INTRODUÇÃO
No Brasil, o avanço do neoconservadorismo político e econômico, que defende o individualismo, em contraposição à coletivização como proposição democrática de universalização de direitos, criaram um cenário social em que se exalta a competição e a responsabilização dos indivíduos, desconsiderado as condições materiais de existência (PERONI, 2020), e estão a serviço da hegemonia do capitalismo na atualidade. Nesse contexto, a construção de uma escola pública, democrática, popular, laica e inclusiva tem se tornado cada vez mais um ideal distante de ser alcançada, pois tais projetos caminham na contramão das propostas igualitárias e de valorização da diversidade como parte da condição humana, no cenário educacional, para a construção de um discurso ideológico hegemônico de negação das minorias, a exemplo das pessoas com deficiência.
No que tange à escolarização dos estudantes da educação especial, os discursos hegemônicos têm contribuído para reforçar a negação da escola comum como espaço de pluralidade e de acesso ao patrimônio cultural. Decorre dessa perspectiva, a publicação do Decreto n. 10.502/2020 que objetiva instituir a Política Nacional de Educação Especial: equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida, inicialmente, suspenso pelo Supremo Tribunal Federal e, depois, revogado pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva, após sua posse recente.
É válido ressaltar que a publicação do Decreto n. 10.502/2020 insere-se no contexto das reformas educacionais em curso no país. Garcia (2020) destaca que a publicação de uma nova política baseia-se no discurso da necessidade de atualização das diretrizes de acordo com alguns dispositivos políticos aprovados nos últimos anos, como o Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024, Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) n. 13.146/2015 e a BNCC.
O alinhamento aos dispositivos políticos supracitados, no contexto da sociedade capitalista, em que são acirradas as disputas sobre o saber sistematizado, tem como objetivo a manutenção da hegemonia sobre o conhecimento. Nesse campo de disputas, são elaborados dispositivos legais por meio dos quais se produz o controle sobre os segmentos escolares, bem como sobre currículos e avaliações (FILIPE, SILVA, COSTA, 2021). A elaboração da BNCC como documento de caráter normativo, pode se configurar como um dispositivo de controle, pois se constitui como conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens a serem desenvolvidas por todos os estudantes ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica (BRASIL, 2018).
Isso acontece porque, ao serem declarados como pessoas com deficiência, os estudantes passam a ter sua não aprendizagem justificada face ao sistema de ensino e à sociedade. Esse fato tem desmobilizado esforços para garantir a efetivação da aprendizagem dos estudantes matriculados e acarretado prejuízos em sua escolarização. Um dos aspectos estratégicos que ganham relevo para pensar essa complexa realidade é a formação dos professores associada à valorização da carreira e do campo de trabalho; à articulação teoria e prática, formação inicial e continuada, ensino comum e especializado.
Com isso, não se pretende responsabilizar a formação de professores pela resolução dos problemas educacionais, por entender que as contradições estruturantes da realidade exigem problematizar a função social da educação e da escola em uma sociedade de classes, produtora de desigualdades no acesso à cultura letrada. Todavia, entende-se que a formação de professores enseja a compreensão crítica da exclusão a qual sofre a classe trabalhadora, subsidia a apropriação de conhecimentos técnico-científicos, propicia a construção de saberes, mobiliza a emergência de significações capazes de mudar as práticas pedagógicas (SANTOS, FALCÃO, 2020).
A fim de atender ao disposto na BNCC propõe-se, segundo Farias (2019), a BNC-Formação como documento norteador das ações formativas, com foco no desenvolvimento de competências consideradas necessárias à atuação docente, indicando um retorno do modelo tecnicista, que secundariza aspectos como autonomia e criticidade. As investidas dos governos pósgolpe de 2016 de padronização curricular e da formação de professores, por meio das referidas Bases (DINIZ-PEREIRA, 2021) tiveram, no contexto pandêmico da Covid-19, um ambiente propício à sua operacionalização articulada entre o Estado e grandes corporações empresariais (HIPÓLITO, 2021).
A problematização das mudanças na formação de professores e seus desdobramentos no processo educativo dos estudantes da educação especial ainda são incipientes na produção científica atual (SANTOS et al, 2022). Avançar nos estudos e superar a superficialidade dos debates colabora com a apreensão da complexidade inerente à escolarização desses estudantes que estão imersas nos embates das políticas comuns a todos os cidadãos (KASSAR, REBELO, OLIVEIRA, 2019). A importância de estudar mudanças em uma política e em instituições ajuda na compreensão de determinados efeitos cumulativos da política na sociedade e seus resultados sociais (ROSA, LIMA, 2022).
Diante das lacunas e da relevância das contribuições da ciência para subsidiar os debates e as ações políticas, este artigo objetiva refletir sobre a formação inicial de professores para atuar com estudantes da educação especial em uma perspectiva inclusiva no âmbito da BNC-Formação e suas relações com a agenda política regressiva em curso no Brasil. O texto apresenta uma discussão de natureza teórica, apoiada na análise documental (FARIAS, BEZERRA, 2011), que compreende centralmente a análise da BNC-Formação, definido pela Resolução n. 02, de 20 de dezembro de 2019, e, em segundo plano, apresenta articulações com a BNCC e o Decreto n. 10.502/2022, e com produções teóricas pertinentes. Na análise teórica, tencionamos destacar fundamentos e relações com o contexto regressivo instalado no país que precisa ser analisado, a fim de entendermos as implicações geradas na educação.
O texto está organizado nas seguintes seções: breve contextualização da elaboração da BNC-Formação, educação especial inclusiva e formação de professores, BCN-Formação e inclusão de estudantes da educação especial, considerações finais.
BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DA BNC-FORMAÇÃO
No contexto das reformas para ampliar o controle da classe hegemônica sobre os processos educacionais, inscreve-se a elaboração de documentos norteadores, como a BNC-Formação, que objetiva implantar mudanças no campo da formação inicial e continuada dos professores, em consonância como os preceitos da BNCC, em evidente mobilidade da política educacional para promover a padronização do currículo da educação básica e da formação de professores (HIPÓLITO, 2021; DINIZ-PEREIRA, 2021). As iniciativas de padronização do currículo dos cursos de formação de professores remontam ao período da ditadura militar brasileira e, desde a redemocratização do país, volta a ser pauta importante nas disputas de classes, no campo educacional, a partir do segundo mandato da Presidente Dilma Roussef (DINIZ-PEREIRA, 2021) e se fortalece, após o golpe de 2016.
No processo de elaboração desses documentos, observa-se um movimento marcado pela ausência do debate que envolvesse os diferentes setores da sociedade, o que representa a impossibilidade de incorporar as demandas e contribuições da sociedade civil, configurando-se como um processo antidemocrático (RODRIGUES, PEREIRA, MOHR, 2021), diferente do ocorrido no processo de elaboração da Resolução n. 02/2015 que definiu novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial e Continuada dos Profissionais do magistério da Educação Básica.
O Ministério da Educação apresentou a BNC-Formação, no dia 13 de dezembro de 2018, por meio de uma exposição, em formato powerpoint, aos jornalistas e destacou os seus três pilares: o conhecimento, a prática e o engajamento (DINIZ-PEREIRA, 2021). Para Simionato e Hobold (2021), as orientações contidas no documento direcionam a formação de professores para preparação de caráter praticista, excluindo-se do processo formativo competências relativas às humanidades e às artes. O documento rompe a articulação entre formação inicial e continuada, compreensão que até então, norteava as políticas curriculares. Nogueira e Borges (2021) apontam que BNC-Formação é consoante a um modelo de formação para atender ao disposto na BNCC.
A Resolução n. 02/2019, define as diretrizes curriculares nacionais para a formação inicial de professores para a educação básica e institui a BNC-Formação. O documento está dividido em nove capítulos e um anexo que contém um quadro de competências gerais e específicas que contemplam três dimensões, conhecimento profissional, prática profissional e engajamento profissional.
EDUCAÇÃO ESPECIAL INCLUSIVA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES
A educação inclusiva é assumida como um paradigma educacional no âmbito dos movimentos mundiais alinhada aos documentos decorrentes das ações das agências internacionais bilaterais, a partir dos anos 1990, como a Declaração de Salamanca. O modelo social da deficiência inspirado no campo dos direitos humanos desponta como concepção norteadora de políticas sociais em diferentes países, como expressão da denúncia das bases da desigualdade social que produzem impedimentos às pessoas com deficiência, deslocando o problema da esfera privada para a vida pública (DINIZ, BARBOSA, SANTOS, 2009; SOUZA, 2021).
Vale destacar que, no escopo das políticas sociais articuladas pelas agências internacionais, dentro do Sistema das Nações Unidas, os movimentos em favor dos direitos das pessoas com deficiência estão marcados historicamente pelas demandas econômicas e do mundo do trabalho (SOUZA, 2021). A concepção dessas políticas, longe de defender uma perspectiva emancipatória de inclusão, busca inserir os grupos marginalizados, na própria corrente econômica que gera a exclusão (MATOS et al, 2020). Não obstante, os limites, nem sempre claros, impostos pela lógica capitalista, no qual o paradigma inclusivo se configura, entendemos que as disputas no campo educacional para ampliação e manutenção dos direitos dos grupos marginalizados ocupam, na cena pública, espaços que questionam representações cristalizadas e suscitam a construção de uma proposta pedagógica fundada em novas bases cada vez mais democráticas.
A partir da Constituição Federal de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB n. 9394/96, o direito à educação estabelece a garantia do acesso, permanência e igualdade de oportunidades de desenvolvimento a todos os cidadãos e fundamenta-se nos princípios da diversidade e da inclusão (LUSTOSA, FERREIRA, 2020). A LDB e documentos decorrentes dela concebem a educação especial como modalidade de ensino, que, por sua natureza transversal, deve integrar todos os níveis e modalidades de ensino, da educação básica à educação superior. Os estudantes têm sua matrícula garantida na escola comum com o suporte do serviço de Atendimento Educacional Especializado (AEE), uma configuração alternativa ao modelo substitutivo. O AEE deve realizar suporte pedagógico complementar e suplementar ao ensino comum para potencializar a aprendizagem e o desenvolvimento dos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação (BRASIL, 2008).
Assim como o PNE, a LBI (BRASIL, 2015) assegura sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo da vida, alcançando o máximo de desenvolvimento possível dos talentos e habilidades dos estudantes, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem. As orientações inclusivas presentes nesses documentos, intensificadas no âmbito das políticas públicas aprovadas nos governos do Partido dos Trabalhadores, repercutiram positivamente nos índices de matrícula dos estudantes na escola comum.
Diante do ingresso crescente desse público na escola, muitas mudanças tornaram-se urgentes para promover, além do ingresso na escola, aprendizagem e desenvolvimento dos estudantes da educação especial, visando a se apropriar dos recursos culturais e usufruir de condições mais favoráveis à sua participação nos espaços sociais. Essas mudanças exigem decisões nos vários âmbitos do sistema de ensino e passam irremediavelmente pela formação dos professores.
Formar professores apresenta-se ainda como um desafio importante neste país, porque os professores ainda se sentem despreparados para atuar com estudantes da educação especial. Fernandes (2013) destaca que essa problemática serve à defesa da transferência do processo de ensino para espaços específicos e profissionais especializados, considerados mais preparados para atuarem com esse público. Para a autora, a dicotomização entre professores generalistas e especialistas contribuiu para a fragmentação também da formação e da prática docente.
Tal afirmação destaca a necessidade de discutir, no âmbito da formação de professores, as práticas pedagógicas no contexto da escola. Para Tomazi (2021), a prática inclusiva envolve a ruptura com ações pedagógicas padronizadas, pragmáticas e meritocráticas que engessam os processos de ensino e aprendizagem, e reforçam situações de exclusão na escola. A formação de professores deve primar pela compreensão da deficiência desde um modelo social, que implica “[...] promover mudanças na base dos sistemas de ensino, que precisam desconstruir concepções e práticas cristalizadas no âmbito escolar” (MANTOAN, LANUTI, 2022, p. 35). Ademais, entender as contribuições da educação especial, como área de estudo e prática pedagógica, compartilhada nos ambientes comuns de ensino (OLIVEIRA, 2010) e na formação docente.
Santos e Falcão (2020) evidenciam a importância de os professores apresentarem uma formação adequada às novas configurações da escola como espaço inclusivo. Implica que esses profissionais superem a tarefa restrita à transmissão de conteúdo, exige problematizar como a perspectiva inclusiva constitui a educação escolar no Brasil, considerando a expressão singular de cada local, identificar barreiras e contradições estruturantes da educação comum e entre ela e a educação especial. Estabelecer objetivos comuns, considerando peculiaridades para atingi-los (VIGOTSKI, 2021) configura-se como vital à relação entre educação geral e especial na organização curricular e pedagógica da escola, para definir instrumentos psicológicos capazes de promover a mediação adequada ao desenvolvimento das funções psíquicas superiores, indispensáveis à escolarização.
Assim, a formação de professores precisa se alicerçar na perspectiva de produzir posturas e práticas pedagógicas que promovam a participação e aprendizagem dos estudantes na escola, conforme suas necessidades específicas, por meio da apropriação de conhecimentos que mobilizem a definição de estratégias, recursos pedagógicos e de acessibilidade capazes de promover essa aprendizagem.
BCN-FORMAÇÃO E INCLUSÃO DE ESTUDANTES DA EDUCAÇÃO ESPECIAL
Iniciamos as reflexões sobre o documento, analisando as bases que fundamentam as diretrizes que compõem o documento e como se relacionam com a perspectiva inclusiva da educação escolar.
Um dos aspectos importantes presente nas considerações iniciais, em que estão explicitadas as referências legais do documento é a vinculação direta da BNC-Formação à BNCC, segundo a Lei n. 13.415/2017, que orienta a adequação curricular da formação de professores, nas quais a BNCC deve contribuir para a articulação e a coordenação das políticas e ações educacionais em relação à formação de professores, todas citadas na parte da fundamentação legal do documento da BNC-Formação. A vinculação entre as bases aparece ratificada ao longo do documento, estabelecendo que as competências gerais previstas na BNCC e as aprendizagens essenciais direcionadas aos estudantes, devem ser implantadas em todas as modalidades dos cursos e programas destinados à formação docente (BRASIL, 2019).
No Art. 3º, a BNC-Formação determina que os “[...] mesmos princípios das competências gerais estabelecidas pela BNCC, é requerido do licenciando o desenvolvimento das correspondentes competências gerais docentes” (BRASIL, 2019, p. 2). No âmbito das competências gerais, foram criadas competências específicas, nas quais a prática profissional é uma delas, compondo junto com conhecimento profissional e engajamento profissional. A prática reiteradamente é afirmada como dimensão e foco central da organização curricular dos cursos de formação de professores, em nível superior. Segundo o Art. 7º, inciso II, conhecimentos, habilidades, valores e atitudes estão inerentemente alicerçados na prática, “[...] devendo estar presente, desde o início do curso, tanto nos conteúdos educacionais e pedagógicos, quanto nos específicos da área do conhecimento” (BRASIL, 2019, p. 4).
A submissão rígida da BNC-Formação à BNCC acaba por converter a pedagogia das competências em concepção pedagógica padrão da organização curricular também da formação de professores. Isso se confirma mais uma vez, ao definir no Inciso XII, do Art. 7º, da BNC-Formação (BRASIL, 2019), a avaliação dos cursos de graduação ancorada em matrizes de competências associadas a pesquisas baseadas em evidências.
A centralidade da prática e o esvaziamento de uma base teórica sólida; currículo organizado por competências e habilidades que geram a padronização do ensino para garantir os chamados direitos de aprendizagem dos licenciandos; o controle dos padrões de qualidade da formação; a avaliação dos cursos de licenciatura, tendo em vista uma matriz de competências profissionais etc. constituem um conjunto de elementos estruturantes da formação de professores. Esses elementos expressam a redução do papel da universidade à operadora da BNCC e imputam aos professores formadores papel meramente instrumental na transmissão de saberes técnico-funcionais na educação básica. Para Diniz-Pereira (2021, p. 65), a recorrente defesa das habilidades e competências no texto da BNC-Formação, por meio de ideias simplistas e absurdas de formação, transforma “[...] as licenciaturas em meros cursos preparatórios para implantação da BNCC” nas escolas.
A adesão à pedagogia das competências pela BNCC “[...] explicita e promove a uniformização tanto da pedagogia quanto do currículo desde a concepção até a prática no interior das escolas e das salas de aula, atentando contra o disposto no Artigo 12 da LDBEN” (SILVA, GIOVEDI, 2022, p. 15), bem como no âmbito das licenciaturas com a BNC-Formação. A violação da lei referida pelas autoras diz respeito, também, ao artigo 206 da Constituição Federal de 1988, que garante: “II - liberdade de aprender, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas no ensino” (BRASIL, 1988).
Santos et al (2022) entendem que a adesão da formação à pedagogia das competências e suas implicações na organização curricular desconsidera a singularidade inerente aos indivíduos, ao estabelecerem padrões de desempenho cognitivo, comportamental e socioemocional que se configuram como barreiras a pedagogia com foco na valorização da diversidade humana, elemento indispensável à educação inclusiva. Segundo Matos et al (2020), a estandardização curricular presente na BNCC não é coerente com a educação inclusiva. Essa afirmação reverbera diretamente na BNC-Formação e leva a crer que a escola não se constitui como espaço de convívio e aprendizagem de todos os estudantes, seja por causa da deficiência ou outra expressão legítima da diversidade humana.
Constatamos a quase ausência de menção a uma formação voltada para a valorização da diversidade no interior das instituições de ensino, inclusive, se dá com o esvaziamento das discussões filosóficas, históricas, psicológicas e sociológicas da educação face aos fundamentos didáticos e aspectos de natureza instrumental, como o uso das tecnologias e dos indicadores das avaliações externas de larga escala, além da falta de explicitação de concepções estruturantes da proposta, como aprendizagem e desenvolvimento humano, ensino e docência. Quando aparecem, estão direcionados à prática do componente curricular, a exemplo do que ilustra o Inciso XI, do Art. 12: “[...] conhecimento sobre como as pessoas aprendem, compreensão e aplicação desse conhecimento para melhorar a prática docente” (BRASIL, 2019, p. 6).
O capítulo I que define o objeto da BNC-Formação, por exemplo, ao tratar das competências que os licenciandos devem desenvolver não aborda questões relativas ao trabalho com a diversidade e o reconhecimento das especificidades físicas, intelectuais, sensoriais e/ou comportamentais dos estudantes da educação especial. Esse apagamento dos conhecimentos voltados para o reconhecimento da escola comum como espaço de atenção à diversidade demonstra uma equiparação com o mesmo movimento que resultou na exclusão da educação especial da BNCC em sua versão final. Os referidos documentos foram gestados no mesmo movimento que resultou no Decreto n. 10.502/2020.
Esse decreto retoma a oferta de serviços substitutivos aos estudantes com deficiência, com a responsabilização da educação especial pela escolarização, em uma perspectiva que fomenta a atuação de professores especialistas, considerando-os como os únicos profissionais com as competências necessárias para trabalhar com eles. Para Rosa e Lima (2022), o decreto revela a vinculação da nova gestão da educação especial com os interesses das instituições especializadas privadas, promovendo, portanto, a descontinuidade do acesso das pessoas com deficiência à escolarização, conforme acontecia antes do golpe de 2016.
Do ponto de vista das políticas de formação de professores, a BNC-Formação inserida num movimento maior que ameaça a perspectiva inclusiva da educação especial, passa a não reconhecer a necessidade de uma formação voltada para o atendimento à diversidade. Isso porque, no conjunto das reformas educacionais, visualiza a retomada de escolas e classes especiais e consequentemente uma formação específica para o professor que irá atuar nesse espaço.
Essa questão é agravada pelo fato de a BNC-Formação responsabilizar o professor por seu desenvolvimento profissional, conforme estabelecido nas competências específicas pertinentes ao engajamento profissional, integrantes do Art. 4º (BRASIL, 2019). A responsabilização imputada aos professores impacta diretamente o processo de formação continuada dos profissionais que precisam continuar aprendendo e se desenvolvendo diante da complexidade da prática educativa e a função social da escola.
A formação é parte viva e mobilizadora do desenvolvimento profissional dos professores, deve ser pensada e realizada coletivamente no âmbito do projeto pedagógico da escola e condizente com políticas e leis vigentes na educação nacional e local, como elemento importante da efetivação do direito constitucional à educação. O exposto na BNC-Formação, ao contrário, estimula fragmentação e individualização do processo de desenvolvimento profissional e se desresponsabiliza pelo seu custeio, pela promoção das ações e pelo impacto na qualidade educacional almejada, a partir das evidências produzidas por avaliações e pesquisas.
Vale destacar ainda que se evita, principalmente, o processo de reflexão coletiva e crítica da realidade que pode ser tecida no diálogo entre os profissionais, assim como gerar questionamentos, resistências e proposições ante aos desafios de construir uma educação democrática, laica, inclusiva e socialmente referenciada. Assim, o professor considerado mero executor da BNCC na sala de aula e na escola, expropriado da produção e compreensão do seu trabalho, retrata que o professor, assim como o estudante, no sistema de ensino, está alijado de qualquer reflexão. “Não há espaço para a reflexão crítica, para a renovação epistemológica do pensamento e da ação, para práxis educativa” (OLIVEIRA, 2010, p. 147), contribuindo para a conversão do professor em instrumento da cadeia produtiva na sociedade capitalista, alijado da reflexão, autonomia e coletivização do seu trabalho, algo presente nas políticas educacionais atuais (SOUZA, 2021; HIPÓLITO, 2021).
Ao tratar dos fundamentos e da política de formação docente, no Capítulo II, o documento continua sem mencionar a necessidade de pensar a escola como espaço inclusivo, de respeito e acolhimento à diversidade. Essa ausência permanece no Capítulo III que define a organização curricular dos cursos superiores para a formação docente e reafirma seu alinhamento às aprendizagens definidas na BNCC. Somente nas competências gerais e específicas, nos anexos da obra, esses termos aparecem de forma genérica e sem sustentação na proposta pedagógica.
Desse modo, a proposta de organização curricular apresentada pela BNCC não coaduna com uma perspectiva de educação especial inclusiva, definida como uma modalidade transversal de ensino que perpassa todos os níveis e modalidades, integrado à proposta pedagógica da escola com vistas ao atendimento dos estudantes com deficiência, transtornos do espectro autista e altas habilidades (BRASIL, 2008).
Dando continuidade ao exame do documento, percebe-se que o Capítulo IV ao tratar dos cursos de licenciatura define uma carga horária mínima de 3.200 horas, subdividida em três grupos. No Grupo I são elencadas temáticas a serem trabalhadas na formação, observando-se uma menção à educação especial no inciso “V - marcos legais, conhecimentos e conceitos básicos da educação especial, das propostas e projetos para o atendimento dos estudantes com deficiência e necessidades especiais”. Contudo, essa referência à educação especial, ao que parece, pretende somente permitir ao licenciando ter acesso aos conhecimentos em torno dos marcos legais e outros específicos dessa modalidade de ensino. Ou seja, permite conhecer os serviços e os profissionais que apoiam os estudantes com deficiência sem problematizar a organização da escola para o atendimento à diversidade dos estudantes, compreendendo-a como uma produção histórica e social, como assinalam Santos e Falcão (2020).
Nessa perspectiva analítica, é nítido o isolamento e a falta de ancoragem filosófica e pedagógica da educação especial dentro da proposta curricular da formação, reproduzindo a cisão entre o comum e o especializado criticada por Vigotski (2021) na organização da educação escolar para os estudantes com deficiência e na formação de professores em uma perspectiva inclusiva (MENDES et al, 2010; OLIVEIRA, 2010). Sem dúvidas, essa cisão na formação dos professores ajuda a reforçar os obstáculos que impedem a problematização da natureza excludente da educação escolar e simplificar a sua resolução, transferindo os estudantes das escolas comuns às instituições e/ou classes especiais, conforme defende o Decreto n. 10.502/2020. Igualmente, pode demarcar que não é atribuição da escola comum e de seus profissionais trabalharem para que os estudantes da educação especial aprendam os conteúdos curriculares e se beneficiem da oportunidade de se desenvolver como ser humano, portanto, reforçando a visão biomédica de deficiência.
É válido ressaltar que as discussões em torno dessas temáticas não contemplam, da forma como está posto, o conhecimento acerca do trabalho com o currículo no contexto da diversidade. Para Jesus e Alves (2011) a concretização de uma lógica contrária à da exclusão, exige o rompimento com a dicotomia, regular e especial, própria dos sistemas educacionais homogeneizadores. Desse modo, os autores apontam a importância de políticas públicas que orientem as escolas para construção de um ambiente educacional inclusivo, favorável à ressignificação de concepções acerca da escolarização dos estudantes com deficiência. Tal orientação deve permitir, portanto, novas formas de planejamento, organização e constituição do currículo, bem como a reorganização dos espaços de ensino e aprendizagem comum a todos os estudantes.
No Art. 16, a educação especial está entre as modalidades que exigem saberes específicos, contudo essa referência aparece desarticulada do contexto de pensar a formação docente com vistas a favorecer a construção de um ambiente escolar inclusivo, no qual exige uma compreensão ampla, multifacetada e profunda do fenômeno educativo pelos futuros professores. Para tanto, exige a apropriação de conhecimentos gerais, com capacidade de se articularem a outras áreas e modalidades que compõem a complexidade do mesmo fenômeno no âmbito da educação escolar.
Nesse sentido, a BNC-Formação distancia-se de uma proposta que articula a educação geral à educação especial na organização pedagógica da escola, conforme defendeu Vigotski (2021), implicando diretamente na formação de seus profissionais. Portanto, o professor deve compreender a produção das condições de ensino e aprendizagem existentes na escola e sua inadequação à efetivação das mudanças requeridas pela inclusão. Isso não será possível sem base teórica sólida mediada pelo exercício da reflexão crítica e coletiva, tanto na formação dos professores, quanto no processo de ensino na escola, e reverberar continuamente na formação inicial, por meio da pesquisa e do diálogo entre universidade e escola, em diferentes ações no âmbito dos cursos de licenciatura: programas de iniciação à docência e científica, estágio curricular, projetos de extensão etc.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o estudo, pode-se evidenciar que a vinculação da BNC-Formação à BNCC e a ratificação da pedagogia das competências como orientação à formação inicial de professores geram a padronização da organização curricular e pedagógica que desconsideram a singularidade inerente aos indivíduos e a diversidade constitutiva do processo educativo. O isolamento e a falta de ancoragem filosófica e pedagógica da educação especial dentro da BNC-Formação representa uma tendência à desarticulação entre ensino comum e especial, estimulando a formação de professores especialistas com lócus de atuação restritos a instituições especializadas e, principalmente, alijando-os de uma formação pautada na reflexão crítica da realidade, da autonomia para decidir sobre o processo didático, bem como do enfrentamento colaborativo de demandas e desafios com seus pares no contexto escolar. O trabalho coletivo colaborativo é imprescindível à construção de um modelo inclusivo de educação escolar, algo apagado intencionalmente na BNC-Formação.
Essas definições são coerentes com o conjunto de reformas efetivadas até 2022, e expressam a força do neoconservadorismo na educação nacional, impactando regressivamente a formação inicial de professores e a lutas em favor de uma educação especial orientada pela perspectiva inclusiva, igualmente como representou a tentativa de vigência do Decreto n. 10.502/2020, que ainda encontra ancoragem na cena política do legislativo federal. O apagamento da perspectiva inclusiva na formação docente atravessa todos os capítulos, mesmo mencionados em um jogo de palavras que não se sustenta no seio do projeto formativo aprovado, revelando uma concepção de educação excludente e que abre espaço para reforçar modelos segregados de escolarização aos estudantes da educação especial.
A revogação da Resolução n. 02/2019 e a luta política e científica pela vigência da Resolução n. 02/2015, passam a ser legítimas e representam a esperança de conseguirmos garantir o direito à educação para todos.