Intermitências entre um fim e um início
O título deste texto se reporta ao nome de uma oficina de escrita/leitura que ministrei no Centro de Educação (CE) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), para acadêmicos do curso de Licenciatura em Artes Visuais, além de mestrandos e doutorandos da linha de pesquisa Educação e Artes do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) dessa mesma instituição. A escolha por esse contexto se deu em função de que foi nesse mesmo curso de graduação e programa de pós-graduação onde concluí parte de minha formação como professor da área de artes visuais.
Já há algum tempo em minhas produções como professor, artista e pesquisador, venho flertando com conceitos das ditas filosofias da diferença, especialmente via escritos de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Diante dessa perspectiva, tal oficina teve como objetivo principal propor aos participantes um breve trânsito por (e, se possível, alguma experimentação com) disparadores da escrita/leitura a qual se pretendeu inventiva no decorrer da produção da tese de doutorado de minha autoria intitulada “Um corpo-sem-órgãos, sobrejustaposições. Quem a pesquisa [em educação] pensa que é?”1. Entende-se aqui por ‘disparadores’, tudo o que de algum modo colocou meu pensamento em movimento nesse processo investigativo, de forma que a escrita/leitura da tese pudesse aos poucos ser forjada. Entende-se por ‘escrita/leitura inventiva’, a ação de escrever/ler distante de uma função de mero registro representacional e necessariamente significante, mas como mapeamento de um movimento que acompanha o corpo que escreve/lê, ou seja, a própria vida em devir, o próprio pensamento como criação.
É na intermitência entre um fim e um início, portanto, que este texto se faz. Fim de uma tese e início de infindos desdobramentos disparados por sua escrita/leitura. Nesse sentido, assim que a tese foi defendida e essa experiência investigativa foi dada por encerrada, a vontade de ver certas noções sendo postas em funcionamento e em operacionalização por outros que não eu mesmo foi imensa. Daí a ideia de produzir a oficina a partir da qual escrevo agora, ou seja, como forma de compartilhamento. Nesse capítulo, busco não meramente relatar e/ou narrar tal experiência, mas, ao entrecruzar alguns conceitos e noções presentes em minha tese de doutorado com produções e problematizações que surgiram em função daquela ocasião (a oficina), lançar algumas questões que podem vir a ser futuramente desdobradas por mim ou pelo leitor em outras práticas.
A seguir, discorro sobre alguns conceitos que atravessam aquilo que tenho pensado como escrita/leitura inventiva (na produção de pesquisas)2 em educação e, coloco-os em tensão e/ou diálogo com algumas das formas de conteúdo e expressão que surgiram na oficina.3 Talvez o leitor não encontre tais produções - a tese e a oficina - de maneira estritamente delimitada, visto que ambas as experiências não se cristalizaram no tempo, mas continuam vivas e renitentes no que tenho produzido hoje nos mais variados contextos onde atuo, ligados às artes, à docência e à pesquisa, entrecruzando-se.
Fim de uma tese: o que quer uma pesquisa sobre fazer pesquisa em educação?
Se pudéssemos nos deslocar [...] como se fosse possível girar nossos olhos em um movimento brusco de cento e oitenta graus em direção às costas do crânio, o que veríamos seria somente um nada, um Fora absoluto onde a vida ganhava consistência por movimentos e repousos de partículas que eram afectadas umas pelas outras, magnetizadas ou repelidas, formando uma espécie de diagrama de intensidades. Era preciso, para tanto, destituir os olhos das funções de ver, somente. Era preciso arrancar os olhos e instalá-los em outros lugares do corpo ou até fora dele. Era preciso girá-los na maior velocidade que pudéssemos dentro da própria órbita e acolher o espaço liso em nosso peito, como a mãe que acalenta o filho. Era preciso conhecer os próprios olhos, cuidar de suas falências e de seus sobressaltos, e deixá-los tão indignados e tão soltos na concavidade ótica a ponto de que eles pudessem ser instalados em qualquer lugar. Era preciso despertencê-los (MOSSI, 2014, p. 32).
A referida tese doutoral buscava na problemática supracitada - quem a pesquisa [em educação] pensa que é? -, produzir um novo corpo, um corpo-sem-órgãos ao modo de Artaud e, em meio ao seu processo laboratorial, transitar com esse corpo amorfo - tal como o fizeram Deleuze e Guattari em sua produção filosófica4 - por labirintos inventivos que colocaram em tensão constante imagens e linhas de escrita - as nomeadas sobrejustaposições do título da tese - como disparadoras do pensamento sobre as pesquisas em educação. Um pensamento que, segundo os autores, por ser naturalmente letárgico, precisa ser acionado por encontros que o façam criar5,6 na contramão de permanecer em estado de paralisia que produz apenas recognições e clichês, ou seja, nada eminentemente novo além de repetições do mesmo.
Artaud, dramaturgo francês que viveu e produziu em meados do século XX, é categórico ao afirmar em sua conferência radiofônica intitulada Para acabar com o julgamento de deus, de 1947, que “O homem é enfermo porque é mal construído, / Temos que nos decidir a desnudá-lo para raspar esse animalúculo que o corrói mortalmente, / deus / e juntamente com deus / os seus órgãos” (ARTAUD apud WILLER, 1983, p. 161-162). Posteriormente, Deleuze e Guattari, fazendo sua tal prática e a colocando em relação direta com sua produção filosófica conjunta, investem na ideia de que
Trata-se de criar um corpo sem órgãos ali onde as intensidades passem e façam com que não haja mais nem eu nem o outro, isto não em nome de uma generalidade mais alta, de uma maior extensão, mas em virtude de singularidades que não podem mais ser consideradas pessoais, intensidades que não se pode mais chamar de extensivas (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 18).
Quando esses últimos autores tomam para si tal noção dando a ela nuances muito específicas, o fazem, conforme Artaud de certo modo já previa, colocando-a em relação direta com a produção de um corpo o qual se inventa livre de regras prescritivas, prévias de funcionamento, em uma duração que é ética, mas que também é estética. Um corpo levado ao (im)possível, desvencilhado, talvez, da dita paralisia do pensamento e do próprio ato de pensar. Abdicam de um organismo rígido, hierárquico, que prefigura estratos sociais, culturais, sexuais, dentre outros, para introduzir a possibilidade de inventar uma vida com um corpo formado não por órgãos que o restringem, que o engessam, mas por vetores intensivos de desejo produtivo, de infinitas modalidades de experimentação (DELEUZE; GUATTARI, 2011). O fazem também, sem dúvida, resgatando algo já formulado por Spinoza nos idos do século XVII, para quem corpos não se definem por seu gênero ou sua espécie, por seus órgãos ou suas funções, mas por aquilo que podem (daí a tradicional pergunta do filósofo: o que pode um corpo?), ou seja, pelos afetos dos quais são capazes.
Nesse sentido, imagens tomadas de outros, imagens por mim produzidas, imagens visuais e não visuais, imagens de uma constelação informe de conceitos, de espaços fabulados, de acontecimentos que serpentearam a escrita/leitura da tese mencionada e que estão longe de meramente ilustrá-la, arrebataram meu pensamento e o colocam em funcionamento maquínico ao longo de seu processo de produção, a fim de causar um rasgo, uma fissura, no que comumente e majoritariamente7 se entende (e se apresenta) por Pesquisa em Educação (com P e E maiúsculos).
A partir do entendimento de Maioria em Deleuze & Guattari (1997) como estados de dominação em relação aos quais estão formas marginais de existência, uma pesquisa-sem-órgãos - uma pesquisa sobre fazer pesquisa em educação, como uma máquina - seria assim capaz de produzir falências inventivas, rachaduras como respiros e gagueiras na LínguaMãe de Pesquisas Hegemônicas, fazendo-as delirar. Faz-se necessária aqui, talvez, a ponderação de que a pesquisa dita menor, conforme a penso, de modo algum se quer um estado mais aceitável em relação às Pesquisas Majoritárias. Ela apenas traça linhas de diferença no que parece estabelecido, fazendo essas últimas fugir, se desterritorializar e reterritorializar em outra parte.
Considerando as zonas de problematização instauradas pela referida tese e explorando seus infindos desdobramentos, passei a me deter no funcionamento potente que uma escrita/leitura impactada pela noção de corpo-sem-órgãos poderia produzir. Tal aproximação se deu tanto no sentido de pensarmos a produção de pesquisas no campo da educação, como também a própria área da educação em si no que concerne àquilo que se escreve/lê como formulação contínua desse campo de saber.
Que devires inventivos seriam possíveis, distantes da fixação de padrões pré-estabelecidos, na fabricação de escritas/leituras como não-organismos dotados de vida e criação (na produção de pesquisas) em educação? Que imagens atravessariam essa escrita/leitura, como agrimensura de territórios informes, como povoamentos inventivos de desertos pensamentais? Que minorias insurgiriam fazendo vacilar aquilo que nos acostumamos a pensar como a Grande (Pesquisa em) Educação?
Início de infindos desdobramentos: uma oficina sobre escrita/leitura (na produção de pesquisas) em educação
É esse nosso ofício, nossa sina, nosso eterno retorno, nosso inferno cíclico: ler e escrever como produzir do próprio produzir. A alquimia, o laboratório investigativo, a combinação de sons e sabores, se constitui em ler pela escrita e escrever pela leitura como quem encontra cavernas dentro da caverna platônica antes de procurar uma única saída dela. É disso, e somente disso, que trata o proposto empirismo transcendental da pesquisa: compor com o corpo do texto - que está sempre se fazendo - pontos singulares conectados aos corpos dos muitos que em mim e através de mim leem e escrevem (MOSSI, 2014, p. 71).
Das questões enumeradas no fim do subtítulo anterior, dentre muitas outras que ora me escapam, é que a oficina sobre escrita/leitura como experimentação para pensar a (produção de pesquisas em) educação surgiu. Deleuze e Guattari, tanto ao propor como prática a fabricação de um corpo-sem-órgãos (DELEUZE & GUATTARI, 1996), como também em diversas outras passagens de sua obra (em especial em O Anti-Édipo, publicação brasileira de 2011), são incisivos em nos alertar: jamais interprete, experimente! A experimentação como foco, antes da interpretação, ou seja, da significação, é o que permite nos desfazermos de qualquer parâmetro pré-definido, de qualquer tentativa de encontrar uma verdade única e mais profunda para nos lançarmos num espaço liso, desértico, onde, apenas com o pensamento, nos tornamos nômades em pleno deslocamento, onde os caminhos não são dados previamente, mas são plenos de alternativas, de desvios, cruzamentos, retornos e circularidades. É preciso que sejam traçados os próprios mapas enquanto a paisagem se movimenta e se (des)faz.
A experimentação se dá na superfície, como invenção de possibilidades, no contraponto da mera recognição. A noção de alquimia - presente tanto no título da oficina como no título deste capítulo -, como arte rudimentar que antecede a Química como disciplina, vem da vontade de descobrir no próprio feitio e na surpresa da descoberta, das misturas que ora funcionam, ora não, as infinitas e enumeráveis possibilidades existentes em escritas/leituras (na produção de pesquisas) em educação. Imagens e imagens, imagens e escritas, leituras com imagens, escritas com imagens... Infindáveis são os desdobramentos.
Muitos foram os disparadores utilizados tanto na escrita da tese como no período da oficina. Além das noções, conceitos, problematizações que compõe esse texto de maneira geral, também se fizeram presentes produções escritas/visuais de Arnaldo Antunes, Janaína Tschäpe, Lenora de Barros, Shannon Rankin, Walmor Corrêa, dentre outros.8
Em meio às problematizações levantadas junto ao coletivo, os participantes eram convidados a pensar a respeito de seus intuitos de pesquisa, seus projetos e concepções, em exercícios de escrita/leitura que tinham por objetivo redimensionar o que se entende por cada uma dessas instâncias. Umas das experimentações mais marcantes e produtivas, a qual se presentifica em forma de montagens de imagens que atravessam este capítulo, resultou da solicitação para que cada um, de posse de suas sensações diante de alguns disparadores apresentados, pudesse criar articulações e conexões com e entre palavras-chave, que na ocasião movimentavam suas investigações.
A partir dos resultados desse exercício, foi possível nos questionarmos: do que falamos quando falamos de escrita? Do que falamos quando falamos de leitura? Como compreendemos tais potências em inter-relação (na produção de pesquisas) em educação? Como não sucumbir a certos binarismos e inventar uma escrita/leitura que não separe forma de conteúdo, sujeito de objeto, pesquisador de pesquisado e, até mesmo, ler de escrever?
É de praxe que as pesquisas resultem em um texto. Contudo, parece haver naturezas diversas para os textos de pesquisa. Dentre muitos, constato que há pelo menos dois tipos: os textos enclausurados em sua função de dar conta de um processo laboratorial e/ou de campo realizado anterior e/ou conjuntamente a ele - seria uma espécie de relatório utilizado para legitimar a investigação e cristalizá-la em seus resultados finais, ainda que provisórios - e, os que mais me interessam (os quais foram almejados na produção da minha tese e trabalhados com os participantes da oficina aqui retomada) que são os textos vivos, como extensão de um corpo que se (des)faz junto com a pesquisa. Um texto que é, ele próprio, o laboratório. Para esse segundo tipo de texto não há separação entre os planos ditos ‘práticos’ e ‘teóricos’, pois o que há é mais um “empirismo transcendental” (DELEUZE, 2001), tanto do texto, quanto pesquisa. Ou seja, o que
se instaura no plano dito teórico já pressupõe um corpo em ação e movimento invaginando em si mesmo o universo, produzindo-se como singularidade. A empiria e o pensamento andam lado a lado, amalgamados (...) violentando um ao outro (MOSSI, 2014, p. 54).
O texto seria, portanto, como nos propõe Barthes (2010), um tecido. Contudo, antes de ser formado por tramas bem acabadas que sustentariam por detrás sentidos e verdades ocultas, o texto se fabrica por um encadeamento eterno. O corpo daquele que escreve/lê se liquefaz e se espalha, jorra na escrita e encharca o texto. A mão transborda e se desmancha como a aranha se desfaz na teia ao tecê-la, ao modo de uma hifologia (sendo hyphos o tecido e a teia da aranha) (BARTHES, 2010).
A leitura, nesse sentido, não é um pressuposto moral ou intelectual para a escrita, tampouco podemos pensar em um sujeito que escreve e outro que lê como operações autônomas e independentes. A pesquisa que envolve esse tipo de texto se faz pela sua escrileitura: “expressão mascarada da escrita-pela-leitura e da leitura-pela-escrita, bravos combates das máquinas de guerra” (CORAZZA, 2008, p. 21).
Engana-se quem acredita que tal operação - a da tessitura dessa rede que é o texto - é uma operação autônoma que provém de um sujeito pleno. Quem escreve parece ser mais formado pelo texto que seu formador, mais escrito por ele que seu escritor, até porque, considerando esse segundo viés da escrita/leitura de textos (de pesquisa) em educação dos quais aqui estamos tratando, não há originalidade nem genialidade na escrita, nunca se escreve algo que alguém já não tenha de algum modo escrito. Conforme Corazza (2013, p. 96):
Aquele que cria é aquele que adota um ponto de vista criador. Aquele que raspa, escova, faxina os clichês do senso comum e das formas legitimadas. Aquele que enfrenta o desafio de explicar suas criações, sem apelar para uma instância criadora, superior e extrínseca a ele e a seu fazer. Aquele que distingue criação de criatividade; considerando a criatividade (isto é, a criação de soluções originais para problemas já dados), apenas como parte do processo de criação; o qual é mais amplo e envolve a invenção dos próprios problemas.
Como afirmam Deleuze e Guattari (1992), não há pintor ou escritor que, antes de pintar ou escrever, não tenha de raspar todos os clichês preexistentes em sua tela ou página. O que se faz é traduzir e compor, como um trabalho minucioso que “procede por raspagens, colagens, camadas afixadas e em seguida arrancadas, sobreposição que justapõe planos em horizontalidade rizomática e justaposição que sobrepõe transparências” (MOSSI, 2014, p. 73).
Ter uma ideia: leitura/escrita como potências inventivas (na produção de pesquisas) em educação
Escrevo e leio.
Disseco as vísceras do texto.
Escrevo e leio.
Encontro a escrita e a leitura como potências intensivas do texto que se interpenetram e se pressupõem.
Escrevo e leio.
O texto é uma máquina com suas engrenagens à mostra.
Escrevo e leio.
O texto é um corpo (sem espessura e translúcido), uma ameba informe que deixa transparecer, através de uma película superficial muito fina, gradientes energéticos e órgãos desorganizados.
Escrevo e leio.
O texto é sem fundo. É uma máscara sem rosto por detrás.
Escrevo e leio.
O texto é sem-vergonha e mostra suas partes.
Escrevo e leio.
Babel de vozes desconexas, luzes ofuscantes, marionetes suspensas, dançantes.
Escrevo e leio.
Há quem tenha vindo primeiro? Importa?
Escrevo e leio.
Sou eu mesmo o texto quando ele está diante de mim.
Escrevo e leio.
Roubo, colo, recorto, raspo, borro, costuro, tatuo, destroço.
Escrevo e leio.
Utilizo clichês e figurações para esgotá-los.
Escrevo e leio.
Estremeço cada palavra, racho cada partícula atômica de letra, encontro o infinito silencioso que entremeia balbucios e gagueiras.
Escrevo e leio.
No texto procuro a alegria como potência aumentativa e inventora de trânsitos e caminhos impensados no próprio pensamento.
Escrevo e leio.
No texto confecciono as roupas e as joias que utilizo para resistir.
Escrevo e leio.
No texto me desfaço, perco meu corpo, meu nome e meu rosto. Escrevo e leio.
Só.”
(Fragmento de tese de doutorado. MOSSI, 2014, p. 74-75)
O excerto nos convida a pensar em ler e escrever como potências vivas e inseparáveis. Lê-se porque se escreve, escreve-se porque se lê. Escreve-se enquanto se lê e lê-se aquilo que se escreve. Resta saber o que temos chamado de leitura e de escrita, e como tais instâncias têm sido colocadas em diálogo ou tensão, sobretudo no campo da educação e das pesquisas que o constituem. A mim, ao menos, ainda parece caro avançar nessa discussão para pensarmos como temos inserido imagens em meio a essa leitura/escrita ou, para além, como tornar tais instâncias de ação - ler/escrever e ler/escrever com imagens - instâncias de ação vivas, inventivas? Esse foi o mote da oficina trabalhada e a partir do qual escrevo/leio agora. Nessa seara, noções tais como invenção/criação, conectam-se às noções de pensamento e aprendizagem, na formulação de escritas/leituras que se presentificam como instâncias vivas, porosas, nunca como produções estanques.
Inclusive, aprendizagem, pensamento e, claro, criação, são noções extremamente caras a Deleuze e Guattari e, em diversas passagens de sua produção filosófica, parecem se entrelaçar de modo a formular uma espécie de amálgama indissociável. Embora o objetivo deste texto não seja se debruçar sobre as mesmas a ponto de esmiuçá-las, a seguir pontuo algumas associações que parecem importantes no sentido de apresentar a perspectiva que utilizei para olhar ‘escrita/leitura’ e ‘escrita/leitura com imagens’ na oficina trabalhada, sobretudo pontuando tais ações como lugares para a invenção e não para a mera representação (na produção de pesquisas) em educação.
Virgínia Kastrup, em entrevista disponível aqui: <https://www.youtube.com/watch?v=Sz7-cLdgsVk>9, pontua o que seria, segundo ela, uma aprendizagem inventiva. Para a autora, a invenção é a potência que a cognição possui de diferir de si mesma. Ou seja, no contraponto de pensarmos na invenção como uma faculdade a mais além de outras, nos reportaríamos a ela sempre associada a outras faculdades e, desse modo, poderíamos falar, por exemplo, de uma percepção inventiva, uma linguagem inventiva, uma memória inventiva e, claro, de uma aprendizagem inventiva. Tal perspectiva nos oferece caminhos para escaparmos de um modelo representacional do pensamento, ou seja, da ideia de que aprender seria mera adaptação a um mundo pré-existente na direção de uma aprendizagem como possibilidade de invenção de outros mundos possíveis e incompossíveis. Aprender seria, para além de resolver problemas dados (noção de criatividade), vivenciar a experiência da formulação de problemas (problematização).
Uma leitura/escrita inventiva ou uma leitura/escrita com imagens que se quer inventiva seria a experiência que envolve tais instâncias de ação. Não para produzir códigos significantes fechados ou um mero relato representacional, uma narrativa do ocorrido, mas para produzir campos, espaços ou zonas de problematização que se mantêm em aberto, vivos para a incerteza do que virá. Do que outrem poderá desdobrar do escrito/lido e do escrito/lido atravessado por imagens como planos de experimentação e criação.
Deleuze, em seu ensaio Qu’est-ce que l’acte de création? (O que é o ato de criação?, 2003), nos ajuda a diferenciar o conceito de criação do de criatividade, associando ao primeiro algo mais próximo da ideia de invenção proposta acima. O autor, ao se questionar o que acontece quando alguém diz “tive uma ideia!” e alegando que ter uma ideia é um acontecimento raro, nunca vinculado a uma noção geral - afinal não se tem ideias gerais, mas sempre associadas a um domínio específico - afirma que pensar não é nunca ‘descobrir’ algo, descortinar alguma realidade escondida, mas criar algo novo, como “um povo que falta” (DELEUZE, 2003). Segundo o autor,
[...] o problema não é dirigir, nem aplicar metodicamente um pensamento preexistente por natureza e de direito, mas fazer que nasça aquilo que ainda não existe [...]. Pensar é criar, não há outra criação, mas criar é, antes de tudo, engendrar ‘pensar’ no pensamento (DELEUZE, 2006, p. 213).
Ter uma ideia, ou se colocar a pensar, “não é inato, mas deve ser engendrado no pensamento”, nos diz Deleuze (2006, p. 213). Aprender, nesse sentido, talvez passe por esse engendramento também, como que por um funcionamento inesperado, inusitado, disparado pelo encontro fundamental com algo ou com alguém. Ou seja, o pensamento “frequentemente compreendido como o exercício natural de uma faculdade”, diante das perspectivas aqui adotadas “se faz longe de qualquer garantia. Não sendo natural, nem a expressão de um sujeito, [...] pensar não é a tentativa de descobrir a verdade, mas a criação do novo” (LEVY, 2011, p. 128). Compreende, portanto, não a ação de “conhecer, ou antes, reconhecer o real apresentado” (LEVY, 2011, p. 122), mas de criar, inventar, aprender como diferenciação de si mesmo.
Para Skliar (2014), leitura e escrita comungam de um sentido: o de fazer vacilar o Eu como categoria inquestionável. A leitura, segundo o autor, se configura enquanto uma experiência em que o “leitor põe à prova sua crença identitária na alteridade da leitura: a cada fragmento, a possibilidade de uma pergunta que começa sendo exterior e se interioriza até confundir alteridade com intimidade” (SKLIAR, 2014, p. 85). Já a escrita, relacionada a essa primeira, se qualifica “como convite a ir além de si mesmo, a sair, a livrar-se da própria modorra, um convite para abandonar o relato repetido, a identidade de si como centro do universo” (SKLIAR, 2014, p. 109).
Pensamento, aprendizagem e criação/invenção, associados a uma leitura/escrita ou a uma leitura/escrita com imagens (na produção de pesquisas) em educação, diante do exposto, podem nutrir uma potente relação amorosa e de contaminação de fluxos onde pensa-se para escrever e ler, escreve-se para ler e pensar e lê-se para pensar e escrever. Lê-se não para ter certeza, mas para que a certeza vacile e se estenda para uma zona de incerteza tal em que o impensado, o inusitado e as aprendizagens em redes de multiplicidade sejam possíveis. Escreve-se não porque já se conhece algo que precisa ser registrado, cristalizado na escrita, mas justamente porque não há compreensão exata a respeito de alguma coisa e porque a criação/invenção de caminhos para tal, a busca em si, mostrase, talvez, mais interessante do que a própria definição a ser encontrada.
Considerando escrita/leitura e escrita/leitura com imagens (na produção de pesquisas) em educação como potências vivas e vivificantes de espaços para que aprendizagem, pensamento e criação/invenção se imponham como outra via possível, como uma via menor na contra direção de uma maioria significante, resta assumirmos que nunca teremos uma escrita ou uma aprendizagem plenamente acabadas, uma leitura ou a compreensão máxima de uma noção, o estabelecimento fixo de qualquer verdade ou mesmo o alcance do limite derradeiro para o próprio pensamento. Teremos sempre somente uma rede no mínimo extensa de possibilidades, de amarrações, vias, acessos, tensões - como uma cartografia, um labirinto, uma colagem - por onde nos movimentamos e damos por assentadas certas coisas em determinados espaços de tempo. Teremos somente velocidades diferentes de escoamento daquilo que enunciamos coletivamente mediante os agenciamentos que somos capazes de produzir rizomaticamente (DELEUZE; GUATTARI, 1995a) a partir do que nos afeta.
Costumo pensar naquele que escreve/lê, que captura imagens para essa escrita/leitura, como o agrimensor de um espaço informe, inacabado, de um fora absoluto onde nada é ainda, onde tudo poderá vir a ser (LEVY, 2011) de acordo com o modo com que tal e qual escrita/leitura associada (ou não) a imagens puder ser rearticulada, de acordo com os limites impensados que o próprio pensamento nessas ações puder alcançar.
As ações de escrever/ler qualquer coisa, incorporar imagens nessa escrita/leitura (na produção de pesquisas) em educação - conforme procuro entendê-las neste capítulo e como as trabalhei na oficina -, é mais o trabalho de quem produz realidades mistas, híbridas, plurais, do que de quem reproduz uma única realidade engessada. É mais o trabalho de quem dissolve a si mesmo em sua ação, do que de um sujeito dotado de uma identidade plena capaz de produzir, significar e sobrecodificar enigmas e códigos.