INTRODUÇÃO: UM BREVE HISTÓRICO DA METODOLOGIA NARRATIVA DE PESQUISA
Este artigo está ancorado nas pesquisas que investigam a própria prática profissional e nos estudos e pesquisas em formação de professoras1 que veem nas narrativas possibilidades de produção de conhecimentos com as práticas docentes. As pesquisas estão associadas aos autores, pelo grupo de pesquisa em educação do qual fazem parte, que tem em seu histórico a concepção de que todo professor é pesquisador (FREIRE, 1992). Essas pesquisas endossam o valor do trabalho docente e evidenciam a produção de conhecimento na e sobre a escola (DICKEL, 2001; GERALDI; FIORENTINI; PEREIRA, 1998) pelos próprios sujeitos que as produzem.
Como lemos na tese de doutorado de Dickel (2001), foi a partir dos estudos do professorpesquisador de sua ação pedagógica que houve um movimento de valorização das narrativas de professoras partindo dos gêneros discursivos presentes no cotidiano escolar. Segundo Elliot (1998, p. 143 apudDICKEL, 2001, p. 53) o professor enquanto pesquisador deveria “[...] exercer sua liberdade de experimentar com suas práticas” ao partir de seus conhecimentos e dos conhecimentos instituídos, dos limites impostos à sua autonomia, incorporado à luta por justiça social (DICKEL, 2001, p. 54).
A perspectiva narrativa de pesquisa de professoras-pesquisadoras das práticas docentes passa a ser problematizada paulatinamente, a partir da valorização dada por Prado (1992) a estudos envolvendo as práticas narrativas e os percursos teórico-metodológicos de valorização da autoria docente (PRADO; CUNHA, 2007). No entanto, vale destacar que não se tratava de quaisquer narrativas, mas de narrativas oriundas do cotidiano escolar ou, mais precisamente, narrativas pedagógicas (PRADO; FERREIRA; FERNANDES, 2011; PRADO; CAMPOS; PRADO, 2013; 2014; 2015; PRADO et al, 2015; 2017). A assunção da pesquisa narrativa em sua radicalidade e singularidade, com Ferreira (2013), Proença (2014), Leardine (2014), Serodio (2014), Soligo (2015), Chautz (2017), Simas (2018) levou a qualificar as pesquisas narrativas pelas diferentes dimensões de atuação, como “pesquisa narrativa em três dimensões” (SOLIGO; SIMAS, 2014; SOLIGO, 2015; SIMAS, 2018) e como “metodologia narrativa de pesquisa” (PRADO et al, 2015). Seja entre as “dimensões” ou na “radicalidade narrativa” se reconheceria seu papel como “escrita-evento” no contexto da pesquisa narrativa (SERODIO; PRADO, 2017).
Vimos neste artigo tentar dar um novo passo, agora na direção do que vem sendo pesquisado e narrado e que adquire diversos sotaques, por assim dizer, nas recentes pesquisas de Calipo (2020), Oliveira (2020), Castro (2020), Silva (2020), Cândido (2020), dialogando nas estradas ladrilhadas por Connelly e Clandinin (1995), Nóvoa (2009), e nas conversas com as pesquisas (auto)biográficas, como Josso (2004), Passeggi (2008).
Como Ferreira (2013, p. 45) afirma: “Realizar uma investigação na pós-graduação, em um programa de doutoramento é, em alguma medida e em um dado momento, fazer um caminho para si (JOSSO, 2004) e em direção ao outro (...)”. Esse “em direção ao outro” é a marca da inscrição da filosofia da linguagem bakhtiniana, a ladrilhar os caminhos investigativos do grupo de pesquisa que fazemos parte, que nos propicia compreender que nossa produção do pensamento se dá por nossa constituição a partir do outro e constitui indelevelmente a nossa visão para o outro e para si.
Essa perspectiva permite a valorização das pesquisas da própria prática pelas professoras ou profissionais da escola, e do modo como elas se referem singularmente às próprias práticas educativas, nomeando-as e adjetivando-as e aos sujeitos que delas participam, por um artifício estético de posicionamento do eu à tangente do mundo narrado, fundamentado, principalmente, na visão d’O autor e a personagem na atividade estética (BAKHTIN, 2003).
É esta extensa e densa caminhada investigativa que permite às pesquisadoras do grupo conduzir suas pesquisas narrando em primeira pessoa2, passo importante para as pesquisas das próprias práticas docentes, já que o discurso assim assumido responsavelmente gera não só a autoria, mas também uma visão hetero-auto-consciente (PRADO et al, 2015) de sua produção de conhecimentos com os estudantes, nas escolas.
Em nosso caso, neste texto, vamos tratar particularmente a pesquisa de mestrado de Cândido (2020), uma pesquisa caracterizada por um percurso que parte da produção do inventário (PRADO; MORAIS, 2011; PRADO; FRAUENDORF; CHAUTZ, 2018) de (guar)dados, organizados de modo a fazer parte dos materiais de pesquisa e docência e de maneira a possibilitar a escrita do memorial de formação (PRADO; SOLIGO, 2005; PROENÇA, 2015): inventário e memorial, ambas práticas investigativas defendidas e muito utilizadas por grupos de pesquisa em educação.
Problematizaremos especialmente os percursos estéticos dessa visão hetero-auto-consciente que gera uma tomada de posição axiológica durante o percurso da pesquisa notada nos textos do exame de qualificação e da defesa da dissertação de mestrado profissional e informada por uma pesquisadora, leitora externa às bancas dos exames, presente durante parte da formação da professora-pesquisadora-narradora. Somos conscientes de que separar os percursos estéticos das tomadas de posição éticas e os conhecimentos que constituem as escolhas na narrativa de pesquisa se tratam de uma abstração, pois qualquer percurso responsável é ao mesmo tempo cognitivo, estético e ético. No entanto, abstrair é também um ato responsável (BAKHTIN, 2010).
EXPLICITANDO UM IMPORTANTE PONTO DE PARTIDA
Por meio de um artifício figurativo estético-ético no sentido da responsividade não indiferente (BAKHTIN, 2010) do autor em relação a suas personagens (BAKHTIN, 2003), a professora-pesquisadora, que em seu percurso formativo, na graduação e no início profissional, era permeada culturalmente por essa perspectiva, pôde se assumir produtora de conhecimentos com a escola, entre outras culturas, como as forças culturais-científicas-acadêmicas que Dickel (2001) no diálogo com Stenhouse (1996) denuncia.
Não podemos deixar de alertar que o fantasma da incapacidade teórica ainda ronda as docentes e suas práticas, que dão às teorias lugar de honra ou de controle dos saberes:
Em relação ao argumento segundo o qual os professores não podem ser pesquisadores devido à parcialidade que experimentam, [Stenhouse] revida: a dedicação dos pesquisadores profissionais a suas teorias é fonte mais grave de parcialidade que a dedicação de professores à sua prática (DICKEL, 2001, p. 49).
A exigência da imparcialidade da pesquisadora em relação à parcialidade da professora é tratada como tema intersticial num estudo sobre professor-pesquisador e da pesquisa-ação, sintetizados em um livro clássico sobre o tema (GERALDI; PEREIRA; FIORENTINI, 1998).
Entendemos que houve uma incorporação ou internalização do modo narrativo de pesquisar que “[...] tem proporcionado ao professor-pesquisador-narrador partir da convicção de sua singularidade e alterar as características verbais e hábitos sociais de seu próprio ‘campo de utilização da língua’, quando adentra o campo da pesquisa acadêmica, transformando-se” (SERODIO; PRADO, 2017). Reconhecendo uma epistemologia outra a partir da pesquisadora que se forma enquanto pesquisa, passa-se a fortalecer tanto o percurso narrativo que se forma pesquisando quanto o caminho de pesquisa no qual se forma narrando.
As narrativas e o percurso narrativo da professora-pesquisadora produzem lições, em perspectiva estética (de olhar o eu a partir do outro) e em uma epistemologia heterocientífica (BAKHTIN, 2003; 2017). Estas lições foram construídas no modo de pesquisar narrando, que passa a ser incorporado, como busca de compreensão do tema investigado.
Queremos focalizar o viés estético deste percurso que levou a professora-pesquisadora a dar-se conta da posição axiológica assumida. Foi a visão estética para si na relação com os outros sem se colocar de maneira subordinada aos teóricos, cujas teorias são incorporadas na prática, que possibilitou a tomada de posição axiológica na pesquisa.
Vimos que a posição da professora-pesquisadora ao narrar é tão visceral quanto a de um escritor literário que assume a dupla responsabilidade (com a vida e com a arte). É o que Bakhtin (2003; 2018b) chama de escrita tangente ao mundo da vida na criação. Para Cândido (2020, p. 68) esta posição axiológica aconteceu a partir de uma imagem, que possibilitou-lhe ver a si mesma com os outros de um outro modo, a partir de uma palavra dada a ela após a qualificação: a fofoca3.
Uma ideia, uma imagem. A de conversar entre amigas... E fazer fofocas entre amigas, a respeito de suas vidas, como se se vissem num vídeo ou com os olhos uma da outra. E dissessem uma para a outra: “olha o que eu fiz!!!!”.
Essa maneira encontrada para produzir e compartilhar reflexões/refrações, a partir das fofocas da escrita, possibilitou um distanciamento esteticamente construído da professorapesquisadora em relação ao texto de qualificação, revelando-lhe um necessário posicionamento axiológico inscrito no texto da dissertação.
Organizamos as próximas seções a partir de recortes de trechos da materialidade produzida durante a pesquisa em que o momento de compreensão está documentado (o texto de qualificação, as fofocas e o texto de dissertação), orientado pelo inventário de (guar)dados, relacionado com os saberes produzidos a partir de uma entonação denominada zombeteira e do gênero auto-informeconfissão, como apresentado em O autor e a personagem na atividade estética (BAKHTIN, 2003).
MUDANÇAS NO GÊNERO DO DISCURSO
Bakhtin nos ajuda a compreender o uso dos gêneros do discurso (BAKHTIN, 2003; 2016) nas diversas esferas da vida social, aos quais nos adequamos culturalmente, na singularidade das interações intersubjetivas. O que define4 um gênero do discurso aos discursos existentes é a sua função social, mas não é um corpo social que fala, e sim, um corpo humano cultural e singular, um sujeito em relação com outro sujeito, com outros sujeitos. Assim qualquer alteração nos gêneros é alteração também das, e nas, esferas sociais.
Pode-se dizer, com Volóchinov (2011; 2013; 2017), que a palavra é o menor modelo cultural de um sentido a ser comunicado. Esta palavra comunicada sempre vem acompanhada de entonações, gestos, expressões faciais, acentos, ou, como podemos sintetizar, por ênfases ideológicas, mesmo quando discurso interior, nos pensamentos. Sendo uma só palavra ou formando frases, quando é dirigida a alguém em uma esfera social, se torna um enunciado concreto em relativa estabilidade: um gênero discursivo.
O enunciado concreto (VOLÓCHINOV, 2011; 2013; 2017) é uma expressão composta tanto pela significação quanto pelos sentidos. A significação é dada pela estabilidade lógica dos sistemas ou modelos linguísticos, sua gramática, por exemplo. Quanto aos sentidos, eles se formam na interação discursiva, numa estabilidade dialógica, inter-relacional, sua estabilidade é uma estabilidade sempre provisória na compreensão dos sentidos e não na pura aceitação explicativa da significação. Este aspecto linguístico corrobora com o reconhecimento de que os conhecimentos produzidos com a consciência da singularidade inter-relacional (e não relativa) têm outra lógica e outra noção de ciência: uma dia-lógica e uma hetero-ciência. Nesta perspectiva bakhtiniana, as metodologias narrativas de pesquisa em educação (PRADO et al, 2015) têm nas narrativas pedagógicas o gênero discursivo mais adequado ao discurso do cotidiano escolar.
Ao narrar seu percurso de pesquisa, a professora-pesquisadora instaura um outro gênero do discurso, o memorialístico, dentro do gênero do discurso dissertação. De um gênero discursivo que comumente tem caráter de neutralidade, assume-se uma posição axiológica singular, jamais neutra, produzindo outros conhecimentos revelados pela escrita narrativa.
A narrativa, neste contexto heterocientífico, é entendida por nós, portanto, como um gênero do discurso em que ele autor e ele personagem não coincidem cronotopicamente5 e isso faz com que o autor possa ter tomadas de consciência transgredientes ao narrar (SERODIO; SOUZA, 2018). Essa narrativa na pesquisa possibilita que a pesquisadora se veja professora e narre, como autora, tanto a respeito da pesquisadora quanto da professora entre as/os estudantes e os conteúdos. E pode assumir olhar para si na relação com os conteúdos político-pedagógicos, mediante os anseios de sujeitos valorizados nas relações, avaliando as suas próprias posições.
A assunção dessa posição passou por uma etapa que muito se assemelha às descrições que Bakhtin faz do “auto-informe-confissão”, um gênero do discurso sem interlocutor, ou pelo menos um interlocutor que não pode jamais responder:
Onde aparece a tentativa de fixar a si mesmo em tons de arrependimento à luz de um imperativo moral, surge a primeira forma essencial de objetivação verbal da vida e do indivíduo (da vida pessoal, isto é, sem abstração de seu agente) — o auto-informe-confissão. O elemento essencial, constitutivo dessa forma é o fato de que se trata precisamente de uma auto-objetivação, de que o outro é excluído com sua abordagem particular, privilegiada (BAKHTIN, 2003, p. 130).
O auto-informe-confissão consiste em um gênero discursivo amplo, no qual a ausência de leitor/interlocutor torna-o um gênero particular. Nele, o autor dirige-se a um deus sabendo que ele não responderá sua objetivação verbal, a não ser por fé.
Nas pesquisas em que se persegue uma objetividade, esse deus geralmente representa a ciência dona da verdade universal, as teorias científicas.
Assumir uma posição axiológica é importante na metodologia narrativa de pesquisa porque implica o autor a usar a personagem do eu para dialogar com os teóricos e suas teorias, em equipolência de consciências6 (BAKHTIN, 2018a). Dizer e ver-se com essas personagens faz com que o texto ganhe uma outra camada de sentido com o posicionamento do autor. E isso se faz da não coincidência de consciências, uma visão estética, que revela saberes transgredientes ao ato de narrar (SERODIO; SOUZA, 2018).
Entendemos com Ponzio (2010) e Serodio e Souza (2018) que ser transgrediente é um saber que vai além do que foi anteposto por identificação, semelhança ou alinhamento, com uma teoria ou profissão de fé. Ao tomarmos a escrita narrativa, vemos que autor e herói são consciências não coincidentes mesmo se autor e herói remetem-se ao mesmo sujeito empírico (SOUZA; MIOTELLO, 2018). E também à medida que o autor escreve, relacionando o herói com as demais personagens e com as situações que vivenciam. Existem transgrediências nessas relações que acabam ultrapassando a posição e visão do eu-para-mim. Aliás, segundo Bakhtin (2003) somente assim o eu pode ser esteticamente produtivo para ele mesmo.
Em nossa reflexão das fofocas, vimos que a transgrediência foi possível na ampliação das compreensões da professora-pesquisadora no que se refere à assunção axiológica de sua posição em relação às demais consciências (teóricos e teorias), revelando-lhe mais do que a sua escrita narrativa em tom confessional conseguia lhe mostrar.
Vemos que a partir da transgrediência estética podemos nos posicionar axiologicamente. Reafirmamos que a posição axiológica é o assumir-se esteticamente com o outro. A mudança de perspectiva estética na relação com o outro nos posiciona axiologicamente na escrita narrativa, potencializando a produção heterocientífica de conhecimentos.
Mello (2017) nos ajuda a pensar que a fofoca, como escrita zombeteira se assemelha a um olhar no espelho com tom de riso para si, questionando “eu sou isso aí?”. “Esse é o único sujeito que pode falar de si, esse que não se toma a sério, que não se identifica, mas se duplica e nesse afastamento cria a distância estética” (MELLO, 2017, p. 154-155). Temos, então, que a escrita zombeteira na figura da fofoca cria uma “exotopia (eu vejo a mim mesmo fora de mim)” (BAKHTIN, 2019a, p. 53-54) uma posição estética valorativa que cria uma exotopia possível e necessária para a produção de conhecimentos transgredientes.
UM ESTUDO INTERPRETATIVO COM O EXERCÍCIO DE (FO)FOCAR
Se faz necessário dizer de modo breve como se deu o exercício de pesquisa que estudaremos na próxima seção. Para isso, é preciso contar que o grupo de pesquisas, no qual a pesquisa de mestrado em questão está inserida, tem uma prática de compartilhar os textos de qualificação e de defesa para leitura, com os participantes do grupo, a fim de que ofereçam outros olhares para o percurso narrativo-formativo.
Neste sentido, uma leitora fez alguns apontamentos no texto de qualificação que, a princípio, não foram compreendidos pela professora-pesquisadora, como podemos ver na passagem abaixo:
Reler meus escritos em busca de algo que faltava, mas que eu não entendia exatamente o que era, me pareceu, a princípio, um movimento adequado. A inadequação veio, entretanto, quando me dei conta de que a releitura não era o bastante. Eu lia o texto, os comentários feitos nas margens, mas eu não estava distanciada dos meus emaranhados de linhas o suficiente para perceber o que faltava. Eu arrumava os erros de concordância, mudava uma frase de lugar, mas a forma com a qual eu enxergava o texto, isso não mudava (CÂNDIDO, 2020, p. 67, destaques nossos).
Colocando-se à margem de si é que a professora-pesquisadora poderia receber valores transgredientes à própria vida, e se tornar capaz de dar acabamentos estéticos produtivos (BAKHTIN, 2003) ao narrar sua vida e sua própria prática. Quando a professora-pesquisadora afirma que não estava distanciada dos emaranhados o suficiente para perceber o que faltava, acreditamos ser a materialidade narrativa do momento em que ela se dá conta de que a relação entre autora e personagem não possibilitava os excedentes necessários para um deslocamento estético do eu-autor para eu-personagem:
Quando a releitura não me possibilitou as tomadas de consciência que eu esperava, Liana sugeriu um outro caminho. Fiz, então, o que ela chamou de um exercício de “fofocar o texto”. Fofocá-lo no sentido de bisbilhotar seu interior, de tomar seus segredos e depois contá-los por escrito o que vi do que li para outros que, no caso, seria eu mesma, mas distanciada pela escrita da situação (CÂNDIDO, 2020, p. 68).
A ideia da fofoca também tem a ver com o riso zombeteiro (BAKHTIN, 2018a, p. 249-251; 2016, p. 82; 2019b, p. 30) e com a “carnavalização da literatura” (BAKHTIN, 2018a, p. 122; p. 139-150) e consistiu em um exercício estético de ver com os olhos do outro, dada a impossibilidade concreta da empatia pura (BAKHTIN, 2003, p. 63), assim como colocar-se à margem de si a que nos referimos anteriormente. A princípio como um exercício, se mostrou um importante meio da professorapesquisadora ver a si mesma na sua escrita narrativa, em sua pesquisa.
A fofoca comumente é tida como um gênero maledicente devido a um movimento contra as mulheres, segundo Federici (2017) 7. No entanto, no trecho que trouxemos, fica claro que o sentido da fofoca era o de um exercício de extrair o que se via como se estivesse de fora do narrado, para contar ao outro, sendo que o outro era a própria pesquisadora na busca por entender o que havia sido comentado de seu texto.
Nesta prática de bisbilhotar o texto, a cada parágrafo e cada subtítulo, a professorapesquisadora produziu pequenos comentários e buscou novos sentidos, focando em cada tópico e fofocando com ele:
(...) eu reli meus emaranhados e bordei pequenas fofocas, contando nelas o que sobressaíam, o que ficava mais marcado em mim. Em uma tentativa de me aproximar da escrita literária que foi tão importante nos anos passados, e ainda é, a cada “fofoca” mais crítica e analítica, eu também tentava “fofocar” literariamente. (...) No desenvolver essas escritas, acabei entendendo que o que eu estava fazendo com o texto era um tanto além de bisbilhotar e escrever o que a narrativa-bordado de pesquisa tinha a dizer, mas consistia em um movimento de “focar” em que eu lia o que já havia sido escrito, percebia qual era o assunto que me saltava aos olhos, para em seguida produzir duas novas escritas de gêneros diferentes, mas que abordavam o mesmo conteúdo e que me diziam mais do que eu via quando apenas lia o texto (CÂNDIDO, 2020, p. 68).
Ao tecer os breves comentários, foi percebendo que o olhar ia se aguçando, que as palavras davam a ver o que antes não via e a escrever comentários sintéticos que a ajudavam esteticamente a “[...] tornar-se outro em relação a si mesmo, olhar para si mesmo com os olhos do outro” (BAKHTIN, 2003, p. 13) e trazer transgrediência ao que fora outrora narrado. Focar e fofocar assim lhe proporcionou a produção de outro conhecimento possível pelo exercício estético. Tanto foi importante que decidiu nomear tal exercício, construído a partir de uma necessidade de pesquisa, como “(fo)focar” o texto, introduzindo o sentido de focalizar, de focar naquilo de mais importante era em relação ao que foi outrora escrito (CÂNDIDO, 2020, p. 19).
Agora que discutimos um pouco mais sobre o exercício de (fo)focar, nos deteremos na interpretação dos textos de qualificação e da dissertação produzidos pela professora-pesquisadora a fim de darmos a ver os percursos investigativos possíveis com as fofocas.
Encontramos no Segundo emaranhado de linhas: as produções das crianças8, presente no texto de qualificação, a seguinte passagem:
Me incomoda perceber as ausências, uma vez em que acredito junto com Jacotot (RANCIÈRE, 2010) que as crianças aprendem quando estão devidamente interessadas, por isso procuram, investigam, registram e produzem. A falta de suas produções em meu inventário de pesquisa me mostra que talvez eu não tenha possibilitado esse interesse em determinado assunto, mas também revela a necessidade do trabalho com o material apostilado em que sempre passamos muitas aulas debruçadas nele, sendo que pouco nos interessamos e realmente aprendemos com esta forma de fazer (CÂNDIDO, 2020, p. 71, acervo da professora-pesquisadora, destaques nossos).
A professora-pesquisadora passou a mobilizar uma escrita voltada para os possíveis motivos que a levaram a não propiciar mais produções por parte de seus/suas estudantes, desculpando-se pela, segundo ela, pouca quantidade de produções inventariadas, sem conseguir ver a princípio, que o mais importante, segundo a própria visão epistemológica da pesquisa, seria a qualidade e o valor dos possíveis sentidos produzidos com seus/suas estudantes pela professorapesquisadora.
Por dizer que as produções das ou com as crianças eram ausentes, entendemos que a pesquisadora (escon)deu-se (em) um álibi (BAKHTIN, 2003), dizendo sobre a falta de produções, ao invés de se ater aos valores que via nos ditos – pois, de fato, não estavam ausentes, como ela mesma vai se dar conta.
Bakhtin (2003), ao nos mostrar que não existe álibi para o existir, que cada um é singularmente responsável, nos mostra também que quem vive enuncia, e quem enuncia valora por seus atos. Cândido (2020) valora as crianças e a si, porém, sem distanciamento estético, culpa-se e busca justificativas teóricas, históricas para as ausências de documentos de uma das turmas, o que vem a reconhecer no texto final: “[...] compreendi com o exercício de (fo)focar que minha escrita havia se voltado a maior parte do tempo para as ausências, repensei mais uma vez minha pergunta de pesquisa” (CÂNDIDO, 2020, p. 68).
Ela não guardou os materiais e a justificativa encontrada não a satisfaz, pois não lhe dá, nem poderia lhe dar álibis. Nem nada em sua pesquisa indica que conscientemente ela desejaria que lhe fornecesse álibis. Também a leitora privilegiada não se satisfaz e a provoca sugerindo voltar ao texto com olhar de fofoca. Em uma pesquisa da própria prática por meio dos (guar)dados da professora é muito mais importante contar como uma professora singular, justamente por sua singularidade, respondeu à experiência do sentimento de culpa ao descobrir que há ausências, por meio de algumas de suas singulares narrativas com tons de auto-informe-confissão (BAKHTIN, 2003).
Além disso, há uma grande diferença entre culpar-se e responsabilizar-se.
Culpar-se tende a imobilizar. “Perceber a ausência de qualquer documento, desenho, carta ou fotografia desta turma de segundo ano de 2015 me faz lembrar a triste sensação que tenho de cada tarde que passei ali” (CÂNDIDO, 2020, p. 55, acervo da professora-pesquisadora). Ela se volta para si, mas não tem uma perspectiva fora de si para ver-se. Prestar atenção no próprio sofrimento não lhe dá uma posição estética exotópica, pois está imobilizada pela centralidade da culpa.
Responsabilizar-se tende a movimentar e ela pode ir a busca de “[...] responder sobre a ausência de (guar)dados de minha turma” (CÂNDIDO, 2020, p. 64). As justificativas dadas pela professora-pesquisadora para as poucas produções das crianças não poderiam se sobrepor ao não álibi. Ela era responsável por seus atos, fossem eles dinamizadores das produções infantis ou não, devendo assumir axiologicamente sua posição e não enraizar sua escrita em justificativas que tendiam a funcionar como álibis, mesmo que fossem teoricamente válidas.
No exercício de (fo)focar no segundo tópico, denominado Segundo emaranhado de linhas: as produções das crianças, a professora-pesquisadora escreveu:
Galeano9 coloca no banquinho uma indagação: até onde as coisas funcionam sem que ninguém as questione? Por que tenho poucas produções das crianças? Será que algo tem acontecido o tempo todo e não questiono? Reproduzo? Reproduzo. Tanto que me perco no que escrevo, o que escrevo? (CÂNDIDO, 2020, p. 225).
A inquietação revelada na fofoca, escrita em primeira pessoa do singular e considerada “crítica/analítica” (CÂNDIDO, 2020, p. 68), nos leva a pensar que a reprodução das páginas das apostilas e dos conteúdos vivida sem questionamentos pela professora era tão forte que ela se perdia naquilo que escrevia. Mas como seria possível a professora-pesquisadora, que é autora de sua pesquisa, se perder naquilo que narra se ela também é personagem constituinte de sua pesquisa? É possível existir esse desencontro entre autor e personagem?
Geraldi (2010) nos lembra que “[...] é na tensão do encontro/desencontro do eu e do tu que ambos se constituem” (p. 108). Por isso, “[...] minha própria palavra sobre mim mesmo não pode ser essencialmente a última palavra, a que me conclui” (BAKHTIN, 2003, p. 131) nem mesmo no auto-informe-confissão. No entanto neste, não se busca, não cabe ao gênero, uma visão estética de si, mas englobar-se no espírito enquanto para a produção de sentidos é necessária à constituição de si, no encontro de eu e tu. O que nos faz entender que no texto de qualificação a professorapesquisadora aproxima-se dessa busca, porém não pela visão estética, pois há elementos do autoinforme-confissão em sua escrita, em que quase coincidem autor e personagem. Sobre isso, ela nos conta: “[...] as articulações que fiz com as autoras e os autores pareciam-me as únicas possíveis, eu achava que uma alteração aqui e outra acolá desestruturaria as ideias que eu havia criado” (CÂNDIDO, 2020, p. 67).
A professora-pesquisadora, por meio do artifício estético da fofoca dá-se conta de que no texto da qualificação dava aos teóricos a responsabilidade pelos ditos. Antes deste exercício, a própria palavra da pesquisadora-professora era mantida como as palavras dos teóricos que a representavam. Enfim, era deles, a última palavra. Usava, portanto, a posição axiológica deles em seu lugar, por isso o que dissemos da quase coincidência.
O auto-informe-confissão (de culpa) pressupõe, de acordo com Bakhtin (2003), que exista apenas quem se auto-informa-confessa diretamente a quem tem o dom do perdão. Não cabe uma posição estética de si com os outros, nem com o escritor, nem com um leitor, embora exista o autor, este não pressupõe uma resposta.
Ao colocar-se confessando as ausências de registros com as crianças daquela turma naquele ano, a professora-pesquisadora trouxe para a interlocução os autores das bibliografias nas disciplinas que cursava no programa de pós-graduação, igualando os conhecimentos teóricos aos de um deus. Ou no sentido de que os conhecimentos deles se constituíram abstratamente como deus, com quem não se discute, e a professora-pesquisadora, sem discutir, por assim dizer, não conseguia uma posição exotópica que lhe permitisse uma perspectiva estética.
É fundamental para qualquer posição estética produtiva (BAKHTIN, 2003, p. 33) ao menos dois sujeitos distintos, duas consciências, duas personagens nas relações discursivas, enquanto, que perante deus-conhecimento só é possível a união (comunhão) no espírito.
A impossibilidade de aquela ser a última e conclusiva palavra, segundo as leitoras do texto de qualificação, se dava porque não oferecia à professora-pesquisadora elementos transgredientes. A ausência desses elementos transgredientes só foi percebida como resposta das professoras da banca de qualificação e da leitora. A própria professora-pesquisadora não conseguia compreendêla, sequer percebê-la, sozinha. E sabemos que era a partir da transgrediência possível no encontro valorativo-estético do eu e do tu que a professora-pesquisadora poderia se constituir autora e personagem.
Nesse momento, o exercício de (fo)focar de maneira axiológica ou valorativa constituiu-se como um ponto importante, uma tomada de consciência de que realmente existia algo no texto de qualificação ou, ao menos no Segundo emaranhado de linhas, que fazia com que a professorapesquisadora, enquanto leitora de seu texto, se perdesse em meio a tantas reproduções que, para nós, talvez, nem fossem somente aquelas que via em sua prática com o uso do material apostilado, mas também as reproduções de tantos autores e teorias que haviam apoiado seu texto como sendo sua voz, como sendo, de alguma maneira, seu deus no auto-informe-confissão.
Continuando, então, com este estudo das fofocas, encontramos no texto de qualificação, no Terceiro emaranhado de linhas: a escrita narrativa, a seguinte passagem:
Pouco a pouco deixo de me narrar no/do/com o cotidiano escolar, me silencio. Deixo porque talvez eu não tenha mais o que dizer. Eu sei da importância do registro, sei do pensar-fazer que articula a narrativa e a amarra em dizeres outros de minha prática. Será que não quero que saibam da minha prática? Será que não preciso que digam sobre a minha prática? Será que não tenho que dizer sobre a minha prática? Os acontecimentos partilhados em minha sala de aula são meus e das crianças apenas, outros (...) já não me dão acabamentos (BAKHTIN, 2010b) porque não os solicito mais, deixo também de frequentar os grupos de estudo, me distancio (CÂNDIDO, 2020, p. 103, acervo da professora-pesquisadora).
O movimento realizado pela professora-pesquisadora é muito parecido com aquele que encontramos no Segundo emaranhado de linhas: as produções das crianças. Cândido (2020, p. 97, acervo da professora-pesquisadora) nos conta que, ao olhar para o inventário e perceber que no início da docência havia produzido muitas narrativas do cotidiano e que tais narrativas eram compartilhadas com um grupo de professoras a fim de que elas pudessem dar outros acabamentos para o que a professora-pesquisadora vivenciava em sala de aula, ela se pergunta os motivos que a levam a deixar de narrar mesmo já tendo vivenciado positivamente a potência da escrita do cotidiano escolar. Ao se inquietar na busca de respostas por não fazer mais registros narrativos do cotidiano escolar, a professora-pesquisadora insere elementos confessionais ao discurso, deixa de buscar a visão de outros sobre sua prática, deixa de guardar suas narrativas, ou mesmo de narrar, até certo ponto pode-se dizer que se culpa por essa ausência.
A partir desta inquietação teve início outra discussão no texto de qualificação (CÂNDIDO, 2020, p. 104, acervo da professora-pesquisadora) sobre o uso obrigatório dos materiais apostilados, mas, dessa vez, antecedida por extensa conversa sobre a formação de professoras no Brasil entrelaçada com elementos sobre a formação da própria professora-pesquisadora, porque trazer esse movimento histórico era necessário a fim de justificar e contextualizar a escrita de narrativas como forma de registro docente para, depois, justificar os motivos que a levaram a não mais narrar o cotidiano com as crianças.
Percebemos que a tematização da história da formação de professoras está no texto de qualificação, porém não no texto final. No movimento que estamos seguindo, podemos inferir que, seja no exame de qualificação, seja no percurso de escrita das fofocas, houve uma problematização do tema.
No Terceiro emaranhado de linhas, escrito para a qualificação, Cândido (2020) repete o processo de (fo)focar como havia feito com o Segundo emaranhado de linhas, porém além de usar um recurso mais valorativo, nos chamou a atenção aqui a escrita de uma fofoca “poética/literária” (CÂNDIDO, 2020, p. 68), diferente da fofoca crítica que discutimos anteriormente, que pode nos ajudar a pensar um pouco além: “Ela encontrou os números, a quantidade revelou materialmente o que ela já tinha em pensamento. Quer vasculhar os motivos, mas quer pensar no que fazer com os motivos? No para que os motivos?” (CÂNDIDO, 2020, p. 225).
Aqui é importante dizer que escrita das fofocas consideradas pela professora-pesquisadora como mais “literárias” (CÂNDIDO, 2020, p. 68) parte da compreensão de um tipo de escrita que usava anteriormente à pesquisa (CÂNDIDO, 2020, p. 34) e que tinha como característica colocarse em uma narrativa em terceira pessoa, por isso é possível apreender na citação acima que “ela” encontrou os números, por exemplo. Diferentemente das fofocas consideradas pela professorapesquisadora como mais “críticas” em que o posicionamento na escrita ocorreu em primeira pessoa.
Percebemos que a escrita das fofocas tanto críticas quanto literárias/poéticas contribuíram para que a professora-pesquisadora se reposicionasse naquilo e diante daquilo que havia escrito. A ideia de trazer para a fofoca apenas os elementos que saltavam à vista possibilitou que a discussão da formação de professoras que era tratada como principal temática da professora-pesquisadora neste emaranhado de linhas, desta vez ficasse de fora, que não fosse o mais importante ali. Colocar-se em uma posição axiológica de leitora que diz sobre o que leu, de outra para si (BAKHTIN, 2003), foi possibilitando para a autora o entendimento de que a quantidade de narrativas do cotidiano escolar talvez não fosse o que mais importava e ainda, que talvez não fosse o único caminho possível para a produção de conhecimentos e sentidos da prática a partir do inventário de guardados.
Diante, então, dessas e de outras fofocas, percebemos que a professora-pesquisadora foi respondendo às antipalavras (VOLÓCHINOV, 2011) 10 oferecidas pelas professoras da banca de qualificação e da leitora (CÂNDIDO, 2020, p. 67) e produzindo perguntas. Tanto no texto da qualificação quanto no texto final a qualidade da escrita é irrepreensível, inevitável elogiar. Muito deveria incomodar saber que tinha o texto muito bem escrito, porém algo nele faltava. Afinal, se o inventário de guardados (PRADO; MORAIS, 2011; PRADO; FRAUENDORF; CHAUTZ, 2018) revelava serem poucas as produções das crianças, não deixavam de contar da prática da professorapesquisadora. Essas perguntas foram feitas a ela e por ela quando tomou para si uma posição axiológica com o exercício de (fo)focar.
Bakhtin (2003) afirma que “em todas as formas estéticas, a força organizadora é a categoria axiológica de outro, é a relação com o outro enriquecida pelo excedente axiológico da visão para o acabamento transgrediente” (p. 175). Assim, temos entendido o exercício de (fo)focar como uma maneira de nos colocarmos em outra perspectiva estética e outra posição axiológica e produzirmos “saberes transgredientes” (SERODIO; SOUZA, 2018) àquilo que narramos e para esse entendimento a pesquisa de Autor 1 tem contribuído muito.
Partindo desta tomada de consciência possível com o (fo)focar e as fofocas, pode-se imaginar que uma professora-pesquisadora se coloque a repensar sua pergunta de pesquisa, porque se ressentia pela falta de guardados inventariados para responder às perguntas anteriores. Mas cada sujeito terá suas razões-emoções. Ao ir narrando e pesquisando, Cândido (2020, p. 68) passou a se orientar pela própria formação de perguntas de modo a assumir sua posição axiológica na narrativa: “quais perguntas surgem ao inventariar os guardados e, como, na busca por respondê-las, são construídos conhecimentos da prática profissional?”.
Assim, apresentaremos agora dois recortes do texto final em que nos parece evidente a mudança estética na escrita decorrente da assunção axiológica. A professora-pesquisadora escreveu no Segundo emaranhado de linhas: as produções das crianças:
Ao buscar em meu inventário as produções das crianças e narrar os sentidos construídos junto com elas, defendo agora que tenho, sim, (guar)dados inventariados potentes que revelam que a minha prática, mesmo que fortemente marcada pelo uso do material apostilado, também possibilita produções em diálogo com os conhecimentos e com as autorias. São as produções das meninas e dos meninos quando: leem seus textos livres que foram escritos mobilizando o que aprenderam para poderem se expressar o que quiseram contar para a turma; quando jogam o “Nunca 10” e registram o que aprenderam depois da partida; elaboram um livro de memórias; escrevem cartas em que me mostram mais delas; elaboram oralmente argumentos para se defenderem nas assembleias. Essas e tantas outras são produções que vão além do previsto nas páginas das apostilas (CÂNDIDO, 2020, p. 118, destaques nossos).
E, a partir deste entendimento, a professora-pesquisadora passou a narrar diversas práticas (CÂNDIDO, 2020, p. 90) que vinha adotando em sua sala de aula que reforçavam a ideia de autonomia e de produção de conhecimentos de autoria dos estudantes, contrapondo ao que, no texto de qualificação, acreditava que não fazia uso e que eram conhecimentos da profissão, de certa maneira, tratados como deus com quem não se discute no auto-informe-confissão.
No Terceiro emaranhado de linhas, colocou-se a aprender com as narrativas do cotidiano do início da docência:
No início da docência eu narrava e isso me ajudava a enxergar de outra forma os acontecimentos vividos e as relações com as minhas alunas e com os meus alunos no interior da sala de aula, não posso negar que aprendi muito sobre a minha prática quando escrevia. Mas, e agora? Essas narrativas têm algo para me contar sobre o que eu faço? O que posso aprender com as narrativas que estão no meu inventário? Quais são os sentidos produzidos quando me coloco a metanarrar as narrativas que escrevi no começo da docência? (CÂNDIDO, 2020, p. 123).
E, com isso, de acordo com Cândido (2020, p. 151) foi possível relembrar acontecimentos vividos com as crianças e aprender que não é possível um álibi para o existir, pois estar no mundo compromete - se não somos indiferentes ao outro (BAKHTIN, 2010). Ao existir já estamos respondendo aos outros sempre com atos éticos, responsivos não indiferentes, cognitiva e esteticamente constituídos no momento do ato, tendo como premissa o outro, portanto do valor do outro no ato da empatia, da não indiferença ao valor do outro. Tal aprendizado colabora para que não seja possível justificar, como a professora-pesquisadora fazia anteriormente, sua não escrita de narrativas do cotidiano ou a falta de produções de autoria das crianças. Era, assim, impossível para ela se esconder dela mesma atrás de motivos de outros: o texto da qualificação soava a falta de seu posicionamento ativo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Reler o texto da qualificação à busca de compreensão do que dizia a leitora não era suficiente para a professora-pesquisadora tomar a posição axiológica necessária para ver-se na relação com o que era dito. Para a professora-pesquisadora encontrar uma posição axiológica produtiva esteticamente, parecia a ela, impossível: como ela narra no texto da dissertação.
Bakhtin (2017) afirma que, diferente da explicação, que pode se dar entre o sujeito e o objeto, entre duas consciências ocorre a compreensão, entre dois textos e dois contextos. Além disso, à compreensão pré-existe uma pergunta feita por um sujeito a outro sujeito, que enunciam concretamente o que pensam; de uma para a outra consciência, de um para outro contexto a pergunta pode ser respondida, havendo então produção de sentidos. Mesmo que concordem ou discordem, ao final das enunciações, um não repete as palavras do outro, com os mesmos sentidos:
A concordância-discordância ativa (quando não resolvida dogmaticamente de antemão) estimula e aprofunda a compreensão, torna a palavra do outro mais elástica e mais pessoal, não admite dissolução mútua e mescla. Separação precisa de duas consciências, da sua contraposição e da sua inter-relação (BAKHTIN, 2017, p. 36-37).
Em um determinado momento da investigação, a professora-pesquisadora só identificava e reconhecia, ou seja, só se inteirava das alterações gramaticais e estruturais do texto — o que Bakhtin (2017, p. 37) chama de “compreensão dos elementos repetíveis”.
A possibilidade de (fo)focar o texto ofereceu outra camada de compreensão para a professora-pesquisadora. Ao passar a ler com esse olhar zombeteiro sobre si nas fofocas, proporcionou a construção de novos entendimentos, e as falas das professoras da banca e da leitora foram compreendidas e constituíram-se “antipalavras”, às suas próprias enunciações.
Não coincidentemente, as tomadas de consciência produziram sentidos ao (fo)focar tanto literária quanto criticamente, a professora-pesquisadora colocava-se numa posição tal que podia referir-se a si como tu, de modo que a posição esteticamente alterada lhe proporcionou assumir sua posição axiológica em pé de igualdade, entre consciências isônomas, com os teóricos, e não sob as suas verdades.
Assim outra posição estético-ética gerou uma produção de conhecimento outra, possibilitando outra noção de ciência, “[...] dotada de suas próprias leis e critérios internos de exatidão” (AVERINTSIEV, 1972, p. 827 apud BAKHTIN, 2017, p. 65), na qual “[...] a interpretação dos sentidos não pode ser científica, mas é profundamente cognitiva. Pode servir de forma imediata à prática vinculada às coisas” (BAKHTIN, 2017, p. 65).
É importante deixar claro que não consideramos que a professora-pesquisadora escreveu seu texto de qualificação um auto-informe-confissão, mas somente incluiu elementos deste gênero discursivo no desenvolvimento de sua pesquisa, pela posição monológico-discursiva em relação aos teóricos e suas teorias. Como ela mesma diz:
Consegui entender com o movimento de (fo)focar que os meus (guar)dados com os quais produzi os conjuntos de perguntas não eram evidenciados em meus emaranhados de linhas. O diálogo que eu havia proposto fazer entre eles e as autoras e autores que vinha lendo e discutindo nas disciplinas do Mestrado Profissional não se mostrava da maneira como eu gostaria, porque eu estava focada nas ausências que encontrava em meu inventário. (...) Mas, depois das leituras da minha narrativa-bordado de pesquisa de qualificação realizadas por meus outros, da leitura incansável buscando rever parágrafos, esmiuçar as minúcias e do exercício de (fo)focar meu texto, tenho percebido que meus (guar)dados podem me ajudar a contar sobre o que faço com as crianças e o lugar que ocupo como professora, porque essa materialidade está no meu inventário, dando indícios (GINZBURG, 1991) da minha prática e, por isso, também tem muito a me dizer no diálogo com as autoras e os autores das disciplinas (CÂNDIDO, 2020, p. 69).
O que queremos defender é que entendemos potente a pesquisa narrativa da própria prática como construção de conhecimentos e saberes da prática, dando para as professoras-pesquisadoras a autoria nesta, desta e com esta produção.
Defender que elas sejam autoras implica em horizontalizarmos os olhares em relação aos valores dos sujeitos da pesquisa, entendendo que é importante que professoras digam de suas práticas, como propõe Nóvoa (2009; 2015), como possibilidade de formação docente, mas que o façam na relação com os outros. Quem melhor do que as professoras para dizer de suas próprias práticas? Quem melhor do que as professoras para nos contarem o que fazem e como fazem e, nesse dizer, construir conhecimentos, delas e com elas, de modo a movimentar fazeres e saberes?