavam dispostas a oferecer educação formal aos negros, quer fossem escravos ou libertos, pois sua raça não se enquadrava no padrão de poder.

Se contrapor à escravização e seus modos de opressão foi uma constante na vida da população negra. No entanto, a mesma história que omitiu e silenciou hoje está sendo reescrita com a inclusão das mãos de negras e negros que ajudaram nessa construção. A temática trouxe inquietações que culminaram com a investigação do seguinte problema de pesquisa: como as mulheres negras professoras vêm construindo sua trajetória socioeducacional na vila de Mazagão Velho-AP?

A pesquisa teve como Locus a Vila do Distrito de Mazagão Velho-AP, localizada no município de Mazagão estado do Amapá, na região norte do Brasil, distante cerca de 70 km da capital, Macapá, com uma população de 21.632 habitantes segundo dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – (2019). Mazagão Velho tem sua origem no século XVIII com a fundação da Nova Mazagão para abrigar famílias que foram transferidas da colônia portuguesa Mazagão, em Marrocos. Para a Nova Mazagão, vieram famílias e africanos escravizados. Logo, o município de Mazagão tem rica história cultural que desperta interesse de muitos pesquisadores como é o nosso caso. Assim, é neste contexto que o estudo traz reflexões da trajetória socioeducacional de professoras negras na vila de Mazagão Velho-AP, constatando-se as marcas da colonização mascaradas pelo colonialismo que diária e arduamente são combatidas pela militância e resistência da mulher negra.

A EDUCAÇÃO COMO PRINCIPAL DEMANDA DA POPULAÇÃO NEGRA: CAMINHOS E DESCAMINHOS NO PERCURSO HISTÓRICO

De acordo com Saviani (2013), a história da educação brasileira inicia em 1549 com a chegada do primeiro grupo de jesuítas ao Brasil e, nos moldes da colonização, a educação colonial se deu através da missão jesuítica com o propósito de converter os gentios à fé católica e à missão de educar através da aculturação. Processo, este, que compreendeu, de forma articulada, três elementos: a posse das terras que visava à exploração e ao subjugamento dos habitantes, a educação que se deu em forma de aculturação e a catequese que buscava a conversão dos colonizados. Esse modelo de colonização da coroa portuguesa se adequava perfeitamente à população indígena encontrada nas terras brasileiras que, em 1500, se assemelhava às comunidades primitivas4. Saviani ressalta que “[..]há uma estreita interação entre a educação e a catequese no período de colonização do Brasil”, sendo que o eixo do trabalho catequético era de caráter pedagógico e se materializava através das práticas pedagógicas institucionais e não institucionais, ou seja, nas escolas e no exemplo, respectivamente (SAVIANI, 2013, p. 29-31).

Organizada e conduzida pelo Ratio Studiorum5, a base pedagógica do período colonial, no Ocidente, implementou os primórdios do sistema educacional brasileiro acostada nos princípios da Companhia de Jesus, permanecendo aqui, como orientação educacional, por quase dois séculos e moldando um processo de aculturação que findou em 1759 quando os jesuítas foram expulsos do Brasil para a implantação das reformas do Marquês de Pombal.

É fato que essa estrutura social foi se modificando ao longo da história, razão pela qual é necessário relacionar os estudos sobre a educação com a sociedade em que está inserida, numa análise conjunta e socioeconômica, pois, somente em conjunto, é possível entender os acontecimentos educacionais. Nesse sentido, não há que se falar em história da educação desassociada do estudo das lutas mantidas pelas classes desfavorecidas contra as classes dominantes, visando à conquista do direito à educação.

Neste período as práticas escravistas rendiam muito lucro à coroa, seja no tráfico ou na exploração do trabalho nos vários setores da economia. Logo, a educação formal para a população negra não estava no projeto de Pombal para a colônia brasileira. Razão pela qual o acesso à escolarização não fazia parte da realidade da maioria da população negra no período colonial e os mecanismos de inclusão e exclusão nos permitem refletir sobre a história contada e a história silenciada de negras e negros no sistema educacional da história do Brasil.

De modo que a Constituição Imperial de 1824 contemplou no art. 6°, inciso I, negras e negros, os libertos, no rol de cidadãos brasileiros. Porém, o art. 179, inciso XXXII, determinava “[..]a instrução primária, e gratuita a todos os Cidadãos”. Logo, escravas e escravos estavam impedidos de receber instrução já que não eram ‘cidadãos’. Na prática, mesmo os libertos não tinham facilidade de acesso à escolarização pelos entraves de várias ordens: falta de recursos para custear os estudos, proibição velada de frequentar a escola por conta do preconceito racial, trabalho exaustivo, enfim, inúmeros foram os fatores que impediram e dificultaram a escolarização de negras e negros. Assim é que a primeira Constituição do Brasil inaugura a legalização de um processo histórico que, além de negar o acesso à educação formal a negras e negros vítimas da escravidão, legalizou as bases para a produção das desigualdades de cor ou raça e de gênero, ainda presentes em nossa sociedade.

Seguindo os mesmos critérios de exclusão ou inacessibilidade, vieram, antes da Constituição de 1891, a Lei nº 1 de 1837, bem como o Decreto nº 15 de 1.839, que mantinham a proibição de escravos e pretos africanos, ainda que fossem livres ou libertos, de frequentar as escolas públicas. Mais adiante, pelo Decreto nº 1.331 de 1854, ratifica-se a proibição para os escravos, ao estabelecer, em seu art. 60, § 3°, que não seriam admitidos escravos nas escolas públicas do país e a previsão para a instrução de adultos negros dependia da disponibilidade de professores e, no art. 69, previa que os escravos não estavam autorizados a solicitar admissão à matrícula, nem podiam frequentar as escolas.

Em 1879, através do Decreto nº 7.247, de 19 de abril, se estabeleceu a liberdade de ensino primário e secundário para ambos os sexos no município da Corte e o superior em todo o Império. Todavia, não há que se falar em avanços para negros e negras. Esse contexto socioeconômico foi marcado por grandes transformações mundiais de ordem econômica e social e o Brasil sofreu os reflexos dessas mudanças que culminaram com a abolição da escravatura, em 1888, acabando, em tese, com a escravidão negra no Brasil, pois o fim da legalidade da escravização foi resultado da luta e resistência, somando-se à necessidade de adequação à nova realidade social que se vislumbrava em que era imperativo o escravizado liberto para a produção do trabalho, consequente adequação econômica da industrialização que se apresentava.

Del Priori (2018) assevera que a escravidão da população de origem africana significava uma negação do acesso a qualquer forma de escolarização e ressalta que a educação das crianças negras se dava na violência do trabalho e nas formas de luta pela sobrevivência e:

As sucessivas leis, que foram lentamente afrouxando os laços do escravismo, não trouxeram, como consequência direta ou imediata, oportunidades de ensino para os negros. São registradas como de caráter excepcional e de cunho filantrópico as iniciativas que propunham a aceitação de crianças negras em escolas ou classes isoladas – o que vai ocorrer no final do século (DEL PRIORI, 2018, p. 445).

O acesso da população negra à educação formal foi uma demanda que ganhou maior proporção a partir da aprovação da controversa6 Lei do Ventre Livre - Lei nº 2.040 de 28 de setembro de 1871 – que em seu art. 1° dispõe serem livres os filhos nascidos de mulher escrava a partir daquela data. Todavia, a mesma lei serviu, também, de elemento condutor e adaptador à continuidade da servidão sob outras formas, principalmente mirando o mercado promissor que se vislumbrava.

No que se refere à educação formal da mulher, temos no sistema educacional brasileiro um aparelho que já nasceu eivado de graves erros que alicerçaram grandes desigualdades em diversos âmbitos da sociedade. Segundo Maria Inês Stamatto (2002), as mulheres, brancas, no período colonial, só podiam educar-se na catequese e, quanto às negras, nem mesmo a catequese lhes era permitido (STAMATTO, 2002, p. 2). Logo, a desigualdade social, educacional, econômica, política, cultural tão presente, ainda, no século XXI, é efeito de um processo histórico de séculos que, desde o nascedouro, insiste em privilegiar, uns, e subalternizar, outros. Contudo, mesmo após a abolição da escravatura e a permissão legal de negros e negras frequentarem a escola formal, os mecanismos de manutenção da subalternização foram, tão somente, alterados.

No entanto, no período colonial e seguindo o curso contrário da história que se escrevia, foram também criadas algumas escolas para atender meninas, sendo possível encontrar registros do Colégio Perseverança ou Cesarino, fundado no ano de 1860 em Campinas e destinado à educação feminina, sendo dirigido por Antônio Cesarino e sua mulher, um casal de pardos que, juntamente, com as irmãs do marido ajudavam na condução dos trabalhos na escola. O Colégio recebia, também, meninas negras e pobres que as famílias não tinham recursos para custear os estudos (BARROS, 2005, p. 87). A escolarização de mulheres negras nascidas a partir do início do século XX já se processou de forma desumanizante, visto que, ao invés de irem para as salas de aula, eram encaminhadas:

a orfanatos, onde recebiam preparo para trabalhar como empregada doméstica ou como costureira. Famílias abastadas as adotavam, quando adolescentes, como filhas de criação, o que de fato significava empregadas domésticas não remuneradas. Este fato acabou, de certa forma, estigmatizando o lugar da mulher negra no mercado de trabalho (GONÇALVES, SILVA, 2000, p. 140).

A ação parte da percepção de uma sociedade que traz uma trajetória moldada por desigualdades sociais com o propósito da perpetuação de privilégios que marcam a categoria dominante em nosso país. Assim sendo, a presença de negras e negros na escola, desde quando permitido o acesso à educação formal, foi e continua sendo motivo de inquietação que gera diversas formas de manifestações preconceituosas de raça ou cor e gênero. Nem mesmo as políticas públicas sociais e educacionais atendem às desigualdades que se perpetraram durante séculos gerando à população negra graves danos quando do ingresso e permanência na escola.

Urge trazermos ao debate os estudos de Goffman (2021) acerca do estigma. O autor traz relevante contribuição e ressalta quão perigosa é a prática de atributos profundamente depreciativos, os quais consignam várias formas de discriminação (GOFFMAN, 2021, p. 13).

Segundo Goffman (2021) é nas relações sociais que se difundem vários tipos de estigmas, enumerando o autor aos relacionados às deformidades físicas, aos relacionados ao caráter e, aqueles relacionados à raça, nação e religião, que é a que nos interessa no momento, mais precisamente no campo educacional. Porquanto, consideramos que a escola é um espaço de privilégio interação social que produz, ainda, vários tipos de discriminação na população negra, seja pela cor da pele, pelo tipo de cabelo, pelo formato do nariz, enfim, são inúmeras formas de estigmatizar uma criança, jovem ou adulto.

É fato que os séculos de resistência e inconformismo da população negra vem promovendo, gradativamente, mudanças e oportunizando conquistas. Nilma Lino Gomes (2017) ressalta que a educação mesmo sendo um direito social foi arduamente pleiteado, por ter sido, sistematicamente, negado à população negra (GOMES, 2017, p. 24). Denice Catani (1997) expressa por exemplo que:

A entrada das mulheres no exercício do magistério –o que, no Brasil, se dá ao longo do século XIX (a princípio lentamente, depois de forma assustadoramente forte) –foi acompanhada pela ampliação da escolarização a outros grupos ou, mais especialmente, pela entrada das meninas nas salas de aula (CATANI, 1997, p. 78).

Entretanto, as conquistas não romperam com os artifícios dos grupos hegemônicos que fizeram e fazem, também, da educação um instrumento de segregação e manipulação que sustenta as formas de dominação e exploração político, social, educacional e cultural, o que dificulta, impede, inviabiliza o acesso e a permanência de negras e negros nas instituições de ensino. Ou seja, a intenção foi e é mantê-los no lugar designado pela colonização e ratificado pelo colonialismo. Nesse aspecto é que ao analisar a educação como mecanismo de mobilidade social Sueli Carneiro (2011, p. 92) ressalta que “[..]o aparelho educacional tem se constituído, de forma quase absoluta, para os racialmente inferiorizados, como fonte de múltiplos processos de aniquilamento da capacidade cognitiva e da confiança intelectual”.

Guacira Lopes Louro (2006, p. 478) em seu estudo Mulheres na sala de aula vem dizer que “[..]um olhar atento perceberá que a história das mulheres nas salas de aula é constituída e constituinte de relações sociais de poder”. Diante desse contexto, acreditamos que a escola é sem dúvida esse espaço privilegiado de transformação, todavia esse mesmo espaço tem, também, o poder de anular a existência de uma pessoa expulsando-a desse ambiente. Daí a necessidade de transformação desse pensamento colonial que, através de práticas eurocêntricas, inferioriza e nega a existência de negras e negros nas instituições de ensino.

Porém, quando atentamos para a mulher negra no espaço escolar, a condição se agrava pelo estigma social que desumaniza o corpo feminino negro numa manifestação de negação do outro que prolonga a realidade vivida no período da escravidão. Isso se torna palpável quando se materializa, no último lugar do ranque brasileiro na escala social e educacional, no qual pesquisas mostram que mulheres negras apresentam menor nível de escolaridade, trabalham mais, porém com rendimento menor e são, ainda, poucas as que conseguem romper a barreira do preconceito e da discriminação racial e ascender socialmente. Munanga e Nilma Lino Gomes (2016) trazem reflexões acerca de como a sociedade veio moldando o papel e o lugar da mulher negra desde o período colonial ressaltando que:

Algumas feministas negras costumam refletir que a situação da mulher negra no Brasil, apesar dos avanços, ainda tem muito que mudar. A mulher negra que, no período escravista, atuava como trabalhadora forçada, após a abolição, passa a desempenhar trabalhos braçais, insalubres e pesados. Essa situação ainda é a mesma para muitas negras no terceiro milênio (MUNANGA, GOMES, 2016, p. 133).

Esse contexto é bastante debatido principalmente a partir dos anos de 1970 quando, aos movimentos feministas, foram sendo incluídas as pautas das mulheres negras que, até então, não faziam parte das demandas. Ou seja, o olhar dos movimentos invisibilizava a dupla discriminação imposta à mulher negra: “[..]ser mulher em uma sociedade machista e ser negra numa sociedade racista” (MUNANGA, GOMES, 2016, p. 133).

A MULHER NEGRA NOS MOVIMENTOS SOCIAIS E NAS RELAÇÕES DE PODER

É possível considerar que a partir da segunda metade do século XIX, os movimentos em defesa das causas da população negra ganharam força e a educação passou a ser o principal pleito. Os anos de escravização consolidaram o processo de exclusão educacional além de servir de base para a solidificação das desigualdades de gênero e cor ou raça, características marcantes da sociedade brasileira. Moldada há séculos, a educação foi um mecanismo apropriado para a elite colonial que, conduzindo a hierarquização social, mantinha a exclusão e subalternização de negras e negros oriundos da escravidão. Porém, Suelaine Carneiro (2016) ressalta a capacidade que a educação tem, também, de se contrapor às diferenças e promover a igualdade de oportunidades no convívio social e, para a autora, a educação é “[..]um importante instrumento de superação de desigualdades, opressões e hierarquizações que operam na sociedade” (CARNEIRO, 2016, p. 123).

Contestando ao longo dos séculos essa estrutura social, a militância faz surgir importantes movimentos que reivindicam pautas exclusivas da população negra. A educação traz em seu bojo o poder de se contrapor e operar mudanças, e, muitas, foram possíveis a partir da maior escolarização de mulheres negras aliadas às ações dos movimentos de resistência. Logo, elas perceberam que as especificidades de suas demandas como mulher e negra não eram pautas específicas nem do movimento negro, nem do movimento feminista. Daí se vislumbra a necessidade de um movimento que considerasse as particularidades das mulheres negras culminando, na década de 1970, com o surgimento do Movimento de Mulheres Negras – MMN a fim de contemplar as aspirações femininas negras.

Neste período, Lélia Gonzalez fez importantes estudos que consideravam a questão da desigualdade de gênero e raça, principalmente quanto às diferenças entre mulheres brancas e negras, o que ampliava seus debates para a consciência de gênero e combate ao machismo na sociedade brasileira. Foi nesse contexto que Lélia “[..]problematizou a questão da mulher negra como categoria específica na luta contra as desigualdades sociais entre os sexos, tema que ela conseguiu estender a todos os outros debates feministas” (RATTS, RIOS, 2010, p. 103). Em uma de suas publicações em 1984, com o texto intitulado Mulher negra, Lélia Gonzales ressalta a importância dos debates que aconteciam na década de 1970, assim como menciona a falta de reconhecimento, dentro do próprio movimento negro, das pautas femininas negras:

É fato da maior importância (comumente esquecido pelo próprio movimento negro) era justamente o da atuação das mulheres negras, que, ao que parece, antes mesmo da existência de organizações do movimento de mulheres se reuniam para discutir o seu cotidiano, marcado, por um lado, pela discriminação racial e, por outro, pelo machismo não só dos homens brancos, mas dos próprios negros (GONZALEZ, 2020, p. 103).

A questão da desvalorização da mulher negra em todos os níveis da sociedade é, também, uma pauta levantada por Sueli Carneiro (2019) a autora destaca, inclusive, a questão da estética, a qual considera que a mulher branca constitui, ainda, o ideal estético de nossa sociedade (CARNEIRO, 2019, p. 94). A autora utiliza a expressão enegrecendo o feminismo para explicar a necessidade da projeção das mulheres negras. Segundo a autora, a utilização se justifica para “[..]designar a trajetória das mulheres negras no interior do movimento feminista brasileiro (CARNEIRO, 2019, p. 198).

Em Mulheres, raça e classe, Angela Davis (2016) traz grandes contribuições para se (re)pensar as relações raciais, e ressignificar o feminismo e, em especial, o feminismo negro. A autora aponta nesse estudo, por exemplo, as lutas e entraves de mulheres para a conquista de direitos de todas as mulheres, mas observa-se que nesses entraves prevaleciam os direitos de mulheres brancas. Davis aponta as conquistas das mulheres, de maneira determinante para as mulheres brancas, o que nos leva a refletir sobre o significado da emancipação para as mulheres negras, haja vista que no percurso histórico da sociedade consta-nos que a escravidão e o racismo continuam fortes na atualidade. No entanto, é pertinente destacar que é revelada a influência das mulheres negras nos avanços de gênero e na organização do feminismo, no antirracismo e nas lutas de classes, principalmente, no que diz respeito ao sexismo, ao racismo e às relações de poder.

Na Amazônia Brasileira, por exemplo, as mulheres negras ativistas amazônidas têm vivido, nesta década, o momento de maior transformação nas gerações. Embora suas dinâmicas tenham sido fundamentadas por meio de ensinamentos comunitários, desencadearam-se em rumos distintos em diferentes trajetórias de saberes e fazeres (BERNIERI, ALMEIDA, CUSTÓDIO, 2020).

CAMINHO METODOLÓGICO DA PESQUISA

Ao considerar as peculiaridades da pesquisa, entendemos que seria importante e necessário, para subsidiar a dissertação, realizar revisão da literatura de dissertações e teses publicadas no Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes. Foi delimitado o período entre 2015-2020 como ano de publicação das obras a serem analisadas, com os três descritores: [1] mulher negra, [2] mulher negra na Amazônia e, [3] mulher negra, educação e decolonialidade. Considerando o número de trabalhos, foram selecionados trabalhos entre os cem primeiros resultados para cada descritor.

Entre os anos de 2015 e 2016 foram encontrados 19 (dezenove) trabalhos entre dissertações e teses que abordam a mulher negra sobre um número variado de vieses. Sendo (03) três teses, 02 (duas) em 2015 e 01 (uma) em 2016. Importa trazer dois destaques: a maior parte dos trabalhos foi produzida por acadêmicas, tendo somente um trabalho com autor masculino e, o mais relevante para a nossa pesquisa, retrata que as produções são do sul, sudeste e nordeste.

Diferente dos anos 2015 e 2016, que tiveram um número de trabalhos considerável, 2017 e 2018 apresentaram uma pequena redução, contando apenas com 05 (cinco) trabalhos, sendo 04 (quatro) dissertações e 01 (uma) tese em 2017 e, 08 (oito) trabalhos em 2018, sendo 07 (sete) dissertações e 01 (uma) tese.

Com base nos critérios estabelecidos não foram encontradas teses de doutorado no contexto do ano de 2019. De acordo com as buscas localizadas, podemos considerar que as análises em torno da mulher negra são de variados temas, com abordagens diferentes, todavia, vimos poucos trabalhos realizados no contexto amazônico, sendo a maioria do sudeste e nordeste. E quando nos reportamos aos termos de mulher negra, educação e decolonialidade a recorrência foi ainda menor, não tendo nenhuma aparição do ano de 2019. Desse modo a presente pesquisa teve como método o Estudo de Caso (YIN, 2015), através de uma pesquisa Narrativa (CLANDININ, CONNELY, 2011) com uso da abordagem Qualitativa (MINAYO, 2016), e fazendo uso da Análise do Discurso (ORLANDI, 2005) para análise dos dados coletados.

Foram os estudos de Yin (2015) que nos mostraram ser, este, o melhor percurso, uma vez que, para o autor, independente do campo de interesse, o Estudo de Caso vem do desejo de entender fenômenos sociais complexos indo muito além de uma simples estratégia de coletar dados. Isso porque faz relação desde a elaboração do projeto de pesquisa, passando pelas técnicas a serem utilizadas na coleta de dados com suas as abordagens específicas até a análise de dados. Desta feita, o estudo de caso configurou-se como método satisfatório para investigar professoras negras do Distrito de Mazagão Velho-AP e capaz de responder às indagações acerca da trajetória socioeducacional das colaboradoras, considerando, ainda, que a pesquisa trará em seu bojo aspectos: pessoal, educacional, profissional, social, financeiro, cultural, entre outros.

Para a escolha de desenvolver uma pesquisa narrativa, nos embasamos, principalmente, nos estudos de Clandinin e Connely (2011) que asseveram que em vários campos da ciência a pesquisa Narrativa tem se tornado uma prática comum e, na Educação, já é um discurso vigente. Deste modo, as experiências, que, em nossa pesquisa, denominamos de trajetória socioeducacional foram materializadas através das Narrativas das participantes que, combinada com os fundamentos teóricos, nos ratificam a importância da interação entre a experiência pessoal e educacional das Professoras negras de Mazagão Velho-AP.

Os relatos obtidos através das narrativas promoveram o confronto entre passado, presente e futuro. Por meio da pesquisa narrativa foi possível ter a compreensão do conhecimento empírico das colaboradoras, o que permitiu a construção do conhecimento científico a que nos propomos. Os principais instrumentos de coleta de dados para a abordagem e o tratamento do objeto de estudo foram: a pesquisa bibliográfica, a entrevista semiestruturada e a observação direta.

É pertinente destacar que a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos através do Parecer nº 4.855.784/2021, conforme a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde e Resolução nº 510/2016 - Pesquisas nas áreas de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Foi garantida, ainda, às participantes a privacidade com o uso de codificação de forma a assegurar o anonimato. A discussão dos dados fora ancorada na Análise do Discurso conforme postula Orlandi (2005).

RESULTADOS E DISCUSSÕES DA PESQUISA

Os sujeitos da pesquisa foram sete (07) mulheres Professoras moradoras da vila de Mazagão Velho-AP (Locus da pesquisa), funcionárias públicas efetivas do quadro municipal ou estadual e, também, funcionárias do Contrato Administrativo, que atuam em Mazagão Velho-AP no Ensino Infantil, Ensino Fundamental I ou Ensino Fundamental II. Estão na faixa etária entre 39 e 48 anos e 100% (cem por cento) se declararam do sexo feminino. Desse universo, 71,43% tem Ensino Superior e Especialização na área da educação. No entanto, há que se mencionar que não há, entre as mesmas, Especialistas na área das relações étnico-raciais ou outra área afim, posto que, entendemos, seria um somar de conhecimentos com capacidade de trazer grande retorno pessoal e profissional, principalmente por residirem e atuarem nessa comunidade.

Quanto à autodeclaração de cor, nossas entrevistadas, se declararam: 28,57 % preta, 57,14% parda e 14,29% morena. Nilma Lino Gomes (1995) ao discutir o ser mulher negra no Brasil traz importante debate acerca da identificação racial. A partir do cruzamento das leituras e das memórias das entrevistadas confirma-se o quanto é difícil reconhecer-se como mulher negra/preta em uma sociedade racista. Para a autora:

O conflito da identificação racial com a origem negra está colocado de maneira diferente para as mulheres consideradas socialmente brancas (morenas e mulatas) e para as pretas. As primeiras, ao não se identificarem enquanto negras, apelam para a mestiçagem e são socialmente respaldadas pela ideologia do branqueamento. As outras, mesmo se quiserem negar, tentando apelar para a mestiçagem, encontram nos traços fenotípicos o estigma de pertencerem à raça negra (GOMES, 1995, p. 129).

É neste contexto que os termos negro/a e preto/a são carregados de estereótipos depreciativos, que inferiorizam quem faz parte desse grupo fazendo com que as pessoas tenham receio de se aceitar como ela verdadeiramente é. Deste modo, podemos considerar que, entre nossas entrevistadas que se autodeclararam parda ou morena, poderiam, perfeitamente, terem se autodeclarado preta ou negra.

Através da entrevista semiestruturada indagamos acerca das memórias da infância de nossas entrevistadas e, de modo geral, elas tiveram uma infância com limitados recursos financeiros, algumas passando por maiores dificuldades que outras. No entanto, mesmo com as adversidades que ficaram marcadas nas suas memórias foi possível perceber (no olhar) que elas relembram a infância como um período feliz que tira sorrisos dos rostos. Na comunidade de Mazagão Velho, a maioria dos pais, mães, avôs e avós de nossas entrevistadas, tinham, na agricultura, na pesca, no artesanato, suas fontes de renda para sustento da família. Logo, é possível conceber as dificuldades financeiras advindas dessa modalidade de sustento familiar. Outro aspecto de suma importância dentro da comunidade são as ações culturais e religiosas intensas durante todo o ano civil com expressiva participação popular, tanto dos moradores, quanto de pessoas que visitam e participam das festividades.

Nossas entrevistadas, ao serem questionadas quanto à participação nas ações culturais e religiosas, foram unânimes em declarar que participavam, quando crianças, dos festejos que são tradicionais dentro da vila de Mazagão Velho. Era muito forte o envolvimento de seus pais e avós na organização e realização dos festejos e elas, como filhas, participavam, também. Todavia, passados os anos a maioria foi se afastando não dando continuidade à memória dos pais que tomavam à frente a realização das festas tradicionais na comunidade. Sendo que somente uma mantém forte relação com as festas tradicionais da comunidade, especialmente com o Marabaixo.

A trajetória educacional foi uma temática abordada pela entrevista, buscando trazer memórias relacionadas à escolarização de nossas entrevistadas que ingressaram na escola com idade entre cinco e sete anos. Assim, é acentuado considerar que mesmo diante das dificuldades relatadas, os pais, mães e avós não descuidaram do estudo inicial de nossas colaboradoras, embora a maioria deles tivesse com pouca, ou nenhuma instrução.

A partir dos relatos, vale mencionar os resultados das pesquisas acerca das desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil que foram apuradas pelo (IBGE7) através da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, constatou em 2018 um crescimento no acesso à educação da população preta ou parda, desde a infância. Esse é um fator muito importante que reflete diretamente no futuro dessa população que, através da educação, tem oportunidade de romper o ciclo vicioso da exploração secular com condições concretas de possibilidade de redução das desigualdades sociais (BRASIL, 2018b).

Dados da PNAD Contínua 2016 – Estatísticas de Gênero: Indicadores sociais das mulheres no Brasil – publicados em 08/06/2018, demonstraram que houve um aumento nos níveis de escolarização das mulheres nas últimas décadas, no entanto, o grau de desigualdade entre brancas e pretas ou pardas ainda é uma realidade a ser superada. Mulheres prestas ou pardas têm maior índice de atraso escolar com um percentual de 30,7% (trinta vírgula sete por cento) para 19,9% (dezenove vírgula nove por cento) de mulheres brancas, na faixa etária de 15 (quinze) a 17 (dezessete) anos de idade, numa perfeita demonstração de desequilíbrio. De modo geral nossas entrevistadas cursaram o Ensino Fundamental I, II, Ensino Médio e Universidade na rede pública de ensino, com exceção de uma participante que estava concluindo o nível superior em instituição privada.

As memórias relatadas nos confirmaram que a sociedade brasileira ainda persiste na manutenção do processo secular de desumanização da criança negra, da jovem negra, da mulher negra, posto que algumas de nossas entrevistadas foram exploradas pelo trabalho doméstico infantil. Os debates que giram em torno da exploração da infância negra são de extrema necessidade, visto que a sociedade brasileira ainda alimenta, veementemente, os privilégios de gênero, raça e classe, onde a mulher negra, apesar dos avanços, continua a desempenhar as funções similares às do período escravista. Munanga e Gomes (2016) trazem importantes reflexões acerca dessa narrativa:

A mulher negra tem sido aquela que cuida da casa e dos filhos de outras mulheres para que estas possam cumprir uma jornada de trabalho fora de casa. Sendo assim, quando falamos que a mulher moderna tem como uma das suas características a saída do espaço doméstico, da casa, para ganhar o espaço público da rua, do mundo do trabalho, temos que ponderar que, na vida e na história da mulher negra, a ocupação do espaço público da rua, do trabalho fora de casa já é uma realidade muito antiga (MUNANG, GOMES, 2016, p. 133).

É fato que a sociedade moderna e contemporânea não abre mãos de seus privilégios e se apropria, ainda, da infância e adolescência de meninas negras que sonham com um futuro promissor, mas que se veem dentro de um mecanismo que dificulta sua ascensão social.

Beatriz Nascimento (2021) ressalta essa dinâmica da sociedade brasileira de ser fundada na seleção de acordo com cor da pele, estabelecendo a hierarquia social e, nesse contexto, a mulher negra ainda é reconhecida pela sociedade, como a que deve continuar ocupando os espaços mais baixos dessa hierarquia. Para a autora “[..]a mulher negra, elemento no qual se cristaliza mais a estrutura de dominação, como negra e como mulher, se vê, desse modo, ocupando os espaços e os papéis que lhe foram atribuídos desde a escravidão” (NASCIMENTO, 2021, p. 58). Esses estudos também são motivadores à proposição de debates e mais pesquisas que promovam o enfrentamento às desigualdades em todas as suas esferas. Pesquisas do IBGE retratam que, quando investigado o mercado de trabalho constata-se que o grupo que mais tem vantagens é o formado por homens brancos, e o segundo grupo com maior vantagem é o da mulher branca, “[..]que possui rendimentos superiores não só aos das mulheres pretas ou pardas, como também aos dos homens dessa cor ou raça” (BRASIL, 2018a).

Outro aspecto bem relevante atentou para as narrativas sobre as trajetórias como profissionais da educação constatando-se que, somente duas das entrevistadas tinham desde a infância o desejo de formar-se professora, as demais relataram que a área da educação não era a desejada, porém, segundo elas, foi a única alternativa com reais perspectivas de um futuro promissor. Vindas de famílias pobres, elas precisavam de uma profissão que garantisse um emprego rápido.

As falas das entrevistadas nos habilitam trazer um adendo quanto à região amazônica no que tange ao acesso às oportunidades de formação profissional. Verificou-se que as entrevistadas não tiveram a oportunidade de escolher outra área profissional que não fosse a da educação porque na localidade que residiam o Magistério era o curso profissionalizante ofertado no Ensino Médio. É o retrato da dura realidade vivenciada pelos moradores dessa região: escassez de oportunidades nas áreas da educação, saúde, emprego, entre outras. E, no estado do Amapá esse aspecto é ainda mais severo tanto pela distância do restante do país, quanto pelo acesso que só é feito por meio fluvial ou aéreo dificultando mais a vinda de oportunidades.

Ao vislumbrar a mulher negra nesse contexto, é fácil constatar que a mulher negra da Amazônia Brasileira tem menos oportunidades de educação, saúde, lazer, trabalho, moradia do que as mulheres do restante do país. Mas, não deixamos de destacar que o preconceito e a discriminação de raça e gênero é uma realidade em qualquer região do Brasil.

Ao discutir o acesso à formação profissional, Taís de Freitas (2017) fala acerca da dificuldade da mulher, de modo geral, em exercer o magistério, posto que era uma profissão, inicialmente, exclusivamente masculina, e para a mulher negra o acesso era, ainda, mais difícil. Desse modo, poucas foram as mulheres negras que conseguiram essa inserção no final do século XIX e início do século XX, razão pela qual são consideradas demonstrações de luta e determinação, como ressalta a autora, ao afirmar que “[..]a resistência processa-se. As mulheres negras vão entrar na dita Escola Normal, vão concluir seus magistérios e lecionar nas escolas, públicas ou particulares, que se estabelecem no Brasil nas primeiras décadas do século XX” (FREITAS, 2017, p. 73).

Nesse contexto, é de suma importante ressaltar o exemplo da professora e escritora maranhense Maria Firmina dos Reis que seguindo marcha contrária ao curso normal na construção da história eurocêntrica, conseguiu ser aprovada em concurso público para a Cadeira de Instrução Primária em 1847, um feito que não se ensina, portanto não se aprende na escola (BORGES, 2009, p. 13). São elementos de uma história que não é contada nas salas de aula para crianças e jovens, nem mesmo nas universidades, mas que fazem parte da formação da sociedade brasileira que, hegemônica, invisibilizou a população negra. No entanto, Taís de Freitas (2017) nos lembra que:

Essas mulheres, em número quase insignificante para as estatísticas, foram fundamentais para a construção da igualdade racial no Brasil, quando, vencendo barreiras (visíveis e invisíveis) e superando estigmas, entram em sala de aula para ensinar as primeiras letras, as primeiras operações de matemática, história, geografia e ciências (FREITAS, 2017, p. 77).

Compreendemos que dar visibilidade às nossas entrevistadas através de uma pesquisa científica é um movimento de luta e resistência já que, oportuniza dar voz há quem transpôs barreiras etnocêntricas para conquistar a formação profissional e ocupar espaços na sociedade racista e preconceituosa. Nilma Lino Gomes (1999) ressalta a importância da ocupação desses espaços pela mulher negra. Para a autora:

Ser mulher negra e apresenta-se como uma outra forma de ocupação do espaço público. Ocupar profissionalmente este espaço, que anteriormente era permitido só aos homens e aos brancos, significa muito mais que uma inserção profissional. É um rompimento com um dos vários estereótipos criados sobre o negro brasileiro, ou seja, de que ele não é intelectualmente capaz (GOMES, 1999, p. 57).

São conquistas que representam muito mais do que, somente a ocupação de um cargo público, mas principalmente o fato de ser uma mulher negra que ocupa esse cargo público. São oportunidades de quebra de estereótipos, de releitura da história, através de uma interpretação que inclua a participação da população negra na formação e construção da sociedade brasileira. Uma oportunidade de aprender a reaprender que não está cristalizada nas vivências pessoais e profissionais da maioria de nossas entrevistadas, assim como, da sociedade brasileira. Em um de seus Ensaios, Lélia Gonzales (1979) traz importante discussão acerca da exploração dirigida à mulher negra, para a autora:

O processo de exclusão da mulher negra é patenteado, em termos de sociedade brasileira, pelos dois papéis sociais que lhe são atribuídos domésticas ou mulatas. O termo doméstica abrange uma série de atividades que marcam seu lugar natural: empregada doméstica, merendeira na rede escolar, servente nos supermercados, na rede hospitalar etc. já o termo mulata implica a forma mais sofisticada de reificação: ela é nomeada produto de exportação, ou seja, objeto a ser consumido pelos turistas e pelos burgueses nacionais (GONZALES, 1979, p. 16).

As falas de Lélia Gonzales, assim como de outras militantes negras denunciam o processo de submissão imposto à população negra que ainda são reproduzidos nos dias atuais e que contribuíram na manutenção dos privilégios de gênero, raça e classe, desde a era colonial, na sociedade brasileira, e que definiram espaços de servilismo aos negros e negras. No entanto, é importante sempre lembrar que a população negra jamais se submeteu, passivamente, sempre houve luta, resistência, avanços e conquistas. Ainda, quando cuidamos acerca dessas memórias de preconceito de gênero e raça, depois de adultas, nossas entrevistadas refletiram, rapidamente, e afirmaram não terem sofrido. Sendo que uma entrevistada fez menção à uma situação bastante corriqueira em nossa sociedade e que vem sendo combatida, também, rotineiramente: o racismo velado, práticas ordinárias que camuflam diversas ações preconceituosas, num famoso “[..]faz de conta” que não existe mais racismo no Brasil.

Indagadas sobre a participação em movimentos sociais uma afirmou participar do Movimento Negro, outra declarou participar, diretamente, de ações culturais vinculadas ao Marabaixo, tanto na comunidade de Mazagão Velho, quanto a nível de estado, as demais não participam. Esse número é bastante intrigante quando consideramos o meio cultural em que as entrevistadas residem desde a infância, podendo-se inferir que isso se deu em face do próprio distanciamento que foi criado entre as entrevistadas e as ações culturais, um fosso comumente encontrado. Sueli Carneiro (2019) discute, em um de seus artigos publicados em 2003, intitulado Mulheres em movimento, a importância da mulher negra nos movimentos sociais e destaca a relevância das lutas por pautas que são específicas das mulheres negras; uma militância que emergiu, principalmente a partir da década de 1970 com os debates do MNU. A autora cunhou a expressão Enegrecendo o feminismo para:

[...] designar a trajetória das mulheres negras no interior do movimento feminista brasileiro. Buscamos assinalar, com ela, a identidade branca e ocidental da formulação clássica feminista, de um lado; e, de outro, revelar a insuficiência teórica e prática para integrar as diferentes expressões do feminismo construídos em sociedades multirraciais e pluriculturais. Com essas iniciativas, pôde-se engendrar uma agenda específica que combateu, simultaneamente, as desigualdades de gênero e intragênero, afirmamos e visibilizamos uma perspectiva feminista negra que emerge da condição específica do ser mulher, negra e, em geral, pobre, e delineamos, por fim, o papel que essa perspectiva tem na luta antirracista no Brasil (CARNEIRO, 2019, p. 198).

A militância da mulher negra é muito discutida, também, nos estudos de Lélia Gonzalez que nos ajudam na compreensão dessa temática tão importante e atual que é o feminismo negro. Ocupar os espaços sociais que foram ao longo dos séculos determinados para os não negros são ações que transpassam barreiras sociais e são sinônimos de conquistas que as mulheres negras vêm galgando ao longo dos séculos de enfrentamento ao preconceito racial e de gênero. No caso específico de nossa pesquisa, cada professora negra dentro de uma sala de aula representa uma conquista pessoal e coletiva, e é importante que as mulheres negras aprendam a ter essa percepção como aponta o estudo de Jarid Arraes (2017) que retrata a vida de mulheres pré e pós-abolicionistas que, ao longo do percurso histórico, resistiram às inúmeras formas de preconceito, exploração, discriminação e racismo.

Os debates, as leituras, os estudos, as lutas da militância vão atuar, diretamente, no processo de crescimento pessoal da mulher negra, pois sabemos que todo ser humano, normalmente, se molda de acordo com os espaços em que está inserido. E, habitualmente, estamos inseridos em grupos sociais hegemônicos que afeiçoam nosso pensar, nosso agir, de acordo com os ditames que a sociedade julga o correto, o bonito, o aceito e o criticado, enfim, tudo precisa se adaptar à nossa personalidade para o bom convívio social. Ou seja, quem é gordo, precisa emagrecer; quem tem cabelo crespo, precisa alisar; quem tem nariz chato, precisa operar, assim, os traços afrodescendentes se escondem numa farsa criada para conquistar a aceitação, o passaporte para a vida em sociedade; ledo engano. Daí a importância de estudiosas, negras principalmente, ressaltarem acerca do envolvimento nos movimentos sociais e na militância negra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Usurpada de qualquer direito, a mulher negra foi destinada às terras brasileiras a serem submetidas à condição de escrava alicerçada numa legalidade imoral e desumana que perdurou por mais de três séculos. E, mesmo após a abolição da escravatura, ato dissimulado que não promoveu qualquer meio de inclusão da população negra na sociedade, a mulher negra continuou a ser a mais lesada na sociedade brasileira.

Ao nos debruçarmos na história da população negra, que ainda não consta na história oficial do Brasil, constatamos que a educação foi e continua sendo importante bandeira de luta por ter a capacidade de oportunizar o transpor de barreiras sociais impostas desde o colonialismo à população negra. E, estudos que propõem esse diálogo entre a educação e a mulher negra representam o poder que a ciência tem de promover o debate, assim como oportunizar a reescrita dessa história oficial do Brasil que invisibilizou a trajetória da mulher negra, num exercício necessário de aprender a reaprender o que nos foi contado.

As trajetórias de nossas entrevistadas são marcadas pela luta, resistência, mesmo que indiretamente, pela busca dos direitos sociais e políticos. Através da educação, elas acessaram espaços socioeducacionais não permitidos, anteriormente, às mulheres negras, e conseguiram atravessar barreiras traçando metas e alcançando objetivos e representam enfrentamentos à estrutura hegemônica, eurocêntrica, machista, racista, patriarcal que fundamentou a sociedade brasileira. Que as práticas preconceituosas e racistas presentes na sociedade não tire o entusiasmo e a vontade de prosseguir aprendendo a reaprender.

1É importante esclarecer nesse momento que ao longo do texto faremos uso do primeiro nome e sobrenomes de autoras para dar visibilidade à identidade bem como enfatizar a produção científica feminina.

2Pode ser compreendido como a formação histórica dos territórios coloniais; o colonialismo moderno pode ser entendido como os modos específicos pelos quais os impérios ocidentais colonizaram a maior parte do mundo desde a descoberta (MALDONADO-TORRES, 2018, p. 35).

3Pode ser compreendida como uma lógica global de desumanização que é capaz de existir mesmo na ausência de colônias formais (MALDONADO-TORRES, 2018, p. 36).

4Segundo Ponce (2001) é origem pré-histórica de todos os povos conhecidos e viviam em um comunismo tribal com predominância da igualdade de direitos, repartição entre todos do que produzido e consumo imediato por impossibilidade de armazenamento; ou seja, não havia acumulação de bens nas sociedades primitivas.

5 Miranda (2011) define o ensino preconizado pelo Ratio como sendo, não utilitário, não profissionalizante, nem especializado, considera que no período em que a educação era alicerçada no Ratio Studiorum se “[..]produziu frutos incontestáveis de cultura e de humanismo, de ciência política e de civismo” (MIRANDA, 2011, p. 487-489).

6O uso do termo controversa se justifica pela compreensão de que mais do que uma demanda da população negra para tornar livres os filhos nascidos de mulher escrava a partir daquela data, a lei do ventre livre foi, principalmente, resultado de forte pressão da Inglaterra pela libertação dos escravos visando o mercado promissor que se vislumbrava. Além de que os senhores de escravos já haviam percebido que logo chegaria o momento de libertar os negros, haja vista, que nesse período o tráfico negreiro já era proibido no Brasil desde 1850, com a Lei Eusébio de Queirós, logo era forçoso novos mecanismos de manutenção da escravidão.

7Para maiores informações acerca das pesquisas acessar a página oficial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.

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Recebido: Maio de 2022; Aceito: Julho de 2022

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