INTRODUÇÃO
O programa Tempo de Aprender e a consequente ação de Formação Continuada em Práticas de Alfabetização (BRASIL, 2020) foram desenvolvidos a partir das diretrizes da Política Nacional de Alfabetização (PNA) (BRASIL, 2019)1, que emergiram via decreto em 2019 em um cenário de disputas e embates ideológicos. O relatório encomendado pela Câmara dos Deputados ao Painel Internacional de Especialistas em alfabetização infantil, em 2003 (BRASIL, 2003), apresentado no seminário O Poder Legislativo e a alfabetização infantil: os novos caminhos, já trazia elementos que indicavam a necessidade de haver uma política nacional de alfabetização que incorporasse outro viés teórico e que divergisse dos estudos da área da alfabetização, principalmente dos estudos relacionados ao construtivismo.
O relatório final do painel de especialistas realizado pela Comissão de Educação e Cultura, coordenado e organizado pelo pesquisador João Batista Araújo de Oliveira, teve sua 1ª edição em 2003 (BRASIL, 2003) e a 2ª edição em 2007 (BRASIL, 2007). Esse relatório foi um requerimento do deputado Gastão Vieira, que convocou um grupo de trabalho composto por especialistas e pesquisadores, sobretudo da área da Psicologia cognitiva experimental, para analisar as políticas e as práticas de alfabetização no Brasil. Na análise realizada, esse relatório apontou que a alfabetização no país, incluindo a formação de professores, “[...]não acompanhou os progressos científico e metodológico ocorridos no campo do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita nas últimas décadas do século XX” (BRASIL, 2019, p. 16). Nesse sentido, o relatório trouxe para o centro da discussão os estudos de evidências objetivas e científicas sobre como a criança aprende a ler e a escrever, alertando que os “[...]estudos sobre a alfabetização acaba[vam] de sair do campo da intuição, amadorismo e empirismo e da especulação teórica para adquirir foros de ciência experimental” (BRASIL, 2003, p. 7).
A última edição do relatório, em 2019, coincide com as ideias da atual gestão política, que entende as evidências científicas como importantes para os avanços na área da alfabetização no Brasil, o que faz emergir a Política Nacional de Alfabetização (BRASIL, 2019a) embasada pela teoria das ciências cognitivas, reconhecidas pela comunidade internacional, que fundamentaria suas práticas de alfabetização nas evidências científicas.
Os autores do relatório reiteradamente percebem o Brasil à margem dos estudos científicos e atribuem a essa posição as causas dos índices elevados de crianças que não se alfabetizam na idade recomendada, considerando, assim, a instrução fônica e o domínio do princípio alfabético como propostas metodológicas científicas eficazes para ensinar os alfabetizandos brasileiros.
O discurso predominante no documento toma a ciência cognitiva, em especial a ciência da leitura2, como imprescindível para o avanço no referido campo. Diante disso, com base nos estudos dessa ciência cognitiva, o Ministério da Educação, juntamente a um grupo de trabalho composto por representantes de diversas Secretarias, elaborou a Política Nacional de Alfabetização, a qual é descrita no próximo tópico.
A POLÍTICA NACIONAL DE ALFABETIZAÇÃO
A Política Nacional de Alfabetização, instituída pelo Decreto n. 9. 765, de 11 de abril de 2019 (BRASIL, 2019a), surge como uma iniciativa do Ministério de Educação para implementar programas e ações voltadas à promoção da alfabetização baseada em dois principais parâmetros: as experiências exitosas e as evidências científicas. Para a elaboração da PNA, formou-se um grupo de trabalho composto por representantes da Secretaria de Alfabetização (SEALF), da Secretaria de Educação Básica (SEB), da Secretaria Executiva (SE) e de outros setores articulados com a educação, os quais analisaram a situação atual da alfabetização no Brasil. Esse grupo estudou experiências que se diziam exitosas em estados e municípios brasileiros e em outros países, formulando a política de alfabetização com base nessas evidências científicas (BRASIL, 2019).
A Política Nacional de Alfabetização constituiu-se com base nessa proposta de progresso científico, relacionando esse progresso à qualidade da educação do país. Considerando tal aspecto, o caderno da PNA vale-se dos resultados obtidos pelas avaliações externas para justificar a sua emergência enquanto política pública nacional, apontando os problemas no ensino e na aprendizagem de leitura, de escrita e de matemática. Como solução, propõe ao Brasil a adesão à ciência como fundamento na elaboração de suas políticas públicas de alfabetização. Os objetivos da política, além da promessa de elevar a qualidade da alfabetização, incluem atingir as metas 5 e 9 do Plano Nacional de Educação de 2014-2024. A meta 5 refere-se a alfabetizar todas as crianças, no máximo, até o final do 3º ano do ensino fundamental, e a meta 9, a elevar a taxa de alfabetização da população com 15 anos ou mais para 93,5% até 2015, além de, até o fim da vigência desse PNE, erradicar o analfabetismo absoluto e reduzir em 50% a taxa de analfabetismo funcional (BRASIL, 2019b).
A PNA destaca os marcos históricos e normativos que tratam da Emenda Constitucional n. 59/2009, que torna obrigatória a educação infantil para as crianças de 4 e 5 anos (BRASIL, 2009). Também destaca a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018a) como um marco histórico, tomando como referência o excerto que se refere à consolidação da alfabetização nos dois primeiros anos do ensino fundamental e a ortografização no 3º ano do ensino fundamental (BRASIL, 2019b).
É interessante pontuar que, para a implementação da PNA, são listadas ações e instrumentos necessários, em que a Educação Infantil e os materiais didático-pedagógicos passam a ser focos importantes das ações a serem implementadas, como pode ser observado do excerto em destaque:
[...] orientações curriculares e metas claras e objetivas para a educação infantil e para os anos iniciais do ensino fundamental e o desenvolvimento de materiais didático- pedagógicos cientificamente fundamentados para a literacia emergente [...] e de ações de capacitação de professoras para uso desses materiais na educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental (BRASIL, 2019a, p. 44, grifo nosso).
Considerando tais ações, emergiu em 2020 o curso de formação continuada em práticas de alfabetização, do programa Tempo de Aprender (BRASIL, 2020), objetivando implementar e difundir nas redes públicas de ensino as contribuições das ciências cognitivas valiosas à alfabetização. A seção, a seguir, buscará contextualizar o programa Tempo de Aprender, imbricado ao cenário da emergência da Política Nacional de Alfabetização (BRASIL, 2019).
O PROGRAMA TEMPO DE APRENDER
A página principal do programa Tempo de Aprender, no site do Ministério da Educação, é composta por uma dinâmica de informação que contém desde o link de acesso à Política Nacional de Alfabetização; eixos e respectivas ações; acesso ao curso on-line para professoras3 e gestores; livros digitais para pais e responsáveis, nos quais é estimulada a literacia familiar4; opiniões de especialistas com formação em psicologia, que defendem o ensino explícito da conversão das letras em som e que consideram essas as principais habilidades que os bons leitores podem adquirir; e o link de multimídia, que dá acesso a vídeos de eventos realizados pelo MEC, nos quais é abordado o tema da alfabetização com base nos estudos da ciência cognitiva.
Ao navegar pela página, o usuário é interpelado por informações que dão a impressão de inovação, ou seja, “[...]é tempo de aprender e é preciso aproveitar a janela de oportunidades que somente o cérebro de uma criança possui” (BRASIL, 2020, n.p.). Porém, ao explorar o conteúdo do curso, o que se observa é uma limitação às possibilidades de aprendizagem das crianças em razão da metodologia adotada, a qual visa a práticas retrógradas de alfabetização, que se resumem em exercícios repetitivos de domínio de relações entre grafemas e fonemas, treino motor da escrita de letras e decodificação de palavras e textos.
O Tempo de Aprender se diz um programa com enfoque prático que objetiva enfrentar as principais causas das deficiências da alfabetização no país, entre as quais se destacam: “[...] déficit na formação pedagógica [...] falta de materiais e de recursos estruturados para alunos e professoras [...] deficiências no acompanhamento dos alunos e baixo incentivo ao desempenho de professoras alfabetizadores e de gestores educacionais” (BRASIL, 2020, n.p., grifo nosso).
Observa-se, assim, na análise do documento de referência do curso de formação Tempo de Aprender, uma intencionalidade em destituir as propostas criadas anteriormente, apontando que elas não foram suficientes para garantir uma alfabetização plena. Não há menção às muitas rupturas e lacunas geradas em razão da descontinuidade de programas como o Pacto Nacional da Alfabetização para Idade Certa (BRASIL, 2012a, 2012b, 2012c, 2012d), por exemplo. Além disso, na análise realizada, observa-se, ainda, que os formuladores da proposta desconsideram que os índices das avaliações externas não evidenciam em sua totalidade o processo de alfabetização no Brasil.
As causas das deficiências da alfabetização, elencadas pelo programa Tempo de Aprender, serão resolvidas com a metodologia da ciência cognitiva da leitura. Para a realização desta proposta pedagógica de trabalho eficaz e científica, são organizados quatro eixos com o conteúdo do curso: formação continuada de profissionais da alfabetização; apoio pedagógico para a alfabetização; aprimoramento das avaliações da alfabetização; valorização dos profissionais de alfabetização (BRASIL, 2020), os quais serão destacados a seguir.
As ações e objetivos do eixo 1 Formação continuada de profissionais da alfabetização colocam em destaque a figura da professora, vista como parceira mais importante do MEC para somar os esforços e melhorar a qualidade da alfabetização. O objetivo da ação 1.1 Formação prática para professoras alfabetizadores é proporcionar aos docentes a aquisição de conhecimentos, habilidades e estratégias que os auxiliem a lidar com os desafios do ciclo de alfabetização. Para a ação 1.2 Formação prática para gestores alfabetizadores há uma proposta de auxílio aos gestores educacionais de modo a dar o suporte necessário em suas escolas e redes educacionais. E para a ação 1.3 Intercâmbio para professoras alfabetizadoras têm-se a intencionalidade de promover com profissionais de alfabetização o processo de internacionalização do compartilhamento de evidências científicas (BRASIL, 2020). Vale ressaltar que, ao mesmo tempo que esse eixo valoriza a professora, colocaa como principal responsável pelo avanço na alfabetização. A ideia é de que ela seja premiada conforme o desempenho apresentado.
As ações e objetivos do eixo 2 Apoio pedagógico para a alfabetização estão voltados aos recursos educacionais. O Sistema On-line de Recursos para a Alfabetização (SORA) é uma ação que oferece materiais que auxiliam as professoras na elaboração do planejamento da aula. O objetivo é democratizar o acesso a recursos educacionais de qualidade para a alfabetização baseada em evidências científicas. Trata-se de atividades prontas para a professora baseadas em práticas exitosas já aplicadas em outros contextos. No subitem 2.2, a ação apoio financeiro para assistentes de alfabetização e custeio para escolas tem como objetivo, possibilitar, por meio de repasses financeiros da união, pagamento de despesas com assistentes de alfabetização e com custeio por escola e por aluno. Essa ação é um aprimoramento do antigo programa Mais Alfabetização5. No subitem 2.3, a ação reformulação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) tem como objetivo elevar em qualidade e adequar às evidências científicas mais recentes da ciência cognitiva da leitura os materiais do PNLD de educação infantil e alfabetização (BRASIL, 2020).
As ações e objetivos do eixo 3 - aprimoramento das avaliações da alfabetização possibilitam perceber que as avaliações serão adaptadas considerando os componentes essenciais à alfabetização, “[...]sob a perspectiva da educação baseada em evidências científicas, a fim de melhorar os indicadores educacionais e garantir a qualidade de educação para todos” (BRASIL, 2019b, p. 20, grifo nosso). A ação 3.1 Estudo nacional de fluência tem como objetivo fornecer a professores e diretores, bem como às redes estaduais, municipais e distrital, uma medida objetiva e de fácil verificação do desempenho em alfabetização dos alunos do 2º ano do ensino fundamental. A ação 3.2 aperfeiçoamento das provas do sistema de avaliação da educação Básica voltadas à alfabetização tem o objetivo de adequar a avaliação do SAEB para aferir o desempenho dos alunos considerando os componentes essenciais para a alfabetização (BRASIL, 2020). A avaliação dos alunos do 2º ano passa a fazer parte do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e nomeada avaliação de alfabetização do SAEB. A ação 3.3 Avaliação do impacto das ações do programa tem o objetivo de produção de subsídios para o aprimoramento contínuo das ações do programa, a fim de fazer bom uso do dinheiro público (BRASIL, 2020).
Nas ações e objetivos do eixo 4 valorização dos profissionais de alfabetização, o princípio que rege os fundamentos das ações e dos objetivos é o prêmio por merecimento, do qual seriam beneficiados os profissionais que obtiverem melhor desempenho, especialmente de alunos do 2º ano do ensino fundamental. Segundo o curso, é uma forma de incentivar as escolas a promoverem o avanço no desempenho dos alunos. O objetivo da ação prêmio por desempenho para professoras, diretores e coordenadores pedagógicos é melhorar a qualidade de aprendizagem da leitura e da escrita, concedendo incentivos financeiros para professoras, diretores e coordenadores pedagógicos do 1º e do 2º ano do ensino fundamental que obtiverem bom desempenho em alfabetização (BRASIL, 2020).
Seguindo as diretrizes da PNA, o curso de formação continuada destinado à pré-escola e ao 1º e 2º ano do ensino fundamental das redes públicas considera a instrução fônica e o domínio do princípio alfabético como uma proposta metodológica científica, que tem como base os estudos da ciência, especialmente da ciência cognitiva da leitura.
Assim, o objetivo deste estudo é analisar os embates políticos e conceituais do curso de formação continuada do programa Tempo de Aprender (BRASIL, 2020), tendo como pano de fundo a Política Nacional de Alfabetização (PNA) (BRASIL, 2019), buscando problematizar a retomada da instrução fônica como única forma de alfabetizar.
Nesse sentido, o campo dos estudos culturais, espaço teórico de investigação em que esta pesquisa se situa, teve contribuições importantes, uma vez que ampliou “[...]a gama de formas de problematizações que crivam, matizam e complexificam os debates sobre educação nos dias atuais” (COSTA; SILVEIRA; SOMMER, 2003, p. 54), inaugurando um modo particular de olhar para as discussões sobre currículo e, na perspectiva deste, os estudos sobre alfabetização. Na aproximação com o campo dos Estudos Culturais, deslocando a atenção para a materialidade das práticas de produção de sentido sobre o social, para práticas de representação como a linguagem, os discursos e as imagens (COSTA; WORTMANN; BONIN, 2016, p. 517), foi possível perceber o campo da alfabetização como uma invenção cultural que se constitui de diferentes formas, como espaço que se modifica de acordo com as políticas governamentais de cada época.
Assim, focaliza-se a pesquisa nos discursos legais que produzem o Tempo de Aprender enquanto prática cultural. O que estamos fazendo é entrar em uma rede discursiva precedente que, antes, já as havia colocado no mundo na medida em que havia atribuído determinado sentido a elas (VEIGA-NETO, 2002). Esta centraliza
[...] o exame das questões da cultura na linguagem e na textualidade, a partir do reconhecimento da heterogeneidade e multiplicidade dos significados e da dimensão constitutiva e regulatória operada pelo discurso e pela representação (COSTA; WORTMANN; BONIN, 2016, p. 517).
Diante disso, os estudos culturais, a partir da virada linguística, possibilitam uma análise crítica dos documentos oficiais, na medida em que colocam a linguagem na centralidade da análise, considerando que
[...] as palavras têm história, vibram, vivem, produzem sentidos, ao mesmo tempo em que vão incorporando nuanças, flexionadas nas arenas políticas em que o significado é negociado e renegociado, permanentemente, em lutas que se travam no campo do simbólico e do discursivo (COSTA; SILVEIRA; SOMMER, 2003, p. 37).
Tal concepção de linguagem também
[...] fornece uma maneira de entender conceitos, teorias e métodos como produções culturais localizadas historicamente, que podem, de certa forma, responder a questões específicas de um tempo histórico e que só são possíveis a partir de certas condições (SPERRHAKE, 2013, p. 23).
Com esses entendimentos, o documento do curso de formação tempo de aprender foi pensando na perspectiva de discurso, produzido numa arena de poder que não é neutra, mas carregada de sentidos. “Por ser o texto uma prática social, é um artefato cultural, que não se refere somente à palavra oral e escrita, mas a arranjos organizados para informar e veicular sentidos” (PINHO, 2006, p. 24). Dessa forma, a presente análise documental parte da ideia de que o curso é resultado desses arranjos e estratégias enquanto texto e sendo um texto analisado na perspectiva cultural está
[...] está impregnado de discursos instituintes daquilo que funciona como verdade, sendo estas produzidas em uma economia política da verdade na qual está em jogo o poder de quem narra, de quem diz como o outro é (COSTA; WORTMANN; BONIN, 2016, p. 521).
Considerando estes aspectos, para tratar dessa problematização, tornou-se fundamental pensar o ciclo de políticas públicas (BALL, 2006) como ferramenta conceitual analítica inspiradora para a caminhada investigativa.
Na próxima seção, o conceito de ciclo de políticas públicas estará operando como ferramenta analítico conceitual para que se possa compreender os embates políticos e conceituais para a emergência do curso de formação Tempo de Aprender.
A FORMAÇÃO CONTINUADA EM PRÁTICAS DE ALFABETIZAÇÃO - NO PROGRAMA TEMPO DE APRENDER
O curso de formação Tempo de Aprender está dividido em sete módulos, sendo o primeiro composto pela apresentação geral dele. Os outros seis módulos, denominados aprendendo a ouvir, conhecimento alfabético, fluência em leitura oral, desenvolvimento de vocabulário e compreensão de textos e produção textual, têm correspondência com os componentes essenciais para a alfabetização presentes na PNA6. No final dos módulos, é disponibilizado um questionário para os participantes avaliarem o curso e receberem um certificado de conclusão de 30 horas.
Os módulos dos componentes essenciais são organizados do seguinte modo: materiais escritos e vídeos com orientações didáticas que se encontram no site, explicando a parte conceitual de cada um dos componentes e materiais escritos de estratégias de ensino e recursos adicionais para a alfabetização. Os conteúdos de cada módulo são trabalhados a partir do respectivo componente. Os módulos são organizados do seguinte modo: Módulo 1: introdução; Módulo 2: aprendendo a Ouvir; Módulo 3: conhecimento alfabético; Módulo 4: fluência em leitura oral; Módulo 5: desenvolvimento de vocabulário; Módulo 6: compreensão de textos e Módulo 7: produção de escrita.
O curso de formação de professoras alfabetizadoras faz vinculação com a BNCC (BRASIL, 2018a), no entanto, parece ser mais o desejo de aproximação do documento normativo do que uma efetiva aproximação conceitual. No programa Tempo de Aprender, dá-se ênfase ao conceito de alfabetizar como um código, “[...]como um processo perceptual e associativo de decodificação de grafemas (escrita) em fonemas (fala), para acessar o significado do texto” (ROJO, 2009, p. 76). Nessa perspectiva simplista de alfabetização, a alfabetizadora parece ter uma única tarefa, fornecer ao aluno a chave para decifrar o código alfabético, a partir de repetidas atividades. Já a BNCC, apesar do ecletismo teórico-conceitual, centrado na perspectiva construtivista e no interacionismo linguístico, pontuados por Mortatti (2014), consolida alguns conceitos que já estavam contemplados nos PCNs, como a importância de se basear a concepção de linguagem em forma de ação e interação no mundo e uma concepção de sujeito constituído pelas práticas de linguagem (GERALDI, 2015).
Em face da compreensão desses elementos que perpassam a constituição de um curso de formação docente atrelado a uma política nacional de alfabetização e das complexas relações que se estabelecem durante esse processo de produção, são utilizados no presente artigo os estudos pós-estruturalistas do sociólogo Stephen Ball para examinar como os discursos de política funcionam, privilegiando certas ideias, assuntos e falas de alguns em detrimento de outros (ROSA, 2019).
A abordagem do ciclo de políticas proposta por Stephen Ball permite a análise crítica da trajetória de programas e políticas educacionais desde a sua formulação inicial até a sua implementação no contexto das práticas e de seus efeitos (MAINARDES, 2006).
Ball e Bowe (1994 apudMAINARDES, 2006, p. 50) apresentam uma análise interessante sobre o ciclo de políticas como “[...]um ciclo contínuo constituído por três contextos principais: o contexto de influência, o contexto da produção de texto e o contexto da prática”, os quais são inter-relacionados e não têm dimensão temporal ou sequencial, não sendo, portanto, etapas lineares.
Para compreender a constituição do curso de formação Tempo de Aprender foi preciso lançar um olhar crítico nos seus diferentes contextos de criação; para isso, foram utilizados os estudos de Rezende e Baptista (2011, p. 3, grifos nossos), em que os autores explicam os contextos, atentando a elementos que os caracterizam dentro de uma rede inter-relacional:
É no contexto da influência que os grupos de interesse e as redes sociais operam, dentro e em torno de partidos políticos, do governo e do processo legislativo, buscando adquirir apoio para seus argumentos e legitimidade para seus conceitos e soluções propostas para os problemas sociais destacados. No contexto da produção de textos, os textos políticos são produzidos. São resultado de disputas e acordos produzidos por grupos que atuam dentro dos diferentes lugares da produção de textos. Desta forma, os textos políticos não mantêm, necessariamente, clareza e coerência interna, e precisam ser lidos com relação ao tempo e ao local específico de sua produção. O contexto da prática é apontado como uma arena de conflitos e contestação, que envolve a interpretação e a tradução dos textos para a realidade, tal como ela é vista pelos leitores.
Para Mainardes (2006), esses contextos apresentam arenas, lugares e grupos de interesse e cada um deles envolve disputas e embates, sendo os textos políticos o resultado de disputas e acordos. Nesse sentido, vale destacar que tais grupos que atuam dentro dos diferentes lugares da produção de textos competem para controlar as representações da política (MAINARDES, 2006).
O relatório do National Reading Panel (2000) - que serviu de principal referência à constituição da PNA - selecionou uma pequena fração de toda a literatura de pesquisas sobre alfabetização elegendo somente pesquisas da psicologia experimental baseadas em evidências científicas com ensino sistemático da instrução fônica (MORAIS, 2019). Os autores da PNA encontraram argumentos no relatório que não somente viessem a mudar a concepção de alfabetização, mas que apagassem as outras pesquisas realizadas nas últimas décadas no campo da alfabetização.
O relatório final Alfabetização Infantil: os novos caminhos (BRASIL, 2003) e o documento Aprendizagem Infantil: uma abordagem da neurociência, economia e psicologia cognitiva (ABC, 2011) - documentos que não foram adotados em políticas públicas brasileiras - também foram incluídos como atos normativos para a criação da PNA. Em ambos os relatórios, o método fônico é explicitamente defendido. O primeiro foi elaborado por um grupo de cientistas a pedido da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, sob a justificativa da ausência de debates na área da alfabetização no Brasil, bem como de que as políticas e formação de professores não teriam acompanhado a evolução científica e metodológica ocorrida em todo o mundo. O segundo corrobora a tese do Relatório Infantil. Conforme observado, fica evidente o contexto de influência para a formulação de políticas públicas, uma vez que os que estão à frente da gestão operam segundo seus interesses políticos e ideológicos (MORTATTI, 2019).
A produção da PNA e, posteriormente, do curso de formação docente Tempo de Aprender, são resultados de disputas desses grupos que estão à frente da gestão política. Essas disputas acabam não contribuindo para os avanços na área da alfabetização, pois, como é possível observar, a PNA limita as possibilidades metodológicas para o ensino por considerar como válidos os paradigmas expressos nos relatórios mencionados.
É interessante destacar, neste momento, as reflexões de Mortatti (2019), quando a autora ressalta o caráter antidemocrático e autoritário da PNA. Para ela, há a infração de princípios da Constituição Federal do Brasil (BRASIL, 1988), pois a constituição desse contexto de produção textual não possibilitou a participação de alfabetizadores e representantes da comunidade acadêmica, sendo gestado apenas por representantes de instâncias internas do MEC. Fere em particular a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, dado que foi constituída sem ampla representação e discussão.
Do mesmo modo que o contexto de influência, o contexto do texto se constitui em espaço de disputas, acordos e negociações entre grupos, sendo um espaço no qual também se constrói e se produz discursos (MAINARDES, 2006). No entanto, é no contexto da prática que os textos políticos são traduzidos para a realidade. Para Mainardes (2006), é no contexto das práticas que a resposta ao texto passa a ser vivenciada e a política passa a produzir seus efeitos.
Embora o contexto da prática não seja o propósito deste estudo, visto que foi realizada uma análise documental, destaca-se a pesquisa realizada pelo Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Educação Pública7 (GIPEP), em um município gaúcho, sobre a recepção da PNA, a qual indica que, mesmo havendo adesão da política na rede de ensino do referido município, não se concretizaram movimentos efetivos para a implementação da política. Além disso, a pesquisa tem revelado que muitos professores discordam do caráter homogêneo da proposta (PORTO et al., 2021).
Isso corrobora os estudos de Ball, em que o autor traz a
[...] ideia de que políticas não são implementadas, mas encenadas, amadurecendo essa ideia por meio [dessa] nova abordagem do ciclo de políticas, em que passa a concebê-las como um processo, como algo que se move, que acontece em meio a interações e em terrenos instáveis (ROSA, 2019, p. 7).
Ainda que os autores das políticas estabeleçam certos limites e significados, os quais resultam em determinadas ações a partir daqueles que as põem em prática, “[...]as políticas estão sujeitas à interpretação e, então, a serem ‘recriadas’” (MAINARDES, 2006, p. 53). Os significados que os leitores atribuem às políticas sofrem influências da história e experiências de vida, além dos interesses que cada grupo pode apresentar. Nesse sentido, Mainardes (2006, p. 53) destaca que “[...]os autores dos textos políticos não podem controlar os significados de seus textos. Partes podem ser rejeitadas, selecionadas, ignoradas, deliberadamente mal-entendidas [sic]”. No contexto da prática, a PNA pode e deve sofrer diferentes influências, até mesmo adaptada em proposta cuja metodologia se diferencie dessa que está sendo imposta na referida política.
Embora as políticas públicas nos possibilitem criar estratégias de ação, “[...]estamos sempre operando dentro do discurso e, talvez, ainda que possamos fazer coisas interessantes e produtivas dentro do discurso, estamos limitados em termos de possibilidades para pensar de forma diferente” (MAINARDES; MARCONDES, 2009, p. 312). Por isso, a análise política, segundo Ball (2006, p. 16), necessita ser “[...]acompanhada por cuidadosa pesquisa regional, local e organizacional se nos dispomos a entender os graus de aplicação e de espaço de manobra envolvidos na tradução das políticas nas práticas”.
Contrariamente ao que defende o autor, a PNA exclui pesquisas que consideram o espaço local, e adere a pesquisas que nada se aproximam da nação brasileira, pelo contrário, respalda-se por estudos internacionais, produzidos nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Austrália, em Israel e na Finlândia. Esse posicionamento coloca em pauta o silenciamento de muitas vozes de pesquisas produzidas sobre alfabetização de crianças no ensino fundamental, ao longo de 40 anos no Brasil. De acordo com Maciel (2019), o Brasil tem um arcabouço sustentável e coerente com a realidade brasileira em sua diversidade de teses e dissertações. Estas “[...]foram produzidas, em sua maioria, a partir das práticas de sala de aula [...]. São pesquisas do chão da escola. [...]. No banco de dados da pesquisa ‘Alfabetização no Brasil, o estado do conhecimento8’, [há] cadastradas 1924 teses e dissertações” (MACIEL, 2019, p. 59).
Esse olhar para o ciclo das políticas torna-se importante na medida em que permite uma análise crítica e contextualizada da trajetória política, possibilitando contribuir para o entendimento da dinâmica e da dimensão processual que envolve a produção de um Curso de Formação Continuada em Práticas de Alfabetização, como o Tempo de Aprender.
Nesse sentido, corrobora-se Dalla Zen (2006, p. 29) ao apontar que “[...]as escolhas teóricas nascem motivadas pelas múltiplas interlocuções e dos vários contextos que vão, gradativamente, moldando trajetórias”. Desse modo, a escolha por determinada concepção de alfabetização, vinculada à instrução fônica, no curso de formação - Tempo de Aprender - coloca em pauta a discussão das verdades, das metanarrativas historicamente construídas,
[...] e enfatiza a particularidade, a parcialidade, a ideia de que os ‘dados’ são produzidos ao serem selecionados como ‘dados’ e ao serem analisados, tendo em vista que toda leitura e todo relato são sempre interessados e, portanto, recortam, marcam, veiculam e privilegiam determinados sentidos e outros não (DALLA ZEN, 2006, p. 29).
Percebe-se que, a cada momento histórico, aparece estrategicamente a instituição de formações específicas para a formação das alfabetizadoras, espaços de formação fabricados num sistema complexo de relações que envolvem poder.
Nessa perspectiva, salienta-se que o curso de formação docente Tempo de Aprender caracteriza-se como um dispositivo estratégico de poder, fortemente imbricado no processo de regulação social dos alfabetizadores e alfabetizandos. Os documentos oficiais que prescrevem as suas premissas e configurações emergem, neste momento histórico, como uma “[...]guinada ideológica-metodológica para trás e pela direita, evidenciando a armadilha de sua falaciosa neutralidade e poder” (MORTATTI, 2019, p. 29).
Nesse sentido, vale ressaltar que, ao falar de poder, não se está simplesmente desejando destacar o que os grupos hierarquicamente superiores definem sobre o que deve ser ensinado nas configurações dos documentos oficiais, mas considerar as produtividades do poder para além deste binarismo dominadores e dominados, porém de um dispositivo de poder que estrutura o campo de ação do outro para governar os sujeitos (COSTA; SILVEIRA; SOMMER, 2003).
Nesse percurso, as palavras de Popkewitz (1994, p. 298) são importantes, uma vez que pontuam como:
Os discursos sobre educação construídos na formulação das políticas educacionais, nos relatórios de reformas [...] não são meramente linguagens sobre educação; eles são parte de processos produtivos da sociedade pelos quais os problemas são classificados e as práticas mobilizadas.
A representação das práticas alfabetizadoras, por meio de uma proposta cuja abordagem está ancorada no paradigma da ciência cognitiva, tem mobilizado esta análise crítica. Esse discurso, como bem pontua Mortatti (2019), faz parte das falsas premissas da PNA, em que os colaboradores afirmam ser as ciências cognitivas únicos fundamentos científicos da alfabetização. Contudo, para que tal discurso entre em vigor, a PNA oculta outros referenciais de políticas públicas que se mostraram eficientes e ignora as evidências científicas, devidamente fundamentadas, as quais comprovam que os problemas da alfabetização no Brasil estão diretamente relacionados também a questões sociais, econômicas e políticas.
A alfabetização é um campo que foi sendo constituído em tempos e espaços diferentes, e, em cada momento, novos significados foram sendo produzidos, ora contribuindo para avanços, ora para retrocessos. A PNA traz em seu texto apenas uma superficial explanação sobre os processos de aprendizagem. Vale questionar como a proposta metodológica adotada no curso, apesar de uma produção vasta e significativa nos estudos acadêmicos do Brasil, pode se transformar numa política de estado. Como a ciência cognitiva tem sido considerada suficiente para representar o modo de apropriação da língua escrita pela criança? Ou ainda: por que essa proposta metodológica foi preferida em detrimento de outras?
Assim, consideramos que este documento em análise, Curso de Formação Continuada em Práticas de Alfabetização, é representativo de uma política educacional de alfabetização, evidenciando, num tempo e espaço históricos, as disputas e os consensos de ideias travadas por diferentes forças sociais. Tal política educacional de alfabetização, a partir do conjunto de conceitos, concepções, princípios que representa, passa a ser considerada como proposta, diretriz e parâmetro para as práticas alfabetizadoras.
O documento em análise é entendido, então, como processo que envolve relações de poder, sendo produto e produtor, nada consensuais, de orientações políticas sobre as práticas alfabetizadoras, uma vez que sua construção foi mediada por contextos que envolveram textos e sujeitos específicos.
ALGUNS APONTAMENTOS FINAIS
O curso, tomado nesta análise como um artefato cultural que veicula um sentido único de ensino, representa a alfabetização dentro de uma perspectiva teórica que exclui os referenciais do campo da educação, e a insere num contexto educacional que tem como base a psicologia cognitiva. A representação da alfabetização está pautada no discurso da solução definitiva dos problemas apresentados nas avaliações externas.
Esses resultados possibilitam, também, compreender a representação dos modelos teóricos que fundamentam a proposta de ensino de leitura e escrita para formação de professores alfabetizadores, em que se destacam - entre vários outros elementos - o modelo teórico tradicional do professor como princípio norteador da proposta, via instrução fônica.
Assim, o Tempo de Aprender inscreve-se numa lógica marcada pela tensão entre continuidade e descontinuidade de concepções teóricas sobre o campo da alfabetização, inserindo-se numa lógica de disputas políticas, em que as concepções de linguagem e de aprendizagem nas políticas públicas de alfabetização parecem competir a fim de se mostrar mais eficaz, impondo uma única linha de ensino, o que contraria com o papel de garantir o direito constitucional das escolas e docentes de escolheram as metodologias que julgam adequadas e necessárias às turmas de alfabetização (MORAIS, 2019).
Ao concluir esta análise, infere-se que a metodologia adotada na proposta do curso contraria o que vem sendo pesquisado e discutido a partir dos anos de 1980, cenário este que revolucionou o campo da alfabetização no Brasil em termos de avanço e reconhecimento do sujeito que se alfabetiza. Destaca-se, ainda, que o curso coloca em circulação como se deve alfabetizar, constituindo uma representação que marca um retrocesso para o campo da alfabetização, portando poucas contribuições para as ações docentes.
Assim, o curso em análise Tempo de Aprender emerge como uma proposta de formação de professores, representativo de uma política educacional de alfabetização, marcado por um tempo e espaço histórico de retrocessos educacionais, em um campo de disputas travados por forças políticas neoliberais.