INTRODUÇÃO
Neste trabalho, nossa intenção é problematizar o uso da violência pelas forças estatais no mundo contemporâneo e, a partir de registros históricos, dar um outro olhar a essa ação; um olhar que desnuda os fatos, desnaturaliza ações que, aparentemente, estão normalizadas, para nomeá-las como realmente deveriam ser chamadas.
Desde a antiguidade, a violência, disfarçada de única forma de manter a ordem, tem sido utilizada por diversos povos. Sob regimes ditatoriais, práticas desumanizadoras foram realizadas visando obter informações valiosas para os estados de poder. Em épocas em que as confissões eram consideradas as rainhas das provas, atos de violência, que ficaram conhecidos como tortura, sempre foram aceitos como ferramenta para obtenção de tais provas e confissões.
No contexto brasileiro, a tortura sempre foi um continuum em nossa história. As práticas de tortura são realizadas no Brasil desde a época de sua colonização, quando foram brutalmente assassinados, milhares de indígenas que habitavam essas terras e, mais adiante na linha do tempo, encontramos o processo de escravização do povo africano.
A partir da diáspora africana, a tortura passa a coexistir no seio das famílias brancas, como um fato corriqueiro e natural. Era prática recorrente os negros serem açoitados nas fazendas e em praças públicas, acorrentados a uma espécie de tronco, terem seus corpos mutilados ou marcados com ferro quente. Essas e muitas outras práticas oficiais e regularizadas de violência foram aprovadas tanto pelo Estado, quanto pelo senso comum das sociedades da época.
Seguindo o fio da História, podemos elencar uma das épocas em que a tortura foi mais utilizada em solo brasileiro: o período da Ditadura Militar (1964-1985). Esse regime usou deliberadamente muitos métodos de violência física e psicológica desde seus primeiros dias de governo.
Inúmeras atrocidades foram cometidas contra aqueles que se opunham ao regime: estudantes, intelectuais, artistas, camponeses, sindicalistas e ativistas políticos foram as principais vítimas. Nessa época, também foram criados órgãos governamentais com o objetivo de garantir a ordem desejada e os interesses da direita no combate à ameaça comunista. Nesses espaços, todos os tipos de barbaridades eram permitidas, como torturas físicas e psicológicas, incluindo: choques elétricos, pau-de-arara, afogamento, mutilação de membros, marteladas, estupros, ameaças de perseguição, ameaças a familiares, inclusive há relatos de uso de répteis como jacarés e cobras para potencializar o medo dos presos em situação de tortura.
Outrossim, o tecido social também passa a viver sob constante ameaça, pois, ao declarar qualquer tipo de oposição ao regime estatal, os cidadãos poderiam ser severamente punidos e, a partir do momento em que fossem presos, os indivíduos tinham duas opções: ou se calavam ou traíam seus parceiros ou membros de suas famílias, tudo em nome do controle da população ou da obtenção de informações que interessavam ao Estado. Ou seja, dado esse breve histórico, durante séculos, a tortura foi permitida pelo Estado e aceita por uma parcela da população, em nome da manutenção da ordem e do bem viver.
Entretanto, apesar de discutir o assunto e tentar legislar sobre ele, ainda vemos, em pleno século XXI, em governos que assumem discursos na vertente democrática, situações em que são utilizadas formas de tortura em plena luz do dia, no meio da rua, exercida, sobretudo, por forças de segurança do Estado; ou dentro dos lares, por meio de relações abusivas, em que um dos membros do casal subjuga o outro a viver em condições desumanas como consequência da prevalência da violência sistêmica, causada pelo patriarcado arraigado na sociedade.
O que vemos, hoje, são formas cada vez mais sofisticadas de tortura e de violência que, na maioria das vezes, não são reconhecidas como deveriam, ou seja, não são nomeadas como tortura.
E, no caso daqueles ataques realizados pelas forças policiais (e outras entidades de segurança do Estado), eles são naturalizados e normalizados, como práticas da profissão e dever de manutenção da ordem e da justiça.
Por outro lado, a agressão doméstica, apesar de algumas leis criadas nos últimos anos (Lei Maria da Penha, Lei Carolina Dickman, Lei Joanna Maranhão, Lei da Importunação Sexual), ainda parece estar relegada ao espaço privado em que não é problematizada, devido à crença errônea de em briga de marido e mulher não se mete a colher, jargão nacional que vem sendo discutido pela mídia e por setores da sociedade, no sentido de desconstruí-lo.
No ano de 2020, nos EUA, um caso de tortura (nos termos de nossa argumentação) chocou o mundo. George Floyd, um cidadão afro-americano, foi brutalmente assassinado pela polícia, na rua, para que todos pudessem ver. Dessa maneira, os policiais executores dessa ação de tortura não se importaram que estivessem sendo filmados, o que nos mostra o descaramento e a normalização da violação dos direitos humanos de pessoas em situação de vulnerabilidade por causa de raça, gênero, orientação afetivo-sexual, religião, etc. George foi enforcado, ali, na frente de todos, pelo joelho do policial em seu pescoço até a morte.
No Brasil, em maio de 2022, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) assassinou Genivaldo de Jesus Santos1 em uma rodovia. Um homem negro, diagnosticado com esquizofrenia. Genivaldo foi preso pela polícia por não usar capacete enquanto andava de moto. Não entendendo as ordens dos policiais rodoviários, Genivaldo foi trancado no porta-malas da viatura da PRF, onde jogaram uma bomba de gás no interior e fecharam as portas. Minutos depois, o homem foi declarado morto por asfixia e inflamação das vias aéreas. O que nos impressiona é que, mais uma vez, essa atrocidade foi cometida diante do olhar atento de múltiplas testemunhas que não intervieram e que, com passividade, limitaram-se a registrar o assassinato com as câmeras de seus celulares.
Ao levar em conta esses casos reais e contemporâneos, é preciso pensar: Por que a tortura ainda é praticada? Por que as pessoas que testemunharam tais eventos não fazem nada para detêlos? Quais são as relações dessas torturas do presente com as torturas oficiais do passado? Essas torturas atuais seriam heranças culturais das torturas oficiais das ditaduras?
Seria, então, possível pensar essas formas não nomeadas de tortura na contemporaneidade como uma herança de épocas passadas? Desde uma perspectiva sócio-histórica e cultural, acreditamos que sim, pois a sociedade está em constante reacomodação, sempre movimentando o passado e o presente e prospectando o futuro. Coadunando com tal argumento, Aguiar (2022) assevera que, como corpo social,
[...] precisamos ter a consciência de que somos a continuidade de um projeto ancestral; somos quem somos porque somos resultado da cultura e da história construída por nossos antepassados, ou seja, somos assim porque o mundo, nossas vivências e experiências nos fizeram assim. (AGUIAR, 2022, p.8276)
Pensando dessa maneira, propomos fomentar no espaço escolar a problematização e desnaturalização de formas de tortura contemporâneas nos estados democráticos através da perspectiva da Letramento Crítico (LC), uma perspectiva pedagógica que "[...] conecta o político e o pessoal, o público e o privado, o global e o local, o econômico e pedagógico, para repensar nossas vidas e promover a justiça ao invés da iniquidade” (SHOR, 1999, p.02), propondo uma “[...] ampla coalizão de interesses educacionais comprometidos com a participação [...] emancipação política” (LANKSHEAR, KNOBEL, 1998, p. 10). Assim, entendemos que o LC está diretamente associado à ideia de transformar o sujeito para que ele possa, por meio da linguagem, atuar nas práticas sociais para se posicionar com senso crítico e gerar mudanças na estrutura social.
Na próxima seção, apresentaremos o conceito de LC, demonstrando como esse construto teórico-filosófico pode atuar como uma lente que conecta passado e presente, fazendo-nos enxergar com outros olhos situações que estão naturalizadas em nosso cotidiano. Na sequência, apresentamos uma proposta de didática transdisciplinar2, que almeja a possibilidade de professores e alunos aprenderem a nomear as coisas como elas são, entendendo atos de violência na contemporaneidade como resquícios de práticas de torturas.
LETRAMENTO CRÍTICO: PONTE ENTRE O PASSADO E O PRESENTE
Na contemporaneidade, se olharmos a partir de um olhar crítico, podemos deslindar vários casos de tortura, embora, muitas vezes, esses casos sejam camuflados pela polícia e pela mídia, já que tais práticas são apagadas por meio de artifícios retóricos e armadilhas discursivas. É comum encontrar manchetes nos jornais que suavizam a seriedade do evento para minimizá-lo. No exemplo a seguir, podemos notar como o evento anteriormente citado, o assassinato de Genivaldo de Jesus, é tranquilamente nomeado como agressão:
A captura de tela acima trata-se da capa de um dos jornais mais importantes do Brasil: a Folha de São Paulo, em que jornalistas e editores subvertem a ação policial, chamando-a apenas de agressão e abordagem, atribuindo o entendimento da ação de agredir aos moradores, apresentados como fonte da informação, isentando, assim, o jornal de emitir qualquer posição axiológica. Além disso, a informação sobre a morte de Genivaldo aparece somente no final do subtítulo, em letras minúsculas, ocupando menos espaço e com menos ênfase em relação a outras informações. Do ponto de vista do Letramento Crítico, esse posicionamento do periódico, o modo como ele constrói o discurso, pode ser considerado como uma forma de ocultar a tortura e, além disso, contribuir para a manutenção do poder atribuído às forças de segurança do Estado.
Nesses casos, concordamos com Ribeiro (2017, p.41), quando a filósofa afirma que “[...] é preciso nomear. Se não se nomeia uma realidade, sequer serão pensadas melhorias para uma realidade que segue invisível”. Portanto, é necessário, a partir dos espaços escolares, tornar tais situações visíveis, mobilizar-se contra o silenciamento de ações e fatos que oprimem e massacram grupos minorizados.
Acreditamos que essa seja uma das funções do LC, eixo teórico-filosófico de nossa proposta didática, pois falamos aqui de uma perspectiva educacional que pretende mudar nosso olhar em direção às estruturas sociais, desmantelando ideologias opressoras e relações de poder hierarquizantes e hegemônicas que dificultam a vida de uma parcela da população.
Conceituando melhor o LC, Carbonieri (2016) assevera que
[...] o letramento crítico nos ajuda a examinar e combater visões estereotipadas e preconceituosas que, porventura, surjam nas interações em sala de aula e fora dela. É uma perspectiva educacional que tem como propósito instigar o indivíduo a repensar sua realidade, auxiliando-o a tornar-se mais consciente e autônomo para transformálo. Interroga as relações de poder, os discursos, ideologias e identidades estabilizados, ou seja, tidos como seguros e inatacáveis. Proporciona meios para que o indivíduo questione sua própria visão de mundo, seu lugar nas relações de poder estabelecidas e as identidades que assume. Alicerça-se no desafio incansável à desigualdade e à opressão em todos os níveis sociais e culturais. (CARBONIERI, 2016, p. 133, ênfases adicionadas)
Nessa perspectiva, o LC está diretamente associado à ideia de transformar o sujeito para que ele possa, por meio da linguagem, atuar nas práticas sociais para se posicionar criticamente e gerar mudanças tanto em sua comunidade, quanto na sociedade em geral, construindo cidadãos mais comprometidos com a justiça e com a realidade social.
Em se tratando de combate à opressão, Duboc (2014) afirma que trabalhar com LC pressupõe uma atitude problematizadora para compreender privilégios e silenciamentos nas práticas sociais. Dessa forma, o ensino, nessa perspectiva, pode contribuir para o desenvolvimento de práticas que questionem e critiquem visões que privilegiam posições de centro e hegemônicas e para a possiblidade de mobilidade social. Entendido dessa maneira, o LC pode ser considerado como:
[...] uma abordagem de ensino comprometida em explorar como e por que grupos sociais e culturais particulares ocupam posições políticas desiguais de acesso a estruturas sociais. [...] interroga o privilégio histórico e contemporâneo e a exclusão de grupos de pessoas e ideias das narrativas convencionais. (BISHOP, 2014, p.53, ênfases adicionadas)
Tal abordagem é a que utilizaremos para fundamentar nossa proposta de olhar crítico sobre a tortura, seja ela nomeada e oficial, como nos tempos dos regimes totalitários, ou aquela que é inominável, oculta, apagada das práticas contemporâneas, em sistemas democráticos.
Consideramos essencial ensinar a professores e a estudantes a desconfiarem do mundo, a problematizar-desnaturalizar o que está posto e, com isso, aprenderem a ter uma visão menos superficial das práticas opressoras, oportunizando a compreensão das raízes estruturais e coloniais dos problemas sociais que nos cercam. Dentro do referencial teórico do LC, há dois conceitos que são fundamentais nesse trabalho de constante desconfiança: o binômio problematizardesnaturalizar.
Problematizar é fazer uma análise crítica de situações cotidianas, é sempre pensar: “E se isso fosse de outra forma?”, sempre questionando nossas ações e as do outro. Aprofundando, buscamos nos estudos de Foucault (2004, p. 242) a construção do conceito de problematização. Para o autor:
[...] problematização não quer dizer representação de um objeto preexistente, nem tampouco a criação pelo discurso de um objeto que não existe. É o conjunto das práticas discursivas ou não discursivas que faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui como objeto para o pensamento (seja sob a forma da reflexão moral, do conhecimento científico, da análise política etc.). (FOUCAULT, 2004, p. 242, ênfases adicionadas).
Nesses termos, para problematizar, é preciso afastar-se e desvincular-se do fato ou objeto a ser analisado, criando uma espécie de distanciamento crítico, que nos permite analisar o que produzimos, dando-nos a oportunidade de examinar noções pré-estabelecidas do que julgamos como correto ou incorreto, falso ou verdadeiro, feio ou bonito.
Tal distanciamento, que produzimos criticamente, pode nos permitir repensar as normas e questionar de onde elas vêm. Nessa esteira, acreditamos que problematização e desnaturalização são conceitos que estão interligados, diríamos até que são interdependentes, pois como vimos, a ação de problematizar uma situação nos faz questioná-la e entendê-la como algo criado pela sociedade, em um determinado momento ou situação e que, muitas vezes, essa criação estabelece normas preconcebidas que são consideradas naturais em determinados contextos e que, portanto, devem ser desnaturalizadas.
Com a intenção de questionar o naturalizado, o normalizado, é preciso provocar movimentos de desnaturalização, pois tal atitude
[...] supõe a superação do senso comum em direção a uma análise científica da sociedade. É o estranhamento diante de situações já consagradas como óbvias, familiares, naturais [...]. Estranhar o já conhecido, o tido como natural, permite que fenômenos aparentemente evidentes revelem dúvidas, contradições, desmandos e arbitrariedade em sua composição. [...] É a possibilidade de ultrapassar os limites do senso comum e inquietar-se com questões rotineiras e consagradas pela normalidade. (MORAES, GUIMARÃES, 2010, p.47-48, ênfases adicionadas)
Tais práticas, executadas na perspectiva do LC, podem contribuir para que professores e alunos possam examinar a realidade para além de sua aparência imediata e natural; ajudando-os a compreender o mundo e a realidade que os cerca como uma construção humana e, portanto, sujeita a constantes transformações.
LETRAMENTO CRÍTICO PARA UMA OUTRA HISTÓRIA: PROPOSTA PEDAGÓGICA
A proposta que construímos, a partir de uma revisão teórica e dos resultados alcançados na área de conhecimento sobre a importância do LC para problematizar-desnaturalizar conteúdos sociais, identificar injustiças e passar para a ação social, nos leva a resgatar a obra de Lewison, Flint & Van Sluys (2002, p. 382), que condensa a pesquisa dos últimos 30 anos sobre LC em quatro dimensões: a) romper com o senso comum, b) interrogar múltiplos pontos de vista, c) focar em questões sociopolíticas e d) agir e promover a justiça social.
A primeira delas, romper com o senso comum, refere-se à necessidade de encarar as narrativas que fazem parte do nosso cotidiano a partir de uma nova perspectiva, usando novas lentes críticas. De acordo com Aguiar (2021),
[...] as ações escolares pautadas pela filosofia do LC prezam pela desconstrução do senso comum no sentido de ressignificar práticas e discursos que muitas vezes dificultam o fazer docente e a transformação do grupo. [...] Dessa forma, o senso comum nos parece ser considerado como uma cortina que embaça e dificulta a visão e o entendimento de discursos e ações de opressão, além de promover a manutenção de hegemonias e desigualdades sociais. (AGUIAR, 2021, p.519-520)
A narrativa social hegemônica, que já definimos como um dispositivo de perpetuação de uma normalidade em que apenas grupos privilegiados têm representação por questões de gênero, posição econômica, local de origem, cor da pele, religião e cultura, relega à marginalidade todos aqueles que não cabem naquela camiseta de tamanho único. É nesse espaço de tamanho único, de aparente normalidade, que precisamos agir na direção da ruptura, pois será por meio da fratura do senso comum que irão emergir as desigualdades sociais e as injustiças que o LC procura combater.
Isso supõe: problematizar todos os objetos de estudo e entender que o conhecimento é fruto de acordos históricos (SHOR, 1987); colocar questões aos textos que mostrem como o próprio texto influencia seu próprio posicionamento (LUKE, FREEDOBY, 1997); fazer uso de elementos da cultura popular que mediam a construção de significados (MARSH, 2000, VAZQUES, 2000); desenvolver uma linguagem que possibilite tanto a crítica quanto a esperança (SHANNON, 1995); compreender e estudar a linguagem como geradora de identidades (GEE, 1990).
A segunda dimensão, contemplando diferentes pontos de vista, permite-nos analisar a realidade e os textos colocando-nos no lugar do outro, imaginando a sua realidade e experiência. Supõe, portanto: contemplar pontos de vista diversos, mesmo contraditórios (LEWISON, LELAND, HARSTE, 2000), indagar quais vozes estão presentes e quais estão ausentes no texto (LUKE, FREEDOBY, 1997) e por que aquelas que não estão presentes foram silenciadas (HARSTE et al, 2000) e, na medida em que essas lacunas são identificadas, elaboram-se contra narrativas (FARREL, 1998), tornando visível também o diferente (HARSTE et al., 2000).
A terceira nos incita a tocar em questões sociopolíticas e, para tal, é necessário levar em consideração que o ensino não é um ato neutro (SHOR, 1999, FREIRE, 2019), apesar de ser realizado em alguns casos sem a noção de que se atua a partir de uma posição em um sistema social e político e sob certas relações de poder. A partir do LC, quando falamos em focar em questões sociopolíticas, nos referimos ao movimento de: i) passar a considerar que ações, influências e intencionalidades não são elementos isolados do pessoal, mas fazem parte de um complexo quadro social e político (BOOZER, MARAS, BRUMMET, 1999); ii) desafiar a legitimidade de um modelo único de poder e privilégio nas relações (ANDERSON, IRVIN, 1993), a partir do estudo da linguagem e das relações de poder (FAIRCLOUGH, 1989), utilizando os textos como parte da vida diária (LANKSHARE, MCLAREN, 1993).
Por fim, a passagem para a ação social é provavelmente a dimensão que tem maior impacto nas comunidades. O exercício da cidadania crítica e ativa e a construção de responsabilidades para mudar uma realidade injusta é um dos principais objetivos do LC. Bishop (2014) defende que o ensino-aprendizagem, baseado nos preceitos do LC, cria conexões cinéticas entre o global e o local, por meio de um foco na prática social de engajamento colaborativo e coletivo com os textos e contextos do ativismo.
Em síntese, focamo-nos, portanto, nessas quatro dimensões para desenhar esta proposta dirigida aos futuros professores, para ser desenvolvida no momento de sua formação inicial (licenciatura), já que pensamos que trabalhar com LC no contexto de formação de professores pode contribuir para
a) [destacar a] relevância do papel docente na criação de propostas que desenvolvam o LC; (b) A necessidade de os professores se conscientizarem da dimensão semiótica do discurso e seu potencial para criar uma cultura crítica em sala de aula; (c) A importância de analisar recursos culturais [...] como relatos orais, visuais ou audiovisuais (GONZÁLEZ-MILEA, GARCÍA-RUIZ, SANTISTEBAN-FERNÁNDEZ, 2021, p. 99-101).
Entendemos, também, que o tema violência e formas de torturas contemporâneas, devido a sua complexidade, pode (e deve) ser trabalhado, além da formação inicial de professores, com estudantes das séries finais do ensino fundamental ao ensino médio, adaptando-se às características contextuais e etárias do corpo discente.
As fases de desenvolvimento da proposta didática são três (ver tabela 1). Começam com a análise da história passada, seguida pela análise da história presente, para culminar em uma prospecção para o futuro, com o desenho de propostas para preencher aquelas lacunas da história que impedem o conhecimento das experiências de pessoas e grupos silenciados.
Desse modo, a terceira fase envolve a síntese da proposta, encerrando-a com uma atividade que incita a passagem para a ação social e, como consequência, o exercício de uma cidadania ativa e responsável que, na medida em que os alunos reconhecem as injustiças sociais, se envolvem com sua comunidade, passam a se organizar e a trabalhar em busca de soluções para os problemas sociais.
Não obstante, achamos vantajoso deixar a porta aberta a outras propostas de ação que surgem da beligerância, do empenho e da empatia dos estudantes, fazendo com que, nesse diálogo, o professor assuma um papel diferente do tradicional, passando a atuar como um guia, um coautor e mediador dessas dinâmicas. Da mesma forma, sugerimos que os docentes sempre estimulem propostas de ação para que os alunos exerçam sua cidadania a partir do desenvolvimento de uma visão crítica, e não como uma imposição externa.
Na intenção de tornar nossa ideia mais acessível, apresentamos, na sequência, um protótipo que contempla as 3 fases de nossa proposta didática, com sugestões de textos, vídeos, perguntas para debate e produção de atividades.
Articulando o tema tortura dessa maneira e pensando sobre o currículo escolar, acreditamos que tal trabalho possibilita atravessar o currículo por meio de práticas transdisciplinares (CELANI, 1998), promovendo debates que, de forma rizomática (DELEUZE, GUATTARI, 1995), envolvam organicamente várias áreas do conhecimento, produzindo, assim, saberes novos na escola que façam emergir a história que a história não conta.
CONCLUSÕES
É importante frisar que entendemos que o desenvolvimento de LC a partir de propostas formativas não se concretiza de imediato, mas sim é fruto de um longo processo reflexivo e analítico, de diálogo e de debate entre as velhas crenças e este novo paradigma que se apresenta.
Não se trata de uma receita mágica e não pode ser colocado em prática sem que o professor, a princípio, não tenha desenvolvido uma visão crítica do mundo e da sociedade; daí a importância de formar professores imersos nessa perspectiva desde a sua formação inicial, já levando em consideração que serão eles quem irão formar as futuras gerações, que, em nossa expectativa, também serão formadas a partir desse olhar crítico de questionamento e contestação do préestabelecido.
Tanto a literatura especializada quanto as experiências exitosas na área do conhecimento nos testemunham que o LC como forma de ver, ser e estar no mundo traz múltiplos benefícios quando se trata de enriquecer as propostas pedagógicas de conteúdos históricos em escolas e universidades (GONZÁLEZ-MILEA, GARCÍA-RUIZ, 2021).
Embora seja inadmissível permitir a violação de direitos humanos, vemos isso todos os dias em vários contextos e sob todos os tipos de regimes, inclusive os democráticos. Observamos que tanto indivíduos quanto grupos são violados com impunidade e traição diante de nossos olhos, mas, se defendemos a construção de uma cidadania global crítica, não podemos ficar de braços cruzados.
Dessa forma, cremos que a proposta didática aqui desenhada se apresenta como uma forma de descruzar nossos braços e partimos para a ação, promovendo no espaço escolar ações que interroguem o senso comum, perturbem as relações de poder, desnaturalizem opressões, instaurem o diálogo dentro das salas de aula, levando estudantes e professores a se levantarem contra as desigualdades e injustiças sociais.