Como uma extensão de um de seus maiores esforços filosóficos, Albert Camus, incumbido de um ímpeto revoltado, dedicou-se a examinar a questão da pena de morte. O ensaio resenhado neste texto, Reflexões sobre a guilhotina ([1957] 2022)1, apresenta o argumento do autor sobre a pena de morte que, como um brado humanitário e sobretudo pacifista, clama por seu fim. Como premissa, o escritor argelino se utiliza das memórias de seu pai2 quando este retorna de uma execução pública, acometido por um mal-estar generalizado, “correndo, o rosto transtornado” (CAMUS, 2022, p. 19). É definido, desta maneira, o ponto de partida do ensaio: a invenção que deveria simbolizar o ponto final dos corruptores da sociedade, na verdade, causa repugnância, por quê? Para abordar a escrita camusiana, neste texto, dividir-se-á o ensaio em dois eixos argumentativos - ainda que tenha de fato uma divisão capitular -, um dedicado a avaliar e refutar os argumentos que advogam a favor do flagelo capital; o outro com o intuito de discorrer acerca dos efeitos da pena de morte na sociedade.
Precisa ser também levado em conta que o ensaio resenhado não é um divisor de águas na trajetória do argelino; deve-se ter em mente que sua militância pacifista, bem como sua insurreição diante das gulags3 e todo o terror empreendido por Joseph Stalin e do conformismo francês face à aliança bélica com o governo soviético estava presente na obra O homem revoltado ([1951] 2019) e, nela, o escritor arquiteta seu principal ensaio sobre o assassinato. Em Reflexões sobre a guilhotina, o caso é diferente, Camus (2022) vai à especificidade, direciona suas meditações em um alvo delimitado e versa sobre sua legitimidade - ou a falta dela. Logo, trata-se de mais uma exposição crítica sobre a sociedade ocidental de seu tempo.
Para a composição de seus argumentos, o escritor argelino apresenta fatos históricos, dados e relatos retirados da literatura relacionada ao tema. Ao abordar o instinto sádico dos, por exemplo, assassinos e estupradores, que eram recorrentes espectadores no espetáculo da guilhotina, Camus (2022) sustenta que, além da ineficácia da medida como forma de redução dos crimes, a punição capital se consolida como um atentado anti-humanitário. Destaca-se, sobretudo, os relatos médicos, os quais rechaçam não somente a efetividade da pena de morte como também o processo torturante de espera e de execução - visto que não é uma morte instantânea, tal qual defendido pelo propositor da guilhotina. Assim sendo, explica o autor, na tentativa de evitar um ímpeto sadista na população, ou mesmo esquivar de “provocar revolta e asco na opinião pública” (CAMUS, 2022, p. 35), optou-se pelo assassinato no silêncio dos muros do Estado.4
Um dos problemas da implementação e manutenção da punição mortal, relacionado aos réus, ignora a hermética natureza humana. A lei, segundo o autor, é mais simples do que a natureza, a comparação entre uma e outra evidencia a complexidade de uma diante da outra. Portanto, se a intimidação da legislação é a premissa, deveria ter sido levado em conta que criminosos não têm uma natureza diferente. O medo da morte surge após a condenação e não antes do delito. O desejo de estar vivo não necessariamente se sobrepõe a todos os aspectos que concernem à vida em sociedade, de acordo com Camus (2022), ele não é soberano de tudo. Este ponto é acima de tudo tensionado pelo escritor ao levantar o argumento dos conservadores, estes sendo os principais defensores da guilhotina. O argumento conservador é ancorado em uma especulação improvável: não existem provas de que o fator de exemplaridade seja definidor, do mesmo modo que não existem evidências que este esteja, de maneira silenciosa, contribuindo para a segurança pública. A este argumento, o pensador argelino responde:
O maior dos castigos, aquele que propicia a última derrota para o condenado e que acarreta o privilégio supremo para a sociedade não se baseia em nada mais que uma possibilidade inverificável. A morte, ela não comporta gradações, nem probabilidades. Ela fixa todas as coisas, tanto a culpabilidade quanto o corpo, numa rigidez definitiva. No entanto, em nosso país, ela nos é administrada em nome de uma possibilidade e de uma suposição. Embora esta suposição seja razoável, não seria necessária uma certeza para autorizar a mais definitiva das mortes? Ora, o condenado é cortado ao meio menos pelo crime que cometeu que em razão de todos os crimes que poderiam ser cometidos e não foram, que poderão ser cometidos e não o serão. A maior das incertezas autoriza, neste caso, a certeza mais implacável. (CAMUS, 2022, p. 43-44)
Uma vez que as especulações decisivas dos defensores da guilhotina são refutadas uma a uma, Camus (2022) volta seus olhos para os efeitos que a arma de execução acarretou nas pessoas de sua época. É necessário que se faça um destaque fora do texto-fonte, de modo que se explicite de maneira direta a relação do argumento com sua matriz de pensamento, conforme escrito nos primeiros parágrafos da resenha. Em O homem revoltado, o argelino faz uma diferenciação de dois conceitos em seus primeiros capítulos: revolta e ressentimento (CAMUS, 2019).5 Segundo ele, muitos os confundem; contudo, a revolta, grosso modo, impulsionada por sua dimensão social, pela compreensão de uma condição injusta, tenta pôr um basta em um contexto vil de opressão - tal como o próprio Camus (2022) faz com Reflexões sobre a guilhotina. A revolta existe única e exclusivamente quando no coração do ser pulsa a integridade, quando, como epitomado por Bernard Rieux,6 no romance A peste, há honestidade nas ações (CAMUS, 2020). O ressentimento, em contrapartida, nasce de um individualismo profundo, ele fomenta somente a conservação de privilégios e extermínio de quem os ameace; o ressentimento é, em essência, arrivista, ele se vê triunfante ao passo que percebe a dor naquele que elege rival (CAMUS, 2019). Esta breve explanação se faz presente no texto resenhado quando Camus (2022) conclama que a guilhotina não é uma forma de justiça, sequer uma tentativa, mas, na verdade, é um instrumento de vingança. Esta tecnologia mortal, conforme ele sustenta, não reside em seu expediente dar passos em direção a uma sociedade íntegra; ao contrário, o instrumento de assassinato disposto pelo Estado é, na realidade, um estimulante de novos assassinos. Em vista disso, ao estimular a sede de sangue, há, como consequência, um movimento que milita por uma repaginação extrema da sociedade, que regride aos tempos do Código de Hamurabi e defende, como solução única, o assassínio. Em outras palavras, “trata-se de um sentimento particularmente violento”, escreveu Camus (2022, p. 49), “e não de um princípio”.
O que ocorre em decorrência desta mentalidade sanguinolenta é a desumanização do réu, ou seja, ao invés de estabelecer uma pena de morte na qual é dada liberdade para o culpado postergar ou adiantar, por exemplo, ele é humilhado. Os infratores esperam por meses e aguardam o aceite ou a negação de indultos até que têm suas cabeças cortadas. Camus (2022) utiliza mais relatos de funcionários para descrever o constrangimento que define a condição dos delinquentes. A vergonha que sentem, tal qual escreveu o autor, não é do arrependimento do delito e, sim da humanidade que lhes foi tirada - e isto se faz desproporcional, uma vez que o desejo é o revide equivalente. A notícia de morte, somada a espera pelo evento fatal, devasta por completo o ser humano.7 Posto isso, na prática, esta nova versão da lei de talião, sai pela culatra: “o ser humano é atingido pela espera da pena capital muito antes de morrer. Duas mortes lhe são infligidas, a primeira pior que a outra, visto que ele matou apenas uma vez” (CAMUS, 2022, p. 57-58). Para tornar esta premissa proveniente do Código de Hamurabi válida, ainda que minimamente, é necessário supor um cenário bastante específico, conforme estipulado pelo escritor, e, neste contexto, a vítima é totalmente inocente, enquanto o culpado é totalmente culpado, deste modo a contestação seria reduzida. No entanto, o filósofo faz a ressalva: existe culpa na própria sociedade, onde ambos os indivíduos estão inseridos, logo, a sociedade, por mais que não assuma, possui responsabilidade sobre o crime de seus cidadãos.
Camus (2022) dedica, então, alguns parágrafos para a descrição dos problemas sociais franceses que contribuem para a desestabilização de sua população. Desigualdade social, problemas com moradia e, em especial, a relação da população com o álcool e o fomento ao alcoolismo em razão do descaso do Estado com seu povo. O autor relaciona os números da violência na França com o alto índice de alcoólatras e critica a complacência das instâncias que poderiam agir, mas não agem. Sem “papas na língua”, o escritor determina que a violência estatal é como a prática de rufianismo com adição da moralidade; castiga o assassino, sem antes estancar a sangria ignorada e permitida por si mesmo, aquela que causa estremecimento no tecido social. Enfim, o argumento camusiano explica que guilhotinar serve para eximir as instâncias responsáveis da culpa que elas carregam e atirar aos leões aqueles que simbolizam o reflexo de suas falhas mais robustas.
Isto posto, a concentração volta ao sujeito que sobe os degraus do cadafalso para evocar um novo ponto do exame, os casos de inocência ou os que apresentam imprecisão. Algo que os defensores da pena de morte acusam de exceção à regra é refutado, ao passo que a literatura apreendida por Camus (2022) evidencia uma recorrência em condenações de inocentes.8 Estes dados dão conta de um diagnóstico do filósofo argelino: a guilhotina não resolve, apenas suprime. Deste modo, mais um efeito da punição capital é revelado pelo autor, o Estado se exime de sua incompetência e a quantidade de execuções faz o guilhotinado cair em esquecimento, o sentimento de justiça sendo feito perdurar e sua impunidade permanecer incólume; um ciclo vicioso e conveniente aos que ocupam altos cargos.
O objeto de reflexão, ao fim e ao cabo, nada mais é do que um espetáculo construído a partir de uma espécie de justiça dos homens, entretém através do horror e inocula a ideia de equilíbrio; quando, na verdade, fomenta o ímpeto sanguinolento de punição desmedida e instantânea. Para Camus (2022), a pena de morte estabelece a sociedade como inocente e o réu como corruptor, enquanto o juiz, o júri, ou mesmo o Estado, responsável pela condenação ocupa, por conseguinte, a posição onipotente de uma divindade. Centraliza-se numa figura o acerto de contas da coletividade com o infrator. A atração sádica, ao distrair, tem seu efeito ensurdecedor, o episódio se afasta da conjuntura e a gravidade de um assassinato justificado por outro crime tem seu sentido esvaziado, reside apenas na superfície - neste caso, o discurso em defesa do flagelo. Como resultado, “valores e responsabilidades se confundem, os crimes se equiparam, a inocência perde, finalmente, seus direitos” (CAMUS, 2022, p. 23).
A obra apresenta marcas registradas da prosa de Albert Camus, ou seja, não é stricto senso um escrito filosófico, e tampouco jornalístico. O ensaio, redigido por um escritor maduro e com trajetória sobressalente em seu contexto, deve ser encarado como um esforço de revolta, como dito anteriormente, na tentativa de fazer amanhecer a consciência pública para os crimes daqueles que não são aparentes e dos reflexos que uma política imediatista e temerária pode causar à democracia e à vida cotidiana. Ainda que Camus, em certa medida, não exclua a possibilidade de trabalho forçado, sobretudo como pena perpétua,9 ele elabora um lúcido dossiê que, com argumentos sólidos e munidos de fontes interdisciplinares, oferece uma nova possibilidade para a sociedade ocidental - somado também a países do Norte da África (como Argélia e Tunísia). Reflexões sobre a guilhotina, em conclusão, é uma leitura de potencial pujante na contemporaneidade considerando o cenário político em que a morte e a guerra voltam a estar nas pautas das relações diplomáticas e nos debates eleitorais. As meditações camusianas acerca da condição humana no escuro dos porões das prisões francesas viabilizam uma alternativa crítica para se pensar a trajetória da humanidade e seu amanhã.