INTRODUÇÃO
Discutir as questões de gênero é imprescindível, pois possibilita analisar e compreender os fenômenos que se relacionam ao assunto ao longo do tempo e do espaço, visto que os debates delineados em torno do termo gênero são tensos e carregados de equívocos, como os argumentos de grupos religiosos e políticos sobre a ideologia de gênero, que têm impactado os planos de educação nas esferas nacional, estaduais e municipais nos últimos anos.
Entre os grupos reacionários e conservadores, houve a oposição fervorosa contra o uso do termo gênero e qualquer abordagem aludida à expressão ideologia de gênero (MOREIRA, CÉSAR, 2019) na elaboração das propostas educacionais, como o plano nacional de educação (2014-2024).
Construiu-se um cenário de caos e temor em torno da ideologia de gênero, pois ela seria disseminada pelo processo de escolarização, sob a perspectiva de iminência aos valores da família tradicional, em que a expressão foi restrita à sexualidade. Segundo Freire (2018), a abordagem do tema carrega uma entoação acusadora diante das várias formas como é utilizada para assegurar que é um assunto que acometeria a ordem natural dos corpos, então, arriscado e ameaçador para constar nos currículos escolares.
De acordo com Reis e Eggert (2017), difundiu-se um construto que tenta banalizar a categoria gênero, reduzindo-a à transgressão dos valores morais tradicionais construídos em oposição aos direitos conquistados acerca da diversidade de gênero ratificada nos diversos acordos internacionais pelo Brasil, opondo-se à liberdade de pensamento e à luta em busca da igualdade entre homens e mulheres na história.
As inadvertências que circundam as discussões de gênero devem ser desmistificadas, sobretudo no cenário educacional. As perspectivas difundidas pelos grupos religiosos, políticos e conservadores ortodoxos não podem ser proeminentes, porque rejeitam o aporte epistemológico do gênero como categoria de análise.
O emprego do gênero como categoria de análise pressupõe um exame sobre os aspectos relacionais estabelecidos entre homens e mulheres no processo histórico. A análise envolve se compreender que as relações sociais de gênero são formadas por práticas sociais, culturais, ideológicas. Portanto, configura um conjunto de elementos que se articulam em torno das representações sexuais em que os aspectos biológicos são elementos indispensáveis e interdependentes para se entender as personificações entre os sexos expressas nas práticas sociais, culturais e identitárias (SCOTT, 1992; 1995; 2012; SOIHET; PEDRO, 2007).
Nesse sentido, a análise de gênero pode ser aplicada na educação, visto que as relações sociais de gênero perpassam as instituições escolares, as políticas educacionais, as práticas educativas, os materiais pedagógicos e os currículos, por meio de atitudes, gestos, representações, símbolos entre outros aspectos que causam desigualdades, discriminações e preconceitos entre homens e mulheres na sociedade.
Adotar práticas pedagógicas que promovam a reflexão das relações sociais de gênero na educação é fundamental e o currículo de História pode ser um elemento primordial, mediante o processo de ensino e aprendizagem, em virtude de as representações de gênero estarem vigentes nas diversas instituições sociais, diante das possibilidades de análises dos mecanismos e significados na perspectiva das relações sociais de gênero.
Isso posto, é importante que os professores de História, em sua prática pedagógica, incluam novos temas e problemas históricos e assumam uma postura crítica e reflexiva diante da abordagem das questões de gênero no processo de ensino e aprendizagem, pois, muitas vezes, os alunos não têm contato com o conceito de gênero presente na historiografia, um termo relevante para se entender como se desenvolvem as relações entre homens e mulheres (PINSKY, 2018).
Os professores de História devem ser preparados, desde a sua formação inicial, acerca dos aspectos teóricos e metodológicos, para abordarem as questões que compreendam as relações sociais de gênero na sociedade. Para se refletir a respeito do gênero na formação inicial de professores de História, este artigo visa apresentar os resultados de uma pesquisa1 que investigou em que medida um curso de licenciatura em História de uma Instituição de Ensino Superior (IES) privada possibilita a formação de professores em relação às questões de gênero, assim como as concepções dos graduandos acerca do tema em sua formação e no campo historiográfico.
METODOLOGIA
Esta pesquisa caracteriza-se pela abordagem qualitativa descritiva do tipo estudo de caso e aporte teórico nos estudos de gênero. A escolha desta metodologia justifica-se por possibilitar a análise de micro-processos mediante o estudo das ações sociais, individuais e grupais (GARNICA, 1997), um aspecto hermenêutico em busca de se compreender o objeto de estudo em um processo dinâmico, que dá ênfase à concepção e à interpretação do fenômeno sob a perspectiva dos indivíduos (SANTOS FILHO, GAMBOA, 2013).
Em consonância, o estudo de caso (DUARTE, 2008) se fundamenta pela relevância dos casos individuais, além de constituir embasamento epistemológico para estudos posteriores, pois pode representar o início de uma investigação mais global.
A seleção dos participantes sucedeu por meio de contato com os graduandos do 5º termo2 (15 graduandos) de um curso de licenciatura em História de uma IES privada, localizada no interior do estado de São Paulo. Após a divulgação e esclarecimentos sobre a pesquisa, apenas dez graduandos manifestaram intenção em participar do estudo, ou seja, pela livre manifestação de interesse. Eles foram nominados com letras do alfabeto e números (P1, P2, P3, P4, P5, P6, P7, P8, P9 e P10) de modo aleatório a fim de se preservar as identidades, que apresentaram características diversificadas em relação ao sexo, faixa etária, profissão e atuação (Tabela 1).
Participante |
Sexo | Idade | Escolaridade/ Formação | Profissão | Atua como Professor | Rede Pública/ Privada |
---|---|---|---|---|---|---|
(P1) | Feminino | 44 | Ensino Médio Ensino Técnico | Técnica em Enfermagem | Não | - |
(P2) | Masculino | 22 | Ensino Médio | Estudante | Sim (RP)* | Pública |
(P3) | Feminino | 20 | Ensino Médio | Estudante | Sim (RP)* | Pública |
(P4) | Masculino | 19 | Ensino Médio | Estudante | Sim | Privada |
(P5) | Masculino | 24 | Ensino Médio | Estudante | Sim | Pública |
(P6) | Masculino | 27 | Ensino Médio | Vendedor | Não | - |
(P7) | Masculino | 21 | Ensino Médio | Estudante | Sim (RP)* | Privada |
(P8) | Feminino | 29 | Ensino Médio | Estudante | Sim (RP)* | Pública |
(P9) | Masculino | 21 | Ensino Médio | Estudante | Não | - |
(P10) | Masculino | 19 | Ensino Médio | Estudante | Não | - |
Fonte: Dados da pesquisa, 2020.
Nota:
*Residência Pedagógica (RP).
A coleta de dados foi obtida pelos procedimentos de entrevista semiestruturada3 e pesquisa documental que, conforme Severino (2007), é constituída de fontes que ainda não tiveram nenhum tratamento analítico, como o Projeto Pedagógico do Curso (PPC) e os Planos de Ensino (PE) do curso de licenciatura em História, corpus desta pesquisa.
Os dados foram examinados por meio da Análise Textual Discursiva (ATD) que, por inserir-se em uma perspectiva qualitativa, tem como propósitos compreender e reconstruir os conhecimentos acerca dos temas investigados. A ATD emerge da desconstrução dos textos do corpus, a unitarização; por conseguinte, as categorias são constituídas a partir das relações e semelhanças entre as unidades de análise, a categorização; do processo intuitivo auto-organizado de reconstrução surgem o novo emergente, a construção de meta-textos da descrição e a interpretação da conjuntura analisada (MORAES, GALIAZZI, 2016).
O processo de desconstrução e unitarização do corpus permitiu a constituição das unidades de análise, que, atendendo aos objetivos da pesquisa, foram definidas a priori e emergiram do processo de apreciação e novas compreensões. A construção das categorias e subcategorias (Gênero, Gênero e Formação) surgiu da combinação dos métodos dedutivo e indutivo4. As categorias foram definidas a priori, conforme as bases epistemológicas selecionadas preliminarmente, contudo, diante dos elementos emergentes, a indução permitiu que fossem aprimoradas. Essas mudanças, ao longo do processo de análise, possibilitaram que um conjunto inicial de categorias, construídas por dedução, ganhasse novos significados. O exame das categorias e subcategorias proporcionou o desenvolvimento dos meta-textos, ou seja, a construção de uma nova perspectiva diante de um processo intuitivo e auto-organizado embasada em um aporte teórico que serviu de fundamento para sustentar o novo emergente alcançado pelas análises, interpretações e compreensão dos fenômenos investigados.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
O termo gênero como categoria de análise e sua influência na historiografia
A palavra gênero, desde os anos 1960, tem sido utilizada de forma considerável em estudos feministas5 e surgiu em um sentido comum empregue para relatar a organização social da relação entre homens e mulheres, com o intuito de rejeitar o determinismo biológico implícito na utilização de expressões como sexo ou diferença sexual e os padrões normativos femininos.
No Brasil, foi na década de 1990 que a palavra gênero ganhou notoriedade (SOIHET, PEDRO, 2007), suscitando intensos debates no campo interdisciplinar e a revisão dos métodos e abordagens, sobretudo, a partir da proposta do termo como categoria de análise (SCOTT, 1995), que estabeleceu novas perspectivas ao sistema relacional entre os sexos.
A análise de gênero (PINSKY, 2009; SCOTT, 1992, 1995, 2012; SOIHET, PEDRO, 2007) considera o sexo (masculino e/ou feminino) parte constituinte das relações sociais, por meio das diferenças observadas entre homens e mulheres e dos mecanismos procedentes das relações de poder entre os sexos, ou seja, um olhar sutil às representações simbólicas instituídas em uma sociedade que perpassam pelas normas e exprimem os sentidos de gênero arraigados nas instituições sociais historicamente, como os aspectos subjetivos à formação da identidade de gênero que, segundo Louro (2012), envolve o exame de como as peculiaridades sexuais são concebidas ou majoradas na construção da masculinidade e da feminilidade no tempo e no espaço.
O emprego do gênero na historiografia ocorreu a partir das repercussões da crítica pósmoderna feminista e da hermenêutica, proveniente do novo historicismo alemão e da teoria crítica marxista (MUNIZ, 2015). A análise e a possibilidade de desconstruir os elementos social, cultural e sexual, permitiram, aos historiadores, inovações nas pesquisas, como a inclusão de novos sujeitos na história. A proposta de teorização do gênero (PEDRO, 2005, 2011) possibilitou constituírem diversas abordagens em busca de elucidarem as desigualdades e reivindicações sobre o feminino, além das relações de poder entre os sexos no processo histórico.
Crescêncio e Ferreira (2021) observam que, embora tenha ocorrido um movimento produtivo em relação ao uso da categoria gênero e sido favorável para acender as discussões no meio dos estudos feministas e de gênero e as perspectivas contracoloniais6, os estudos de gênero, nos últimos 20 anos, continuam suprimidos nos debates entre os historiadores e, em alguns casos, apresentam dificuldades em avançar o discurso além das epistemologias proeminentes.
O cenário atual se destaca pela divergência de posições diante das discussões e expectativas, pois as categorias mulher, mulheres e relações de gênero se inserem em uma dialógica inconstante de significados que se configuram com a diversidade de correntes historiográficas. O gênero como categoria de análise tem provocado discussões polêmicas, após anos de estudos convergentes e divergentes, contribuindo para a produção de variedades de proposições a fim de elucidar os fenômenos que se articulam às relações de gênero, além de revelar as estruturas sociais invisíveis e/ou naturalizadas nos processos normativos que constituem a sociedade no processo histórico.
Ao se entrevistar os participantes sobre o entendimento deles com relação a gênero, notamse duas perspectivas propendidas à sexualidade7, como a identidade de gênero (8 respostas, 61,54%)8 e a concepção biológica de gênero (5 respostas, 38,46%).
[...] essa questão de gênero, se você for falar biologicamente, [...] se nasceu com um pênis é menino, do gênero masculino. Se nasceu com uma vulva, uma vagina será mulher, do gênero feminino. Porém, se a gente for para o âmbito social vai ver que é muito mais fluida essa questão. (P2).
[...] eu acho que é a forma da pessoa expressar o gênero. [...] se eu quero ser mulher vou me expressar de uma forma mais feminina, então, eu atribuo aquele gênero feminino. Mas, se eu quiser ser [...] me expor como gênero masculino, eu posso me vestir de homem ou até não me vestir de homem, mas tomar atitudes que indique que eu quero ser identificada no termo masculino, do gênero masculino. (P8).
As falas dos participantes se inserem nas vivências e expressões da sexualidade do indivíduo, porque o termo gênero foi utilizado para denominar o sexo, conforme as características biológicas; e a identidade de gênero, que implica na construção do sexo feminino e/ou masculino, segundo o entendimento íntimo que a pessoa apresenta de si.
A questão da sexualidade, exposta pelos participantes, embora eles não tenham apresentado o aporte da análise de gênero, é elemento central dos estudos sobre o tema, visto que representa a construção da identidade do sujeito. A prática de professores é influenciada pela sua subjetividade, um dos elementos de análise das relações sociais de gênero; para Louro (2012), as instituições e práticas sociais se dão de forma relacional entre os indivíduos, constituindo experiências de (re)produção de identidades de gênero, como as representações étnico-raciais, sexuais e de classes.
Alguns estudos evidenciam que os professores não recebem preparação adequada para trabalharem com as questões de gênero, pois os valores culturais arraigados e naturalizados na sociedade acabam refletindo nas concepções dos docentes e das práxis educativas (MAIA, NAVARRO, MAIA, 2011).
A análise das concepções dos graduandos consiste em um aspecto necessário para se refletir a respeito da extensão dos problemas e desafios que circunscrevem a abordagem de gênero na formação inicial docente de História.
O gênero na formação inicial de professores de História: um estudo de caso
A inclusão da categoria gênero na historiografia tem contribuído para se reescrever a história, visto que a perspectiva de gênero possibilita se refletir e perceber novos objetos e sujeitos, como as múltiplas histórias das relações de gênero, quanto se analisar o processo de construção das hierarquias entre os sexos e as disparidades que se revelam nas relações de poder.
Contudo, a abordagem sobre o assunto nos cursos de graduação em História não avançou, pois se observa que há uma lacuna sobre o tema, diante do levantamento que se realizou em bases de dados de periódicos acadêmicos9.
Considera-se que os professores de História devam ser preparados para atenderem as demandas de ensino e aprendizagem dos educandos, portanto, a formação inicial10 constituir-se-á um processo indispensável à prática pedagógica e ao saber, fulcral à sua ação.
Abordar a formação de professores consiste em se explorar os múltiplos sentidos da palavra formação, visto que implica em se conhecer os elementos que se articulam à constituição do profissional docente em contextos histórico, social, político, econômico, cultural, entre outros aspectos que integram o indivíduo. Pois, a construção do saber docente (TARDIF, 2014) se relaciona a um conjunto de elementos, como as características subjetivas, que são formadas diante de um contexto e incutirão na relação com o saber docente.
De acordo com o Projeto Pedagógico do Curso (PPC) de licenciatura em História, pudemos notar que o curso se apresenta com o pressuposto de formar os professores em aspectos teóricos e metodológicos que lhes permitirão construir conhecimentos e valores acerca do ensino, aprendizagem, trabalho e educação, proporcionando uma formação profissional para a atuação nos ensinos fundamental, médio e profissionalizante.
Assim, a proposta desse curso justifica-se pelo fato de que a história está presente em todas as atividades do homem, é uma necessidade básica do conhecimento para inserção no mercado de trabalho e para interpretação dos fatos, tornandose, então, necessário formar profissionais que atendam as demandas contemporâneas da sociedade. Servindo - se do desenvolvimento tecnológico e do desejo de transformação dos professores, por meio de um ensino da história que atenda os anseios da pós-modernidade. [...] (PROJETO PEDAGÓGICO, 2017, p. 19).
O curso de licenciatura em História se propõe atender exigências da sociedade contemporânea, preparando os futuros profissionais da educação com embasamento teórico e metodológico de forma diversificada em alusão às transformações no campo historiográfico.
Ao se examinar o quão o gênero tem constituído os conteúdos de formação inicial docente no curso de História, as percepções dos participantes evidenciaram que a abordagem de gênero não é considerada em sua formação inicial (36,36% das respostas), porém 36,36% das respostas mencionaram o estudo do tema de forma diluída no curso:
Nunca foi abordado claramente o conceito de gênero. O que se tem é, raramente, de forma diluída entre as matérias, tratando do papel social da mulher ou da luta pelos direitos da mulher e, às vezes, a questão da sociedade patriarcal masculina
[...] (P4).
[...] ainda não tem uma pauta amplamente reconhecida, nesse sentido, para ser trabalhada, para nos preparar. Basicamente, seria nos preparar para uma coisa que não existe, pelo menos é a visão que eu acho que está presente tanto na universidade como nas escolas. (P7).
Dois participantes (18,18% das respostas) disseram que ouviram falar do tema na Semana da História, um evento que foi promovido pela faculdade.
[...] a gente teve uma semana da história, veio um rapaz aqui [...] fez um trabalho muito bom, falando sobre o gênero, [...] acho que esse contato eu tive mais na faculdade mesmo. Antes, um pouco, mas aqui eu ouvi mais. (P6).
[...] palestra sim, mas não exclusivamente na área da história, no geral, na universidade, mas não é uma pauta muito frequente [...]. (P7).
Apenas um participante (9,10% das respostas) disse ter estudado gênero:
[...] em psicologia sim, o professor falava bastante sobre a questão da formação de gênero, então, assim, veio a acrescentar bastante, para o meu conhecimento, para lidar até na minha formação [...] (P1) 11.
Referente à preparação teórica e metodológica no curso de História para a abordagem de gênero, os participantes (7 respostas, 41,17%) ressaltaram a necessidade de haver uma disciplina que aborde as questões de gênero nos cursos de licenciatura; também, apontaram (6 respostas, 35,3%) que não são preparados para trabalharem com as questões de gênero.
Acredito que não. Acredito que a gente está muito aquém disso. Acho que a gente tem que entender melhor. Até mesmo, no entanto, fazendo esta entrevista, às vezes, me perco até no que é isso, entendeu? Eu acho que a gente não está preparado para lidar com isso, até porque você carrega dentro de você alguns princípios ou aquilo que você acha que for verdade e tal [...] (P6).
Alguns participantes (4 respostas, 23,53%) acreditam que, embora o curso não aborde, especificamente, as questões de gênero, é possível terem uma formação básica diante do aporte que a História possibilita.
[...] ao falar, mesmo que amplamente sobre o assunto, ele pode abrir a possibilidade de você querer se especializar no assunto, querer investigar mais e aprofundar em determinados temas. Então, se a gente for levar em consideração, podemos dizer que sim. Ele trata de uma maneira ampla, porém, te dá a possibilidade de buscar o interesse de querer ampliar e querer, realmente, se aprofundar no assunto sim. (P2).
De acordo com as concepções dos participantes, até o 5º termo, o curso de licenciatura em História não proporcionou embasamento de gênero, conforme a perspectiva desta pesquisa. Entretanto, ao se analisar o projeto pedagógico do curso e os planos de ensino, constata-se, na grade curricular do 6º termo, a disciplina História do tempo presente, que propunha a abordagem de temáticas atuais: gênero e diversidade (PROJETO PEDAGÓGICO, 2017).
Observa-se que, por meio dos planos de ensino do 1º ao 6º termo, a grade curricular do curso de licenciatura em História se constitui de disciplinas de formações específica, geral e pedagógica. No que tange às relações de gênero, percebe-se que se apresentam apenas perspectivas e possibilidades de abordagem das relações de gênero, em virtude de não constarem, nos planos de ensino, evidências específicas sobre o tema por meio dos objetivos, ementas, conteúdos, competências e habilidades, exceto a disciplina História do tempo presente.
A abordagem das questões de gênero na formação inicial de professores se justifica pelo aporte teórico e metodológico que proporcionaria, aos futuros docentes, atuarem na educação básica de forma crítica, consciente e transformadora, diante das incertezas e da falta de esclarecimento sobre o assunto no cenário atual.
A formação superior é fundamentada por diretrizes legais que garantem o acesso do graduando à temática de gênero, como as diretrizes curriculares nacionais para a formação inicial em nível superior e para a formação continuada de 2015, ao instituir que os cursos de licenciaturas deverão ofertar, nos currículos, as questões de gênero por meio de conteúdo específico ou interdisciplinar na formação inicial de professores para a educação básica (BRASIL, 2015).
Ainda, em uma breve análise da Resolução CNE/CP n. 2/2015, percebem-se algumas definições que podem abranger as questões de gênero, conforme os fundamentos pedagógicos para a formação inicial de professores da educação básica, que visam ao desenvolvimento da educação integral dos professores, uma formação pautada na construção de conhecimentos, competências, habilidades, valores e formas de conduta que respeitem e valorizem a diversidade, os direitos humanos, a democracia e a pluralidade de ideias e de concepções pedagógicas (BRASIL, 2019).
Os depoimentos dos participantes corroboram a necessidade de se incluir as questões de gênero no curso de História por meio de disciplinas, pesquisas e estudos que possam contribuir para se aprofundar as discussões sobre o tema. Ou seja, preparar os graduandos para que possam compreender a historicidade acerca das concepções, mentalidades, relações sociais, ações e desenvolver mecanismos que favoreçam as transformações nas concepções de gênero.
Sobre a abordagem de gênero nas aulas de História, os participantes demonstraram consenso sobre a relevância de se discutir o tema, em função de perceberem o enfoque de gênero como meio de desconstruírem concepções ou valores tradicionais de gênero (80% das respostas); consideram conveniente a discussão sobre gênero, porém não apenas nas aulas de História (2 respostas, 20%).
[...] eu acho extremamente importante ter esse estudo [...] A gente tem que saber entender isso [...] principalmente, a gente que está estudando na área da educação. [...] às vezes, o professor vai para a sala de aula sem ter esse preparo. Às vezes, até tem superficialmente. Digo de mim mesmo. Então, tem que abordar isso na faculdade sim [...] (P6).
Eu acho importante, porque é algo atual e os alunos se identificam quando a gente usa exemplos do passado, agora na atualidade. Eu acho que todo esse processo que a gente está vivendo, de ideologia de gênero [...] ele vai estar marcado na história. Então, daqui alguns anos isso vai ser estudado. Então, eu acho legal os alunos ficar cientes desse processo na história. (P8).
A discussão de gênero nas aulas de História contribuiria com resultados significativos na perspectiva das relações sociais de gênero, portanto, habilitaria os alunos para compreenderem a historicidade acerca das concepções sobre o que é ser homem e ser mulher, assim como perceberem as nuances e transformações que envolvem a constituição da masculinidade e feminilidade no processo histórico. Dessa forma, “[...] os alunos passam a ter uma visão mais crítica de suas próprias concepções, bem como das regras sociais e verdades apresentadas como absolutas e definitivas no que diz respeito às relações de gênero. [...]” (PINSKY, 2018, p. 32-33).
Segundo Vianna (2012), a inserção do tema na formação inicial docente de forma significativa é um grande desafio, pois as abordagens sobre a sexualidade e do gênero ainda carregam concepções de gênero sob aspectos conservadores referentes às características relacionais entre homens e mulheres, circunscritas às diferenças físicas e biológicas. Consequentemente, essas projeções perpassam e constituem a identidade docente, assim como identidades de gênero ratificadas pelas normas e relações escolares.
É mister se ampliar o olhar diante do processo histórico em uma dinâmica dialógica, o que permitirá se perceber as diferenças diante das relações de gênero e entender os elementos que se articulam na construção de gênero e nas relações de poder. Uma ação que só pode ser alcançada a partir de uma análise crítica e reflexiva das relações de gênero.
Destarte, o profissional da educação deve estar provido de conhecimentos teóricos e metodológicos alinhados à prática e aos desafios que surgem no seu cotidiano, pois é por meio de sua percepção sobre as relações de gênero que poderá desenvolver a atitude crítica do educando, mediante o ensino e aprendizagem, e abolir as representações e padrões construídos em torno das relações sociais de gênero.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos últimos anos, a temática de gênero tem constituído debates e discussões, principalmente no âmbito das políticas educacionais, como o Plano Nacional de Educação (20142024) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em que a expressão ideologia de gênero foi difundida em um sentido de caos e ameaça aos valores morais tradicionais por grupos reacionários e conservadores, em uma intensa empreitada ideológica a serviço da supressão do termo gênero nos currículos ou práticas pedagógicas (FREIRE, 2018; MOREIRA, CÉSAR, 2019; REIS, EGGERT, 2017).
Evidencia-se uma problemática que incide sobre os interesses e discursos ideológicos de grupos que disputam o poder e, consequentemente, esses ideais se espalham e influenciam a sociedade. Em se tratando das questões de gênero, os discursos sobre ideologia de gênero, pautados na falácia de gênero, têm repercutido de forma negativa, mitigado as produções teóricoepistemológicas sobre o tema, um assunto que ecoa na educação, sobretudo, na produção, formação e difusão do conhecimento.
Os estudos de gênero na historiografia representam um avanço e suscitaram discussões acerca das funções conferidas aos homens e mulheres, os padrões, as normas, as representações, as desigualdades, entre tantos outros aspectos que circunscrevem as relações de gênero (MUNIZ, 2015; PEDRO, 2011). Embora com avanços e retrocessos, esse movimento produtivo da categoria gênero tem sido favorável para se acender debates e reflexões sobre o desenvolvimento teóricoepistemológico (CRESCÊNCIO, FERREIRA, 2021), visto que fomenta interpretações sobre sujeitos, conjuntura histórica e sistemas de poder, diante da possibilidade de análise crítica sobre a conjuntura e aporte intelectual desenvolvido em contextos e correntes históricas diversos.
Não obstante, evidencia-se, com esta pesquisa, que a abordagem de gênero no curso de licenciatura em História investigado é marginalizada, visto que os planos de ensino e o projeto pedagógico do curso apresentaram, apenas na disciplina História do tempo presente, uma perspectiva para tratar do assunto; também os graduandos não apresentaram bases epistemológicas em alusão à temática de gênero, pois revelaram concepções de gênero circunscritas ao senso comum, em alusão à sexualidade e às discussões sobre ideologia de gênero. Ainda, destacaram a relevância do enfoque de gênero na formação inicial, a fim de oferecer perspectivas de análise e reflexão sobre o processo de construção das relações de gênero no processo histórico e prepará-los para a prática em sala de aula.
A construção do saber e do fazer histórico se constitui por meio das relações de gênero, e o professor é elemento fundamental nesse processo, visto que a sua formação se dá mediante as relações sociais que perpassam por ideias, crenças, valores, normas, símbolos, práticas e representações. Esses aspectos se despontam ao longo de sua formação, influenciando a sua prática pedagógica (saberes e fazeres), as relações interpessoais, a sua atitude política e ideológica, entre outras características que constituem o seu contexto.
A abordagem das questões de gênero nas aulas de História se relaciona à prática pedagógica, portanto, é essencial que o professor consiga compreender o gênero de forma crítica e reflexiva, diante dos debates que se apresentam na sociedade em relação ao tema; se o profissional da educação não tiver essa percepção, corre o risco de ser imparcial acerca das questões de gênero. Discutir gênero e formação inicial do professor de História demanda um olhar às relações de gênero estabelecidas no processo histórico e na história da educação brasileira, assim, pretende-se, com este artigo, contribuir com as reflexões diante do retrocesso e incertezas concernentes à temática de gênero na educação atual.