INTRODUÇÃO
No final de 2017, como parte das atividades pedagógicas de artes visuais, estudantes do ensino médio grafitaram as paredes do campus de Formosa do Instituto Federal de Goiás (IFG). A expressão artística juvenil, realizada no contexto escolar, ganhou contornos conflituosos no município com pouco mais de 100 mil habitantes, localizado no estado de Goiás, no entorno do Distrito Federal. A alteração do padrão visual do campus1 gerou disputas que explicitaram divergências ideológicas latentes, trazendo à tona diversos entendimentos sobre o que é arte e como ela deve ser desenvolvida no espaço da escola pública.
A atividade educativa e o trabalho dos docentes foram imediatamente questionados nas redes sociais e através de denúncias protocoladas na ouvidoria da instituição. O Ministério Público Federal (MPF) foi acionado pelos descontentes com a justificativa de zelar pela integridade moral dos frequentadores do local, bem como pela reputação institucional. A discórdia seria um mero conflito numa escola de interior se não fosse representativa de uma conjuntura na qual atos de censura a atividades artísticas e pedagógicas se tornaram frequentes como parte da estratégia de ação de determinados sujeitos políticos. Isso nos leva à questão: como o conservadorismo2 se coloca em ação no âmbito escolar?
Para o presente estudo, foram reunidos documentos oficiais com reclamações ou elogios à ação educativa, as respectivas respostas institucionais à ouvidoria e ao MPF, bem como atas de reunião e diversas cartas públicas de apoio elaboradas por ocasião dos fatos. A análise consistiu em leitura, destaque de trechos dos documentos, codificação e anotação de comentários. Os trechos destacados foram agrupados por semelhança, indicando como título do grupamento uma ideia-síntese contida nele. A partir de tal codificação, foram reconhecidos elementos de discursos favoráveis e contrários aos grafites. O esforço analítico centrou-se nos discursos contrários aos grafites, entendendo-os como expressão do conservadorismo que se manifesta no âmbito escolar por meio das seguintes ações: negação do saber acadêmico, crítica às instituições, vigilância da atividade docente, desqualificação do trabalho educativo e disseminação de pânico moral.
O CONTEXTO DE POLARIZAÇÃO POLÍTICA E ATAQUES À EDUCAÇÃO: ALGUNS PASSOS À DIREITA
No Brasil da segunda década do século XXI, assim como ocorreu em diversos países do mundo, houve uma guinada política rápida e progressiva à direita, tanto nas instituições como no cotidiano da sociedade. A nova direita mostrou grande força nas redes sociais, mas também em grandes manifestações, expressando publicamente um conjunto de valores chamados tradicionais (VELASCO E CRUZ, 2015, SOLANO, ROCHA, 2019). Diversos grupos se organizaram e conquistaram espaço na sociedade, lançando candidaturas com pautas conservadoras, conseguindo vitórias eleitorais e, consequentemente, encaminhando projetos de lei alinhados a esse espectro político. Essa nova direita se constituiu a partir de alianças entre grupos distintos: autodeclarados outsiders políticos, lideranças religiosas cristãs fundamentalistas, jornalistas, articulistas e apresentadores de rádio e televisão, influenciadores digitais, empresários e antigos grupos políticos e partidários.
Havia uma série de temas compartilhados por esses segmentos: eles reagiam a pautas sobre gênero, família, religião, raça, ações afirmativas, perspectivas identitárias, entre outras. Assim, a nova direita cresceu e se articulou de forma mais efetiva contra o que se denominou como pautas de costumes. Movimentos, organizações civis, think tanks3 neoliberais e partidos se articularam em torno dessas pautas, visando combater pessoas, coletivos e instituições que pudessem vocalizar interesses contrários. Nesse contexto de guerra cultural, a escola, a universidade, as artes, a ciência e a lei foram colocadas como um território a ser conquistado.
O Movimento Escola Sem Partido (MESP) funcionou como aglutinador do conservadorismo no campo da educação (FRIGOTTO, 2017)4. O MESP ganhou corpo com o apoio de diversos grupos e sujeitos autodenominados conservadores e liberais que se projetavam naúltima década, como o Movimento Brasil Livre (MBL), o Revoltados Online, o Vem pra Rua, o Instituto Millenium, a bancada evangélica e o guru Olavo de Carvalho, entre outros tantos atores políticos que se estabeleceram em torno dos protestos pela retirada de Dilma Rousseff da presidência.
A primeira aparição pública do MESP ocorreu em 2004, com a criação de um site sobre o tema pelo procurador do estado de São Paulo, Miguel Nagib. Entretanto, o movimento só ganhou mais visibilidade a partir de 2014, graças aos projetos de lei apresentados no estado e no município do Rio de Janeiro pelo então deputado estadual Flávio Bolsonaro (PL nº 2.974/2014) e pelo vereador Carlos Bolsonaro (PL nº 867/2014). O MESP se aproximou de outros representantes políticos na Câmara dos Deputados, nos demais estados e municípios para incentivar a proposição de projetos lei a partir do modelo disponível em seu site5 (AÇÃO EDUCATIVA, 2016; FERREIRA, 2016; MIGUEL, 2016).
O MESP teve sucesso na difusão de suas ideias e seu modelo de projeto de lei logo chegou a diversos municípios do país, mostrando que poderia ser um capital político para muitos gestores. Em Formosa, foi apresentado o Projeto de Lei nº 40/2018, de autoria do vereador alcunhado de Professor Rafael. O artigo primeiro indica o propósito do projeto:
Fica proibida no município de Formosa qualquer distribuição, utilização, exposição, apresentação, recomendação, indicação, publicação, divulgação de livros, folders e cartazes, realização de palestras, apresentação ou indicação de filmes, vídeos e faixas, ou qualquer tipo de material lúdico, didático ou paradidático, físico ou digital, contendo manifestação ou mensagem subliminar de Ideologia de Gênero em locais públicos, privados e entidades pertencentes à rede pública municipal de ensino. (FORMOSA, 2018, p. 1).
Devido à pressão de estudantes e educadores, o proponente retirou sua proposta da Câmara Municipal. No entanto, a mera apresentação mostra a influência do MESP em Formosa. A justificativa do projeto se baseava na Constituição Federal e na defesa da família, dizendo:
Consagra ainda a lei suprema em seu art. 226, especial proteção à família estabelecendo como obrigação do Estado Democrático de Direito a concretização desse princípio e definindo como família a união entre o homem e a mulher, buscando preservar o modelo tradicional da família. (FORMOSA, 2018, p. 2).
A intenção de perseguir as ações educativas é perceptível, assim como a mobilização por meio da disseminação do pânico moral. Esses elementos estratégicos da guerra cultural ficam explícitos na justificativa dessa proposição legislativa:
Partindo do pressuposto de que os estudantes são parte mais vulnerável do processo educacional, cabendo aos pais definir os valores e princípios repassados aos filhos e ao Estado por meio de políticas públicas assegurar-lhes sua formação e instrução intelectiva, fica claro que especular a introdução na grade curricular de ensino a ministração da ideologia de gênero e congênere foge das atribuições do Estado e invade o âmago das famílias.
(...)
Dessa forma, a educação tem que prezar pelo princípio da neutralidade política e ideologia, diante de crianças e adolescentes em fase de formação e informação intelectual. (FORMOSA, 2018, p. 2).
Dentre vários problemas, destacamos que o projeto não definia o que seria doutrinação ideológica e questionava apenas temas abordados pelo campo das esquerdas, ficando subentendido que o campo das direitas não era ideológico e nem promovia a doutrinação. Ademais, colocava a escola e o professor em conflito com a comunidade, sobretudo com pais e mães dos estudantes (PENNA, 2017). Esse tipo de projeto de lei difunde e consolida discursos sobre a desarticulação e extinção das famílias e de seus valores, o que é muito eficiente para produzir o pânico moral (CAMPANA, MISKOLCI, 2017, BALIEIRO, 2017). Termos como doutrinação marxista, marxismo cultural e, especialmente, ideologia de gênero se tornaram comuns em diversos espaços, sobretudo nas escolas, bem como em discussões sobre a educação escolar. Isso resultou em constantes ataques à educação e ações de vigilância sobre os docentes (MIGUEL, 2016).
As ações do MESP e de seus defensores políticos não estavam ligadas apenas às pautas de costumes, mas também a projetos neoliberais de privatização da educação pública que buscavam implementar uma reforma empresarial da educação (FREITAS, 2018). Tais projetos evocam ambientes autoritários, pois preconizam a escola como espaço de intolerância, vigilância e delação, com o professor sendo controlado em sala de aula. Isso coloca a escola sob suspeita frente à sociedade: de uma instituição de confiança, passa a ser um lugar perigoso para os filhos de pais extremamente zelosos por sua educação. Para Gadotti (2016, p. 151):
A delação virou sinônimo de virtude. E é premiada. Fazem a população acreditar que é para o bem do país. Estimulam pais, familiares, alunos a entregar seus professores, impedindo uma ação crucial no processo educacional que é a problematização da realidade.
Promoveu-se na sociedade uma ampla criminalização do trabalho pedagógico e se criou, a partir desses debates e projetos, um ambiente de perseguição aos docentes. Alguns dos projetos apresentados previam pena de até um ano de prisão se o docente fosse condenado por doutrinação (GADOTTI, 2016, p. 153). Trata-se de uma perspectiva tecnicista, empresarial e utilitarista, que esvazia ainda mais a escola como um espaço crítico, diverso, promotor de reflexões sobre a realidade e de uma formação cidadã (FRIGOTTO, 2018, GADOTTI, 2016).
Após o golpe de 2016, deu-se um novo impulso aos constantes ataques que a educação pública vinha sofrendo por décadas6. Frigotto aponta que a profissão docente e o sistema educacional estão ameaçados pelo modelo neoliberal que o governo Temer procurou implementar - e que persistiu sob a administração de Bolsonaro. É uma educação tecnicista, esvaziada de uma leitura crítica e de sentidos de mundo, considerando que o MESP:
não liquida somente a função docente, no que a define substantivamente e que não se reduz a ensinar o que está em manuais ou apostilas, cujo propósito é de formar consumidores. (…) A pedagogia da confiança e do diálogo crítico é substituída pelo estabelecimento de uma nova função: estimular os alunos e seus pais a se tornarem delatores (FRIGOTTO, 2017, p. 31).
Os discursos presentes nas pautas desses grupos conservadores se posicionam contra doutrinações e ideologias. Apesar disso, o MESP é claramente político e ideológico, possuindo:
Um sentido autoritário que se afirma na criminalização das concepções de conhecimento histórico e de formação humana que interessam à classe trabalhadora e em posicionamentos de intolerância e ódio com os movimentos sociais, em particular o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Mas também, o ódio aos movimentos de mulheres, de negros e de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros (FRIGOTTO, 2017, p. 18).
Penna (2017) defendia que o discurso do MESP deveria ser levado a sério por sua força na sociedade, impulsionado pelas redes sociais, apesar de ser absurdo desde uma perspectiva pedagógica e cidadã. Em suma, ele é composto pelos seguintes elementos: concepção de escolarização como mercadoria, desqualificação do professor, controle total dos pais sobre os filhos, defesa da meritocracia e discurso fascista. O IFG pode observar esse fenômeno muito de perto: uma atividade de artes se tornou o que chamamos de Grafites da discórdia, apresentando elementos relevantes para se ler e entender o que aconteceu na sociedade brasileira em geral e, no município de Formosa em particular.
GRAFITES: OBJETOS DA DISCÓRDIA E RESPALDO PARA A AÇÃO PEDAGÓGICA
A intervenção que analisamos fazia parte de um trabalho desenvolvido pelos professores da disciplina de Artes com o objetivo de estimular a produção artística e dar mais vida e cor ao campus. Dentre as diversas pinturas, duas desencadearam a discórdia: três grafites que replicavam uma releitura da Monalisa feita pelo artista contemporâneo Banksy7 (figura 1) e a releitura de uma das obras sobre a Santa Ceia do pintor renascentista Tintoretto8 (figura 2). Esta última vinha acompanhada pelo trecho de um rap composto pelos estudantes9.
De início, é importante destacar que a produção artística foi realizada no contexto de uma atividade pedagógica orientada pelos professores da área e respaldada por um conjunto de normas da instituição. Ademais, cabe lembrar o que preceitua a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDBEN)10. Destacamos três pontos importantes contidos no documento: formação diversificada, de caráter crítico e a autonomia das instituições. No artigo 1º vemos como o sentido de educação é amplo e diverso em sua concepção:
A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. (BRASIL, 1996, s.p.)
Além da abrangência cultural do processo educativo, a liberdade de aprender e ensinar aparece como central nas diretrizes educacionais. Ainda na LDBEN, artigo 3º, inciso II, temos como valores para o processo ensino-aprendizado a “[...] liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber”. A LDBEN também retoma a questão da liberdade com a defesa da(s) autonomia(s) das instituições e afirma no artigo 15:
Os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educação básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira, observadas as normas gerais de direito financeiro público (BRASIL, 1996, s.p.).
Da mesma forma que a LDBEN, a lei de criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (lei 11.982/2008) garante a autonomia educacional às instituições de ensino. Está explícito no parágrafo único de seu artigo 1º que os institutos “[...] possuem natureza jurídica de autarquia, detentoras de autonomia administrativa, patrimonial, financeira, didáticopedagógica e disciplinar” (BRASIL, 2008, s.p.).
O respeito pela autonomia e por uma formação crítica, omnilateral e cidadã também aparece em documentos específicos do IFG. O Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) vigente à época da atividade11, diz o seguinte:
O objetivo precípuo do IFG é mediar, ampliar e aprofundar a formação integral (omnilateral) de profissionais-cidadãos, capacitados a atuar e intervir no mundo do trabalho, na perspectiva da consolidação de uma sociedade democrática e justa social e economicamente. Portanto, o seu papel social é visualizado na produção, na sistematização e na difusão de conhecimentos de cunho científico, tecnológico, filosófico, artístico e cultural, construída na ação dialógica e socializada desses conhecimentos (IFG, 2013-A, p. 10).
O PDI também afirma que os conteúdos das disciplinas de seus cursos devem contemplar “[...] as múltiplas dimensões da formação humana, o espírito crítico, a capacidade de tomar decisões, de posicionar-se frente aos contextos de crise e de mudanças e a autonomia intelectual e de trabalho” (IFG, 2013-A, p. 40). Os projetos pedagógicos dos cursos técnicos do campus Formosa indicam entre seus objetivos específicos: “Favorecer o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (IFG, 2013-B, p. 3).
A proposta da atividade da disciplina de artes foi apresentada em reunião ordinária do Conselho Departamental, composto por representantes de servidores, de discentes e da gestão do campus. Nesta reunião, o trabalho foi aprovado e considerado positivo para o projeto educacional da instituição. Após uma série de etapas preparatórias, em 18 de janeiro de 2018 ocorreu a pintura de diversas imagens nas paredes do campus. No dia seguinte à ação, foi registrada a primeira denúncia à ouvidoria, que foi seguida por outras cinco manifestações contrárias aos grafites, protocoladas no período de dez dias. Em paralelo, o MPF foi contatado, tendo solicitado informações à direção do campus no dia 1º de fevereiro de 2018 (MPF, 2018-A). Mesmo com as devidas respostas institucionais, que destacavam o contexto e o caráter educativo das obras artísticas contestadas, o MPF recomendou o apagamento das pinturas, através de um ofício datado de 28 de fevereiro de 2018 (MPF, 2018-B). Ocorreram diversas manifestações públicas de apoio ao trabalho docente, tanto dentro quanto fora do IFG. No entanto, o Colegiado Departamental12 acatou a recomendação do MPF considerando as possíveis repercussões jurídicas da manutenção dos grafites. Assim, no fim de março de 2018 as pinturas questionadas foram apagadas das paredes, que voltaram a ser meramente brancas.
ANÁLISE DO DISCURSO DESCONTENTE COM OS GRAFITES: UM RESUMO DE 2018
Consideramos que o discurso descontente com os grafites expressa aspectos da ação conservadora no âmbito escolar. O discurso analisado denota que os grafites escandalizavam a religião e a moral de alguns grupos, bem como o pudor e a dignidade da mulher. Na argumentação, os estudantes não deveriam ser incentivados a desenvolver ações desse tipo. Abaixo, alguns exemplos de tais ideias:
Tais grafites apresentam conteúdo ofensivo à dignidade da mulher, ao pudor e à religião. (IFG, 2018-A, p. 1).
E ainda senti meus valores religiosos ofendidos, pois se o IFG é laico, nenhum professor tem o direito de ofender nenhuma religião nem incentivar alunos menores de idade a pensar que isso é normal. (IFG, 2018-A, p. 1).
Considerando que a inscrição É um momento complicado, hora de tomar no rabo, estão todos reunidos, é a santa ceia do diabo, ao lado de uma figura que remete ao símbolo cristão da santa ceia, assim como as 3 (três) imagens de mulher levantando o vestido e mostrando as nádegas, confeccionados e expostos nas paredes do IFG-Formosa têm, de fato, aptidão para ofender a ética, a moral e o sentimento religioso, bens jurídicos protegidos constitucionalmente. (MPF, 2018-B, pp. 1-2).
A ideia de ofensa é recorrente nos trechos destacados. Essa compreensão sobre as obras remete ao pânico moral, trabalhando com a retórica da ameaça aos alicerces da sociedade, no caso, a religião cristã. O discurso aponta para valores sociais feridos que precisariam de proteção. A ameaça é apresentada como real, tendo por base o descontentamento social com as expressões artísticas. Afinal, segundo os documentos analisados, parte da população da cidade ficou estarrecida com os conteúdos dos grafites questionados, como indicam os seguintes trechos:
A população tem se manifestado contrária a essas imagens nas redes sociais gerando ainda mais uma imagem negativa do IFG. (IFG, 2018-B, p. 1).
Também fico muito entristecida de que a imagem do IFG pode estar sendo distorcida pela população da cidade. Nos anexos há um print de um grupo de rede social da cidade. A cidade tem cultura de interior, a maioria das famílias ainda é composta por pais e mães conservadores, de certa forma, de origem humilde. E esse contexto deve ser considerado. Não que o IFG tenha que ser retrógrado para se adequar à cultura da cidade, mas, ao contrário, penso que o IFG possa ser uma fonte de cultura para cidade, as pessoas deveriam ter o interesse em conhecer, fazer parte dos projetos, participar das discussões, mas não é com imposições de idealismos que isso vai acontecer. Na cidade há diversos comentários sobre o assunto: o que percebi foi uma certa arrogância de muitos dos alunos comentaram em redes sociais, e, inclusive até de um professor que sugeriu em redes sociais que a população de Formosa é que não tinha estudo suficiente para compreender aquela arte. (IFG, 2018-C, p. 2, grifo nosso).
O incômodo da população deslegitimaria o trabalho pedagógico, pois era necessário preservar a imagem institucional do IFG. Tal discurso expõe limites à autonomia da instituição educacional, além de evidenciar a ampla vigilância social à ação docente. Não apenas membros da comunidade escolar eram contrários aos grafites, mas também a população em geral, que estava atenta ao que acontecia no campus.
Outro elemento do discurso contrário aos grafites é o questionamento da qualidade dos trabalhos propostos pelos professores e realizados pelos estudantes:
Por fim, foi falta de respeito e falta de bom senso por parte desse professor que incentivou esse tipo duvidoso de arte. (IFG. 2018-A, p. 1).
Não conheço a arte, mas essa questão de compreender o sentido das coisas olhando as várias vertentes tem sido uma porta pela qual vários artistas contemporâneos têm entrado com o intuito que ofender mesmo aquilo com o qual eles não se identificam, discordam ou protestam. (IFG, 2018-C, p. 1).
Achei de muito mal gosto também a imagem da Monalisa/Jesus, especialmente num momento em que as mulheres têm lutado para não serem vistas como objetos sexuais. Sei que pode não ter sido essa a intenção dos criadores, mas gera também essa interpretação pra quem não sabe o contexto das intenções reais de quem grafitou, o que, no caso, é a maioria das pessoas que verão a imagem. (IFG, 2018-C, p. 2).
Os trechos destacados revelam a desconsideração do contexto pedagógico e do saber dos profissionais responsáveis pela ação. Vale notar a contradição evidente na forma de argumentar: “Não conheço arte, mas…”. A desqualificação das produções também revela o desprezo pelo conhecimento acadêmico necessário para a realização dos trabalhos, questionando o papel da arte a partir de impressões pessoais ou do próprio apreço.
O fundamentalismo religioso também teve forte presença nas queixas, chegando a haver a associação do grafite da Monalisa com a imagem de Jesus e da Trindade - uma interpretação extremamente criativa e surpreendente, que não encontra nenhuma base nem no contexto de produção da obra original nem no da releitura. Os grafites seriam inconvenientes porque foram interpretados como ofensivos à religião e, com isso, poderiam constranger o público que circula pelo ambiente escolar, como se vê nos trechos a seguir:
Peço que essas pinturas sejam retiradas, pois eu me senti humilhada e ultrajada, pois vi três alunos do sexo masculino simulando sexo com a pintura da Monalisa com a bunda empinada de fora. (IFG, 2018-A, p. 1).
Gerou um clima desagradável e acredito que providências devem ser tomadas para apagar essas imagens por se tratar de algo ofensivo. (IFG, 2018-B, p. 1).
Acredito que a frase e (sic) pesada, assim como a imagem da Monalisa/Jesus. O campus Formosa há uma circulação de crianças e acredito não ser adequada para esse público. (IFG, 2018-C, p. 3).
Tais expressões de descontentamento precisam ser lidas ao lado do questionamento sobre a qualidade das obras. Parece que se as imagens não fossem ofensivas, pesadas ou ultrajantes, poderiam permanecer no local. Deveriam ser apagadas por gerarem interpretações múltiplas, eliminando a diversidade e pluralidade da convivência no espaço escolar. O conflito e sua resolução por meio do diálogo são substituídos pelo silenciamento da arte. A solicitação de apagamento desconsidera as oportunidades de aprendizagem que poderiam ser propostas sobre questões de gênero, sexualidade e respeito ao outro.
Percebemos que os argumentos reconhecem a liberdade de expressão, mas dentro de certos limites. Não seria possível manter grafites com base no direito à liberdade de expressão por causa de seu potencial ofensivo. Antes de qualquer aprofundamento da análise ou do diálogo, o veredito de apagar os grafites já estava dado. Os seguintes trechos apontam para tal elemento discursivo:
Possuir liberdade e/ou senso de arte é atacar os princípios e a moral dos outros? Isso é possuir direitos iguais e de expressão, disseminando a incitação e a dissensão. Se o estado é laico e se configura dissensão/perseguição/ofende os princípios e a moral de um dado grupo é crime. (IFG, 2018-C, p. 1).
Considerando que a ideia de limites de direitos remonta ao pensamento filosófico do Iluminismo, o qual encontra formulação jurídica na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, na França, o qual preconiza que a liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique outra pessoa: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem só encontra limites naqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos. Tais limites só podem ser determinados pela lei (artigo 4º); Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei (artigo 10º) e ainda que a sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração (artigo 15º), os quais encontram correspondentes positivados no ordenamento jurídico pátrio. (MPF, 2018-B, p. 3).
O discurso questiona a liberdade, expondo limites. Os grafites violariam os direitos de certos grupos que, por isso, precisavam ser protegidos. O discurso descontente impõe limites à liberdade de expressão a priori, embora seja dito que a ofensa aconteceu a posteriori. Limitar a expressão a priori é o que caracteriza a censura, ou seja, o impedimento à livre expressão. Limitar a expressão a posteriori é identificar direitos violados com a expressão e assim realizar a proteção aos sujeitos que sofreram a violação de seus direitos.
Além disso, aquela expressão artística seria inadequada ao ambiente escolar por causa da vulnerabilidade emocional e intelectual dos estudantes - desconsiderando que os próprios estudantes a executaram. Alguns trechos da recomendação do MPF são reveladores desses elementos discursivos:
devendo ser evitada, no âmbito da Administração Pública, a exposição de conteúdo erótico ou que estimule a eroticidade precoce de crianças e adolescentes
(...)
direito dos pais a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções (...)
Considerando que a exposição de tais imagens em uma unidade de ensino federal, que possui entre seus discentes menores de 18 anos de idade, em nada contribui para o papel da escola na formação moral dos adolescentes e jovens, indivíduos imaturos e inexperientes, intelectual e emocionalmente vulneráveis. (MPF, 2018-B, p. 4)
O papel da escola na formação moral aparece como fundamento para a vigilância dos docentes, embasando-se na vulnerabilidade intelectual e emocional dos estudantes. A tutela requerida pela procuradora federal é incompatível com o estímulo à autonomia discente, inerente ao processo educativo. Reafirmava a eroticidade fora de lugar e ameaçadora da imagem da Monalisa, desconsiderando o contexto de vida dos próprios estudantes.
O questionamento do papel e da forma do ensino de artes também aparece nos documentos analisados, que manifestam a ideia de uma arte atual em conflito com certos valores morais. A arte deveria embelezar e não constranger nem gerar desconforto, conforme se vê nos seguintes trechos enviados à ouvidoria:
A arte deveria aproximar as pessoas através de sua beleza, ainda que crítica, mas a arte atual, na maioria das vezes, tem se tornado repulsivo e feio (...).
A arte é ensinada hoje como o meio de se expressar tudo o que se pensa ou se deseja fazer e se por algum motivo ela for rejeitada por ser ofensiva e desrespeitosa, os tais artistas dizem que devem ser olhadas as várias vertentes da obra e entender o seu real sentido... Dizem que não são compreendidos e tal, mas a arte não pode ser o caminho para a desconstrução de valores fundamentais para a sociedade. (IFG, 2018-C, pp. 1-2)
Esse discurso explicita a desconsideração pelo trabalho pedagógico realizado. Ao desqualificar os produtos da ação educativa, nega-se o conhecimento que a embasa. A exigência de beleza desqualifica a arte com base no apreço pessoal. Isso parece incompatível com a liberdade e a autonomia da ação pedagógica, configurando vigilância à ação docente e, ao mesmo tempo, negação do saber acadêmico.
Por fim, o discurso contrário aos grafites aborda a legitimidade pedagógica da atividade e indica possíveis desdobramentos legais. O primeiro trecho destacado diz que não houve autorização para a elaboração das obras questionadas, tampouco autorização para sua manutenção. Ademais, afirma que o trabalho pedagógico já teria cumprido o objetivo e, assim, os grafites poderiam ser apagados, como se vê no terceiro trecho em destaque. No entanto, para além das críticas, a fim de evitar medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis nas esferas competentes, a perda da autonomia dos docentes, dos discentes e da instituição foi consolidada. Sigamos as manifestações:
Foi autorizado a grafitagem, porém essas imagens não estavam na lista prevista. (IFG, 2018-B, p. 1).
Requisito, desde logo, ao representante legal do IFG - Campus Formosa, no prazo de 10 (dez) dias, informações sobre as medidas adotadas no sentido de acatar os preceitos da recomendação em destaque. Registro, da mesma forma, que, em caso negativo, poderão ser adotadas por este órgão do Ministério Público Federal as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis nas esferas competentes. (MPF, 2018-B, p. 5).
Admiramos o trabalho do professor. Ele conseguiu atingir seu objetivo. Os alunos praticaram a arte do grafite. Houve bastante discussão. O professor já deu a nota. A aluna que propôs o desenho da Monalisa é do terceiro ano e está deixando o campus nessa semana. Sendo assim solicito que as paredes sejam pintadas novamente e os grafites retirados. (IFG, 2018-C, p. 2).
A partir da análise documental realizada, percebemos que aos principais elementos discursivos são os seguintes: os grafites são ofensivos; a comunidade externa é contrária aos grafites; grafites não são arte; os grafites são constrangedores; liberdade de expressão tem limite; escola não é lugar de grafite; a arte deve embelezar e não constranger; os grafites não foram autorizados; os grafites promovem doutrinação e ideologia de gênero. A partir disso, restou a compreensão de que os grafites em questão não foram autorizados. O argumento entende ser impossível autorizar algo ofensivo, constrangedor, inadequado e feio. Nada mais importa. Essas avaliações, ações e conflitos enfraquecem a autonomia das instituições e dos professores, criminalizam a ação educacional e criam uma falsa imagem de oposição entre escola e sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: A SANTA CEIA DO DIABO
Ao analisar a discórdia em torno dos grafites, destacando elementos discursivos de sujeitos descontentes com a ação pedagógica geradora da expressão artística, foi possível perceber a ação conservadora no âmbito escolar. Conservadorismo que se apresenta como autoritarismo de cunho reacionário, com diversas características destacadas pela literatura especializada. Em particular, o que se verificou foi discurso que aponta para: a negação do conhecimento acadêmico como forma de desvalorização do saber pedagógico; a criminalização e a vigilância à atividade docente sendo estabelecidas como prática cotidiana de engajamento político; e a disseminação de pânico moral como forma de mobilização de apoiadores.
Como sinalizado, não é possível apontar diretamente filiações de sujeitos emissores dos discursos analisados com o movimento Escola Sem Partido. Ao mesmo tempo, os elementos discursivos apontam para valores e táticas de ação propagadas pelo movimento e pelo ambiente político nos últimos anos. Dessa forma, é possível falar da influência contextual no caso concreto em análise e vislumbrar, nessas pinceladas e apagamentos, aspectos de um imaginário favorável a autoritarismos e agendas reacionárias. Afinal, a forma de reclamação indica articulação entre os sujeitos, em especial, na bem sucedida denúncia ao Ministério Público. Bem sucedida porque usou a capacidade de intimidação e persecução institucional para alcançar o objetivo precípuo da ação: o controle da atividade pedagógica resultando no apagamento dos grafites.
O apagamento foi declarado como resultado pretendido pelos sujeitos descontentes com os grafites nos diferentes documentos analisados. O diálogo com estudantes e professores envolvidos na atividade em momento algum foi mencionado nas reclamações, tampouco pareceu haver interesse pela compreensão do contexto da ação pedagógica. Isso pode revelar justamente o autoritarismo como signo da ação conservadora colocada em movimento no âmbito do IFG nesta contenda relativa aos grafites e às discórdias. Autoritarismo como atitude política que nega a diferença e não se dispõe a escutar o outro. Autoritarismo social que permeia relações cotidianas e dá base para ações institucionais como a recomendação da integrante do MPF. Com isso, podemos apontar que o conservadorismo se coloca em movimento por meio de tais práticas autoritárias no âmbito escolar, em particular, com a ausência de abertura para a escuta, bem como a negação do diverso e do contraditório no debate público. Isso leva à imposição de perspectivas específicas e ao silenciamento de adversários quando os meios democráticos são desconsiderados na ação política.