CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A partir de princípios fundamentais, cujos valores dão sustentação basilar à Constituição Federal de 1988, foi instituído o Estado Democrático de Direito, comprometido em assegurar os “valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” (BRASIL, 1988, p. 1). Assim, o texto introdutório traduz os dispositivos constitucionais que regulam a própria organização do Estado brasileiro instituído (oriundo do poder constituinte originário) e o ordenamento social.
Os objetivos fundamentais são finalidades a serem alcançadas, dirigentes de atuação governamental que prescrevem ordem de proceder aos governos tanto na formulação quanto na implementação de políticas praticadas. Nesse sentido, atualmente, o Brasil tem em sua agenda a temática racial e o desafio de promover a igualdade. Com isso, há a obrigação do Estado de combater as desigualdades sociais, criar condições para aplacar os contrastes flagrantes dessa realidade: aplicando a igualdade substancial (ou material) de combate às desigualdades sociais com o mesmo tratamento àqueles tidos por iguais e a aplicação de normas diferenciadas aos desiguais para que possam se igualar aos demais.
Na persecução desse propósito, as políticas públicas de discriminação positiva visam a oferecer condições materiais aos grupos historicamente discriminados, a fim de que tenham acesso a oportunidades, junto com os outros membros da sociedade. São, pois, as políticas sociais meios indispensáveis para promover a igualdade de oportunidades — “[...] noção justificadora de diversos experimentos constitucionais pautados na necessidade de se extinguir ou de pelo menos mitigar o peso das desigualdades econômicas e sociais e, consequentemente, de promover a justiça social” (GOMES, 2001, p. 131).
Ainda que a norma positivada estabeleça a igualdade entre todos e manifeste repúdio a todas as formas e manifestações discriminatórias, a eficácia jurídica por si só não dá conta dos fatos sociais, ou seja, não coíbe as práticas racistas. Pautada no princípio da dignidade da pessoa humana — um bem irrenunciável e inalienável – essa isonomia formal compreende tão somente uma igualdade de todos perante o ordenamento jurídico vigente. Assim, esse caráter formal abarca a ideia de que, durante a aplicação da lei, deva ser considerado como impedimento o favorecimento exclusivo a uma parcela da sociedade.
A conjuntura sociopolítica pauta pela homogeneidade da população e ignora a diversidade étnico-cultural, adotando políticas sociais universalistas enquanto ainda persiste no imaginário social a concepção de país racializado. Dessa maneira, tem-se um silenciamento sobre a supremacia racial de um dado grupo em detrimento da desqualificação dos demais grupos excluídos ao longo da história. Perpetuam-se as práticas discursivas de preconceito racial e as narrativas históricas estigmatizantes ainda se conservam no imaginário coletivo, sendo concretizadas em manifestações explícitas e diretas. Longe de tais manifestações se limitarem ao preconceito de condição social dos sujeitos ou à origem de lugar como querem alguns, fervilha o preconceito racial estampado em mensagens com ofensas racistas postadas nas redes sociais, em noticiários sobre xingamentos racistas a professores de instituições de ensino, em pichações de banheiros de universidades, em denúncias sobre atletas mirins vítimas de insultos racistas em agremiações esportivas, e até sujeitos ilustres e economicamente bem-sucedidos são alvo de preconceito em razão da cor de sua pele. Esse pequeno quadro retrata o comportamento de um povo que nega o preconceito racial.
Diante dessa realidade contrastante de pseudodemocracia racial e posturas preconceituosas, o Movimento Negro sempre atuou contra o sistema excludente, empreendendo várias ações em diferentes espaços da sociedade brasileira, arrostando às desigualdades e injustiças sociais. Como fruto desse protagonismo histórico, marcado pela militância constante em lutas e resistências, a legislação brasileira evoluiu com a criação da Lei nº 10.639/2003.
A promulgação dessa lei completa 19 anos, porém a sociedade mostra-se ainda envolta em disparidades sociais: são correntes as práticas discriminatórias, o índice de baixa escolaridade dos negros é considerável; o desemprego é marcante na população negra; a maioria da população que se concentra nas periferias é de pessoas negras, professores negros em instituições de ensino são alvo de manifestações de preconceito racial; alunos negros que ingressam na universidade deparamse muitas vezes com um ambiente hostil e têm sido alvo de discriminação racial e, por fim, tem-se uma grande taxa de homicídio de sujeitos negros (IPEA, 2019).
A ocorrência de conflitos étnico-raciais também faz parte de quadro degradante, são muitas as manifestações explícitas e diretas de preconceito racial que repercutem no dia a dia. Quanto às práticas pedagógicas, neste pós-Lei 10.639/2003, há comprometimento grave para a implementação do ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira. Os currículos escolares persistem distantes das orientações das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (denominadas a partir daqui Diretrizes Étnico-raciais). Além de resistência para a introdução temática racial, condizente com a determinação da Lei nº 10.639/2003, a maioria dos professores não foram qualificados na formação inicial, nem são capacitados porque inexistem metas concebidas pelo Conselho de Educação do Estado ou observação em algum planejamento pedagógico escolar referente à formação continuada dos professores.
Com o intuito de apresentar um retrato das condições sobre a reeducação de relações étnico-raciais na escola pública, e retomando essa proposta do Parecer CNE/CP nº 3/2004, este artigo discorre a respeito das relações étnico-raciais positivas no espaço da escola pública, a partir de uma pesquisa desenvolvida em duas escolas da rede estadual do Rio Grande do Norte, na cidade de Mossoró/RN.
RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS, DEMOCRACIA E O ADVENTO DA LEI Nº 10.639/2003
As relações raciais pautadas em superioridade e inferiorização dos povos dominados remetem-se à transplantação daquele modelo colonialista pautado na subordinação e nas práticas de sujeição. Logo, a história oficial regulou-se pela invisibilidade dos povos marginalizados, negando-lhes a coparticipação nos desígnios da nação brasileira.
O estigma da inferioridade imputado aos negros arraigou-se, desde então, sobrepondo-se ao protagonismo desses mesmos excluídos, que muito contribuíram para a formação da nação brasileira. Junto à percepção negativa da África dilapidada, o desprezo sociocultural sobre os povos africanos consistiu numa eficaz estratégia empregada pelo dominador e ainda hoje subjaz no imaginário coletivo. Atualmente, a população negra (e discriminada) carrega esta mácula, pois cotidianamente é vítima de um racismo velado e sofre humilhações e/ou constrangimentos em razão da cor de sua pele.
Todavia, os negros mantêm o enfrentamento aos obstáculos para o exercício pleno da cidadania, lutam contra as manifestações de racismo (encobertas pela crença em convivência harmoniosa entre os diferentes grupos étnico-raciais), exercendo um combate contra os estereótipos e a desqualificação do sujeito negro. Eles repudiam a ideia da vantagem simbólica da brancura — referência aos anseios dos não-brancos por ascensão social que, ao mesmo tempo, consiste numa estratégia de reforçar a suposta superioridade da classe detentora de privilégios no país.
As duas primeiras décadas deste século trouxeram mudanças significativas e resultados em proveito da população negra. Decorridos os anos de resistências, o fruto de pressões sociais e proposições do movimento negro resultaram em algumas medidas que foram adotadas na consecução de uma autêntica democracia racial. É importante ressaltar o caráter polissêmico, conflitivo e controverso das disputas discursivas em torno da noção de democracia racial. Na década de 1930, o termo “democracia racial” começa a ser incorporado pelo discurso político no Brasil. Nas duas décadas subsequentes, discussões no meio político e entre a intelectualidade passam a referir-se ao termo. Autores como Arthur Ramos e Gilberto Freyre, no campo das ciências sociais, caracterizam “[...] o sistema de relações raciais no Brasil” a partir da ideia de democracia racial (GUIMARÃES, 2019, p. 17). De acordo com a noção de democracia racial relacionada ao Brasil, a sociedade brasileira poderia oferecer uma solução para o problema do racismo. Por outro viés, Roger Bastide (1955), Florestan Fernandes (2008; 1972), Lélia Gonzalez (2020), Carlos Hasenbalg (2005), Sueli Carneiro (2011), dentre outros autores e autoras, evidenciaram a existência do racismo nas estruturas da sociedade brasileira, desvelando o caráter ideológico da noção de democracia racial.
As ações de combate à discriminação racial negra, além de reverterem-se em uma reeducação de relações étnico-raciais com o advento da Lei nº 10.639/2003, levaram à criação da Lei nº 12.288 de 2010 (Estatuto da Igualdade Racial) — o instrumento especial de discriminação positiva legal, norteado por documentos internacionais de proteção às pessoas que sofrem humilhação ou constrangimento em razão de sua cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Quando o Brasil ratificou a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de discriminação Racial (CIEFDR), em 27 de março de 1968, junto com os demais signatários, o país comprometeu-se com a adoção de medidas necessárias e especiais de combate e eliminação da discriminação racial; ao se tornar Estado-parte da CIEFDR, o Estado assumiu a responsabilidade no plano internacional de repúdio a qualquer forma de distinção, exclusão, restrição ou preferência. Entretanto, o tratamento desigual historicamente imposto aos diferentes grupos sociais e étnico-raciais permaneceu encoberto por suposta convivência harmoniosa.
Na contracorrente dessa negação da pluralidade étnico-racial e de desrespeito aos direitos sociais fundamentais dos negros, a Lei nº 10.639/2003 apresenta-se como a proposta pedagógica antirracista de superação da desigualdade racial e pela concretização de uma democracia racial autêntica. A partir da problematização do racismo dissimulado, das práticas cotidianas de discriminação contra os negros, pode ser empreendida uma reeducação de relações étnico-raciais, estimulada a consciência de pertencimento racial e de respeito às diferenças. Um novo olhar sobre a realidade das relações étnico-raciais, de respeito à história e à cultura dos grupos sociais excluídos mostrar-se-á indispensável para a compreensão da diversidade e da diferença. Deste modo, o enfrentamento às questões do preconceito racial e da exclusão social exige uma reeducação de valores que concorrerão para a prática de comportamentos e consequentemente para a igualdade racial, com a efetiva implementação da lei antes referida.
AS DIRETRIZES CURRICULARES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E PARA O ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA E AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS POSITIVAS
Além de atender à demanda da população negra por políticas de reparações em razão das desigualdades históricas na sociedade brasileira, a Lei nº 10.639/2003 representa um avanço na trajetória de lutas contra o racismo, bem como um marco importante na democratização do ensino no país.
O olhar afirmativo sobre a diversidade étnico-racial tende a uma postura de reconhecimento do patrimônio sociocultural da população negra, pois os saberes particulares dos povos africanos contribuíram sensivelmente na construção da nação brasileira. Essa visão positiva também representa uma conduta tendente à superação de uma mentalidade desqualificante dos negros, da África que se traduz em uma imagem depreciativa, de povos incultos e primitivos (estratégia subjugante eurocêntrica).
Ainda que a história da África tenha sido negada ou silenciada, a população negra não abandonou a sua ancestralidade — elemento indissociável da identidade de todos os afrodescendentes brasileiros. Diante da imposição de padrões culturais e religiosos do colonizador, ainda se conservaram vivos os valores dos povos africanos, sua cosmovisão e cosmogonia, elementos por meio dos quais advieram não só estratégias, mas também resistências encetadas contra a ação do opressor.
Restituir a autoafirmação da população negra, marcada pelo estigma da inferioridade imputado aos seus ancestrais, é uma maneira de contornar as injustiças e a marginalização histórica para com os discriminados. A invisibilidade das memórias sobre a coparticipação dos negros na história nacional, como se os desígnios da sociedade tivessem sido traçados unicamente pela vontade da classe dirigente, implica o desprezo do patrimônio da cultura nacional, porque ali se encontra uma grande riqueza material e imaterial de matriz africana.
Para a reeducação das relações étnico-raciais, esses fatores não podem ser negligenciados, haja vista que o contexto de outrora revela pormenores que se perpetuam até hoje, justificando as desigualdades étnico-raciais hodiernas. Ignorando-se a questão racial em benefício da homogeneidade da população, a atual conjuntura sociopolítica utiliza-se do silenciamento sobre a pluralidade étnico-racial em defesa de uma pseudocordialidade entre os diferentes grupos sociais, em contraste com as diversas pesquisas que revelam as disparidades e as manifestações discriminatórias que ocorrem nas interações sociais do dia a dia.
Para aplacar esse cenário de discrepâncias sociais e desigualdades étnico-raciais, urge a implementação da Lei nº 10.639/2003, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira na Educação Básica, um dispositivo especial criado após uma tramitação demorada porque contou com estudos, discussões acirradas (além de muitas divergências) e altercações entre políticos e intelectuais.
Conforme a Resolução CNE/CP nº 1/2004, em seu artigo 2º, § 3º, competem aos Conselhos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, observado o regime de colaboração e de autonomia de entes federativos e seus respectivos sistemas, desenvolver as Diretrizes Étnicoraciais. E, segundo o Parecer CNE/CP nº 3/2004, que deu fundamentação a essas diretrizes, além de aclimatá-las, aos referidos conselhos cabe incentivar “[...] medidas urgentes para formação de professores” e incentivar “[...] o desenvolvimento de pesquisas bem como envolvimento comunitário” (BRASIL, 2005, p. 26).
A edição da Lei nº 10.639/2003 constitui-se em um instrumento regulador que pode promover novas posturas educacionais e assegurar o direito à igualdade de condições de cidadania aos grupos étnico-raciais historicamente excluídos, garantindo-lhes a valorização de suas histórias e culturas. Convém frisar que, além de implicar em justiça à igualdade de direitos entre todos os cidadãos, essa lei especial visa à reeducação de pessoas negras e não negras na consecução de relações étnico-raciais positivas.
Ao valorizar a diversidade e as diferenças, a reformulação do ensino contempla a possibilidade de uma legítima democracia racial, à concretização de currículos escolares condizentes com a realidade da pluralidade cultural existente, ou seja, a obrigatoriedade do ensino de História da África e da Cultura Afro-brasileira pôs em relevo as diversidades culturais, destacou o respeito às diferenças e o reconhecimento da contribuição dos diferentes povos na construção da nação brasileira.
No ano seguinte, após a sanção da Lei nº 10.639/2003 pelo Presidente da República, o Parecer CNE/CP nº 03/2004 (homologado pelo Ministro da Educação em 19 de maio de 2004) regulamentou a alteração da LDB e apontou a necessidade de diretrizes que orientassem o ensino da temática História e Cultura Afro-brasileira. Tendo fundamentação nas questões e informações acerca de política curricular tratada no Parecer CNE/CP nº 03/2004, a Resolução CNE/CP nº 1/2004 instituiu no dia 17 de junho as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana “[...] a serem observadas pelas Instituições de ensino, que atuam nos níveis e modalidades da Educação Brasileira e, em especial, por Instituições que desenvolvam programas de formação inicial e continuada de professores” (BRASIL, 2005, p. 31).
As referidas diretrizes, além de destacarem a indispensável formação inicial e continuada de professores em seu artigo 1º, também dispõem no § 1º sobre a necessária inclusão da “Educação das Relações Étnico-Raciais”, “[...] bem como o tratamento de questões e temáticas que dizem respeito aos afrodescendentes” (BRASIL, 2005, p. 31) nos cursos ministrados pelas Instituições de Ensino Superior.
A educação prescrita nas Diretrizes Étnico-raciais objetiva superar a homogeneização do currículo monocultural em defesa de uma pedagogia socioeducativa de igualdade racial, haja vista a pluralidade cultural e a constituição pluriétnica brasileiras. Para que essa educação antirracista efetivamente concorra para a formação de “cidadãos atuantes e conscientes”, na busca da igualdade e advenha a autêntica democracia racial, faz-se indispensável também a formação de professores, a fim de que estes possam desenvolver habilidades e competências necessárias para o processo de ensino da temática História e Cultura Afro-brasileira.
Assim, a escola (e a sociedade geral) não pode desconsiderar a diversidade étnico-racial, as marcantes desigualdades sociais, nem as práticas racistas dissimuladas. Ações de superação da forjada democracia racial se fazem necessárias e urgentes no interesse da promoção da igualdade e do respeito às diferenças. É indispensável a revisão do currículo escolar, a adoção de novas posturas, de práticas pedagógicas que levem à concretização de relações étnico-raciais positivas, ou seja, o compromisso de uma pedagogia envolvida na persecução da igualdade racial, de respeito às diferenças e à diversidade étnico-cultural, cujo empenho dos envolvidos visa a mudanças de posturas de reconhecimento e valorização das pessoas vítimas de qualquer atitude vexatória, obstáculos, estigmas ou manifestações discriminatórias de qualquer natureza em virtude de sua origem ou identidade étnico-racial. Não obstante sejam muitos os empecilhos à implementação da própria Lei nº 10.639/2003, tais como os engessados currículos de visão eurocêntrica, as incipientes discussões acerca da temática História e Cultura Afro-Brasileira, o escasso material didático nas escolas sobre a temática e o tempo insuficiente e não planejado para abordagem da temática.
Utilizando-se da sala de aula — espaço democrático de acesso a diferentes saberes e de produção de conhecimentos – os professores precisam ser instigados à problematização da mentalidade racista existente, levados à discussão sobre pertencimento racial, estigmas e estereotipias tão arraigados no imaginário social que afetam mormente a população negra. Ademais, os fins de promoção da educação das relações étnico-raciais positivas não têm por objetivo “[...] mudar um foco etnocêntrico marcadamente de raiz europeia por um africano” (BRASIL, 2005, p. 17), senão educar cidadãos como coparticipantes de uma nação plural para que tomem uma posição explícita de repúdio ao racismo e às manifestações discriminatórias.
A elaboração do currículo, sobretudo da escola pública, está relacionada às situações de exclusão que afetam diretamente a população negra, porquanto na rede pública se concentrem as principais vítimas do preconceito racial. As discussões acerca das propostas curriculares necessitam envolver interesses da coletividade, pois a construção de relações étnico-raciais sadias implica em aprendizagens compartilhadas entre negros e não-negros.
Uma autêntica democracia social deve realmente acatar os direitos fundamentais, e educação deve estar pautada no respeito à igualdade de direitos, de iguais condições a todos os cidadãos. Essa possibilidade de aprofundamento de conhecimentos no processo de aprendizagem dos alunos sobre Educação das Relações Étnico-raciais e o estudo de História e Cultura Afrobrasileira, e História e Cultura Africana deve ser atinente aos preceitos contidos no Parecer CNE/CP nº 3/2004 e, por sua vez, condizente com o que for estabelecido pelas instituições de ensino e seus professores, conforme estabelecido nas Diretrizes Étnico-raciais:
Art. 4° Os sistemas e os estabelecimentos de ensino poderão estabelecer canais de comunicação com grupos do Movimento Negro, grupos culturais negros, instituições formadoras de professores, núcleos de estudos e pesquisas, como os Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, com a finalidade de buscar subsídios e trocar experiências para planos institucionais, planos pedagógicos e projetos de ensino (BRASIL, 2005, p. 32).
O diálogo entre escola e organizações sociais amplia os horizontes de combate às desigualdades, de lutas contra a exclusão social. Ainda que os sistemas de ensino no Brasil tracem suas metas e diretrizes nas políticas educacionais universalistas e as escolas concebam seus currículos norteadas pela padronização e unificação dos processos de ensino e aprendizagem, os professores têm autonomia para desenvolver currículos que mantenha harmonia com as Diretrizes Étnico-raciais.
As políticas educacionais de valorização da história e cultura negras demandam ações eficazes que possam reverter as desigualdades e oferecer as mesmas condições de ascensão social aos negros. Logo, conscientizar os alunos sobre as reais condições da sociedade excludente levaos ao autoconhecimento e os possibilita se verem como coparticipante da sociedade em que estão inseridos.
PERCEPÇÕES DE PROFESSORES SOBRE A REEDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS POSITIVAS NA ESCOLA PÚBLICA
Embora sejam consideráveis os estudos acerca da educação das relações étnico-raciais1, a implementação da Lei nº 10.639/2003 vai de encontro com algumas resistências e limitações correntes nas escolas. Todavia, a visibilidade da vasta produção acadêmica, além de refletir a realidade da prática pedagógica, demonstra a necessidade premente de capacitação de professores para que possam trabalhar a temática História e Cultura Brasileira na sala de aula, pois é algo que faz parte da riqueza étnico-racial e multicultural do País.
É incontestável que o volume de produções publicadas sobre essa temática, no campo de formação de docentes, tenha ganhado visibilidade. Ademais, não se há de olvidar o quanto muitos professores, sobretudo na escola pública, sentem-se instigados a adotar uma pedagogia antirracista na sua prática cotidiana.
A escola pública é considerada o espaço propício para se obter um panorama das reais condições onde se dá a implementação da Lei nº 10.639/2003, pois é onde se encontra a grande parcela de professores de todo o país. Esse lugar é o ambiente de produção de conhecimentos onde existem os mais diversos obstáculos para a prática pedagógica e a ocorrência de conflitos raciais no dia a dia. Assim, para inteirar-se desse contexto de ensino coletivo, este trabalho toma por referência a pesquisa desenvolvida junto às duas escolas da rede pública estadual, no município de Mossoró-RN.
Denominadas Unidade A e Unidade B, as escolas foram escolhidas em uma região afastada do centro de Mossoró, em zona urbana, as quais contam com uma clientela proveniente de diferentes bairros e de algumas comunidades da zona rural. Ambas as escolas têm em seu quadro vários alunos carentes, de famílias de baixa renda, com realidades de violência e criminalidade. Enquanto a Unidade B trabalha com Ensino Médio de tempo integral, A Unidade A atua no Ensino Médio, Ensino Fundamental II.
A partir de contatos feitos pelo autor do texto, tão logo a direção das escolas tomou ciência da pesquisa e de seus objetivos, deu encaminhamento às equipes pedagógicas e, em seguida, deuse o contato com os professores. Atinente à proposta de investigação, o convite foi estendido a todos os professores para fornecer dados através de entrevistas individuais, as quais foram realizadas em setembro de 2019. A pesquisa teve a colaboração de 9 (nove) professores que, após tomarem conhecimento do teor da pesquisa, agendaram as entrevistas durante intervalos das aulas em algum espaço da escola.
Os professores foram assim codificados, de acordo com a disciplina que lecionam.
ESCOLA | Disciplinas/Professores | ||||
---|---|---|---|---|---|
ARTES | ENSINO RELIGIOSO | HISTÓRIA | ED. FÍSICA | LITERATURA | |
Unidade A | A1 | R1 | H1 | EF1 | L1 |
Unidade B | A2 | R2 | H2 | EF2 | — |
Fonte: Elaboração própria, 2019.
O grupo de entrevistados era composto por 8 docentes do sexo masculino e 1 do sexo feminino. A1 contava com 1 ano de exercício na rede estadual de ensino (em duas escolas), enquanto A2 já se encontrava há 4 anos em sua escola de tempo integral.
Quanto a R1, tinha 12 anos de trabalho junto a sua unidade de ensino (e 7 anos em escola municipal). R2 já completava 8 de trabalhos na mesma escola da rede estadual. H1 fazia 4 anos de trabalho junto a sua unidade de tempo integral. H2 estava prestes a completar 18 na rede estadual. Além lecionar História, ambos os professores lecionavam também Filosofia e Sociologia. Por sua vez, a única professora do grupo já tinha 18 anos de sala de aula na rede estadual. Diferentes dos colegas, que apenas eram graduados, ela havia concluído um mestrado profissional 2 anos antes.
A partir da análise de dados obtidos nas entrevistas semiestruturadas, juntos aos professores que se mostraram interessados na abordagem do tema e sentiram-se à vontade para expor suas experiências, suas dificuldades e sua visão acerca do ensino da educação das relações étnico-raciais. Tendo-se por objetivo analisar a implementação do Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana para a educação das relações étnico-raciais positivas na Escola Pública, a investigação obteve dos entrevistados depoimentos que revelaram a percepção de educadores empenhados na reeducação das relações de relações étnico-raciais positivas e tiveram como resultado um quadro real da prática pedagógica na rede pública de ensino.
Entre os principais achados da pesquisa, além de um quadro preocupante de dificuldades para a implementação da Lei nº 10.639/2003 na escola pública, a percepção dos entrevistados sobre a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira no currículo oficial da Rede de Ensino apresenta-se como necessidade para uma reeducação das relações étnico-raciais. Os professores concebem o novo aparato normativo como uma medida de melhoria das discussões dessas relações étnico-raciais na sala de aula. Ainda que um ou outro colega tenha manifestado descrença acerca da efetividade da norma especial, porque não acredita que o dispositivo por si só não altera a prática costumeira de discriminação no ambiente escolar, todos concordam que o advento da referida lei representa um progresso nas lutas dos movimentos sociais. Ademais, a escola tem enfrentado muitas dificuldades para adequar seu currículo à realidade dos alunos e da diversidade étnico-racial, pois ainda prevalecem traços de um currículo atrelado à abordagem monocultural em proveito da identidade nacional homogeneizante.
O resgate da memória coletiva e da história da comunidade negra não interessa apenas aos alunos de ascendência negra. Interessa também aos alunos de outras ascendências étnicas, principalmente branca, pois ao receber uma educação envenenada pelos preconceitos, eles também tiveram suas estruturas psíquicas afetadas. Além disso, essa memória não pertence somente aos negros. Ela pertence a todos, tendo em vista que a cultura da qual nos alimentamos quotidianamente é fruto de todos os segmentos étnicos que, apesar das condições desiguais nas quais se desenvolvem, contribuíram cada um de seu modo na formação da riqueza econômica e social e da identidade nacional.
São muitos os entraves para o desenvolvimento de uma educação com qualidade, que atenda deveras às necessidades dos alunos-aprendizes de cidadão, segundo a diversidade existente. Contudo, o olhar dos professores para a Lei nº 10.639/2003 é de medida positiva para aplacar o racismo dissimulado. Para a prática pedagógica, o dispositivo legal configura-se como baliza para a superação dos estigmas e dos preconceitos sobre os grupos historicamente excluídos. “Essa lei para mim significa um grande passo na busca de melhoria das discussões dessas relações étnico-raciais dentro das escolas” (H2). A obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Africana e Afrobrasileira, além de realçar aos aspectos multiculturais e pluriétnicos na formação da sociedade brasileira, promove o enfrentamento à educação excludente, levando a mudanças de comportamentos para relações étnico-raciais positivas.
A Lei nº 10.639/2003 é uma ação afirmativa imperativa que não apenas prescreve um dever, mas também impõe a necessidade do cumprimento da obrigação porque ela trata de interesse de toda a coletividade brasileira. A implementação de tal lei nas escolas brasileiras urge de políticas públicas educacionais que se coadunem com as diferenças e atentem para as realidades regionais, cujas adequações se deem em proveito do processo ensino-aprendizagem.
Entre tantos obstáculos, por vezes, administradores públicos agem com descaso, mantêm deficiente infraestrutura para desenvolver uma educação com vistas a transformar vidas e proporcionar avanços sociais. Entre tantos outros problemas que levam ao sucateamento do ensino público, está a negligência com a capacitação dos docentes, sobretudo a grande massa de malpagos, trabalhando sob condições insatisfatórias e com escassos recursos didático-pedagógicos.
Malgrado os professores entrevistados exteriorizarem os impasses que trazem prejuízos para a prática pedagógica, eles manifestaram unanimidade sobre a pertinência da reeducação de relações étnico-raciais na sala de aula. Ressaltaram que não se deve ignorar o processo histórico e sociocultural do país, pois o preconceito racial na sociedade brasileira é um fenômeno social de longa data: uma realidade constatável, disfarçada e encoberta por atitudes dissimuladas e não problematizadas na sala de aula. Logo, os entrevistados reconhecem a necessidade de uma reeducação que vise a relações étnico-raciais positivas e superação do racismo brasileiro, tendo em vista a constituição multicultural e pluriétnica da sociedade brasileira que não pode ser ignorada.
Nas falas de uma das professoras entrevistadas, a deficiência do suporte ao ensino do Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira apresenta-se como principal problema para a prática pedagógica. Segundo ela, os docentes têm dificuldade de trabalhar a temática porque não dispõem de material didático acessível:
Na maioria das escolas não tem material para trabalhar com isso e quando tem é um material extra, é um livro complementar. Essa discussão aparece dentro do livro didático, mas ainda também muito pontual, é um texto em algum cantinho lá de Língua Portuguesa, é um breve comentário lá no livro História e pronto. Cabe ao professor sistematizar essa discussão (R2).
O acervo da maioria das escolas é precário e não há material suficiente sobre a temática. Quanto ao livro didático trabalhado nas escolas, em sua maioria, é-lhe reservado um espaço discreto na abordagem da temática. Se não mais apela para o desapreço e estigmatização do continente africano, a abordagem não é aprofundada. Encontram-se ainda resquícios da perspectiva do dominador europeu: “Cada professor tem que buscar o material, tem que estudar, tem que trazer, é ele que pondera quanto do conteúdo anual vai ser dedicado à História da África. Nos livros didáticos é pouquíssimo” (H2).
Senão atrelado a atividades anuais (como gincanas), o ensino para a educação das relações étnico-raciais seria limitado às ocorrências da temática tratada no livro. É comum que as discussões sobre o tema aconteçam se fizerem parte dos conteúdos ministrados, tendo o livro didático como referência. Segundo H1 e H2, além do número de aulas insuficiente, não há tempo para dar conta das muitas tarefas para ministrar as aulas e eles possam recorrer a materiais complementares, fazer pesquisas na internet, buscar outros conteúdos em revistas na biblioteca da escola. Logo, “dentro de sala de aula a gente trabalha com uma perspectiva de algumas atividades práticas juntamente com o livro didático que tende a proporcionar” (A2). Menções a aspectos socioculturais do povo negro ou ao África dependem de atividades desenvolvidas no espaço escolar por iniciativa do educador ou em datas comemorativas.
Quanto ao desenvolvimento do Ensino de História e Cultura Africana e dos Africanos e o Ensino de História e Cultura Afro-brasileiras professores, H1 e H2 afirmaram que ambos os ensinos se encontram no mesmo patamar, sujeitam-se às mesmas condições e às mesmas circunstâncias, pois subsiste a precária abordagem dos temas é uma realidade constatável. Enfim, todos os entrevistados mostraram-se frustrados diante da falta de uma prática pedagógica sistemática que trate das temáticas em questão, conforme orientam as Diretrizes Étnico-raciais.
Segundo a percepção dos professores, o currículo escolar, ao fim e ao cabo, leva a perpetuação da discriminação racial, tendo em vista a homogeneidade da população em detrimento da educação das relações étnico-raciais positivas. Os docentes acreditam que as atitudes dos alunos (embalados pela apregoada convivência cordial) e orientados pela visão eurocêntrica legitimam a prática de racismo, pois ninguém assume a condição de racista. Daí a desigualdades marcantes: os piores dados sociais em diferentes esferas (economia, educação, trabalho, saúde, criminalidade) devotados à população negra brasileira. Em diversos espaços da sociedade, são percebidas as discrepâncias, os tratamentos diferenciados, determinados pelas condições econômicas e pela questão étnico-racial.
Esse racismo pernicioso também se reproduz no ambiente da escola como negação à identidade negra e prejuízo ao seu pertencimento racial. A melhor forma de se promover mudanças nesse quadro negativo atribuído, conforme os professores, está no investimento da educação antirracista. Atinente ao Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira, as políticas públicas educacionais que atendam à diversidade dos grupos étnico-raciais precisam ser dotadas na persecução de relações étnico-raciais positivas.
Tais políticas, instrumentos de combate às manifestações discriminatórias ou qualquer forma institucional de racismo, devem contar com ações afirmativas como combate às desigualdades étnico-raciais. As políticas de ações afirmativas podem interferir nas condições de desvantagens dos grupos historicamente excluídos e é uma forma de contornar as injustiças e a marginalização histórica para com os discriminados. Dar-se-á, pois, a inclusão e, progressivamente, a verdadeira igualdade de condições entre todos os cidadãos. Sem esses mecanismos de compensação, os grupos socialmente vulneráveis ficam impossibilitados de tornar possível sua mobilidade social.
O enfrentamento às disparidades étnico-raciais com esse tratamento diferenciado aos povos excluídos já é realidade em países democráticos na contemporaneidade. As ações afirmativas são meios eficazes de contornar os danos aos historicamente excluídos, ou seja, “[...] para minimizar os pesados custos sociais para populações que foram colonizadas, externa e internamente, em países hoje considerados multirraciais e ou multiétnicos, que procuram pautar-se pela construção e aprofundamento dos ideais democráticos” (SILVÉRIO, 2002, p. 34).
As evidentes desigualdades sociais são encobertas ainda pela engendrada democracia racial e a atenção de todos é desviada ao discurso de democracia social brasileira. Todavia, inexiste a problematização das relações étnico-raciais, que não são historicizadas, mas embaladas por conflitos que envolvem discriminação e discursos democráticos sob o amparo do formalismo jurídico de uma suposta igualdade racial. “Podemos perceber que as relações sociais e raciais no Brasil estão longe de serem harmoniosas, e busca-se esconder as diferenças para não tratar os problemas que advém delas” (CAMARGO, 2020, p. 65).
Segundo os educadores, os conflitos raciais sempre existiram na sociedade brasileira, embora fossem por vezes disfarçados pela ideia de boas relações raciais, ou seja, camuflados pelo mito da democracia racial, um fenômeno social que é conhecido por todos e está presente também no ambiente da escola, mas as pessoas furtam-se à discussão do problema. O preconceito racial praticado no País é fenômeno social de longa data, algo disfarçado, envolto em atitudes dissimuladas. Na opinião de A1, o debate é quase inexistente em Mossoró, porque somente 4% da população da cidade se declara negra. Existe a discriminação, mas a problematização é evitada.
As manifestações cotidianas de preconceito racial são reflexos do legado da sociedade constituída outrora pelo colonizador português. Na sociedade escravocrata, arraigou-se a ideia inferiorização dos negros em defesa da superioridade branca e a solução encontrada pela intelectualidade brasileira concentrou-se no famigerado embranquecimento da população. Desde então, consolidou-se a negação do negro (e de tudo que fizesse parte de seu mundo), tornaram-se corriqueiras a depreciação dos afrodescendentes e toda sorte de conotações negativas relacionadas à população negra, tudo em proveito da assimilação da hegemonia eurocêntrica.
Para a superação do status quo de práticas discriminatórias que se reproduzem até hoje, o professor necessita adotar uma postura incisiva para lidar com os conflitos raciais, deixando os envolvidos em conflitos cientes das reais circunstâncias do fato e problematizar o racismo como produto sócio-histórico. Deve levá-los à reflexão acerca das brincadeiras discriminatórias, dos danos provocados por bullying e toda sorte de tratamentos ofensivos, de caráter racial. Do contrário, o alheamento ou a ausência de problematização desses fenômenos sociais acabam mascarando as atitudes racistas. Sendo a escola pública um local de grande concentração de alunos afrodescendentes, e palco de brincadeiras ofensivas; logo, é indispensável trazer ao conhecimento dos alunos o processo de racialização da sociedade brasileira, tendo por finalidade desmistificar a supremacia racial branca e a depreciação da população negra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em vez de insistir numa política descomprometida com a diversidade e que se exime do reconhecimento da contribuição dos povos historicamente excluídas e relegados à vulnerabilidade social, os professores têm a sua disposição o ensino de educação de relações étnico-raciais positivas. A escola pode e seus professores têm potencial para transformar a realidade das disparidades sociais, além de promover a desconstrução de estigmas e estereotipias às populações marginalizadas.
Infelizmente as condições materiais ainda se mostram adversas para se implementar esse ensino no currículo oficial. Sem nenhum aporte institucional ou pedagógico, aos professores fica a responsabilidade individual de buscar conhecimento. O despreparo da maioria torna-se, pois, o principal obstáculo para a implementação da Lei nº 10.639/2003.
Engajar nessa empreitada antirracista de reeducação da relações étnico-raciais exige coragem e muita disposição. O enfrentamento às condições adversas significa a quebra da dicotomia superioridade e inferioridade, visto que vem à tona as reais condições que dão sustentação à estrutura sócio-política de um país racialmente desigual. Diante de tantos problemas, cabe a cada professor manter uma postura contestadora e insistir na persecução da educação democrática que eles tanto almejam, de respeito às diversidades e de convivência igualitária.
A postura pedagógica que opta por questionamentos de imediato já afeta o status quo, suscita discussões sobre os privilégios da classe dirigente e a hierarquização da sociedade racista brasileira. O espaço escolar é o local propício para a desconstrução da suposta harmonia social, do contrário, os depoimentos dos entrevistados comprovam isso. Além de revelarem dificuldades nas práticas pedagógicas, sobressai nos relatos a percepção da realidade dos educadores acerca de relações étnico-raciais que se coadunam com os preceitos das Diretrizes Étnico-raciais. O esforço dos professores para implementar o que determina a Lei nº 10.639/2003 encontra-se numa seara de divergências instauradas por políticas educacionais ainda calcadas em políticas educacionais universalistas.
Além das escolas enfrentarem muitos obstáculos para a implementação da Lei nº 10.639/2003, tais como a falta de recursos materiais mínimos, os professores procuram formas diversas para contornar as manifestações de intolerância racial ou de depreciação da população negra (bem como sobre a cultura ou a religiosidade de matriz africana). Entre tantos obstáculos, os professores encontram resistências para trabalhar a pedagogia antirracista quando para sua prática em sala de aula persiste o descompasso do currículo monocultural e a realidade da maioria dos alunos que cotidianamente vivenciam conflitos raciais e são marginalizados.
Quando os professores manifestam preocupação com os currículos engessados no viés eurocêntrico, e pautados nas políticas educacionais universalistas, percebem quão negligenciado se encontra o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira. Os sistemas de ensino estão atrelados ainda ao modelo de cidadania excludente. Senão, atente-se para a propagação de estigmas, estereotipias ou discursos rotineiros de depreciação da África e dos africanos em detrimento dos valores da diversidade étnico-racial, do respeito à riqueza da pluralidade cultural da nação brasileira.