Introdução
Russell, na obra The Principles of Mathematics1, de 1903, apresentou uma articulação muito engenhosa entre as técnicas da lógica matemática e os princípios metafísicos do realismo lógico desenvolvidos conjuntamente com Moore ao longo de 1898, quando ambos romperam com o neo-hegelianismo. Este foi um movimento filosófico que predominou na Inglaterra no fim do século XIX e caracterizou-se pela inspiração no idealismo alemão como contraponto metafísico diante o avanço do naturalismo e do materialismo, que se desenvolveram rapidamente no continente europeu, dominando o cenário acadêmico, principalmente depois da morte de Hegel em 18312. Nesse sentido, uma vez que Russell graduou-se em Cambridge entre o ano de 1890 e o ano de 1894, ele foi fortemente influenciado por aquele ambiente acadêmico e desenvolveu, até meados de 1898, o projeto inacabado da dialética das ciências, fundamentado na sua filosofia idealista pluralista e na sua teoria das relações internas3.
A nova filosofia que Moore e Russell apresentaram foi fortemente identificada com o realismo lógico, pois se caracterizou pelas teses antinaturalistas, antipsicologistas e pela crença em uma objetividade a priori como característica de entidades lógicas objetivas, atemporais e imutáveis que têm Ser acima de qualquer eventual possibilidade de existirem no espaço e no tempo4. Assim, The Principles of Mathematics é a principal obra que marcou essa nova fase do pensamento de Russell, na qual se encontram intimamente relacionados o argumento logicista - que consiste na tentativa da redução dos princípios da matemática pura a partir de conceitos fundamentalmente lógicos - com a metafísica realista e atomista do realismo lógico. Contudo, a transição do neo-hegelianismo para o realismo lógico não ocorreu de forma imediata, tendo em vista que essa transformação exigiu alguns anos de esforço e amadurecimento intelectual da parte de Russell.
Primeiramente, Russell precisou inteirar-se dos avanços das teorias matemáticas do séc. XIX e leu, por exemplo, os trabalhos de Whitehead, De Morgan e outros, a partir dos quais pôde aprofundar seus conhecimentos em relação a aritmetização do cálculo matemático. Russell, gradativamente, entendeu a importância e a profundidade dos trabalhos de matemáticos como Weierstrass, Cantor, Dedekind, entre outros, sobre a teoria dos números e as noções de infinito e continuidade para a filosofia da matemática. Em linhas gerais, pode-se dizer que a revolução que ocorreu na matemática no séc. XIX foi decorrente da aritmetização da Análise Matemática, que elevou o nível de rigor no cálculo e, consequentemente, o abandono do ponto de vista que a matemática é a ciência da quantidade. Segundo Boyer (1996), a Análise Matemática, entendida como o estudo de processos infinitos, esteve ligada a noção de quantidade desde que Newton e Leibniz associaram a análise das grandezas contínuas às variações de quantidades de comprimentos, áreas, velocidades e acelerações5. Por causa da completa aritmetização da Análise, Russell deu um passo importante na sua pesquisa acerca da fundamentação da matemática, pois abandonou a visão do séc. XVIII de que ela seria a ciência da quantidade desde quando compreendeu que a matemática pura é a ciência das formas livre da intuição geométrica - no sentido de tratar-se de um sistema axiomático, como o de Peano, por exemplo -, prezando pela descoberta de axiomas e pela absoluta correção nas demonstrações6.
Nesses termos, os avanços no campo da matemática pura proporcionaram a Russell a fundamentação teórica necessária para o ponto de vista de que a matemática é incondicionalmente verdadeira independentemente da subjetividade, e isso contrariava a teoria da matemática de Kant - outrora fonte de inspiração de Russell - pois aquela fundamentava a matemática nas intuições a priori da sensibilidade. Portanto, o desenvolvimento da matemática pura no séc. XIX mostrou a Russell que ela era capaz de resolver problemas filosóficos como, por exemplo, as noções engendradas pela noção de infinito.
Por outro lado, Russell teve uma ótima impressão da lógica de Peano e de sua escola. O contato de Russell com a lógica de Peano é datado em 1900 com a participação de Russell no Congresso de Filosofia em Paris. A partir de então, ele ficou impressionado com o poder e o alcance da lógica na fundamentação da matemática pura, ao mesmo tempo que ficou impressionado com o alto grau de rigor que os métodos axiomáticos impunham nas demonstrações. Tudo isso o levou a desenvolver o instrumental lógico simbólico de Peano para outras áreas, principalmente para a lógica das relações.
A partir desse longo desenvolvimento intelectual, Russell, em The Principles of Mathematics, tentou demonstrar que a lógica matemática identificada com a filosofia metafísica do realismo lógico era a única teoria filosófica capaz de responder pelo significado das noções mais fundamentais da matemática pura. Para realizar esse projeto, Russell precisou associar de tal maneira a lógica matemática com a metafísica do realismo lógico que elas se tornaram homogêneas na obra The Principles of Mathematics. Portanto, antes de se analisar a polêmica em torno da suposta ontologia meinongiana do realismo lógico defendido por Russell em 1903, faz-se necessário analisar as principais características metafísicas e epistemológicas que permearam The Principles of Mathematics.
As noções fundamentais da metafísica de The Principles of Mathematics
Russell, em 1898, no manuscrito An Analysis of Mathematical Reasoning, apresentou uma taxonomia de proposições7, elaborada a partir de uma teoria dos termos muito próxima às teses que Moore apresentou naquele ano no artigo “The Nature of Judgment”. Contudo, ao mesmo tempo, nesse manuscrito, Russell ainda defendeu a sua teoria das relações internas de tal forma que a sua análise das proposições da aritmética não classificou as relações como termos irredutíveis e autossubsistentes como os demais termos da gramática filosófica. Como dito anteriormente, Russell abandonou a teoria das relações internas depois desse manuscrito de 1898, e isso significou uma transformação na sua teoria metafísica da filosofia da matemática, pois a sua metafísica dos termos foi ampliada de tal maneira que a análise da gramática filosófica assumiu a irredutibilidade e a autossubsistência das relações. A referência a Moore em The Principles of Mathematics refere-se, especialmente, a esse aspecto particular da reviravolta da filosofia de Russell, como se pode ver no seguinte trecho:
Em questões fundamentais da filosofia, minha posição, em todas as suas principais características, deriva do Sr. G. E. Moore. Aceitei sua concepção sobre a natureza não existencial das proposições (exceto as que afirmam existência) e a independência delas de qualquer mente que conhece; também o pluralismo que considera o mundo, tanto o dos existentes quanto o das entidades, como composto por um número infinito de entidades mutuamente independentes, com relações que são últimas e não redutíveis a adjetivos de seus termos ou do todo que estes termos compõem. Antes de aprender esses pontos de vista com ele, eu me vi completamente incapaz de construir qualquer filosofia da aritmética, enquanto a aceitação deles provocou uma libertação imediata de muitas dificuldades que eu considero, de outro modo, insuperáveis. (RUSSELL, 1903, p. xviii, tradução nossa)8.
O trecho acima mostra que Russell em The Principles of Mathematics deu um passo além do que tinha dado em An Analysis of Mathematical Reasoning, pois conjuntamente com Moore, passou a defender uma metafísica na qual o fundamento último da explicação da realidade é um completo atomismo de termos autossubsistentes, no sentido de que a realidade é constituída por conceitos e proposições com total independência da mente do conhecedor. Dessa forma, a principal característica do realismo lógico foi o status ontológico que Moore e Russell delegaram a essas entidades, pois os conceitos e/ou termos e as proposições foram considerados entidades lógicas objetivas, atemporais e imutáveis, que têm Ser acima de qualquer eventual possibilidade de existirem no espaço e no tempo.
No entanto, Russell desenvolveu essa perspectiva elaborando uma gramática filosófica que não se encontra na teoria da proposição de “The Nature of Judgment” de Moore. Entende-se que o uso da lógica matemática como uma ciência universal pressupôs muito da metafísica de The Principles of Mathematics, tendo em vista que a linguagem lógica se aplicaria a entidades que estão incondicionalmente fora do espaço e do tempo. A premissa colocada pelo realismo lógico, em relação à constituição da realidade como uma pluralidade de termos mutuamente independentes e com relações irredutíveis aos adjetivos desses termos, visou estabelecer de forma definitiva a natureza exterior dos objetos em relação à mente do conhecedor. Do ponto de vista epistemológico, na visão de Russell, a mente não cumpria qualquer função na constituição dos termos da realidade, pois a separação radical entre a mente e o objeto não deixou papel algum a ser cumprido pela mente, no sentido de colocar condições a aquilo que se pode conhecer ou estar em familiaridade. Portanto, o logicismo de The Principles of Mathematics foi um forte argumento contra as filosofias da matemática da época, porque Russell pretendeu demonstrar que a matemática pura, uma vez reduzida a leis puramente lógicas, também era uma ciência absolutamente verdadeira e completamente independente das condições restritivas das mentes.
Na época de The Principles of Mathematics, Russell pareceu não estar preocupado em aprofundar as discussões sobre epistemologia ou em elaborar alguma teoria complexa sobre o processo de conhecimento dos objetos. Não obstante, pode-se considerar, conforme Hylton (1990 e 2005), que Russell deu indicações de ter como pressuposto que a relação entre a mente e o objeto seria algo trivial, melhor dizendo, a relação entre a mente e o objeto seria direta e imediata. No Prefácio de The Principles of Mathematics, Russell tratou brevemente dessa noção, apresentando a seguinte descrição, na qual sugere que a mente tem de entrar em um tipo de relação especial com o objeto exterior a ela para que possa ter conhecimento dele.
A discussão dos indefiníveis - que constitui a parte principal da lógica filosófica - é o esforço de ver claramente, e fazer com que os outros vejam claramente, as entidades envolvidas, para que a mente possa ter o mesmo tipo de familiaridade com elas que possui com a vermelhidão ou com o gosto do abacaxi. (itálico nosso) (RUSSELL, 1903, p. xv, tradução nossa)9.
A descrição é um tanto inusitada, mas a simplicidade da explicação elucida bastante o que Russell estava querendo dizer sobre o tipo de familiaridade que a mente tem com o objeto conhecido. Em primeiro lugar, considera-se que Russell, na época em que escreveu The Principles of Mathematics, já fazia uso da noção de familiaridade10, mesmo que de forma genérica e irrestrita, pois nessa época a noção de familiaridade não possuía ainda a relevância filosófica que passaria a ter nos anos subsequentes da sua filosofia. Nesse aspecto, concorda-se com Wahl, quando este afirma o seguinte “a primeira teoria dos conceitos denotativos de Russell andava de mãos dadas com o princípio de familiaridade, [...]” (WAHL, 2007, p. 7, tradução nossa)11. Contudo, vale a pena destacar que a noção de familiaridade cumpriu ali um papel de coadjuvante em um cenário onde o principal objetivo era eliminar qualquer ação da mente na constituição dos objetos do conhecimento. Se quiser ir além, o fato de Russell não ter elaborado a noção de familiaridade da forma que fez nos anos seguintes pode ser explicado levando em conta a trivialidade da relação, ou seja, entendendo que a mente é completamente passiva e possui um caráter puramente receptivo na relação com os objetos do conhecimento. Logo, se a mente estabelece com o objeto apenas uma relação de conhecimento e nunca de agente reguladora da sua natureza, então pode-se pensar que Russell deva ter considerado trivial essa relação e não viu a necessidade de colocar restrições no Princípio de familiaridade.
Hylton enfatiza o aspecto trivial da noção de familiaridade presente em The Principles of Mathematics, dizendo que “nada precisa ou pode ser dito sobre como conhecemos apenas conhecemos; portanto, minha ênfase na relação ser ‘direta’ e ‘imediata’” (HYLTON, 1990, p. 111, tradução nossa)12. A forma que Hylton explica a relação de familiaridade tenta deixar claro o caráter indubitável da relação epistêmica entre a mente e o objeto, pois o fato de a relação epistêmica ser direta e não evidencial significa que não faz sentido perguntar “que evidências temos?” para dizer que se conhece algo, quando esse conhecimento é por familiaridade. Consequentemente, a natureza passiva e receptiva da mente na relação de familiaridade diz muito sobre o antipsicologismo de Russell, pois, ao esvaziar as funções da mente em relação à constituição da realidade, ele deixou o caminho aberto para considerar as entidades lógicas como autossubsistentes e imunes às restrições da mente.
Em segundo lugar, a forma como Russell se expressou na citação acima deixou margem para supor-se que a noção de familiaridade utilizada em The Principles of Mathematics era uma noção irrestrita. Pelo fato de Russell não ter desenvolvido uma teoria epistemológica complexa nessa obra, fica-se carente de explicações sobre o que realmente significou a mente ter a capacidade de ter familiaridade com objetos de naturezas diferentes. A citação anterior é justamente inusitada porque parece que Russell entendeu que a mente seria capaz de ter familiaridade com fenômenos como cores e sabores de frutas, mas, ao mesmo tempo, com fenômenos do tipo dos objetos abstratos matemáticos, como algumas proposições, as relações, as variáveis etc. Dessa forma, o significado da noção de familiaridade apresentado por Russell transmitiu o recado que a mente é uma receptora passiva capaz de ter familiaridade, portanto, capaz de ter conhecimento direto e imediato com uma pluralidade de objetos independentes de forma irrestrita.
Talvez o caso paradigmático seja o das proposições. No entender de Russell, apesar da realidade ser constituída por uma pluralidade de termos independentes uns dos outros, eventualmente ou quase sempre, esses termos formam complexos proposicionais passíveis de serem percebidos pelas mentes. Portanto, a maneira como a mente entra em familiaridade com esses objetos sempre se dá por meio de proposições. Isso significa dizer que se pode ter familiaridade com algum número por meio de alguma proposição do tipo /Há um número primo par/. Pode-se ter familiaridade com alguma qualidade de algum objeto por meio de proposições do tipo /Sócrates é sábio/. Mas também se pode ter familiaridade com relações entre objetos através de proposições do tipo /Dois é menor do que cinco/. Em suma, na visão de Russell, a realidade, no sentido geral do termo, é constituída por proposições verdadeiras e proposições falsas com as quais temos familiaridade, porém os fatos que se apresentam à percepção, dão-se sob a forma de proposições verdadeiras. Sendo assim, essa tese metafísica explica a forma como a teoria do realismo lógico postulou a proposição verdadeira como um fato da realidade e descartou a explicação da Verdade segundo alguma correspondência entre ambos.
Para exemplificar essa perspectiva do realismo lógico, vale citar um trecho de “The Nature of Judgment”, que fornece alguma explicação da natureza da relação perceptiva com as proposições existenciais. Segundo Moore, “parece agora que a percepção deva ser considerada filosoficamente como o conhecimento de uma proposição existencial; [...]” (MOORE, 1898, p. 183, tradução nossa)13. Ou seja, o pensamento subjacente à fala de Moore (e não se tem motivos para duvidar que Russell pensasse o mesmo) é que se conhece os fenômenos por meio da relação de familiaridade que as mentes estabelecem com as proposições e com os objetos que são os seus constituintes. Nesse sentido, Russell elaborou uma gramática filosófica em The Principles of Mathematics com o objetivo de desenvolver uma lógica correta e de desenvolver uma teoria capaz de classificar todas as ocorrências lógicas dos constituintes das proposições com as quais se tem familiaridade.
O interesse de Russell em tal procedimento não se deu meramente pela intenção de elaborar uma filosofia da linguagem ordinária ou tampouco de desenvolver uma lógica que meramente manipulasse sinais e não expressasse conteúdo objetivo algum. Ao contrário, a razão para tal procedimento é que, em 1903, Russell acreditou que a sentença espelhasse fielmente a forma lógica da proposição que ela expressa. Por isso, uma forma confiável de entender o funcionamento lógico dos constituintes das proposições seria por meio da análise das posições que as palavras ocupam no interior das sentenças. A estratégia era desenvolver uma gramática filosófica que correspondesse às ocorrências das entidades não linguísticas que constituíam a proposição. Russell, em certa medida, deu sinais de estar interessado em tal procedimento, conforme observamos na seguinte declaração.
A correção de nossa análise filosófica de uma proposição pode, portanto, ser utilmente verificada pelo exercício de atribuir o significado de cada palavra na sentença que expressa a proposição. No geral, a gramática me parece muito mais próxima de uma lógica correta do que as opiniões atuais dos filósofos; e no que se segue a gramática, embora não seja a nossa mestra, ainda será tomada como nossa guia. (RUSSELL, 1903, p. 42, tradução nossa)14.
Quando se pensa em gramática ou em análise gramatical, refere-se geralmente ao conjunto de regras que prescrevem a maneira correta de utilizar qualquer língua, seja na forma escrita, seja na forma falada. Todavia, é de suma importância ter clareza e reconhecer que as sentenças das diferentes línguas e suas respectivas gramáticas são frutos de evoluções culturais oriundas de convenções e desenvolvimentos históricos. Nesse sentido, quando alguém pronuncia ou afirma cotidianamente alguma sentença, essa pessoa estabelece com a respectiva sentença, a entidade linguística, uma relação psicológica, pragmática, comportamental, temporal etc.
Seguramente não era esse o objeto do estudo de Russell, e, de fato, o não interesse por essas relações de fundo subjetivo e temporal sustentava a convicção de que a gramática filosófica deveria servir apenas como uma mera guia a ser seguida sem, contudo, assumir a importância de mestra na investigação. O que interessava realmente a Russell era a proposição, pois é a proposição a entidade lógica não linguística que a sentença expressa. Como dito anteriormente, a proposição ocupou um lugar de destaque no realismo lógico de Moore e de Russell. Por isso, o objetivo final foi desenvolver uma análise lógica da proposição, afirmada no sentido lógico atemporal, pois são a essas entidades lógicas que se anexam a Verdade ou a Falsidade, enquanto propriedades lógicas imutáveis. Possivelmente, essa perspectiva levou Russell a considerar a gramática filosófica a melhor guia para a elaboração de uma lógica correta, ou seja, pode ter sido a convicção de que o conhecimento das proposições e a articulação lógica de seus constituintes possa ser elaborado através da análise das sentenças que as expressam.
Como um exemplo do desenvolvimento da teoria dos termos apresentada em An Analysis of Mathematical Reasoning, Russell elaborou em The Principles of Mathematics, a noção de “conceito”, a partir de Moore15, e definiu a noção de “termo” da forma mais abrangente do ponto de vista lógico, metafísico e epistemológico. É a partir da noção de “termo” que Russell desenvolveu a gramática filosófica, a julgar pela posição lógica dos termos no interior das proposições. Russell a apresentou da seguinte forma:
Qualquer coisa que possa ser um objeto de pensamento, ou possa ocorrer em qualquer proposição verdadeira ou falsa, ou possa ser contada como um, eu chamo de termo. Essa, então, é a palavra mais ampla do vocabulário filosófico. Usarei como sinônimas dela as palavras unidade, indivíduo e entidade. As duas primeiras enfatizam o fato de que cada termo é um, enquanto a terceira é derivada do fato que cada termo tem ser, ou seja, é em algum sentido. (RUSSELL, 1903, p. 43, tradução nossa)16.
A natureza ontológica subjacente à noção de termo foi baseada na visão de que necessariamente cada uma das entidades é idêntica consigo mesma e diversa de todas as demais. Essa visão pluralista, atomista e realista dos termos foi o alicerce filosófico do realismo lógico de Moore e Russell, uma vez que cada um dos termos tem Ser no sentido de serem completamente independentes de nós os pensarmos e das suas relações com o espaço e o tempo. Assim, a noção de “termo” na metafísica de The Principles of Mathematics cumpriu a função de caracterizar cada entidade imutável, irredutível e indestrutível que ocorra nas proposições.
Essa forma de caracterizar os termos pode parecer um tanto controversa, pois a mutabilidade das coisas no espaço e no tempo não se ajusta adequadamente bem à tese de que os termos são imutáveis e atemporais. Contudo, a questão pode ser apaziguada se levar-se em consideração que o realismo lógico de Moore e Russell tinha como princípio uma metafísica que incluía os termos em uma única categoria abrangente de tudo o que há, no sentido de terem Ser. Nesse aspecto, a característica principal dessa metafísica é justamente a independência do Ser, mesmo quando os termos possuam, momentaneamente, alguma relação com o conceito de existência ou com algum ponto do espaço ou com algum momento do tempo. Para esclarecer esse aspecto da metafísica do realismo lógico, é preciso destacar a distinção entre as noções de Ser e existência explicada em The Principles of Mathematics.
Ser é aquilo que pertence a todo termo concebível, a todo objeto de pensamento possível, em resumo, a tudo o que possa ocorrer em qualquer proposição, verdadeira ou falsa, e a todas essas proposições. Ser pertence a tudo que pode ser contado. Se A for qualquer termo que possa ser contado como um, é claro que A é algo e, portanto, que A é. [...]. Existência, pelo contrário, é prerrogativa de apenas alguns entre os seres. Existir é ter uma relação específica com a existência - uma relação, a propósito, que a própria existência não possui. (RUSSELL, 1903, p. 449, tradução nossa)17.
Foi dessa forma que Russell tratou todos os termos e qualquer constituinte de proposições, como estando incluídos na mesma categoria ontológica do Ser, pois não havia distinções entre categorias de entidades. Entende-se que não havia espaço para que algum conceito se sobressaísse ontologicamente sobre os demais pelo fato de os termos e as proposições serem entidades objetivas, não mentais e irredutíveis a qualquer explicação que envolvesse as noções de espaço e de tempo. Todos os termos pertenciam ao mesmo patamar ontológico e, da mesma forma, estavam sujeitos a possíveis combinações lógicas por meio de relações irredutíveis e autossubsistentes. A imagem que essa metafísica passa é a de uma realidade constituída por termos e proposições atemporais, imutáveis, independentes entre si e que podem eventualmente existir se, de alguma forma, entrarem em relação lógica com o conceito de existência. A engenhosidade da teoria é algo surpreendente, pois ela permitiu a Moore e a Russell explicarem, sem cair em contradições, de que forma a mutabilidade das coisas se adequava a imutabilidade dos termos. A explicação é encontrada no seguinte trecho de The Principles of Mathematics:
[...] a mudança se deve, em última análise, ao fato de muitos termos terem relações com algumas partes do tempo que não têm com outras. Mas, todo termo é eterno, atemporal e imutável; as relações que ele pode ter com partes do tempo são igualmente imutáveis. É apenas o fato que diferentes termos estão relacionados em diferentes momentos que faz a diferença entre o que existe em um tempo e o que existe em outro. E embora um termo possa deixar de existir, ele não pode deixar de ser; ele ainda é uma entidade, que pode ser contada como uma, e sobre a qual algumas proposições são verdadeiras e outras falsas. (RUSSELL, 1903, p. 471, tradução nossa)18.
Não é o objetivo deste artigo julgar o quanto é convincente a metafísica que subjaz a filosofia de The Principles of Mathematics, porém é interessante refletir sobre os motivos pelos quais Moore e Russell aderiram a ela. E, nesse ponto, Hylton consegue dar uma boa justificativa ao afirmar que “a distinção entre ser e existência é necessária para garantir a objetividade do que não existe no tempo - e assim, em particular, das entidades da matemática. Somente fazendo essa distinção, Russell afirma, podemos evitar o psicologismo” (HYLTON, 1990, p. 172, tradução nossa)19. Hylton tem alguma razão na medida em que a metafísica de The Principles of Mathematics se contrapôs absolutamente ao ponto de vista psicologista justamente porque a explicação desta fundamentava as entidades matemáticas e lógicas a partir das leis inerentes ao pensar, fazendo com que essas entidades fossem de natureza subjetiva e psicológica. Portanto, mesmo que a metafísica de The Principles of Mathematics pareça uma forma extremada de realismo, a distinção entre Ser e existência assegurou tanto à lógica quanto à matemática a natureza pura e a priori. Essa característica foi fundamental para o argumento logicista de Russell, pois a lógica, enquanto uma ciência universal que se aplica a entidades objetivas atemporais, não poderia, em qualquer sentido filosófico, ser reduzida nem a conceitos empíricos e nem a imagens mentais.
Ainda assim, mesmo que o interesse de Russell fosse a proposição, e não as entidades linguísticas, o entendimento de que a forma sentencial reflete a forma proposicional o levou a tratar das relações semânticas entre as palavras e os termos. O risco que se corre ao se tratar dessas relações linguísticas é o fato de ser difícil desassociar os elementos subjetivos do significado do uso das palavras, pois de uma forma geral, nas relações cotidianas, é natural que elementos psicológicos se misturem ao conteúdo das entidades linguísticas. Ciente dessa dificuldade Russell, sabia que “todas as palavras têm significado, no simples sentido de que elas são símbolos que representam algo diferente delas mesmas” (RUSSELL, 1903, p. 47, tradução nossa)20. Todavia, isso não o impediu de separar o significado no sentido lógico do significado no sentido psicológico. Essa é uma característica importante da teoria semântica de The Principles of Mathematics, pois Russell definiu duas noções semânticas de significado. Esse destaque não é novidade entre os comentadores de Russell. Por exemplo, encontra-se em Rodríguez-Consuegra a mesma percepção que corrobora o ponto de vista apresentado:
Um primeiro resultado foi uma distinção importante que geralmente é mal compreendida. Existem dois tipos de significado. O primeiro se aplica às palavras e afirma uma relação psicológica e linguística segundo a qual as palavras representam ou indicam outras coisas ou conceitos que não são símbolos. O segundo se aplica apenas a certos conceitos e afirma uma relação lógica (denotação) entre esses conceitos e coisas, ou seja, consiste na designação ou descrição de um termo por um conceito. (RODRÍGUEZ-CONSUEGRA, 1989-1990, p. 101, tradução nossa)21.
O indício presente no trecho citado acima mostra que Russell tratou de relações psicológicas da linguagem, mas, de forma nenhuma, esse comportamento arruinou as suas pretensões de elaborar uma análise lógica das proposições. Não custa lembrar que o próprio Russell alertara de que a gramática seria utilizada apenas como uma guia para se alcançar as proposições e, com esse objetivo em mente, foi cuidadoso ao distinguir na gramática filosófica as relações semânticas relevantes para a elaboração de uma lógica correta. Contudo, isso não o privou da necessidade de classificar as relações semânticas puramente lógicas daquelas envoltas em elementos psicológicos. Por isso, esses elementos psicológicos que permeiam as relações linguísticas não contaminaram a teoria lógica da proposição de Russell e devem, com certa cautela, serem desconsiderados, porque a linguagem, uma vez estando sujeita à análise, não passa de uma “roupagem linguística” para as legítimas entidades lógicas, que são as proposições.
A seguir, será analisada a controvérsia a respeito da metafísica de Russell de The Principles of Mathematics. A polêmica questiona se Russell endossou ou não uma ontologia semelhante à de Meinong. Através da análise de trechos de The Principles of Mathematics e da opinião de comentadores de Russell, pretende-se chegar a alguma conclusão se realmente Russell defendeu o ponto de vista que cada nome próprio ou cada descrição definida deve necessariamente nomear alguma entidade que exista ou que tenha Ser.
A análise da suposta ontologia meinongiana de The Principles of Mathematics
A polêmica sobre a metafísica de The Principles of Mathematics consiste na discussão a respeito de qual é a melhor maneira de se interpretar alguns trechos dessa obra na qual Russell deu indícios de defender uma metafísica e uma semântica semelhantes à filosofia de Meinong22. É importante deixar claro que a expressão “ontologia meinongiana” está sendo usada para se referir à posição ontológica na qual se assume como princípio semântico que todo e qualquer termo singular, ocupando a posição de sujeito lógico nas proposições, refere-se a objetos com alguma categoria de Ser. O modo como utiliza-se essa expressão é inspirado em Graham Stevens23, uma vez que o autor concebe que:
O meinongianismo, como eu o defini, considera que a falha da referência é uma ilusão. Termos singulares vazios são apenas aparentemente vazios; embora eles não se refiram a nada existente, eles se referem mesmo assim a algo inexistente. Esse algo é uma entidade simplesmente em virtude de ser nomeada. (STEVENS, 2011, p. 51, tradução nossa)24.
No contexto da metafísica de The Principles of Mathematics de Russell, pode-se afirmar que, no centro dessa discussão, estão a noção de termo, a distinção entre Ser e existir e o papel semântico referencial que expressões como os nomes próprios e as descrições definidas cumprem nas proposições. Sendo assim, serão analisadas as interpretações que sustentam essa controvérsia, à luz dos trechos de Russell de The Principles of Mathematics, a fim de compreender os pontos de vistas envolvidos em questão.
As razões para interpretar que Russell, em The Principles of Mathematics, tinha a mesma visão de Meinong, aparentemente, não são poucas. Russell, ao definir a noção de termo como todo possível objeto do pensamento, tornou-a suficientemente abrangente para cobrir qualquer entidade que ocorresse em proposições verdadeiras ou falsas. Assim, se segundo Russell tudo é um termo, à primeira vista, parece não haver restrições metafísicas e semânticas sobre quais entidades podem ocorrer no lugar do sujeito lógico das proposições. Além disso, como um incentivo às interpretações dessa natureza, ainda se tem registrada uma declaração do próprio Russell afirmando ter adotado a perspectiva metafísica e semântica de Meinong antes de ter elaborado a teoria das descrições de 1905.
Outra distinção importante entre nomes e descrições é que um nome não pode ocorrer significativamente em uma proposição, a menos que exista algo que ele nomeie, enquanto uma descrição não está sujeita a essa limitação. Meinong, por cujo trabalho eu tinha um grande respeito, não notara essa diferença. Ele ressaltou que é possível fazer afirmações nas quais o sujeito lógico é ‘a montanha de ouro’, embora não exista nenhuma montanha de ouro. [...]. Confesso que, até me deparar com a teoria das descrições, esse argumento me pareceu convincente. (RUSSELL, 1959, p. 84, tradução nossa)25.
Declarações como essa, somadas às características metafísicas da noção de termo, influenciaram interpretações de alguns acadêmicos26, no sentido de os levarem a construir uma narrativa que colocou Russell como, de fato, um adepto por completo da ontologia meinongiana em The Principles of Mathematics. Talvez a interpretação mais famosa seja a de Quine, em “Russell’s Ontological Development”, de 1966, pois a leitura que ele demonstra ter feito, claramente, colocou Russell como um defensor de uma ontologia intoleravelmente indiscriminada.
Em Principles of Mathematics, 1903, a ontologia de Russell era irrestrita. Cada palavra se referia a algo. [...]. Ora, essa é uma ontologia intoleravelmente indiscriminada. Pois, tome números impossíveis: números primos divisíveis por 6. Deve, em certo sentido, ser falso que existam; e deve ser falso no sentido em que é verdade que existem números primos. Nesse sentido, existem quimeras? As quimeras são tão sólidas quanto os bons números primos e mais sólidas que os primos divisíveis por 6? Russell pode ter pretendido admitir certas quimeras (as possíveis) no reino do ser, e ainda assim excluir os primos divisíveis por 6 como impossíveis. Ou ele pode, como Meinong, ter desejado um lugar até mesmo para os objetos impossíveis. Não vejo que, em Principles of Mathematics, Russell tenha enfrentado essa questão. (QUINE, 1966, p. 658, tradução nossa)27.
Aqueles que, como Quine, interpretaram a metafísica de The Principles of Mathematics com essa perspectiva, certamente, fazem parte de um dos polos dessa polêmica. Ao que parece, segundo esses intérpretes, sustentados pelas próprias palavras de Russell, não restariam dúvidas a respeito da subsistência de certos objetos, nomeados por expressões como “a montanha de ouro”, habitando algum reino platônico do Ser. O raciocínio subjacente a essas interpretações supõe uma irrestrita subsistência de objetos em um reino atemporal do Ser e, se Russell foi um adepto dessa tese metafísica, não haveria motivos para ele rejeitar o princípio semântico de que a falha referencial é uma ilusão. Porém, essa parece ser uma visão enganosa, pois o fato é que em The Principles of Mathematics tem-se explicitamente o reconhecimento de que alguns conceitos denotativos simplesmente não denotam coisa alguma.
Todos os conceitos denotativos, como vimos, são derivados de conceitos-classe; e a é um conceito-classe; quando ‘x é um a’ é uma função proposicional. Os conceitos denotativos associados com a não irão denotar nada quando e somente quando ‘x é um a’ for falso para todos os valores de x. Essa é uma definição completa de um conceito denotativo que não denota nada; e, nesse caso, diremos que a é um conceito-classe nulo e que “todos a’s” é um conceito de classe nulo. (RUSSELL, 1903, p. 74, tradução nossa)28.
Diferentemente do que Quine afirmou, Russell, na citação acima, enfrentou a questão da falha referencial e, como se vê, não a tratou como uma mera ilusão. O reconhecimento da ocorrência de conceitos de classe nulo é um duro golpe na interpretação meinongiana radical de The Principles of Mathematics, pois eliminou a possibilidade de Russell ter se comprometido metafisicamente com objetos impossíveis ou contraditórios. Por exemplo: dado o conceito denotativo /um número primo divisível por 6/, a função proposicional /x é um número primo divisível por 6/ tem como valor uma proposição falsa para todos os valores de x. Sendo assim, o conceito denotativo /um número primo divisível por 6/ é um conceito de classe nulo. Esse resultado, do ponto de vista do projeto de Russell de fundamentar a matemática em termos puramente lógicos, é natural, na medida em que o argumento logicista não poderia ter resultados consistentes se Russell delegasse Ser a números impossíveis ou a objetos logicamente contraditórios.
Russell chegou a esse resultado ao analisar a classe nula. Para Russell, uma classe é sempre uma extensão (finita ou infinita) e, por isso, ela não pode ser vazia, ou seja, não há “classe vazia”. Há conceitos de classe que não denotam nada, por exemplo, /o atual Rei da França/, /a montanha de ouro/, /o círculo quadrado/ etc. Tais conceitos denotativos não denotam a mesma coisa, isto é, esses conceitos não denotam a “classe vazia”, eles simplesmente não denotam nada. Assim, na perspectiva de Russell, é um contrassenso falar em “classe vazia” porque uma classe é constituída por seus componentes e por nada mais. Se não há componentes, não há classe. Se há um só componente, esse único componente é a classe. Se há dois componentes, os dois componentes são a classe etc. Dessa forma, para Russell “classe vazia” é uma contradição em termos, pois se é classe, não pode ser vazia.
Contudo, aqueles que interpretam a metafísica de The Principles of Mathematics como um exemplo de ontologia meinongiana podem sempre apelar aos trechos onde Russell tratou de temas metafísicos gerais a respeito da noção de termo. Hylton, que discorda das interpretações meinongianas de The Principles of Mathematics, explica com propriedade porque é difícil livrar-se dessa polêmica.
A abordagem de Russell da matemática exige que a noção de denotar deve, desde o início, permitir a possibilidade de conceitos denotativos que não denotam nada. Devemos ser capazes de dizer que não há membros de uma determinada classe, que não há um número maior do que todos e assim por diante. [...]. Russell parece, no entanto, perder de vista essa possibilidade nas partes dos Principles em que questões metafísicas gerais estão sendo discutidas. Embora a teoria dos conceitos denotativos permita a Russell, nos Principles, negar que o atual Rei da França tem ser, não há sinal de que ele perceba esse fato. Mais importante, talvez, é que não há sinal de que ele veja qualquer razão para negar ser ao atual Rei da França. Nesse livro, ele está notoriamente disposto a atribuir ser a qualquer suposto objeto que possamos nomear. [...]. Pelo contrário: fora do contexto da matemática, Russell de bom grado afirma que toda expressão que parece se referir a algo se refere de fato a uma entidade real, que tem ser mesmo que não exista no espaço e no tempo. (HYLTON, 1990, p. 241, tradução nossa)29.
Hylton parece adotar um ponto de vista intermediário na polêmica. Ele reconhece que a teoria da denotação de 1903 possuía formas de evitar uma ontologia meinongiana, mesmo sem saber se Russell era consciente disso, porém, ao mesmo tempo, Hylton dá créditos à ideia de que Russell, fora do contexto da matemática, estava disposto a delegar Ser irrestritamente a qualquer tipo de objeto que possa ser nomeado. Por isso, é melhor ir direto à fonte da controvérsia para analisar a natureza do problema. Abaixo, foram reunidos os trechos polêmicos de The Principles of Mathematics para se ter uma visão do todo e facilitar a presente análise.
Um homem, um momento, um número, uma classe, uma relação, uma quimera ou qualquer outra coisa que possa ser mencionada certamente será um termo; e negar que tal e tal coisa seja um termo deve sempre ser falso. (itálico nosso) (RUSSELL, 1903, p. 43, tradução nossa)30.
Todo par de termos, sem exceção, pode ser combinado da maneira indicada por A e B, e se nem A nem B forem muitos, então A e B são dois. A e B podem ser quaisquer entidades concebíveis, quaisquer objetos possíveis de pensamento, podem ser pontos ou números, proposições verdadeiras ou falsas ou eventos ou pessoas, enfim, qualquer coisa que possa ser contada. Uma colher de chá e o número 3, ou uma quimera e um espaço quadridimensional, são certamente dois. Portanto, nenhuma restrição deve ser colocada em A e B, exceto que nenhum deles deve ser muitos. Deve-se observar que A e B não precisam existir, mas devem, como qualquer coisa que possa ser mencionada, ter Ser. (itálico nosso) (RUSSELL, 1903, p. 71, tradução nossa)31.
‘A não é’ deve sempre ser falso ou sem sentido. Pois, se A não fosse nada, não se poderia dizer que ele não é; ‘A não é’ implica que existe um termo A cujo ser é negado e, portanto, que A é. Assim, a menos que ‘A não é’ seja um som vazio, ele deve ser falso - seja o que for que seja A, ele certamente é. Números, os deuses homéricos, relações, quimeras e espaços quadridimensionais todos têm ser, pois, se não fossem entidades de um tipo, não poderíamos fazer proposições sobre eles. Assim, ser é um atributo geral de tudo, e mencionar qualquer coisa é mostrar que ela é. (itálico nosso) (RUSSELL, 1903, p. 449, tradução nossa)32.
Esses três trechos são os que supostamente comprometeram Russell com a controvérsia em questão e, por isso, são constantemente citados como indícios por aqueles intérpretes que são a favor da leitura da metafísica de The Principles of Mathematics como semelhante à ontologia meinongiana. Contudo, pode-se dizer que ao menos as interpretações mais radicais devem ser descartadas, pois Russell admitiu abertamente a possibilidade de haver conceitos denotativos nulos. Entretanto, ainda é necessário apresentar a interpretação do polo oposto da polêmica e, por conseguinte, entender como essa interpretação explica o que Russell quis dizer quando afirmou que qualquer termo que for mencionado nas proposições tem Ser. Nesse sentido, será apresentada a interpretação feita por Nicholas Griffin (1991 e 1996) referente a esses trechos enigmáticos, tendo em vista que essa leitura parece apresentar-se bastante fiel aos princípios metafísicos de Russell de The Principles of Mathematics.
Na minha interpretação, no entanto, devemos concluir que Russell está se referindo aqui aos próprios conceitos denotativos, não aos termos que parecem denotar. Pois, o próprio conceito denotativo é sempre um termo, embora, a meu ver, frequentemente não exista um termo adicional denotado por ele. Essa leitura da passagem, eu concordo, é tensa na ausência de qualquer indicação explícita de que Russell esteja mencionando conceitos denotativos. No entanto, é de fato o que eu acho que ele quis dizer. (GRIFFIN, 1996, p. 54, tradução nossa)33.
A interpretação oferecida por Griffin34 parece apresentar uma boa solução para a polêmica, ao passo que se mantém fiel aos três trechos citados acima e, concomitantemente, não descaracteriza a metafísica de The Principles of Mathematics, pelo menos para os casos dos conceitos denotativos.
Em primeiro lugar, o fato de haver conceitos denotativos nulos não significa que os conceitos denotativos não são alguma coisa, eles continuam sendo conceitos denotativos, isto é, eles são o significado lógico de expressões denotativas e são os constituintes das proposições. Esse parece ser o pensamento subjacente à afirmação de Russell, “é claro que existe um conceito como nada e que, em certo sentido, nada é alguma coisa” (RUSSELL, 1903, p. 73, tradução nossa)35. Assim, uma sentença como “O atual Rei da França é calvo” não deixa de expressar uma proposição porque o conceito denotativo /o atual Rei da França/ é nulo. O constituinte da proposição é o conceito denotativo /o atual Rei da França/, e é com essa entidade que as mentes possuem familiaridade quando se compreende a proposição /O atual Rei da França é calvo/. Dessa forma, levando em conta a interpretação de Griffin, há fortes indícios de que Russell não se comprometeu com uma ontologia meinongiana porque não há a necessidade de haver um objeto meinongiano que seja nomeado por cada um dos conceitos denotativos nulos. O que Russell parece ter admitido é o Ser do conceito denotativo, e tal compromisso metafísico é condizente com a metafísica de The Principles of Mathematics, pois o conceito denotativo é um termo e, na perspectiva de Russell, cada termo é uma entidade atemporal, eterna, imutável e autossubsistente.
Em segundo lugar, a interpretação de Griffin encontra respaldo nos três trechos citados acima. Apesar de Griffin reconhecer que o ponto fraco da sua interpretação é não haver indícios explícitos de que Russell estava mencionando os conceitos denotativos, estranhamente se encontra em todos os três trechos a explícita indicação de que Griffin reclama estar ausente. Por isso, o itálico nas citações para destacar a presença do termo “mencionar”. É fato que Russell não é totalmente claro em marcar a sua intenção de mencionar os termos exemplificados, mas talvez isso seja de menor importância, dado que Russell fez questão de usar a palavra “menção” nos três trechos citados acima. Esse é um forte indício de que Russell tinha em mente a menção do conceito denotativo, e não o uso dele, pois, do contrário, Russell se comprometeria a ter que responder qual seria o objeto nomeado quando usamos a expressão denotativa “o atual Rei da França” ou “a montanha de ouro”. Portanto, a interpretação de Griffin para os conceitos denotativos, talvez, seja mais razoável do que a leitura que associa uma completa ontologia meinongiana para The Principles of Mathematics.
Porém, não se pode dar a polêmica como resolvida porque o caso mais complicado de se chegar a alguma conclusão ainda não foi analisado. A questão que merece a maior atenção, pois talvez nela se concentre a verdadeira controvérsia, são os casos de nomes próprios. O que ajuda a tornar a ocorrência dos nomes próprios realmente complicado é o fato de Russell, nos três trechos citados acima, não ter mencionado nenhum nome próprio. Todos os exemplos mencionados por Russell foram de conceitos denotativos, e não se encontrou, em nenhum lugar de The Principles of Mathematics, uma declaração de Russell do tipo: o nome “Apolo” indica um objeto que tem Ser ou subsiste em algum reino platônico. Decerto, o que era indiscutível para Russell, na gramática filosófica de The Principles of Mathematics, era que os nomes próprios indicam os seus termos diretamente e não possuem significados como os conceitos denotativos. Abaixo dois trechos que comprovam a afirmação em tela:
Entre os termos, é possível distinguir dois tipos, que chamarei respectivamente de coisas e conceitos. Os primeiros são os termos indicados pelos nomes próprios, os últimos os indicados por todas as outras palavras. Aqui, os nomes próprios devem ser entendidos em um sentido um pouco mais amplo do que o habitual, e as coisas também devem ser entendidas como abrangendo todos os pontos e instantes particulares, e muitas outras entidades que normalmente não são chamadas de coisas. (RUSSELL, 1903, p. 44, tradução nossa)36.
E no apêndice A, Russell, ao analisar a teoria semântica de Frege, diz:
Essa teoria da indicação é mais abrangente e geral do que a minha, como transparece no fato de que todo nome próprio deve ter os dois lados. Parece-me que é apenas a respeito dos nomes próprios derivados de conceitos por meio do o que podemos dizer que eles têm significado, e que palavras como John meramente indicam sem significar. (RUSSELL, 1903, p. 502, tradução nossa)37.
Sendo assim, na época de The Principles of Mathematics, era inconcebível para Russell tratar os nomes próprios como descrições definidas disfarçadas, pelo menos não se encontra nenhuma afirmação de Russell nessa obra que leve a pensar assim. O que alimenta a polêmica é Russell não ter tratado os casos de nomes próprios fictícios. Todos os seus exemplos são sobre “John” e “Eduardo VII”, ou seja, Russell somente usou exemplos de casos de seres existentes em que as entidades nomeadas são os constituintes das proposições. Agora, se a teoria da denotação também é importante para a teoria da identidade, como Russell diz “se nós dissemos, ‘Eduardo VII é o Rei’, nós afirmamos uma identidade” (RUSSELL, 1903, p. 64, tradução nossa)38, então o que Russell diria quando afirmamos a sentença “Apolo é o Deus do Sol”? Graham Stevens é um dos intérpretes do polo oposto à interpretação meinongiana de The Principles of Mathematics que encara essa polêmica a respeito dos nomes próprios vazios. Graham Stevens traça o seguinte cenário:
A análise da denotação de Russell estava em um estado de quase constante fluxo durante o período em questão - incluindo o período em que o capítulo sobre denotação nos Principles foi escrito. A concepção declarada nos Principles não é, portanto, mais completa nem mais permanente do que qualquer outra visão expressa na longa linha de evolução de seu pensamento sobre o tema antes dele finalmente se estabelecer na teoria apresentada em ‘On Denoting’. Visto fora desse contexto, passagens como a do §427 dos Principles, citado anteriormente, parecem firmes declarações de fidelidade a compromissos ontológicos grotescos. Voltando ao contexto mais amplo, no entanto, eles não têm o mesmo significado. No entanto, o meinongiano-nominal é capaz de responder, tomado como um intervalo de tempo, não importa o quão pequeno, do desenvolvimento ontológico de Russell, os Principles parecem capturar um período em que Russell pensou que os objetos meinongianos eram os referentes de nomes vazios. Se for esse o caso, no entanto, o intervalo de tempo captura uma notável aberração no pensamento de Russell. (STEVENS, 2011, p. 59, tradução nossa)39.
A perspectiva histórica colocada por Graham Stevens a respeito do desenvolvimento gradual e contínuo do pensamento de Russell sobre a relação de denotação até a elaboração de “On Denoting” é correta. No entanto, a intenção de Graham Stevens é oferecer uma visão do todo, isto é, do panorama do desenvolvimento do pensamento de Russell e, por isso, a sua análise extrapola os limites de The Principles of Mathematics. Para se livrar do argumento do meinongianismo nominal a todo custo, Graham Stevens propõem que se analisem os nomes próprios vazios em The Principles of Mathematics como descrições definidas disfarçadas:
Tudo o que é necessário para eliminar o meinongianismo nominal é a percepção de que esse tratamento de descrições vazias pode ser estendido também a nomes vazios. Portanto, a ontologia dos Principles não deve mais abrir as suas portas para os deuses homéricos do que para a denotação do conceito denotativo nada. Os significados /Apolo/ e /o atual Rei da França/ têm Ser, mas Apolo e o atual Rei da França não. (STEVENS, 2011, pp. 61-62, tradução nossa)40.
Entretanto, esse foi o posicionamento que Russell adotou nos textos intermediários41 entre The Principles of Mathematics e “On Denoting”, e, consequentemente, essa solução para os nomes próprios vazios não encontra nenhum respaldo teórico em The Principles of Mathematics. A primeira evidência que se tem de que Russell começou a analisar alguns nomes próprios como descrições definidas disfarçadas está no texto “On the Meaning and Denotation of Phrases”, de 1903, após The Principles of Mathematics. Russell diz: “assim, quando nós procuramos Apolo (se é que alguma vez fazemos isso) em um dicionário clássico, nós descobrimos uma descrição que é uma definição; [...]. Portanto, os nomes próprios imaginários são realmente substitutos das descrições” (RUSSELL, 1903, p. 285, tradução nossa)42. Logo, “On the Meaning and Denotation of Phrases” marcou o momento em que Russell, explicitamente, passou a considerar alguns nomes próprios como descrições definidas disfarçadas, além de esclarecer que, nesses casos, a entidade com que se tem familiaridade é o significado do nome porque este passou a ser analisado como um nome descritivo.
Considerações finais
Sendo assim, uma vez proposta fidelidade à gramática filosófica de The Principles of Mathematics, precisa-se reconhecer que há realmente uma controvérsia na metafísica dessa obra em relação aos nomes próprios vazios de seres fictícios. Se for colocado o problema sob a perspectiva epistemológica, a questão parece se agravar, pois de que maneira a noção de familiaridade em The Principles of Mathematics explicaria a relação da mente com o objeto Apolo, uma vez que o nome próprio “Apolo” não tem significado da mesma forma que a descrição definida “o Deus do Sol”? Sabe-se que Russell não se propôs nessa obra à elaboração de uma teoria epistemológica complexa que inibisse compromissos ontológicos bizarros, tendo em vista que a noção de familiaridade foi usada sem qualquer indício de haver restrições sobre os tipos de objetos com os quais as mentes poderiam ter contato direto e imediato. Contudo, é certo que Russell não se comprometeu com uma completa ontologia meinongiana, dado a análise que ele elaborou a respeito dos conceitos denotativos nulos. À vista da análise apresentada, chega-se à conclusão de que a metafísica de The Principles of Mathematics era uma metafísica instável, em evolução, uma vez que Russell não explorou todas as consequências dessa teoria metafísica, sobretudo os casos dos nomes próprios vazios dos seres fictícios.