1. Introdução: Hegel e a modernidade política
Pretendo aqui examinar a relação entre liberdade e eticidade no pensamento de Hegel, tendo como foco o seu diagnóstico crítico da modernidade política. O traço principal dessa modernidade é a diferenciação e a separação entre a sociedade civil e o Estado, que Hegel, pela primeira vez, estabelece conceitualmente em toda a sua clareza.1 Essa diferenciação, que é também a cisão entre o indivíduo burguês e o cidadão, entre a vida privada e a vida pública, resulta de um processo histórico através do qual a sociedade civil se emancipa do poder feudal e do Estado absolutista da primeira modernidade, conquistando, progressivamente, a sua independência relativa em face do Estado. Essa emancipação ocorre na medida em que a sociedade civil se constitui como a esfera própria das relações mercantis e da realização dos interesses particulares do indivíduo singular, tornando-se, assim, sociedade civil moderna. Seu princípio fundamental é o indivíduo singular que passa a ser um “fim para si”2. Mas como ele só pode realizar seus fins particulares na sua relação aos outros, esse mútuo entrelaçamento da efetivação dos fins particulares de cada um adquire em sua conexão a “forma da universalidade”, no sentido de uma universalidade “formal”, que se torna então a mediação e a medida da realização do bem-próprio de cada indivíduo (FD §§ 182 e 183). Nessa sua diferença, a sociedade civil “pressupõe o Estado” (ibid.), que, enquanto esfera pública, passa a concentrar o poder político, e deixa de ser pensado como idêntico com a societas civilis clássica no sentido político, como ocorre em Hobbes, Rousseau e, mesmo em Kant, que ainda explicita o conceito de societas civilis por um “isto é, um Estado” e fala em outra passagem de “sociedade civil do Estado”3. Trata-se de um longo processo, que, no Ocidente, se inicia na Alta Idade Média, se prolonga na época das monarquias absolutistas e se consolida em seu paradigma ao final do século XVIII com as revoluções políticas, em linha paralela à formação do capitalismo e ao aprofundamento da subjetividade e da autonomia da razão, no sulco das três potências históricas propulsoras da modernidade e da liberdade subjetiva que são o Cristianismo4, a Reforma protestante5 e o Iluminismo, especialmente em sua expressão filosófica mais acabada que é a tese kantiana da autonomia da razão6.
O cristianismo, pela universalidade da sua mensagem que se endereça a todos os povos do Império Romano e a todos os homens, independentemente de serem senhores ou escravos, bem como pela crença num deus transcendente, não ligado à cidade terrena, favoreceu a emergência do indivíduo e o libertou de sua pertença à pólis e ao império. Ele se endereça primariamente à liberdade do indivíduo, a fim de obter a sua adesão individual e despertar a sua responsabilidade pessoal. Mas isso não impediu que ele tenha se acomodado ao Estado antigo e, mais tarde, à civilização feudal, na medida em que, pelo menos inicialmente, não se propunha a transformar a ordem política, de sorte que não há esse vínculo direto entre o cristianismo e o indivíduo moderno, como Marx sugere.7 Mesmo o individualismo religioso protestante não teve uma influência direta no surgimento do indivíduo social e político, mas ele antes forneceu um quadro que, certamente, se adaptou e favoreceu o individualismo moderno.8 Mas é indiscutível que as guerras de religião que se seguiram à divisão das confissões protestantes, na medida em que provocaram a separação entre o domínio político e o religioso, entre o Estado e a religião e consolidaram a distinção entre o súdito submetido ao príncipe e o crente que tem a liberdade de consciência de escolher a sua fé, elas prenunciaram a distinção moderna entre o cidadão e o indivíduo, entre o Estado e a sociedade, inaugurando o processo da modernidade política. 9
Nesse último aspecto, Hegel é por excelência o filósofo da modernidade política, porque ele rompe com a sinonímia clássica, vigente no pensamento político até então, entre sociedade civil e Estado, ao estabelecer claramente, pela primeira vez, a diferença conceitual entre ambos e ao reconhecer a “cisão” do homem moderno entre o cidadão e o indivíduo burguês. Mas, ele é também o seu crítico, ao diagnosticar o antagonismo estrutural da sociedade civil moderna (FD §§ 243-245) e propor um “direito de regulação” (FD § 236) do conflito dos interesses particulares pelo “poder público” (ibid.), bem como uma superação daquela cisão entre o indivíduo e o cidadão por meio de uma representação política corporativa enraizada nas organizações profissionais e associações cooperativas da sociedade civil (FD §§ 230; 250-255). Ele justifica essas duas propostas críticas mediante a sua tese de que a esfera da eticidade abrange (übergreift), além da família, a sociedade e o Estado, de sorte que na universalidade concreta do Estado a liberdade do cidadão está normativamente acima da liberdade do indivíduo burguês e dos seus direitos subjetivos, mas só na medida em que aquela é ao mesmo tempo a condição e a garantia desta.10
2. Os três registros da “apresentação” (Darstellung) do conceito de liberdade e sua centralidade na filosofia de Hegel
Inicialmente o conceito de liberdade será abordado de maneira concisa nos seus três registros principais: o da sua estrutura lógico-conceitual, o das figuras que ela assume enquanto espírito subjetivo e o da sua efetivação como espírito objetivo. Mas o interesse principal se concentrará, aqui, na apresentação das duas figuras fundamentais da sua efetivação moderna, que são abordadas no âmbito do que Hegel veio a conceituar como o espírito objetivo. Elas são a pessoa portadora de direitos subjetivos e o sujeito moral em sua liberdade subjetiva, que constituem os dois pilares da modernidade política e as duas condições elementares de uma eticidade moderna e reflexiva. Na divisão sistemática do espírito objetivo elas são apresentadas nas duas primeiras partes, respectivamente, como a forma imediata da efetivação da liberdade na esfera do direito em sentido estrito, denominada por Hegel de O Direito Abstrato (Iª Parte), e como a forma da sua efetivação reflexiva enquanto sujeito moral na esfera denominada A Moralidade (IIª Parte). Elas são condições necessárias, mas não suficientes da efetivação da liberdade. Por isso Hegel as considera, bem como as duas respectivas esferas da sua apresentação, “abstratas” em relação à esfera da eticidade (a terceira parte do espírito objetivo), que designa o solo concreto e histórico da efetivação da pessoa e do sujeito moral na família, na sociedade civil e no Estado. Aqui, por razões de espaço, a eticidade será visada mais como um horizonte e uma meta da ultrapassagem dessas duas condições e esferas abstratas, do que examinada na sua riqueza temática própria, pois é principalmente na sua teoria da sociedade civil (Segunda Seção da Terceira Parte) que, com a incorporação da economia política clássica no campo da filosofia, Hegel se mostra mais claramente como um filósofo da modernidade política e, também, como o seu crítico.
O conceito de liberdade é não só o conceito central do pensamento ético-político de Hegel, mas também um conceito que polariza e mobiliza toda a sua filosofia, nas três grandes partes da sua sistematização enciclopédica, a Ciência da Lógica, a Filosofia da Natureza e a Filosofia do Espírito. O ponto de partida sistemático para estabelecer a relação entre liberdade e eticidade é a tese de que a liberdade é não só uma propriedade do espírito, mas que ela constitui a sua essência, no sentido dinâmico de que ela é a “negatividade absoluta”, graças à qual o espírito pode negar toda determinação e toda exterioridade, inclusive a sua própria, a dimensão de naturalidade do seu corpo, “sua imediatidade individual” e, assim, “suportar a dor infinita” dessa negação. (E § 384) Essa é uma das maneiras de formular o pressuposto metafísico que está na raiz de toda a filosofia hegeliana: o de que a razão enquanto liberdade não permanece um mero dever-ser (Sollen), mas que ela tem a força de se autoefetivar, pressuposto que o desenvolvimento sistemático do seu pensamento tem a tarefa de justificar. A interpretação aqui proposta é a de que, apesar desse pressuposto e do arcabouço metafísico do sistema enciclopédico, mas também graças a eles, e segundo a tese de que a tarefa da filosofia é apreender em conceitos o seu tempo presente, a filosofia hegeliana elabora um diagnóstico filosófico da modernidade política, o qual é, igualmente, uma crítica dos seus limites e, em alguns aspectos, uma radicalização que aponta para além dela mesma.
A relação entre liberdade e eticidade se estabelece no âmbito do “espírito objetivo”, que Hegel concebe, isto é, conceitua como a objetivação e a efetivação progressivas da liberdade no âmbito de uma exterioridade, que ele chama de ser-aí (Dasein). Esta esfera de exterioridade objetiva, na qual a liberdade tem de se efetivar para não permanecer uma liberdade meramente subjetiva, constitui o direito no sentido amplo. Nessa esfera a liberdade adquire também a “forma de necessidade” (E § 484), de sorte que, muitas vezes, a consciência que a liberdade tem de si necessariamente se confronta com essa necessidade que o mundo objetivo adquire na sua exterioridade previamente dada, embora ele seja igualmente um resultado do desenvolvimento e da efetivação da liberdade. Por isso, essa esfera do espírito objetivo, na qual liberdade se objetiva e se interpenetra com a necessidade, é concebida por Hegel como a esfera do direito no sentido lato, donde o título da obra, Linhas fundamentais da filosofia do direito, que expõe mais detalhadamente a partir do conceito de liberdade os princípios do pensamento ético-político de Hegel. Sua própria divisão sistemática em três partes, a do Direito em sentido estrito, denominada de Direito Abstrato, a da Moralidade e a da Eticidade, já é um diagnóstico crítico da modernidade. Isso porque, ao contrário das filosofias transcendentais de Kant e Fichte, que representam para Hegel a consciência filosófica mais avançada da sua época e que organizam a sua filosofia prática segundo a dualidade entre Doutrina do Direito e Doutrina das Virtudes, respectivamente, Doutrina do Direito e Doutrina dos Costumes, Hegel introduz uma diferença entre moralidade e eticidade, tornando a esfera da moralidade a mediação entre o direito abstrato, enquanto efetivação imediata e ainda abstrata da liberdade, e a eticidade, enquanto efetivação concreta e institucional da pessoa como sujeito de direitos e da liberdade subjetiva do sujeito moral. Esta é a sua maneira de superar os dualismos característicos da filosofia transcendental entre espírito e natureza, liberdade e necessidade e, mais genericamente, entre razão e sensibilidade, entre o puro e o empírico.
Os três níveis ou registros, já mencionados, nos quais a teoria da liberdade de Hegel se explicita são concebidos igualmente como etapas da sua efetivação processual: o nível lógico-conceitual, que apresenta o seu núcleo elementar, o nível do espírito subjetivo e o nível em que ela se efetua como direito no espírito objetivo. Hegel concebe a liberdade como constituindo a “substância e a destinação da vontade” (FD § 4), de maneira análoga a como o ser pesado constitui os corpos (FD § 4, Ad.). Mas embora os diferencie, liberdade e vontade livre são conceitos que Hegel usa um tanto livremente de maneira equivalente, pois elas não são, para ele, faculdades realmente distintas, e a liberdade não é apenas um atributo da vontade. Assim como a vontade livre não é uma “faculdade”, o “espírito” também não é uma entidade supra-individual já previamente constituída, mas uma realidade processual: quando Hegel o concebe como a “definição mais alta do absoluto” (E § 384 A), ele está dizendo que o absoluto nada mais é do que o todo da realidade concebido processualmente ao tomar consciência de si no espírito, através do qual esse processo se manifesta e se expressa. Assim, esta auto-explicitação do absoluto, que é o todo da realidade, não é diferente da sua reconstituição em pensamento no âmbito do espírito pela filosofia. Analogamente, “espírito objetivo” não é um sujeito coletivo, mas a objetivação e efetivação processual da liberdade na figura do direito no sentido amplo do normativo: ele é o “reino da liberdade efetivada [...] como uma segunda natureza” e “sistema do direito [...] produzido como mundo do espírito a partir do próprio espírito”. (FD § 4)
3. A estrutura lógico-conceitual do conceito de liberdade
O primeiro nível da apresentação da liberdade ou vontade livre é o da análise do seu núcleo elementar considerado em sua estrutura lógica, constituída pelos três momentos do seu conceito: a universalidade, a particularidade e a singularidade. Momentos são elementos constitutivos e, ao mesmo tempo, processuais no desenvolvimento de algo naquilo que ele é e vem a ser. 1) O primeiro momento da vontade livre é o da universalidade, resultante da negação de toda determinação finita. Ele é caracterizado como “a infinitude ilimitada da abstração absoluta ou universalidade” (FD § 5). Para esclarecê-lo Hegel recorre a um exemplo extremo, dizendo que só o homem pode se suicidar: o suicídio é, assim, o resultado da liberdade considerada exclusivamente nessa universalidade abstrata, dessa negatividade da abstração ilimitada levada ao extremo da sua unilateralidade.
2) Mas a universalidade nesse sentido da “abstração absoluta” é só um primeiro momento da liberdade, pois essa universalidade é ao mesmo tempo a origem da determinação que dá um conteúdo à vontade livre, ela é a passagem “da indeterminidade indiferente à diferenciação” (FD § 6). Este é o momento da sua finitude ou da sua particularização e limitação, o momento da sua existência externa, do seu “ser-aí”. “Eu não apenas quero, mas quero algo.” (FD § 6 Ad.) Eu me ponho ativamente nesta determinação. Quem não sabe assumir a sua determinação, que é também um limite, uma restrição, não é livre. A justificação especulativa dessa passagem necessária é que a negatividade abstrata da universalidade indeterminada já é ela mesma uma determinidade, pois, enquanto determinidade, já contém nela a negação de si mesma enquanto abstração absoluta.
3) O passo seguinte consiste em mostrar que a vontade livre nem é só negar toda determinação, nem só pôr a sua determinação, isto é, negar a sua indeterminidade, mas que ela é a “unidade desses dois momentos” (FD § 7), a qual se concretiza como o momento da singularidade. Mas a singularidade não é apenas uma unidade externa, aditiva daqueles dois primeiros momentos, mas uma interpenetração da universalidade e da particularidade, no sentido de que a vontade livre na sua determinação permanece nesta “em sua identidade consigo e em sua universalidade” (FD § 7). A singularidade é, assim, a “suspensão” (Aufhebung) dos dois primeiros momentos, isto é, ela os nega, os conserva e os ergue a uma unidade superior. Em relação a esse terceiro momento, os dois anteriores são “abstratos”: o concreto é o movimento, o processo da “passagem” do universal ao particular no qual ele se determina, e o retorno do particular pela sua reflexão dentro de si ao universal, ao qual ele se iguala novamente, tornando-se nisso singular.11
Se o momento da universalidade nega toda determinação, a determinação particular, por sua vez, nega a universalidade indeterminada e abstrata da universalidade. Estão aí presentes duas negações simultâneas, que se negam mutuamente, graças às quais a universalidade e a particularidade se interpenetram e constituem esse terceiro momento da singularidade. Ela é concebida dialeticamente como dupla negação, negação da negação, no sentido de uma “negatividade que se relaciona a si mesma” (FD § 7). Por meio dessa negatividade autoreferente a determinação torna-se uma “autodeterminação” da vontade livre, porque nessa determinação a vontade se une, “se encadeia” (sich zusammenschliesst) novamente consigo mesma, ela “sabe [essa determinação] como sua”, e, por isso, não está mais presa, “vinculada” a ela, pois sabe que foi ela mesma que se pôs nessa determinação. A singularidade enquanto autodeterminação é exemplificada pelo sentimento da amizade e do amor: cada um se limita de bom grado em relação a outrem e sabe-se como sendo si mesmo nessa limitação (FD § 7 Ad.). Estar ou saber-se junto a si mesmo em outrem ou no outro é a característica mais ampla do conceito de liberdade. Esta é a estrutura lógico-conceitual do conceito de liberdade ou vontade livre, que Hegel desenvolve e justifica na Doutrina do Conceito da Ciência da Lógica. Esse conceito atua como a célula elementar, o princípio de articulação e tema subjacente de toda a filosofia de Hegel. É uma célula que se expande e perpassa a apresentação dos diferentes temas, especialmente e de maneira mais visível o seu pensamento ético-político.
Nessa conceituação da liberdade pelo movimento complementar das duas negações já se delineia um aspecto do diagnóstico crítico da modernidade filosófica: o conceito de autodeterminação de Hegel incorpora e transforma o conceito kantiano, em sua origem rousseauniana, de autonomia da razão enquanto razão prática, autolegisladora. Em Kant o agir moral resulta da determinação da vontade unicamente pela forma universal da regra que preside a esse agir. Mas Hegel transforma essa autodeterminação da vontade pura pela forma universal da lei em autodeterminação da vontade singular, na qual o conteúdo particular do fim justo e válido em si e por si em sua universalidade não é excluído do agir moral, mas é parte integrante dele. Por recusar a diferença real entre as faculdades e o dualismo kantiano entre vontade pura e vontade empírica, vontade e agir não são realmente diferentes, e a vontade só é “efetiva” como atividade do seu querer e este, por sua vez, só se efetiva na decisão, graças à qual a vontade se põe como vontade de um indivíduo singular. (FD §§ 12 e 13) Por isso, esta vontade que só existe concretamente e é efetiva através de um querer que se decide e, assim, se singulariza no indivíduo, tem de incluir também no seu conteúdo particular as condições de sua efetivação. Este é o embrião da radicalização operada por Hegel do moderno conceito kantiano de autodeterminação e de autonomia, no sentido de que vontade só é livre se a determinação do seu querer inclui não só as condições de sua efetivação, mas, também, implica um querer de segundo grau, cujo “conteúdo, objeto e fim” inclui a visada da efetivação da liberdade dos outros. (FD § 21). Isso quer dizer que o indivíduo singular só é plenamente livre se esse seu querer e agir implica a promoção da liberdade singular dos outros juntamente com as condições de sua efetivação (FD § 21).
4. As figuras da liberdade enquanto espírito subjetivo.
O segundo registro de abordagem é o da análise da liberdade na dimensão real do espírito subjetivo, enquanto ela, em sua negatividade, constitui a essência desse espírito. Ela assume aí três figuras, que são, ao mesmo tempo, momentos e etapas do seu desenvolvimento e do conhecimento que o espírito subjetivo tem de si mesmo enquanto vontade livre. Criticando a teoria kantiana das faculdades, que considera razão e sensibilidade, pensar e querer, vontade pura e desejar como forças realmente diferentes, em oposição dual, Hegel as concebe como formas só conceitualmente diferentes de uma atividade básica do espírito, na qual elas se interpenetram. (E §§ 469 ss.) Essa atividade, enquanto espírito subjetivo prático, assume três figuras, a da vontade livre imediata ou natural, a da vontade livre reflexiva ou arbítrio e a da vontade livre que tem por objeto conteúdo e fim a si mesma enquanto querer universal. Essas três figuras expressam momentos e etapas do conhecimento que o espírito prático tem de si mesmo, mas equivalem também a momentos constitutivos e processuais da sua “liberação” da fixação na particularidade em direção à universalidade do pensar, que a vontade livre alcança quando ela tem a si mesma por conteúdo e fim, e, nisso, quer implicitamente a liberdade de todas as vontades singulares. Esta é liberdade designada como sendo “a vontade livre em si e para si” (FD § 21), a autodeterminação plena do espírito subjetivo, que Hegel chama de “espírito livre”, “a vontade livre que é para si enquanto livre” (E § 481).
Esta primeira figura da vontade livre no âmbito do espírito subjetivo é a vontade “imediata ou natural” (FD § 11). Seu conteúdo, os impulsos, desejos e inclinações, são determinados pela natureza, pelo animal homem, embora esses impulsos e desejos já “provenham da racionalidade da vontade”. Isso quer dizer, eles não são forças cegas ou fatores causais, pois só atuam e determinam a vontade enquanto compreendidos ou assumidos como meus motivos. Mas o ser meu e o seu conteúdo enquanto determinados pela natureza são ainda “diversos” ao nível da vontade natural. (FD §§ 10 e 11) Além disso, são múltiplos e indeterminados, pois têm vários objetos e várias maneiras de satisfação (FD § 12), e é na decisão entre eles que a vontade no seu querer e agir se singulariza, isto é, se dá a forma do indivíduo singular (FD § 13).
A segunda figura é da vontade livre enquanto arbítrio12, que está tensionada entre a universalidade indeterminada que abstrai de toda determinação e a situa acima do seu conteúdo finito, de um lado, e a dependência de algum conteúdo, não este ou aquele, mas daquele pelo qual se decide, de outro. A vontade do arbítrio é, assim, concebida como formalmente infinita e materialmente, isto é, no seu conteúdo, finita (FD § 14 e 15). Assim, só o elemento formal da livre autodeterminação é imanente ao arbítrio, o conteúdo lhe é dado, é previamente encontrado, pois ele ainda não está contido de maneira imanente na própria autodeterminação. O que o arbítrio escolhe, ele pode novamente negar ou abandonar. (FD § 16) Hegel detecta aí a contradição própria da vontade enquanto arbítrio, uma contradição entre a infinitude somente formal da autodeterminação implícita na escolha, de um lado, e a sua dependência recorrente de um conteúdo finito e contingente, de outro (FD § 16 A). Cada impulso ou desejo, na positividade finita do seu conteúdo, tende a se impor em detrimento dos outros, pois ele não possui em si uma medida própria imanente - ele é “sem-medida” (Vorlesungen über Rechtsphilosophie 1824-25, ed. Ilting, v. 3, p. 139). Por isso, eles conflitam e “se estorvam” entre si, de sorte que esse conflito e a contradição que lhe está na raiz só são superados por uma vontade livre que tenha por “conteúdo, objeto e fim” (FD § 21) a si mesma em sua universalidade e infinitude, uma vontade que quer a efetivação da liberdade dos outros como condição positiva da sua liberdade.
Esta é a terceira e verdadeira figura da liberdade na dimensão do espírito subjetivo. A contradição do arbítrio e a das suas consequências, dentre elas a infinitude ruim da escolha recorrente de um novo conteúdo finito, que, por sua vez, é reiteradamente abandonado, é o argumento principal para a “suspensão” da vontade enquanto arbítrio na figura da vontade que tem a própria forma universal do querer por seu objeto, conteúdo e fim. Essa figura da vontade livre “em si e para si” constitui o ponto de chegada e o ápice da realização da liberdade no âmbito do espírito subjetivo. E o que aqui importa, sobretudo, ela constitui, igualmente, o ponto de partida, o princípio e o solo da sua objetivação como espírito objetivo. Ela está, assim, na base da esfera do direito no sentido amplo, concebido como “o ser-aí em geral da vontade livre” (FD § 29), uma exterioridade objetiva imediata, que compreende a pessoa em seus direitos subjetivos, o sujeito moral em sua liberdade subjetiva e a esfera da eticidade. A pessoa e o sujeito moral vão constituir, assim, os dois pilares sistemáticos, mas ainda “abstratos” da modernidade política, pois a sua efetivação só se dá no âmbito dos costumes, das leis, formas de vida e instituições da eticidade moderna, concebida em sua tripartição em família, sociedade civil e Estado.
Esse movimento progressivo e ascensional das três figuras da vontade livre no âmbito do espírito subjetivo (vontade natural, vontade do arbítrio e vontade livre em si e para si) é concebido como definindo “etapas da liberação da vontade” (E § 386). Essa liberação consiste em que a vontade livre em si e para si, em um e mesmo movimento, engendra e põe o mundo do direito em sua exterioridade objetiva, o pressupõe nessa exterioridade que lhe é previamente dada de maneira imediata, se defronta com ele em sua necessidade e “dele e nele” se libera (E § 386). Hegel também caracteriza platonicamente essa liberação como um movimento de “purificação dos impulsos” (FD § 19) da particularidade do arbítrio. Esse processo de liberação é, ao mesmo tempo, a reconstituição da gênese necessária dessa figura da vontade livre que tem como conteúdo e fim do seu querer a própria liberdade e a de todas as vontades singulares. É essa concepção positiva de liberdade, para a qual a liberdade dos outros é condição positiva da efetivação da liberdade própria, que vai atuar como padrão de medida da efetivação da liberdade na forma do espírito objetivo, concebido como o âmbito do direito no sentido lato e do normativo em geral. Assim, o fundamento da validade do direito não é mais nem uma razão cósmica, nem a vontade do criador, nem a natureza criada, mas a vontade livre universal, as vontades livres de todos em sua objetivação e efetivação como uma “segunda natureza”, na qual liberdade e necessidade se interpenetram. É essa concepção que vai presidir à crítica de Hegel ao conceito de direito de Kant e Fichte, nos quais a modernidade política alcança a sua consciência filosófica mais avançada.
5. O diagnóstico crítico da modernidade política
Pode-se dizer que a modernidade política se exprime pela primeira vez de forma mais sistemática na fundação contratual da sociedade e do Estado, inicialmente na formulação jusnaturalista de Hobbes, Locke e Hume, e, posteriormente, na versão jusracionalista da filosofia transcendental de Kant e Fichte, que reconstrói o direito natural a partir da sua fundação na autonomia da razão. A importância epocal do paradigma contratualista, ao desencadear a reflexão político-filosófica que vai conduzir à separação entre sociedade civil e Estado e dá início à modernidade política, está em romper com a fundação da família, da sociedade e do poder político (do que viria a ser o Estado moderno) na vontade divina ou na natureza enquanto expressão da vontade criadora. Essa ruptura torna a vontade livre humana o fundamento do direito, da moral, dos costumes e do poder político, e libera o indivíduo dos seus vínculos corporativos e comunitários. Com isso, essa vontade livre na figura da sua universalidade reflexiva, isto é, da vontade livre que se quer enquanto tal como livre, passa a ser a instância de legitimação da ordem social e política.13 Por isso, a modernidade torna-se a primeira época que passa a conter a sua legitimação em si mesma.
Mas se com essa fundação da ordem social e política na vontade livre Hegel prolonga e aprofunda a modernidade política, ele é, todavia, um crítico acerbo do modelo contratualista, porque este se baseia numa liberdade entendida, paradigmaticamente em Hobbes, como uma qualidade inata e uma atividade ilimitada do homem situado num originário e fictício estado de natureza. Essa liberdade do indivíduo atômico, só pode ser limitada pela passagem do suposto estado de natureza ao estado de sociedade mediante o contrato de cada um com todos e mediante a coerção do poder soberano instaurado por aquele contrato. A reconstrução especulativa da gênese conceitual dessa liberdade suposta como originariamente inata e ilimitada mostra que ela não é senão o resultado da absolutização unilateral do momento da universalidade abstrata do conceito de liberdade. Assim, a instituição contratual da sociedade civil moderna mediante um pacto de limitação recíproca do arbítrio das vontades individuais, garantido pela coerção externa da lei emitida pelo soberano, marca a sociabilidade e, ainda mais, o poder político, desde o início, com um traço negativo. Essa concepção negativa da liberdade e da sociabilidade contratualista também molda, para Hegel, conceito de direito de Kant e de Fichte, que parte da limitação da liberdade de arbítrio de cada um, de modo que ela possa coexistir com a liberdade de arbítrio de todos segundo uma lei universal. (FD § 29) Essa determinação principalmente negativa do direito compreende a dimensão positiva da concordância, da “unificação” entre as liberdades de arbítrio como derivada, senão secundária. Ela se prolonga até hoje na tradição jurídica hegemônica e no liberalismo político e econômico, malgrado suas transformações e atenuações humanistas. Por isso, no direito civil moderno, cujos princípios Hegel reconstitui na Iª Parte da Filosofia do Direito, denominada O Direito Abstrato, e, principalmente, devido à abstração da sua figura básica que é a pessoa, “só há proibições jurídicas, e a forma positiva dos preceitos jurídicos em seu conteúdo último tem por fundamento a proibição”. (FD § 38).
Mas Hegel é também um crítico da reação intelectual conservadora à Revolução Francesa, iniciada exemplarmente pelas Reflexões sobre a Revolução Francesa de Edmund Burke (1790), para quem o contratualismo jusnaturalista e jusracionalista em seu universalismo abstrato é suspeito de conter germes revolucionários e de destruir a realidade histórica dos costumes e do direito. Por outro lado, Hegel é igualmente um crítico do terror jacobino, que no seu diagnóstico especulativo foi o resultado da tentativa de efetivação imediata, sem mediações institucionais, da vontade geral rousseauniana tomada em sua universalidade abstrata. Com efeito, se se toma “essa possibilidade absoluta de poder abstrair de toda determinação” (FD § 5), essa liberdade puramente negativa, que é apenas um dos seus momentos, juntamente com o seu corolário igualmente abstrato, o igualitarismo, em princípio de transformação do mundo, ela conduz ao fanatismo político, à destruição de toda ordem social e política e à eliminação dos suspeitos. Ela se torna a “fúria da destruição”, conforme a expressão da Fenomenologia do Espírito, retomada por Hegel no § 7 da Filosofia do Direito. Por isso, a Filosofia do Direito procurará um caminho intermediário entre a reação conservadora à Revolução Francesa e a sua radicalização durante o período do terror jacobino numa mediação entre razão e história. Graças a essa mediação, nem o direito se funda numa razão apriori que confronta os seus princípios abstratos com a realidade social e política no propósito de transformá-la, nem meramente na facticidade histórica dos costumes e hábitos e na sua tradição, mas numa razão que já está sempre mediatizada com esta realidade histórica concebida como objetivação e autoexplicação do espírito e processo de tomada de consciência da liberdade na história.14 Assim, espírito objetivo é o âmbito da objetivação e efetivação não das vontades singulares em seu arbítrio particular, mas daquela figura mais alta do espírito subjetivo que é a vontade livre que tem a si mesma por conteúdo e fim, e que implica em si mesma as condições e estruturas normativas da sua efetivação.
6. Os dois princípios de uma eticidade moderna
O espírito objetivo, concebido como o âmbito do direito no sentido amplo e do normativo, se divide, como vimos, nas três grandes esferas do direito abstrato, da moralidade e da eticidade. O critério dessa divisão é o “diferenciar imanente” do conceito de vontade livre em seus três momentos: o direito abstrato corresponde ao momento da universalidade abstrata e é a forma imediata de objetivação dessa figura mais alta que a vontade livre alcança no espírito subjetivo, e que Hegel denomina também, na Enciclopédia, de “espírito livre” (E § 481); a moralidade corresponde ao momento da particularidade, e é a forma reflexiva dessa objetivação no sujeito moral singular, que ainda está numa relação de dever-ser com o universal do bem a ser efetivado na eticidade; a eticidade corresponde ao momento da singularidade, e é a unidade concreta do direito e da moralidade, que, em relação a ela, são esferas ainda abstratas da efetivação dessa figura da vontade livre. Essa divisão triádica do espírito objetivo segundo os três momentos do conceito de vontade livre já contém pelo menos três aspectos de uma crítica que Hegel faz à filosofia prática de Kant e Fichte, enquanto elas são a expressão mais avançada da consciência moral moderna: 1) essa divisão em sua diferenciação entre moralidade e eticidade mostra que os princípios morais da filosofia prática de Kant estão restritos à subjetividade, na medida em que esta na sua determinação moral não implica e contém nela mesma as condições de sua efetivação, donde a conhecida crítica de Hegel ao formalismo da moral kantiana; 2) a eticidade, enquanto esfera dos costumes, das leis, formas de vida e instituições constitui a unidade concreta do direito e da moralidade, os quais, em face daquela, se revelam momentos abstratos, necessários, mas não suficientes da efetivação da liberdade; 3) a subjetividade moral, no seu processo de se erguer à universalidade do bem, se constitui pelo seu “discernimento” (Einsicht) autônomo não só em princípio que dá efetividade ao bem na esfera ética - bem que na esfera moral é ainda só dever-ser, pura exigência moral - como também essa subjetividade enquanto consciência moral é a instância crítica, “a potência judicante” (FD§ 138) de toda normatividade ética que pretende se legitimar apenas pelo apelo à sua facticidade vigente e à tradição.
Assim, a subjetividade moral torna-se a mediação entre a universalidade abstrata do direito e a universalidade concreta de uma eticidade reflexiva, moderna. Assim, o agir autônomo da subjetividade moral no seu processo de se erguer à universalidade do bem pode atuar tanto como a instância crítica do direito e da eticidade vigentes, como também, segundo a tese de caráter aristotélica retomada por Hegel, “enquanto forma infinita”, como o princípio que dá efetividade aos costumes, às leis, formas de vida e instituições éticas (FD § 144). Essa eticidade que tem no saber e querer da autoconsciência o princípio da sua efetividade (Wirklichkeit, actualitas, energia) não é mais a antiga, imediata, a eticidade da pólis grega, mas moderna, reflexiva; mas, em contrapartida, essa autoconsciência moderna é o seu princípio de efetivação somente na medida em que ela se insere em um processo no qual ela ultrapassa a sua subjetividade em direção à eticidade, se suspende nela e têm na vida ética “a sua base sendo em si e para si e o seu fim motor” (FD § 142). Essa tensão processual entre moralidade e eticidade constitui a liberdade moderna.
a) A pessoa como sujeito de direitos.
O princípio do direito abstrato - que só apresenta os conceitos fundamentais do direito civil e do direito penal, considerados independentemente de sua positivação e da sua aplicação jurisdicional - é o conceito de pessoa, juntamente com o de personalidade, entendida esta como a capacidade de a pessoa ser portadora de direitos naturais subjetivos.15 São ambos conceitos do Direito Romano, mas que Hegel compreende modernamente a partir da figura jusnaturalista do indivíduo singular, atômico desvinculado inicialmente das relações intersubjetivas, sociais e políticas, e dotado da capacidade de ter propriedade sem a mediação dos outros. Mas este ponto de partida com a ficção jusnaturalista do indivíduo isolado, pensado especulativamente como a vontade singular na pura universalidade abstrata da sua consciência de si, é um expediente metodológico da “apresentação” (Darstellung) dialética, que parte do universal abstrato para, através das suas determinações progressivas, mostrar o caráter insuficiente e de mera aparência desse ponto de partida, se ele for tomado como sendo o conceito plenamente determinado. Trata-se da refutação especulativa, que assume a lógica imanente do ponto de vista criticado a fim de mostrar a sua insuficiência e a sua autosuperação. Ela é, aqui, intrinsecamente crítica, pois ela visa mostrar, positivamente, que a figura da liberdade como pessoa portadora de direitos subjetivos é condição necessária, elementar, da efetivação da liberdade no âmbito do espírito objetivo, mas, ao mesmo tempo, criticamente, que se essa figura imediata e abstrata da efetivação da liberdade for tomada como a forma acabada da liberdade, ela se envolve em contradições e se torna autodestrutiva. Por isso, se comparado com o conteúdo mais concreto das relações morais e éticas, esse direito, pelo seu caráter abstrato e formal, “restringe-se ao negativo”, a proibições, a não lesar a pessoa.16
A propriedade, por sua vez, é a objetivação imediata da pessoa, e enquanto propriedade privada pessoal ela é justificada dialeticamente pela necessidade de a pessoa singular se dar “uma esfera externa da sua liberdade” (FD § 41), a fim de que aquela, na consciência que ela tem da sua universalidade formal, não permaneça restrita a uma liberdade somente subjetiva (FD § 39). O elemento racional e especificamente jurídico da propriedade não consiste em que a Coisa que a pessoa tenha em seu poder satisfaça as sua necessidades - este é “o interesse particular da posse” (FD § 45) - mas em que essa Coisa, pela sua exterioridade a si, pode ser inteiramente investida por essa vontade livre singular. Propriedade e posse diferenciam-se, assim, pela sua respectiva correlação aos respectivos momentos da universalidade e da particularidade do conceito de liberdade: a propriedade é o correlato objetivo externo da universalidade formal da pessoa, a posse surge do interesse particular da pessoa enquanto movida pela “necessidade natural, pelos impulsos e pelo arbítrio” (FD § 45). Daí a clara preeminência do momento jurídico-racional da propriedade enquanto objetivação de uma vontade pessoal sobre o momento do “poder externo” da posse que se apodera da coisa. Os proprietários, enquanto pessoas são todos iguais. Mas a posse é o “terreno da desigualdade” (FD § 49 A) e o seu quantum é da alçada do arbítrio e nisso os indivíduos são diferentes nos seus talentos e posses.17
Hegel radicaliza subjetivamente, no quadro do moderno paradigma lockeano da propriedade, o conceito romano de propriedade como direito real pleno, o direito de usar, abusar e fruir da coisa, segundo a formulação clássica de Ulpiano. Mas a justificação racional e jurídica desse “direito de apropriação absoluta do homem sobre todas as coisas” (FD § 44), em termos da “soberania” (FD § 44 Ad.) plena da vontade sobre a coisa, está em que nesta coisa a vontade livre se torna objetiva para si mesma e, por isso, a propriedade é privada no sentido da propriedade pessoal, mas não necessariamente propriedade privada dos meios de produção, diria talvez Hegel hoje. Assim, a fundação pré-social e pré-estatal da propriedade em Locke, tomada como ponto de partida, é desmentida no curso da progressão categorial, que aqui acompanha a evolução histórica da sociedade mercantil, no sentido de que a ocupação progressiva do solo e a generalização das relações mercantis fazem com que “tudo hoje [já] está na posse e propriedade [de outros que] já são proprietários” (FD § 58 NM). Assim, a figura seguinte do direito abstrato é a do contrato e sua forma principal, a alienação da propriedade. A passagem dialética ao contrato é justificada pelo fato de que na sociedade civil moderna só é possível ter acesso à propriedade mediante o contrato. Nele emergem simultaneamente a universalidade interna da vontade nos contratantes e a universalidade objetiva do valor, o equivalente da Coisa, que é o objeto do contrato e a mediação entre as vontades contratantes. Por isso, dialeticamente, no andamento retrocedente da apresentação dialética (ducto regressivo), é no contrato de alienação que “a propriedade vem a ser propriedade enquanto tal” (FD NM § 65) e nele se desmente como aparência a fundação pré-social da propriedade, porque a propriedade enquanto tal implica o reconhecimento mútuo dos contratantes como pessoas.
Mas, se na medida em que concebe a propriedade privada pessoal como uma emanação e objetivação da liberdade pessoal Hegel se insere no moderno paradigma liberal inaugurado por Locke, ele não aceita um dos seus principais corolários, que é a desautorização e deslegitimação da intervenção do Estado na esfera da propriedade privada.18 A superioridade do direito público sobre o direito de propriedade privada se manifesta na sua viva crítica ao contratualismo como “intromissão” indevida das relações de propriedade privada na esfera da família e do Estado, responsável pelas “maiores confusões no direito público e na realidade efetiva” (FD § 75 A). Em contrapartida, ele mantém a propriedade privada pessoal como condição elementar e genérica da liberdade pessoal e, também, da liberdade em suas formas mais altas e complexas no âmbito da eticidade e do espírito absoluto (arte, religião e filosofia).
Um aspecto importante, nesse contexto, do diagnóstico crítico que Hegel faz da modernidade política é o seu aprofundamento e sua radicalização da premissa que sustenta a justificação da propriedade privada por Locke. A ação pela qual o indivíduo “agregou” (had joyned) diretamente “o trabalho do seu corpo e a obra de suas mãos” numa coisa qualquer da natureza19, tem como premissa a tese de que o homem tem a propriedade originária da sua pessoa: o senhorio sobre as coisas é um prolongamento direto do fato de que ele é o senhor (master) de si mesmo.20 Ora esta propriedade pretensamente originária que o homem teria de sua “existência natural” (FD § 43) já contém uma mediação, pois é só pela formação e pelo cultivo do seu próprio corpo e espírito que o homem toma posse e torna-se senhor de si mesmo. É essa apreensão ativa pela autoconsciência da própria liberdade em sua universalidade, mediante o trabalho de formação e cultivo do seu corpo e espírito, o que fundamenta o caráter “inalienável” e “imprescritível” dos direitos que o homem tem às suas “determinações substanciais”. (FD §§ 57, 66) Estas últimas pertencem à “essência de sua autoconsciência universal” e são, ao mesmo tempo, condições da efetivação dessa autoconsciência da liberdade. (ibid.) É nesse contexto que Hegel discute o fundamento especulativo da possibilidade da escravidão, que ele conceitua modernamente como a “possibilidade da alienação (Entäusserung) da personalidade” (FD § 66).21
b) A liberdade subjetiva e a consciência moral moderna.
O segundo pilar principal da modernidade política é a liberdade subjetiva, pensada como subjetividade moral a partir da moral da autonomia de Kant e Fichte, que representam o apogeu da moderna subjetivação da ética e sua reconstrução na esfera da moralidade. A vontade tem agora, na esfera da moralidade, o seu ser-aí, a sua existência imediata, objetiva, não mais nas coisas externas, mas na própria subjetividade (FD § 106). Hegel transforma a autonomia da razão pura prática kantiana, sua autodeterminação, em elemento constitutivo da subjetividade moral individual, cuja particularidade é um elemento constitutivo da ação moral, mas está numa relação ainda de dever-ser para com o universal do bem, que permanece, por isso, um bem ainda formal, abstrato. Na medida em que essa autodeterminação é inicialmente só a da vontade subjetiva, ela define “o ponto de vista moral [que] é, em sua figura, o direito da vontade subjetiva” de reconhecer e ser algo “somente na medida em que esse algo é seu, em que ela está nele presente a si como algo subjetivo” (FD § 107). Daí o direito do indivíduo moderno de encontrar a sua satisfação subjetiva na execução da sua ação particular se os seus fins são válidos, de sorte que a exigência kantiana de excluir os fins e os motivos particulares da determinação moral da vontade torna-se para Hegel “uma afirmação vazia do entendimento abstrato” (FD § 124).
O direito [no sentido amplo] da particularidade do sujeito a encontrar-se satisfeito ou, o que é o mesmo, o direito da liberdade subjetiva constitui o ponto de inflexão e o ponto central na diferença entre a Antiguidade e a época moderna. Esse direito, na sua infinitude, foi enunciado no Cristianismo e tornou-se o princípio efetivo universal de uma nova forma de mundo (FD § 124 A).
Mas essa esfera de efetivação da autodeterminação subjetiva assim concebida é também, como a esfera do direito abstrato, abstrata no sentido de que a liberdade subjetiva do sujeito moral só tem a sua determinação plena e só existe concretamente na esfera da eticidade moderna, como membro da família, como indivíduo na sociedade civil e como cidadão no Estado. Assim, é a sociedade civil o solo histórico da existência concreta da pessoa como sujeito de direitos e da liberdade subjetiva em sua consciência moral autônoma. Por isso, o lugar sistemático da moralidade se situa no âmbito do espírito objetivo, pois é aí e, precisamente, na esfera da eticidade, que Hegel elabora a sua teoria dos deveres enquanto “doutrina ética dos deveres”. E a virtude, que no fundo é uma só, é a virtude da retidão ou honradez (Rechtschaffenheit), que Hegel concebe como o reflexo do elemento ético no caráter individual enquanto determinado pela natureza, e que consiste na “conformidade simples do indivíduo aos deveres das situações a que ele pertence” (FD § 150)22 São, portanto, deveres objetivos, concebidos como “determinações substanciais” da vida ética, atuantes nos costumes, formas de vida e instituições, em face dos quais o indivíduo enquanto elemento subjetivo está numa relação não apenas formal, mas “substancial” (FD § 148). “Substancial” significa aqui “preenchimento” da objetividade ética com a subjetividade (FD § 144 Ad.), no sentido da “subjetividade enquanto forma infinita”, isto é, no sentido da universalidade intrínseca e plenamente determinada da vontade livre enquanto ideia (o conceito em sua determinação completa), que perpassa todas as subjetividades individuais, tornando a objetividade ética uma “substância [ética] concreta” (FD § 144). Nesta, esses deveres objetivos, em sua normatividade intrínseca, não são “um elemento estranho” para o sujeito, que tem neles preservado “o seu sentimento de si” (FD § 147). Por isso, o indivíduo neles se “liberta” da “dependência dos seus impulsos” e da “opressão” (Gedrückheit) da indecisão entre seus desejos particulares, da relação abstrata ao dever ser e da “subjetividade indeterminada” que se compraz na sua “inefetividade” (FD § 149). Neles “o indivíduo se liberta para a sua liberdade substancial” (FD § 149).
Mas essa autodeterminação subjetiva é, também, novamente, “só um momento do conceito” de liberdade subjetiva (FD § 107), pois ela é também concebida processualmente, como o processo de erguer-se em direção a essa liberdade objetiva, ética; ela tem de ir além de si mesma, e, assim, ultrapassar a sua mera certeza subjetiva e suspender-se na esfera ética que lhe confere o fundamento. Por um lado, Hegel atribui à liberdade subjetiva o direito, no sentido lato, de reconhecer um conteúdo “somente na medida em que ele é seu”, “o direito de não reconhecer nada que [ela] não tenha discernido como racional”, e este é “o direito supremo do sujeito” (FD § 132A). Como o universal do bem na esfera moral permanece, segundo o imperativo kantiano que ordena o cumprimento do dever pelo dever, um universal formal, a determinação do seu conteúdo incide na subjetividade, que, refletida sobre si mesma, assume a figura da consciência moral moderna, no sentido da “certeza absoluta de si mesma” (FD § 136). Assim, essa consciência moral (Gewissen) enquanto certeza subjetiva (Gewissheit) permanece, correlatamente, também um princípio de determinação formal do conteúdo do bem. Nessa linha, Hegel retoma e radicaliza a autonomia moral kantiana e sua origem rousseauniana, segundo a qual a vontade só é livre se ela obedece às leis que ela mesma se dá, tornando essa autonomia o princípio constitutivo da subjetividade moderna. “O direito da vontade subjetiva consiste em que o que ela deve reconhecer como válido seja por ela discernido (eingesehen) como bom” (FD § 132) Ao mesmo tempo, ele critica o formalismo do imperativo categórico, porque este não contém em si as determinações do próprio dever e não integra em si as condições objetivas da sua efetivação na ação moral, que é sempre determinada. Por isso, a sua reconstituição crítica da autonomia kantiana na esfera da moralidade e a crítica ao seu formalismo visam mostrar que essa autonomia, no sentido da “autodeterminação pura e incondicionada da vontade enquanto a raiz do dever” (FD § 135 A), está implicada num processo de sua ultrapassagem em direção ao ponto de vista ético, a fim de que ela possa adquirir um conteúdo válido.
Assim, se a autonomia da razão como “direito de não reconhecer nada que eu não tenha discernido como racional é o direito supremo do sujeito”, na esfera moral, ele é, ainda, “um direito formal”, porque nela “o discernimento (Einsicht) é capaz de ser tanto verdadeiro como mera opinião”; ele pode tomar por princípio tanto o universal em si e por si, quanto o arbítrio e a particularidade, erguendo-os acima do universal. Depende, assim, da “formação subjetiva’ de cada sujeito, portanto da contingência, que ele “alcance esse direito ao seu discernimento” (FD § 132 A). Quer dizer, depende de ele assumir o processo de superação da sua certeza moral meramente subjetiva em direção ao ponto de vista da objetividade ética. Por isso, acrescenta Hegel, esse supremo direito ao discernimento autônomo da consciência moral “em nada prejudica o direito da objetividade” (ibid.). Assim, “permanece firmemente estabelecido contra ele [esse direito formal] o direito do racional enquanto direito objetivo sobre o sujeito” (FD § 132 A).
Daí que esse processo de formação para alcançar o direito ao discernimento autônomo enquanto “direito supremo do sujeito”, aqui entendido como processo de ultrapassagem da liberdade subjetiva em direção à liberdade objetiva na vida ética, é perpassado por duas linhas de força. De um lado, por uma lógica positiva do aprofundamento da liberdade subjetiva em direção a essa liberdade objetiva mediante a elevação da vontade subjetiva em direção à sua identificação com a universalidade objetiva do bem.23 Este é “o processo da esfera moral”, que visa à superação da subjetividade apenas formal, que, nessa sua autosuperação se torna a potência que dá efetividade ao bem que é inicialmente, é só a universalidade formal do dever ser (FD §§ 106 A, 138) De outro, por uma lógica negativa, em que o sujeito moral se adentra de maneira progressiva e unilateral em sua subjetividade formal, erguendo a sua particularidade própria acima do universal em si do direito e do bem, tornando-se, assim, o princípio de várias figuras do mal moderno (FD § 139). Este é o “processo do ponto de vista moral” (FD § 107 A), no qual o sujeito aprofunda a sua “certeza formal infinita de si mesma”, que é, ao mesmo tempo, a “certeza deste sujeito” (FD § 137), em oposição àquele bem universal que constitui a essência da vontade. Desse modo, ela não assume a ultrapassagem dessa certeza formal em direção a ele.
Esses dois processos e suas lógicas se encontram e se entrecruzam no que Hegel denomina de “ambiguidade” da consciência moral moderna (FD § 137 A), que consiste em que ela invoca e pressupõe a identificação do seu querer subjetivo com o querer objetivo do bem universal, e, ao mesmo tempo, afirma a certeza subjetiva do seu discernimento como já sendo aquela identificação. Ela invoca o caráter “sagrado” da consciência moral verdadeira para justificar a sua certeza moral subjetiva. Por isso, a consciência moral, nessa sua ambiguidade moderna de reivindicar para sua certeza subjetiva a identidade já alcançada da vontade subjetiva com a vontade objetiva, “consiste pura e simplesmente de estar a ponto (auf dem Sprunge) de inverter-se no mal” (FD § 139 A). O mal moderno, cuja figura suprema é a ironia romântica, consiste em afirmar este ápice da subjetividade “como o absoluto” (FD § 140)24. Assim, Hegel vai conceber a consciência moral em sua ambiguidade moderna e o mal moderno nesta sua figura mais abstrusa, como tendo “a sua raiz comum na certeza de si mesma que é para si, que sabe e decide por si” (FD § 139 A). São duas formas de aparecimento, duas figuras fenomênicas dessa raiz comum, que é a certeza formal de si mesma enquanto ápice da subjetividade (FD § 139). A “autodeterminação pura e incondicionada da vontade enquanto a raiz do dever” (FD 135 A) de Kant torna-se, na esfera da moralidade hegeliana, a negatividade infinita da subjetividade moral moderna enquanto a raiz comum da consciência moral e do mal.
Assim, “a consciência moral exprime a legitimação absoluta da autoconsciência subjetiva, isto é, saber dentro de si e a partir de si o que é direito e dever” (FD 137 A), mas Hegel completa, somente na medida em que o conteúdo do que ela sabe e quer é bom em si e por si, não enquanto é apenas sentimento ou certeza particular de um indivíduo. Por isso, “ela está submetida a esse julgamento de se é verdadeira ou não”. E o padrão de medida desse julgamento é se, no apelo que a liberdade subjetiva faz à sua certeza moral, ela quer ao mesmo tempo como regra de sua ação a liberdade universal, isto é, a promoção da liberdade de todos os indivíduos singulares como condição da sua verdadeira liberdade. Para isso ela precisa assumir a dinâmica do processo que a impele além de si mesma, um processo de autosuperação de sua certeza moral particular e abstrata em direção ao ponto de vista ético. Por isso, Hegel antecipa aqui, na esfera da moralidade, o que ele designa como “a consciência moral verdadeira”, definida como “a disposição de ânimo (Gesinnung) de querer o que é bom em si e por si”, “os deveres objetivos”, que só se efetivam nos costumes, nas leis, formas de vida e instituições éticas (FD § 137).
Mas essa consciência pode também entrar em confronto com elas, pois quando elas, na sua facticidade vigente, não mais podem satisfazer “uma vontade melhor” e o mundo da liberdade objetivada em sua necessidade tornou-se infiel a essa vontade melhor, a consciência moral retoma a “legitimação absoluta” (FD § 137) dessa “certeza infinita de si mesma”, que é “a potência judicante de determinar somente a partir de si mesma qual conteúdo é bom” e “da qual o bem, primeiro representado e devendo ser recebe a sua efetividade” (FD § 138).
A tendência a buscar dentro de si, voltando-se para o interior, o que é justo e bom, e a sabê-lo e determiná-lo a partir de si, aparece enquanto configuração mais geral na história (em Sócrates25, nos Estoicos etc.) em épocas em que o que vige na efetividade e nos costumes como justo e bom não pode satisfazer a vontade melhor; assim, quando o mundo aí-presente da liberdade tornou-se infiel a essa vontade, ela não se encontra mais a si mesma nos deveres vigentes, e deve procurar recuperar somente na interioridade ideal a harmonia perdida na efetividade. Como a autoconsciência assim apreendeu e adquiriu o seu direito formal, importa então saber como está constituído o conteúdo que ela se dá (FD § 138 A).
Pertence, assim, à consciência moral moderna de viver a ambiguidade dessa tensão entre o processo de sua autosuperação e suspensão na esfera ética, de um lado, e a negatividade da sua “potência judicante”, de outro, que pode tanto “volatilizar” toda “determinação aí-presente e dada”, quanto procurar saber qual é o conteúdo do que ela julga ser o bem dessa “vontade melhor” a ser efetivada.