COLOCAR O PROBLEMA
A política supõe mais do que as palavras que a definem (Amanda1, professora da rede municipal, 2019, grifos nossos). a contestação a respeito das relações das palavras com as coisas que constitui o núcleo da política. (RANCIÈRE, 2009, p. 62)
Em muitos escritos sobre política educacional, frequentemente não se dá valor ao significado de política e/ou é definida superficialmente como em uma tentativa de resolver um ‘problema’. Geralmente, essa resolução de problema é feita por meio da produção de textos de políticas como legislações ou outras prescrições e inserções voltadas local ou nacionalmente à prática. (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 13)
Acompanhar, dar continuidade, prolongar por tempo indeterminado, deixar ecoando. Repetir o mesmo processo indiscriminadamente. Escutar uma miríade de falas, quantas vezes forem necessárias, permanecendo com nossa atenção repousada nas “[...] formas extrassemânticas de significação, [n]aquilo que faz sentido antes como som, timbre e tom.” (LIBRANDI, 2020, p. 42). Ressonâncias, condensações, quebras, materiais em (de)composição. Uma coreografia de afecções e expressões entre corpos de diferentes naturezas. Passagens que rearranjam as capacidades de ver e dizer de uma determinada comunidade política, composta, no nosso caso, por professoras, estudantes, diretoras, pais, mães, avós, inspetoras, merendeiras, ou quem e o quê mais for agenciado pela força centrípeta que nos arrasta à escola.
Fruto de uma pesquisa interinstitucional envolvendo universidades e redes públicas de educação em três regiões do país (Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste)2, este artigo pretende reimaginar o que vem a ser a política curricular em seu quadrante notoriamente afetivo e sensível, dimensão aparentemente subdimensionada na teorização política do currículo, conforme fazem ver Borges e Lopes (2021). Para nós, o tecido sensível de uma comunidade política é tramado na articulação da diferença3 entre aquilo que pode ser visto e dito em uma situação qualquer; linhas que acabam por fazer da experiência curricular uma experiência política por excelência, na medida em que “[...] o recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência.” (RANCIÈRE, 2009, p. 16). Interessa-nos, então, a redistribuição sensível dos modos de se ocupar o tempo e o espaço, como também o que é ou não tornado visível e audível na operação da política.
Cabe explicitar, ainda, que ao longo do texto vão aparecendo muitos relatos de professores da educação básica, captados em virtude de um arco de alianças feito entre diferentes instituições públicas. Germina desta união um movimento de rodas de conversa entre professores universitários com os da rede pública parceira, nas quais se pôde dialogar sobre integração curricular, política de currículo, teoria curricular, cultura, diferença, dentre outros temas de estudo. É desta paisagem incomensurável que as falas presentes no artigo emergem, as quais levamos a sério4 quando as consideramos como sendo pertencentes ao amplo espectro da política curricular.
Assim, pelo meio desses relatos, seguimos com a proposição de Rancière (2009, p. 16), para quem “[...] a política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto”. Mais do que retratar o cotidiano e a vida docente nas escolas, tais falas e relatos equalizam a conversa curricular em termos de um inelutável e profícuo desentendimento diante do mundo e do outro, conversa coextensivamente complicada pelo “[...] conflito de vários regimes de sensorialidade” (RANCIÈRE, 2012, p. 59) que produzem o nós de uma comunidade política; sendo essa, por sua vez, instituída pela diferença constitutiva do dissenso. Aqui, a condição dissensual, e do estabelecimento de um comum litigioso em torno da atividade educativa levada a termo por professores e professoras, expressa-se como um traço elementar para vermos no currículo um campo de criação, divisão e reconfiguração de múltiplas formas sensíveis e modos de vida.
É no conflito entre as palavras e as coisas - entre distintos regimes de sensorialidade com suas respectivas formas de ver, fazer e falar - que a política curricular prioritariamente se dá. Afrouxar, ou mesmo desarticular uma relação de sentido, é produzir desidentificações que têm força suficiente para bagunçar a ordem atual das coisas, cenário no qual não há regras apriorísticas para determinar como a vida será proliferada através da experiência curricular. Trata-se, enfim, de destronar a política como o reino das certezas prometeicas e das ladainhas desenvolvimentistas que perpassam o imaginário pedagógico, assumindo que, em se tratando de currículo, “acho que nem mesmo a gente sabe muito bem o que quer”5.
Nesse andamento, forçamos a abertura de um espaço de pensamento heurístico que - sem abdicar da complexidade topológica da política curricular (MACEDO, 2016) e suas respectivas linhas molares (empresariamento da educação, ação de think tanks na rede pública, ação do Estado na elaboração de políticas educacionais centralizadas, aplicação de avaliações de larga escala, mensuração da aprendizagem, etc.) - dedica o olhar para cenas curriculares de aspecto supostamente irrelevante, ou que pelo menos se apresentam e ganham corpo em uma escala mínima e efêmera, abalando a ideia de que fazer política se relaciona com a reprodutibilidade de ações específicas e invariáveis que devem ser executadas para que algum descompasso (distorção idade-série, analfabetismo, indisciplina, dificuldade de aprendizagem, etc.) seja resolvido em um dado contexto escolar.
Suspeitamos que falar em política curricular requer de nós, portanto, um exercício de criação que leve qualquer palavra ao limite daquilo que ela pode querer significar, abrindo a política ao problema sensível, isto é, um problema no qual somos lançados em um terreno onde não falamos aquilo que vemos e também não vemos aquilo do que falamos. A não correspondência entre o ver e o falar (entre as coisas e as palavras, respectivamente) é o que garante o funcionamento primeiro da política. Na medida em que discordamos que determinada palavra signifique alguma coisa e não outra (currículo é uma lista de conteúdo, é o que se vive na escola, é um documento oficial, um documento de identidade, uma prática de significação), o que vem à tona é uma questão prioritariamente sensível; ou, mais especificamente ainda, da gênese do campo sensível, uma vez que “[...] toda situação é passível de ser fendida no interior” (RANCIÈRE, 2012, p. 48), não havendo concordância diante da “[...] evidência do que é percebido, pensável e factível” (RANCIÈRE, 2012, p. 49) quando o assunto é currículo. Como queremos fazer ver, “[...] fender a unidade do dado e a evidência do visível para desenhar uma nova topografia do possível” (RANCIÈRE, 2012, p. 49) é tônica constante nos relatos aqui presentes, ou seja, o que se coloca em cena é a efetuação mesma da política.
Assim, ao largo de uma diferença significante constitutiva do significar (precisamos de palavras para falar de palavras e sempre usaremos palavras para poder falar), e das hegemonizações de significados particulares elevados ao estatuto de universais contingentes (MOUFFE, 2015), nós nos ancoramos na sugestão de Gilles Deleuze (2009) sobre como o campo sensível se constitui na junção passiva, involuntária e irredutível entre o que pode ser dito e o que pode ser visto. Daí que a força plástica da política curricular “suponha mais”, como disse uma das nossas interlocutoras, do que o eterno deslizamento significante das palavras em sua viável e reconhecida cotação de desmontar hegemonias (MACEDO, 2017). Com isso, admite-se e habilita-se outras formas de ação política que não se restrinjam à luta pela significação6 daquilo que o currículo pode vir a ser, mas que nem por isso abandone-a, como se tal deslocamento fosse plausível.
Em nosso movimento de escrita, desejamos repensar a maneira pela qual a política curricular acontece, tendo como horizonte de problematização a seguinte pergunta: e se a política supor mais do que as palavras que a definem? Argumenta-se que seu acontecimento reside na possibilidade inelegível de afetarmos e sermos afetados, de sermos tocados por algo que não sabemos o nome ao certo. Quando somos afetados, a partilha atual do sensível pode sofrer alterações que redistribuem o que é possível de ser visto e dito em uma comunidade política, reordenando, também, os modos de se viver, ocupar, dividir e funcionalizar o espaço-tempo curricular, seja no âmbito de uma secretaria municipal e suas diferentes pastas ou subsecretarias; mas talvez, e principalmente, em distintas escolas que juntas perfazem uma rede pública de educação e geram modos singulares de efetuação da política, movimento que se espraia para além dos limites circunscritíveis aos muros escolares.
Valeria ainda ressaltar que a dimensão espaço-temporal (importante na teorização política7), é acionada por diferentes formulações para caracterizar aquilo que o currículo é: um espaço-tempo de fronteira-cultural (MACEDO, 2006); um espaço autobiográfico (MILLER, MACEDO, 2018); um espaço disciplinar (VEIGA-NETO, 2002); um espaço de produção de identidades (SILVA, 1999a); espaço escolar como a dimensão material do currículo (ALVES, 2001); espaço como categoria ontológica do currículo (ROCHA, MEDEIROS, 2020); currículo como uma dimensão espaço-temporal de trajetórias difratadas (RANNIERY, MEDEIROS, 2021); a ideia de um geocurrículo (CORAZZA, 2013), ou mesmo quando ele funciona como um “[...] território povoado por buscas de ordenamentos.” (PARAÍSO, 2010, p. 588). Tais vestígios teóricos compõem a discussão que vislumbramos entre o currículo, a política e o sensível, pois “[...] não há por que perguntar se há sensações espaciais, quais são e quais não são: todas as nossas sensações são extensivas, todas são ‘voluminosas’” (DELEUZE, 1999, p. 70).
Ademais, parece-nos importante sinalizar, embora não seja o foco da preocupação deste artigo, o quão proveitoso pode ser reler tais teorizações não apenas como diferentes formas de significar o currículo, mas desde suas inflexões afetivas, ou seja, balizando-se pelo princípio de que a criação conceitual no campo curricular arrasta, consigo, múltiplas sensorialidades em suas respectivas formas de ver, fazer e dizer, imantadas por “[...] relações concretas [produzidas] no espaço da escola (...), [capazes de] liberar as interações invisibilizadas pelo discurso político ou pela própria teoria pedagógica” (MILLER; MACEDO, 2018, p. 951). Assim, dada uma elaboração teórica no campo, poderíamos facilmente nos perguntar: que regime sensível e modos de afecção tal conceito encarna? Por outro lado, acreditamos que esta releitura tem força para oferecer um mapa dos afetos que circulam pelo campo do currículo em diferentes recortes e momentos históricos, conectados aos mais variados arranjos de poder político-econômicos existentes, sejam eles locais, nacionais ou globais, mesmo que essas escalas não sejam exatamente definíveis ou apartadas umas das outras (MASSEY, 2015).
Dito isso, pretendemos desdobrar, nas próximas seções, algumas cenas de desentendimento frente ao que a política curricular é ou poderia ser e o que supostamente pertence ao seu domínio. Sublinhamos, igualmente, que uma força indeterminada (uma afecção) é capaz de rearranjar o “[...] equipamento sensorial e intelectual” (RANCIÈRE, 2012, p. 43) de uma comunidade política, fazendo a experiência curricular operar redistribuições nos modos de se ocupar e viver o espaço-tempo, ao passo que simultaneamente remodela nossas “[...] capacidades de sentir, dizer e fazer” (RANCIÈRE, 2012, p. 43) que organizam e instituem a vida em comunidade. Interromper essa organização, como veremos, é tensionar duas lógicas de divisão do sensível que podem ser chamadas de policial e política (RANCIÈRE, 2018), passando, do mesmo modo, por um problema de sentido.
UM CURRÍCULO ENTRE A POLÍCIA E A POLÍTICA: UM PROBLEMA DE SENTIDO?
Não tem como você separar política de currículo, porque currículo é política. (Viviane, professora da rede, 2019)
Política é uma coisa própria de quem quer viver junto. (Angélica, professora da rede municipal, 2019)
Embora a política haja e atinja a nossa sociedade, muitas vezes ela vem na contradição da não satisfação, da não universalização. Nem sempre a política é uma política favorável a quem realmente necessita. Eu acho que a contradição, o paradoxo, estão sempre imbricados na política. (José, professor da rede municipal, 2019, grifos nossos) A política para mim sempre foi um tensionamento de ideias, de ações, interações, contradições. É necessário estar muito atento para que lado essas contradições e essas ações podem afetar a nossa vida enquanto docente dentro de uma unidade escolar. Política não é só o que está fora da escola, acontece nas relações familiares, nas relações de trabalho, nas relações afetivas. (Helena, professora da rede municipal, 2019, grifos nossos)
A política depende muito de quem está fazendo essa política e o jogo de interesses que eles têm em fazer alguma coisa. Geralmente não é pensando muito no coletivo, mas nos interesses próprios, que aquilo vai beneficiar a ele, ou no futuro dele, ou colocar ele como bonzinho. Eu acho que é muito um jogo de interesses, depende muito de quem está lá e da intenção que está fazendo a política. (Rosa, professora da rede municipal, 2019, grifos nossos)
A política é, então, antes de mais nada uma questão de percepção. (ZOURABICHVILI, 2000, p. 340)
Ler atentamente o conjunto de falas que abrem esta seção nos dá pistas para repensarmos a política curricular desde a ótica do desentendimento. Nas falas transcritas, capturadas em uma roda de conversa entre professores (as) universitários (as) e da educação básica - rodas pensadas em virtude de um processo de reformulação curricular vivenciado por uma rede pública de educação - há um problema de discordância em relação àquilo que a política é. Ora fazer política é uma ação que não leva em consideração o coletivo (sendo feita em benefício privado), ora a política é uma coisa própria de quem quer viver junto, podendo, ainda, ser algo que atinge a sociedade, mesmo que de maneira desfavorável, surgindo na contradição e tensão de ideias, afetando a nossa vida enquanto docente.
Mais do que defender esta ou aquela concepção de política, fazemos ver que seu sentido é eminentemente múltiplo. Forjado na articulação da diferença entre o que se vê e o que se diz8: “[...] o sentido é o expresso”, diz Deleuze (2009, p. 21). Enquanto expressão, o sentido é testemunha de uma síntese singular entre as palavras e as coisas, sendo manifestado (em nosso caso) em suportes variados: sejam documentos curriculares (referenciais, diretrizes, parâmetros, bases nacionais, etc.); projetos político pedagógicos; ofícios de teor curricular e textos de lei; falas de professoras e estudantes, ou mesmo na produção acadêmica do campo. Não é por acaso, portanto, que distintos sentidos de política sejam dramatizados em nossa conversa, uma vez que tais variações são lastreadas e atualizadas por uma gama de corpos, coisas, palavras e expressões em síntese disjuntiva, quer dizer: é na política curricular que a conexão entre sentidos e mundos divergentes acontece, ligação que simultaneamente produz abertura e conflito (ao invés de fechamento e hegemonia), colocando em relação direta o contraditório, o controverso, o que parece não ter relação e ainda assim coexiste.
Compõem-se, nesse compasso, “uma teia de combinações” (RANNIERY, 2016, p. 336), um conjunto de movimentos cruzados, tecido por uma multiplicidade de trajetórias9, sejam de professores, políticos, diretoras de unidades escolares, bem como estudantes e seus familiares10 que, articulando diferencialmente multiplicidades discursivas e não discursivas (não tendo concordância em relação ao que a escola é, para que serve, como se vivencia, o que se aprende, o que se ensina, quem ensina, etc.), fazem da política curricular uma coreografia11 de afecções e expressões entre corpos que possuem capacidades de agir e reagir completamente díspares: a política se adensa em uma mistura imprevisível de corpos e palavras, acontece12 na “[...] fissura [que] abr[e] a fresta para que as palavras entr[em] numa região de indiscernibilidade com as afecções do corpo” (LOPES, 2012, p. 164), embaralhando a distribuição espaço-temporal da existência e os ordenamentos de seus respectivos circuitos.
Abreviadamente, por desejarmos qualificar o que, tateando, tentamos chamar de dimensão coreográfica da política, colocamos em cena outras falas escutadas por nós, quando estivemos em contato com a rede municipal de educação que acompanhamos: “se a vida fosse um conto de fadas, a escola seria a fada madrinha”; “uma mãe chorou quando soube que sua filha havia perdido o primeiro dente de leite na escola”; “as crianças não podem ir para o pátio porque está tendo muito tiro”; “Currículo da doença, culpabilização”. Esses trechos, conforme queremos defender, redistribuem de maneira inesperada aquilo que se expressa e pertence ao domínio da política curricular sem, contudo, reduzir-se a ela. Dos projéteis que perfuram as paredes das escolas e matam crianças13, passando pelo currículo da doença e da culpa, à ideia da escola como fada madrinha, o que está em jogo no seio da experiência política é um problema diante do que se vê e o que se diz quando falamos em currículo. A fada madrinha que faz a realidade parecer sonho possui corpo encantado que redesenha o real tal qual a irrealidade daquilo que ainda não pode ser pensado. A bala que perfura um corpo não é menos corpórea do que um currículo adoecido: a bala afeta, toca, perfura; o currículo da doença também. São regimes de corpos e expressões em ação e velocidades distintas que fazem da política um problema afetivo e do afeto um problema político.
Caberia, então, um pequeno parêntese para pontuar que o problema do sentido na política curricular tem grande projeção na literatura especializada quando este é entendido como um sinônimo para a palavra significado, donde emerge a ideia de que a política curricular pode ser “[...] compreendida como todo processo de significação do currículo” (LOPES, 2014, p. 53), como a “[...] luta pela significação do que vem ser currículo” (LOPES, 2015, p. 10), ou que para “a constituição de políticas são necessárias as fixações de sentidos” (DIAS; ABREU; LOPES, 2012, p. 212). Entretanto, ao levarmos em consideração o conjunto dissonante das falas das nossas interlocutoras, caminhamos em outro sentido para pensarmos politicamente, posto que somos tomados por uma curiosidade candente, a saber: a despeito das muitas formas de significar o currículo e da normatividade que limita sua significação, como o arranjo sensível de uma comunidade escolar pode perdurar ou ser alterado? Haveria política de currículo que não necessariamente passasse pela fixação ou disputa de significados?
Devemos reconhecer, por certo, que estas curiosidades são tributárias de uma outra, advinda da preocupação de compreender o porquê de certos discursos curriculares manterem-se os mesmos “[...] a despeito das mudanças de partidos políticos no governo” (DIAS; ABREU; LOPES, 2012, p. 204). Assim, em um primeiro momento, e ao menos no recorte específico com o qual operamos, podemos perceber que não há uma fixação acerca daquilo que a política é. De qualquer maneira, e este provavelmente é o ponto nevrálgico da nossa argumentação, parece-nos necessário admitir que, ao cogitarmos uma redistribuição do sensível (alteração na capacidade de ver e dizer o que é visto em uma comunidade), esta redistribuição aparentemente acontece na medida em que somos afetados por outros corpos e expressões. A fala a seguir é, nesse quesito, um tanto quanto expressiva.
Tinha aluno que eu dava o caderno pedagógico e ele não fazia nada, eu tive aquela sensibilidade de procurar entender o que estava acontecendo com o aluno, descobri que ele não estava fazendo de propósito, mas por quê? Ele estava fazendo de propósito para repetir de ano porque ele queria estudar à noite, ele queria ser da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Eu tive situações em que eu estava ensinando direitos e deveres e um aluno falou para mim: ‘não, gato é legal!’ E eu falei: não, gato não é legal, é contra lei. E o aluno: ‘não professora, gato, aqui na favela, é legal!’ Pensei: Opa! Eu tenho que fazer diferente! Outras situações do aluno estar dormindo na sala de aula, o aluno querer dormir, dormir, dormir, e eu entrei e parei. Olhei para o papel e tinha que dar isso, isso e isso. Não. Não vou dar isso agora, agora o meu momento é de conversar. E descobri que aquele aluno a mãe trabalhava no hotel em Copacabana e o aluno passava a madrugada toda acordado e durante o dia ele estava com sono. (Alice, professora da rede municipal, 2019, grifos nossos.)
Nessa cena, percebe-se que mais do que reduzir o gato a um problema de conteúdo curricular que deveria ser corretamente ensinado (havendo uma série de questões morais sobre o certo e o errado, implicado em recortes raciais, socioeconômicos, geográficos, históricos, legais, etc.), o que acaba por acontecer é um encontro de séries divergentes (formas de expressão e formas de conteúdo que se chocam), colocando diferentes regimes sensoriais (formas de ver e falar) em relação: um no qual o gato é legal, outro no qual não é. Opa!, - além de ser uma interjeição que indica surpresa, um indicativo de que algo acabou de acontecer, ou de que fomos afetados por algo - expressa principalmente a força do desentendimento encarnada, coreografada por corpos em atrito. Quando o dissenso se faz manifesto, avaliamos que o que está “[...] em funcionamento são dissociações: ruptura de uma relação entre sentido e sentido, entre um mundo visível, um modo de afeição, um regime de interpretação e um espaço de possibilidades; ruptura dos referenciais sensíveis que possibilitavam a cada um o seu lugar numa ordem das coisas.” (RANCIÈRE, 2012, p. 67).
A política curricular, aqui, torna-se o espaço-tempo onde não vemos um mesmo mundo visível, ou um onde o mundo comum é feito pela partilha e derrame da diferença; onde somos diferencialmente afetados por outrem (o aluno poderia se resignar frente à afirmação da professora, a professora poderia insistir na ilegalidade do gato, a favela poderia ser um território onde as relações de poder se dessem de outro modo; a energia elétrica ser um bem gratuito para determinados extratos sociais); onde regimes de interpretação se criam e se desmancham, em um “[...] um perpétuo combate entre o que se vê e o que se diz (...) porque nunca se diz o que se vê e nunca se vê o que se diz” (DELEUZE, 2013, p. 138). É nesse entremeio intensivo no qual arriscamos tracejar explicitamente a distinção entre polícia e consenso, e política e dissenso.
No primeiro par, há um “[...] acordo entre sentido e sentido, entre um modo de apresentação sensível e um regime de interpretação de seus dados. Significa que, quaisquer que sejam nossas divergências de ideias e aspirações, percebemos as mesmas coisas e lhes damos o mesmo significado” (RANCIÈRE, 2012, p. 67): veríamos no gato uma atividade legal ou ilegal, não o encontro de dois regimes de partilha do sensível que falam, através de um mesmo significante (gato), coisas diferentes. No segundo par, a política “[...] rompe a configuração do sensível” (RANCIÈRE, 2018. p. 43) - OPA! (fui afetada) -, atestando a existência de uma outra comunidade política até então sem lugar, em que persiste a existência de “[...] uma parte dos que não tem parte” (RANCIÈRE, 2018, p. 43). Desse modo, “[...] a atividade política é a que desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar; ela faz ver o que não cabia ser visto” (RANCIÈRE, 2018, p. 43): o gato sendo um arranjo material designado enquanto ilegal, o currículo enquanto lugar destinado a se aprender sobre valores morais que delimitam a retidão das condutas, tracejando os limites entre legal o ilegal, o desejável e o inconveniente, o normal e o aberrante, o atrasado e o evoluído, etc.
CODA: UMA CORTINA DE FUMAÇA?
Um professor de artes fez uma cortina colorida com fitas e pendurou na porta da sala, e aí os homossexuais passavam lá, tiravam foto e botavam na internet: ‘estou passando no vale da homossexualidade’. Aí os meninos não queriam mais passar por ali com medo de virarem gays, aí eu perguntei: e aí? Vocês passavam? Eles responderam: ‘ué, não tinha outro lugar para passar, né... então eu tinha que passar’. Se tivesse jeito de passar por outro lugar eles não passariam (Andressa, professora da rede municipal, 2019, grifos nossos)
Não posso ficar olhando demais um objeto senão ele me deflagra. (LISPECTOR, 2013, p. 36)
Desejamos concluir dizendo que no espaço-tempo da política curricular palavras e coisas se misturam, sem haver “[...] qualquer paralelismo entre as duas, tampouco qualquer representação de uma para a outra, mas, ao contrário, um esfacelamento das duas, uma maneira cujas expressões se inserem nos conteúdos, por meio da qual se salta sem cessar de um registro a outro.” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 29), inflexão que pode ser instrumentalizada sob pretextos diversos, em agenciamentos sociais complexos, topológicos, que dizem respeito ao funcionamento do mundo e da vida em suas mais variadas dimensões: econômica, cibernética, científica, artística, ecológica, sexual, erótica, histórica, religiosa, filosófica, biológica, cultural, etc., instituindo múltiplos regimes sensíveis.
Nesse sentido, a cena que abre esta seção testemunha, precisamente, a possibilidade de pensarmos a política como uma mistura de corpos, afecções e expressões de diferentes naturezas. O medo de virar gay ao passar pela cortina colorida, embora possa soar estapafúrdio, encarna o conflito e o afeto como centrais para a discussão política. Para diferentes comunidades políticas que compõem o corpo político da escola, a cortina em questão perpassa agenciamentos sociais completamente heterogêneos, a ponto de que se houvesse a possibilidade dos meninos (os homossexuais não são meninos ou não são humanos?) entrarem em sala de aula por outro espaço, eles entrariam. Não é só passar pela cortina, é a transformação incorpórea (virar gay enquanto um ato incorporal da linguagem) que o passar pela cortina expressa. Incide-se diretamente na coreografia de afecções de um corpo (no seu modo de ocupar o espaço e o tempo, do que ele pode fazer), de modo que nem as afecções se limitem à transformação incorporal, nem a transformação incorporal se reduza às afecções do corpo: somos lançados numa zona de indiscernibilidade entre a palavra (forma de expressão) e o corpo (forma de conteúdo).
Simultaneamente corpo e palavra, a cortina colorida não é mais um significante para o significado gay14, mas dá a ver diferentes coreografias de afecção e expressão que faz com que nos desentendamos diante do sentido da cortina, isto é: em uma mesma cortina pendurada na porta da sala de aula não vemos a mesma coisa. Nessa situação, e em sua dimensão notoriamente material, a cortina é o não-senso15 que, em seu excesso imanente, doa sentidos aos diferentes nomes da linguagem (gay, menino, etc.), daí que o problema da política não é somente de como nomeamos as coisas, mas de como as coisas entram nos mais inimagináveis regimes de afecção e expressão. Em uma reviravolta esquisitíssima, somos nós, humanos, que passamos a ser significados involuntariamente pelos objetos ao nosso redor (a cortina dá significado a mim, não eu a cortina); ou que, pelo menos, não conseguimos significar os objetos sem que eles nos signifiquem de volta.
Cenas de desentendimento, como as evocadas ao longo do artigo, multiplicaram-se diante de nós quando estivemos juntos à rede municipal parceira. Passamos a persegui-las, desdobrá-las e experimentá-las quando levamos a sério a força da ideia provocativa que abre nossa primeira seção:
“[...] a política supõe mais do que as palavras que a definem”. Esperamos ter reunido elementos suficientes para indicar que no excesso da palavra há um problema de sentido16, que este problema é sensível e afetivamente político em sua dimensão discordante (coisas não se conformam às palavras, nem vice-versa). É na coreografia desta irredutível conjugação (seria melhor dizer conjuração?) entre corpos e palavras que diferentes mundos e comunidades se encontram, fazendo da experiência curricular uma experiência política.