Introdução: a relevância e as particularidades da educação
António Ribeiro Sanches, nas suas Cartas à Mocidade Portuguesa (1759), assume o tema da educação como fundamental. As “particularidades que pertencem à meninice”, que muitos não perderão tempo a ler, são tão importantes porque delas depende “[...] a desgraça ou a felicidade de toda a vida” (SANCHES, 2003, p. 36). Isso mesmo é confirmado pela experiência e foi intuído por grandes pensadores, quer da Antiguidade quer de tempos mais próximos do seu próprio século. Plutarco, Quintiliano, Erasmo, Luis Vives são exemplos, invocados nas Cartas, de autores que consideraram a educação da primeira infância como preponderante.
Ribeiro Sanches, familiarizado com a literatura pedagógica, sabe que até em Portugal não está sozinho no interesse pelo tema da educação dos mais novos e afirma já existir uma obra que tratou amplamente e com grande sucesso o tema. O autor refere-se aos Apontamentos para a Educação de um Menino Nobre, da autoria de Martinho de Mendonça de Pina e de Proença, como um “perfeito livro”, uma das grandes obras escritas em Português sobre a “educação particular, que cada Pai deve dar a seus filhos” (SANCHES, 2003, p. 33). Na verdade, dentre os “[...] milhares de tratados que se têm impresso [sobre] Educação doméstica [...]”, o mais excelente é, a seu ver, o de Martinho de Mendonça (SANCHES, 2003, p. 53).
Por lhe reconhecer grande qualidade, e por considerar que tal tratado esgotou o que haveria para dizer sobre o assunto, Ribeiro Sanches assume que gostaria de tratar não dessa educação privada mas da educação pública. Por isso mesmo, a digressão pelas sugestões pedagógicas do autor, quer aquelas que se dirigem à educação da mocidade plebeia, quer aquelas que se dirigem à educação da aristocracia portuguesa, deverão ter presente dois pressupostos fundamentais: em primeiro lugar, o facto de assumirem como objecto a educação dos mais novos e, em segundo lugar, o facto de se tratar de uma educação que assume o estado como insubstituível. Com base nestes pressupostos será importante mostrar que se constituiu como tendência destes tratados pedagógicos dissertar sobre a educação das crianças em função do seu estatuto social, distinguindo-se neles propostas para a educação de crianças aristocratas e propostas, diferentes, para crianças plebeias. Será intenção do presente artigo mostrar que determo-nos nesta diferença impedirá, porém, a construção de uma interpretação completa das propostas pedagógicas em análise. Se a educação visa em última instância preparar-nos para um futuro vivido em sociedade, então só a superação das particularidades de cada tipo de educação trará uma compreensão una de como estes autores entendem em que consiste viver em sociedade, como devem ser conduzidas as relações de autoridade e sujeição. No horizonte destas considerações reside aquela que será a melhor forma de sociedade.
A proposta de educação de António Ribeiro Sanches: educação doméstica ou educação pública?
A carta intitulada “Da natureza da Educação da Mocidade e do Objecto que deve ter no Estado onde é nascida” assume particular relevância para este estudo na medida em que constitui, desde logo, uma oportunidade para o seu autor situar os seus próprios pensamentos sobre a educação dos mais novos na tradição de escritos dedicados ao tema.
Ribeiro Sanches demarca-se desde logo do tipo de reflexões desenvolvidas por Martinho de Mendonça nos Apontamentos dizendo que não lhe interessará tanto discutir a educação privada, ou seja, aquela que o pai dá aos seus filhos no contexto doméstico. Ao dizê-lo demarca-se também de John Locke quando este assume logo no início de Alguns pensamentos sobre educação que escreve para aconselhar um pai que o questionou sobre a melhor forma de educar o seu filho (LOCKE, 2003, p. 79)1. Ribeiro Sanches demarca-se assim dos seus antecessores na escolha do objecto de reflexão propondo-se discutir o ensino a dar a toda a mocidade do reino.
Ribeiro Sanches demarca-se igualmente de outros escritos sobre educação pela forma como entende o modo de alcançar a finalidade da educação. Tal como John Locke2 e Martinho de Mendonça, também ele entende que a aquisição das “virtudes sociáveis e cristãs”, tais como a “a paz e a boa fé”, são os objectivos de uma boa educação; e que essa educação não é mais do que um hábito “[...] adquirido pela Cultura e direcção dos Mestres, para obrar com facilidade e alegria acções úteis a si e ao Estado onde nasceu” (SANCHES, 2003, p. 33). Por outro lado, ainda que expresse concordância relativamente aos fins da educação, o autor não subscreve inteiramente o método descrito por aqueles filósofos para alcançar esses fins. Pois ainda que assuma que os bons hábitos de conduta sejam adquiridos pela cultura e pela direcção dos mestres, Ribeiro Sanches distancia-se irremediavelmente de Locke e de Martinho de Mendonça pela forma como entende esses “Mestres”:
para se cultivar o ânimo da Mocidade, para adquirir a facilidade de obrar bem e com decência, não basta o bom exemplo dos Pais, nem o ensino dos Mestres; é necessário que no estado existam tais Leis que premeiem a quem for mais bem criado, e que castiguem a quem não quer ser útil, nem a si, nem à sua pátria. (SANCHES, 2003, p. 33)
É desta forma que o autor define o seu lugar na tradição da discussão sobre a educação dos mais jovens. Não se trata já de dissertar sobre a educação particular, aquela que se encontra encerrada dentro dos limites de uma casa e que tem no exemplo dos mais velhos - os pais e todos os que habitam (e que frequentam) a casa da família - a fonte dos bons (e maus) preceitos. Trata-se de reorientar a atenção dos interessados em questões pedagógicas para o domínio mais vasto da nação e procurar neste novo enquadramento um novo método para educar os mais novos porque o lugar onde se educa e o método utilizado para educar se alteram. Esta reorientação, para além de abrir um caminho diferente de reflexão, permite desde logo tornar mais clara a ligação entre educação e preservação da sociedade, também presente em Locke e Martinho de Mendonça. Se está nas mãos das leis da nação educar, essa educação visará o bem da nação e isso mesmo se encontra dito no texto da Carta dedicada por Ribeiro Sanches ao tema. As leis devem premiar “quem for mais bem criado”; e devem castigar “quem não quer ser útil, nem a si nem à Pátria”. A educação visa, assim, habituar o homem a agir em função do que considera ser útil para si mas também para a utilidade da pátria. E a aquisição desse hábito encontra-se intimamente ligada ao poder das leis da nação para orientar a conduta humana.
Também em Locke está presente esta ideia de que da boa educação das crianças depende a prosperidade da nação3. Quer para Locke, quer também para Rousseau, o fim da educação é o de fortalecer a vontade, e torná-la capaz de silenciar as inclinações desfavoráveis à vida em sociedade. Também para Gaetano Filangieri, a confiança devida ao papel da educação na formação dos mais jovens se justifica pelo seu poder para diminuir, e não para multiplicar, os desejos4 e isso será tão relevante porque todo o investimento na educação terá como retorno a prosperidade e a paz. A educação, defende Filangieri, serve o propósito do aperfeiçoamento dos costumes, a criação de bons hábitos e o fomento das virtudes públicas (FILANGIERI, 1734, Tome VII, xxxiv, pp. 135, 136).
Verifica-se, assim, como para aqueles filósofos o benefício da educação é pensado em função do bem que trará para a harmonia social e como a prossecução desse fim depende de uma intervenção sobre a natureza das crianças. O que distingue Locke, Rousseau e Filangieri será a forma como se entende essa natureza e, consequentemente, a forma como deve dar-se essa intervenção (educação).
Dirá John Locke, que verifica que a criança revela desde cedo a tendência para querer ter tudo em seu poder, que o que importa na educação é contrariar esse despotismo natural com a inculcação de hábitos que operem naturalmente sobre a mente; importa educar as crianças para o desenvolvimento de hábitos de comportamento, exercitando-as nesse mesmo comportamento, e não pela imposição de regras. O objectivo final será o de habituar os mais novos a agir, naturalmente, de acordo com os princípios favoráveis à vida em sociedade. Será nesse sentido que Locke refere que as expressões individuais de civilidade e de respeito, quando derivam de uma mente naturalmente inclinada para a virtude, revelam-se como marcas genuínas de uma mente bem formada5. Será também nesse sentido que Locke sugere que se procure activamente inculcar na criança sentimentos de igualdade relativamente a outras da sua idade6 punindo a tendência, observada nas crianças que crescem nas casas aristocratas do seu tempo, para tratar os criados com palavras dominadoras e modos imperiais, como se eles pertencessem a uma espécie inferior7.
Será também com o objectivo de garantir a harmonia em sociedade que Rousseau fala no corpo forte, naturalmente capaz de resistir às adversidades e às solicitações das paixões sensuais8. Para o filósofo Francês, porém, toda a pedagogia deve assentar na ideia de natureza, da inevitável “marcha da natureza” (ROUSSEAU, 1848, p. 4). É a natureza que educa, não as regras impostas pelos pedagogos que olham para a criança e procuram ver nela o homem que deverá ser sem considerar aquilo que ela é antes de ser adulta. Por outro lado, se a criança exibe más inclinações, tal dever-se-á não à sua natureza mas à influência que o meio que a rodeia já exerce sobre si. Observando, por isso, a natureza, e procurando nela traços de intenções, Rousseau conclui que essas intenções vão ao encontro do que a educação pretende ser, a saber, um processo capaz de dotar o homem de qualidades que lhe permitam apreciar os bens e evitar os males que encontra na sua vida, preparando-o para todas as condições do mundo (ROUSSEAU, 1848, p. 33).
De modo semelhante defende Filangieri que as crianças não nascem corrompidas porque do que pôde observar durante os primeiros tempos de vida de algumas, esse tempo não seria suficiente para operar essa corrupção. Filangieri observa, porém, que nascem ignorantes, o que por sua vez não significa que nasçam erradas. O erro, “as falsas opiniões do seu espírito”, é adquirido sendo essa aquisição potenciada, por um lado, pela curiosidade que é característica natural nas crianças e, por outro lado, pela fraqueza da capacidade intelectiva que não pode, com eficácia, distinguir o verdadeiro do falso9.
A proximidade de Filangieri das preocupações reveladas por Locke e Rousseau relativamente à promoção da moralidade de cada criança particular, no contexto doméstico, não significa que o autor Italiano desconsidere a educação pública. Pelo contrário. Para Filangieri, a educação moral, ou seja, particular, far-se-á em privado enquanto a educação do povo só poderá ser conseguida por meio da educação pública. E numa passagem da sua Ciência da Legislação, particularmente reveladora do seu conhecimento do estado da arte em matéria de pedagogia, Filangieri, criticando Rousseau, insiste que a educação doméstica é preferível se quisermos formar um homem, um Émile. A formação de um povo, porém, supõe a educação pública10.
Objecto da educação proposta por Ribeiro Sanches: a educação da mocidade plebeia
Em segundo lugar, e de acordo com o próprio Ribeiro Sanches, o facto de se definir que o lugar da educação se encontra na nação conduzirá a que se considere toda a mocidade como objecto dessa educação. Esta foi aliás a questão que logo colocaram ao autor da Carta, a saber, se “[...] se toda a mocidade do Reino deve ser educada por Mestres, se o Estado há-de contar entre esta Mocidade o filho do Pastor, do Jornaleiro, do Carreteiro, do Criado, do Escravo e do Pescador?” (SANCHES, 2003, p. 33). Segundo Ribeiro Sanches, esta é na verdade a classe de súbditos que é mais urgente educar sendo que, por isso, qualquer discurso sobre pedagogia deverá incidir especialmente sobre ela.
Desta forma, e mais uma vez distanciando-se dos autores que escreveram sobre educação mas não ponderaram os efeitos da mesma sobre a Mocidade que integra esta classe11, como será o caso de John Locke, Ribeiro Sanches considera necessário deter-se nesta classe de súbditos por ser dela que “[...] depende o mais forte baluarte da República, e o seu maior celeiro e armazém” (SANCHES, 2003, p. 33). Se o fim da educação é garantir a utilidade particular e da nação, então particular atenção deverá ser prestada àqueles que para ela mais contribuem.
Consequência: se é da mocidade plebeia que depende o futuro do capital de força humana capaz de servir a nação, então importará vedar-lhe o acesso à aquisição de capacidades de leitura e de escrita. Isto mesmo é defendido, e justificado, com recurso a três ordens de argumentos: histórico, antropológico, utilitarista.
O primeiro argumento é construído com base em evidências históricas. As desvantagens de se generalizar o ensino da leitura e da escrita são comprovadas pela história recente, defende o autor que verifica que, à data, França vê os seus campos abandonados porque todos procuram melhor fortuna nas cidades sendo causa de tal facto “[...] a infinidade de Escolas de ler e escrever [...]” que existem “[...] na mínima aldeia de dez ou doze casas”. Quando se multiplicam as escolas, abrindo a possibilidade para qualquer criança de aprender a ler e a escrever, é inevitável o abandono dos campos. Nem a lei criada nos “Estados del Rei de Sardenha”, que determina que todos os filhos de camponeses assumam o ofício dos pais, pode contrariar essa tendência. Porque, segundo diz Ribeiro Sanches, ao saberem ler e escrever, os filhos dos camponeses têm esperança de obter o seu sustento com outras actividades, e de nomeadamente “[...] ganharem a sua vida com a sua indústria e inteligência”. Se sabem ler e escrever, graças à instrução que receberam nas suas aldeias, já não precisarão “[...] das suas mãos para sustentar-se”. Para este mal Ribeiro Sanches sugere o remédio de “[...] abolir todas as escolas em semelhantes lugares” (SANCHES, 2003, p. 33).
O segundo argumento é construído com base em pressupostos antropológicos informados por uma concepção de natureza humana. Quem sabe ler e escrever não quererá desempenhar tarefas laboriosas e fisicamente exigentes, “ofícios vis e penosos”, no campo ou no mar. E isto porque, por um lado, a vontade será a de obter sustento com tarefas que suponham o uso da inteligência. Por outro lado, adquirir conhecimentos de leitura e de escrita faz com que se perca, logo desde tenra idade, força física e se fomente “[...] o hábito de preguiça e de liberdade desonesta” (SANCHES, 2003, p. 33). Por causa das exigências deste tipo de aprendizagem, os meninos que frequentam as escolas permanecem três horas de manhã, e três horas de tarde
[...] sentados, sem bolir, sempre tremendo e temendo; perdem a força dos membros, aquela desenvoltura natural, porque a agitação, o movimento e a inconstância é própria da idade da meninice: e não convém uma educação tão mole a quem há-de servir a República de pés e de mãos, por toda a vida. (SANCHES, 2003, p. 33)
Para garantir que assim não sucede será necessário, defende Ribeiro Sanches, executar a lei garantindo que o trabalho e a indústria permanecem como o garante do estado civil. Porque é desse trabalho manual que depende, por um lado, o sustento do homem particularmente considerado; e, por outro, o bem da própria nação (SANCHES, 2003, p. 33)12.
Um terceiro argumento é elaborado a partir de uma certa concepção de utilidade. Aliando considerações sobre a utilidade pessoal e a utilidade comum Ribeiro Sanches demonstra que dotar toda a mocidade, de todos os estatutos sociais, de capacidades de leitura e escrita trará malefícios na medida em que os ofícios dos quais depende o sustento individual, ofícios “sem os quais não pode subsistir a República”, estão associados ao trabalho físico, não ao trabalho intelectual. Mais uma vez se comprova que a tendência para multiplicar escolas de ler e de escrever deve conhecer limites, sobretudo em zonas rurais13.
Da ponderação de todos estes argumentos resulta a necessidade de limitar a criação de escolas, sobretudo em áreas habitadas por camponeses, alargar o papel do estado para garantir a boa educação da mocidade plebeia e a elaboração e defesa de uma concepção de educação assente na transmissão dos bons preceitos de conduta pela exposição aos bons exemplos.
Relativamente à concepção de educação que subjaz ao argumentário de Ribeiro Sanches, diz o autor das Cartas sobre a Educação da Mocidade que bastará à mocidade plebeia a educação que lhes pode ser transmitida pelo exemplo dos pais que trabalham para garantir o seu sustento. Essa educação garante que os filhos sigam o caminho virtuoso dos pais e evitem o ócio. Por outro lado, e uma vez que “[...] o povo não faz boas nem más acções, que por costume e por imitação; e raríssimas vezes se move por sistema nem por reflexão” (SANCHES, 2003, p. 34), será importante que imite as acções dos maiores sendo que, ainda que não tenha um mestre e uma escola onde seja ensinado, pela imitação dos maiores, o povo informará os seus costumes de acordo com o exemplo que retira dos melhores e mais virtuosos. Neste sentido, afirma Ribeiro Sanches na sua Carta:
Imitamos o que vemos, e sem nos apercebermos do que fazemos, adquirimos o hábito, antes de pensar que é vicioso: somos dotados desta admirável propriedade, que influi tanto em todas as acções da vida humana. (SANCHES, 2003, p. 35)
É neste sentido também que Ribeiro Sanches, aproximando-se de John Locke, refere um dos aspectos mais inequívocos da educação: esta não é mais do que o hábito que se adquire com a cultura e com a “direcção dos Mestres” para agir, “com facilidade e alegria, de modo útil a si mesmo e à sua nação. Porque não é demais sublinhar este aspecto, impõe-se repeti-lo: a educação consiste em “cultivar o ânimo da Mocidade” de modo a que ela aja, facilmente, bem e com decência. A semelhança com o que é defendido por John Locke é evidente. Também o autor de Alguns Pensamentos sobre Educação defende que nada existe de mais importante do que uma mente naturalmente inclinada para o bem, de tal modo que se torne perceptível a todos os que a rodeiam que as acções da criança decorrem naturalmente e sem esforço de uma natureza boa.
Uma segunda conclusão a retirar da obra de Ribeiro Sanches prende-se com o papel do estado na educação. Esse papel é invocado, muito concretamente, pelo seu poder de fazer leis e de executá-las. Assim, por um lado, e relativamente à tarefa de legislar, entende-se como necessário “[...] que no estado existam tais Leis que premeiem a quem for mais bem criado, e que castiguem a quem não quer ser útil, nem a si, nem à sua Pátria” (SANCHES, 2003, p. 33). Para tal, é condição necessária que a lei da nação se oriente pelos princípios que devem presidir à vida em sociedade e regular a conduta dos seus súbditos. A lei enquanto garante da harmonia na sociedade e o princípio14 a inculcar nas mentes jovens vão exactamente no sentido da obrigatoriedade de observar essas leis.
Defende-se igualmente que cabe ao estado criar as leis que garantam que a ninguém falta o trabalho (SANCHES, 2003, p. 34) porque desse depende a conduta virtuosa dos seus súbditos. Por outro lado, a execução destas leis parece depender de outros factores. O exemplo invocado por Ribeiro Sanches da lei criada na Sardenha, e que obrigava os filhos dos camponeses a assumir o ofício dos pais, é disso exemplo. Segundo o autor Português, esta lei foi mal redigida e é de impossível execução uma vez que, quando dotados de capacidades de leitura e de escrita, os mais novos passam a ter a vontade de ganhar o seu sustento com recurso a essas capacidades intelectuais (SANCHES, 2003, p. 33). Nesse sentido, de nada serve ter leis que obriguem o súbdito a obedecer e a assumir as funções dos seus progenitores se se lhes dá a possibilidade de desenvolverem capacidades que os vão dotar de qualidades e vontades contrárias.
Aqui reside um terceiro aspecto da proposta pedagógica de Ribeiro Sanches. Ainda que a educação, tal como é descrita, vise manter os jovens plebeus nas funções já ocupadas pelos seus pais, inviabilizando alguma forma de mobilidade social, não é objectivo de Ribeiro Sanches que o produto desta educação seja “[...] um Súbdito obediente e diligente a cumprir as suas obrigações, e um Cristão resignado a imitar sempre, do modo que alcançamos aquelas imensas acções de bondade e de misericórdia” (SANCHES, 2003, p. 33). Se as obrigações do súbdito deverão ser transmitidas, com o tempo e pela exposição ao bom exemplo, pelos seus pais enquanto estes executam as tarefas inerentes à sua condição e obrigações; se assim for, o jovem súbdito crescerá ciente dessas obrigações e cumpri-las-á, obedientemente, quando adulto. A obediência será natural; o súbdito será dotado daquela mente que Ribeiro Sanches, inspirando-se possivelmente em Locke, deseja que seja “naturalmente inclinada para o bem”. A diferença entre o filósofo Inglês e o autor das Cartas sobre a Educação da Mocidade reside no facto de que o bem a alcançar é, para o primeiro, entendido como virtude informada por uma natureza habituada à prática do bem; sendo que para o segundo, o bem de que se fala é aquele que depende da execução dos ofícios e tarefas que são úteis à nação, a saber, os ofícios tradicionalmente atribuídos a cada estrato social, atribuição cuja manutenção importa garantir. O homem educado é o homem que cumpre a sua função na sociedade, executando tarefas e ofícios que concorrem para a sua utilidade e para a da nação.
A proposta de educação de António Ribeiro Sanches: a educação da nobreza e da fidalguia portuguesas
A carta que se segue àquela analisada até aqui, e que se intitula “Do que haviam de aprender os Meninos além de ler, escrever e contar, etc.”, contém uma sugestão. Nessa carta, o autor sugere a publicação de um livrinho, redigido em Português e por onde os meninos aprendessem a ler, que incluísse os princípios da vida civil. Se a sugestão pedagógica supõe a aquisição da capacidade de ler, e se a leitura está, como se mostrou anteriormente, vedada à mocidade plebeia, então a presente Carta conterá preceitos de educação apropriados a um outro grupo social.
Para averiguar esta possibilidade, importa perceber de que fala Ribeiro Sanches quando refere princípios da vida civil. Antes de explorar o conteúdo destes princípios, importará ver como deverão eles ser lidos, e inculcados. Não interessará, diz o autor, memorizar os princípios que pretendemos que nos conduzam nas escolhas que teremos de tomar durante a vida. Esta afirmação é o mote para a crítica aos métodos utilizados pelos mestres de escola, que enchem a memória da mocidade de juízos sem cuidarem na formação de costumes. Esses juízos são memorizados pela recitação repetida de laudas de prosa e de versos que apenas contribuem para que os meninos aprendam a discorrer quando o objectivo principal é ensiná-los a agir de acordo com a razão. Assim, importa que ele seja instruído não só no catecismo, pela memorização, mas também nas obrigações com que nasceu. Essas obrigações poderão ser melhor compreendidas pela leitura do livro sobre a vida civil e pela prática, e consequente distribuição de castigos e prémios pelos respectivos faltosos e cumpridores dos preceitos que ele contém (SANCHES, 2003, p. 36). Perante a possível descrença na capacidade de crianças de tenra idade para compreender tais escritos, Ribeiro Sanches lembra que “a meninice é capaz desta instrução, se o Mestre lhe falar na língua e na frase que é própria àquela idade” (SANCHES, 2003, p. 37).
A referência a esta proposta de publicação e distribuição de um livro sobre a vida civil é importante aqui na medida em que permite, primeiramente, perceber a quem se dirige este tipo de educação e, muito importante também, este método de estudo; e, subsequentemente, saber como entende Ribeiro Sanches dever ser a regulação da vida civil. Indo mais longe, se o objectivo da educação consiste em preparar os mais jovens para viver e ocupar o seu lugar na sociedade, agindo em conformidade com aquilo que é útil para si e para a nação, então a descrição do conteúdo de um livro sobre a vida em sociedade torna-se de grande interesse e relevância.
Ora, Ribeiro Sanches propõe que neste livrinho estejam descritas “[...] as propriedades do homem em estado natural” que consistem na busca de cada um pelo que é necessário para garantir a sua subsistência e preservação e na “[...] propriedade de imitar tudo o que vemos com amor e com admiração” (SANCHES, 2003, p. 36). Segundo o autor, estes princípios operam de forma inevitável sobre a vontade dos homens, orientando a sua conduta para a obtenção do que é necessário à sua observação e para a piedade e compaixão quando os seus semelhantes são maltratados. Operam sempre, estes princípios, desde que não sejam sufocados por outros princípios adquiridos em virtude da exposição aos “[...] maus exemplos, de soberba, de tirania, de crueldade, que dão os Pais, as Mães, e os que criam aquela aurora da humanidade” (SANCHES, 2003, p. 36). Por esta razão, as boas acções deverão ser exemplificadas pelo mestre de escola para assim, perante o olhar dos meninos, mostrar concretamente como se deve agir de acordo com os preceitos da vida civil. Exibir a boa conduta, porém, não é suficiente. À exemplificação deve seguir-se a promoção da inculcação de bons hábitos de conduta sendo essa inculcação conseguida pela concretização, na prática, dessas acções. Os meninos deverão fazer, agir de acordo com os princípios de conduta indicados e, pela repetição, adquirir o hábito de agir bem.
Este é o método. Relativamente ao conteúdo dos preceitos de conduta propícios à vida em sociedade, este sintetiza-se num princípio que deverá ser aplicado em todas as acções, a saber, “[q]ue o homem nascido entre os homens devia obrar e fazer tudo conforme as Leis estabelecidas entre eles; que a ninguém era lícito viver conforme a sua vontade, conforme o seu prazer e fantasia” (SANCHES, 2003, p. 36). Estando vedados o prazer e a fantasia, Ribeiro Sanches propõe que o livro contenha a descrição das obrigações com que nascemos, nomeadamente de honrar os pais, respeitar os mais velhos, cuidar das amizades sendo fiel, confidente e prestável; amar a pátria e cuidar do seu bem; respeitar e honrar o rei.
A inculcação destes preceitos convirá a todos. Muito concretamente, convirá à fidalguia. Pois enquanto que a mocidade plebeia crescia exposta ao exemplo dos seus pais, que por necessidade de garantir sustento dedicariam os seus dias ao trabalho e, desta forma, transmitiriam quotidianamente a utilidade de desempenhar um ofício aos filhos; os meninos pertencentes à fidalguia portuguesa não contariam, à partida, com esse benefício. Ribeiro Sanches introduz o seu discurso sobre a educação deste grupo de meninos fazendo o diagnóstico daquilo que estava, no seu tempo, a corromper os jovens fidalgos. E o obstáculo à garantia da boa educação desses rapazes era exactamente o meio onde cresciam.
Importa recordar o que atrás se disse relativamente à influência do meio sobre o desenvolvimento de bons hábitos de conduta. Segundo Ribeiro Sanches, os princípios de conservação, de piedade e de compaixão operam sempre sobre a vontade individual desde que não sejam sufocados por outros princípios adquiridos em virtude da exposição a maus exemplos de conduta. Ribeiro Sanches parece assumir aqui uma posição relativamente à questão, que percorre os escritos sobre educação nos séculos XVII e XVIII, de se saber se o homem nasce naturalmente inclinado para o vício ou se adquire essas más inclinações. John Locke e, mais tarde Jean-Jacques Rousseau, são dois dos autores que abordaram esta questão e que importa recordar.
John Locke, Jean-Jacques Rousseau ou Gaetano Filangieri, respectivamente no final do século XVII e já no século XVIII, notabilizaram-se enquanto filósofos preocupados com o tema da educação nos primeiros anos de vida das crianças. Uma das razões para tal preocupação prende-se com uma específica concepção de natureza humana. Para estes filósofos, o homem é passível de ser melhorado, física e intelectualmente, sendo que no momento do nascimento e durante os primeiros anos de vida, exibe uma indeterminação e flexibilidade que permitem, de modo mais eficaz, moldar o seu temperamento e inculcar hábitos de conduta.
John Locke, por exemplo, recorre a imagens ilustrativas da maleabilidade característica do entendimento humano entre as quais a imagem de um rio cujas “águas flexíveis” podem ser desviadas pela construção de canais, dando-lhes novas tendências e permitindo-lhes chegar a lugares muito remotos e distantes, sendo as mentes das crianças tão flexíveis como água15; ou a imagem da criança como uma folha branca na qual tudo pode ser escrito ou como um pedaço de cera que pode ser moldado (LOCKE, 2003, § 217). Gaetano Filangieri, no volume que, na sua Ciência da Legislação, dedica ao tema da educação defende algo semelhante ao afirmar que quando nasce, a criança revela que a sua alma está, tal como o seu corpo, numa espécie de nudez, vazia de ideias, desejos e indiferente até às suas necessidades.16
Uma vez diagnosticado este vazio, característico do homem no momento em que nasce, Filangieri é conduzido à defesa da tese de que tudo o que adquirimos, desde o nascimento, é produto da interacção com o meio que nos rodeia. Nesse sentido, o homem não nasce corrompido; corrompe-se pelo contacto com uma realidade, ela própria, viciosa. Desta maleabilidade e nudez de entendimento revelada nos mais novos, segue-se o argumento do poder do meio para preencher com conteúdo as mentes das crianças. Tudo o que temos, é adquirido por influência externa do meio onde crescemos. Logo, as características desse meio determinarão, à partida, se a criança estará exposta ou não a boas influências; se lhe serão dados a conhecer, pela observação, bons exemplos de conduta.
Segundo Locke, as boas maneiras poderão ser adquiridas pelos bons exemplos e, por isso, aconselha o pai a exibir perante o filho o comportamento que gostaria de ver imitado17. Partindo do pressuposto de que nascemos sensíveis e somos afectados pelos objectos que nos rodeiam18, Rousseau desenvolve um argumento próximo, ainda que alternativo, a este. Não se trata, para Rousseau, de expor a criança aos melhores exemplos de conduta. Em vez de exemplos, o filósofo fala de “influência do meio” e da forma como da interacção da criança com aqueles que a rodeiam podem nascer más inclinações. Concretizando: a observação leva o autor de Emílio a perceber que não é na natureza que se encontram as tendências tirânicas e tímidas dos mais novos; e que os vícios, que outros atribuíram à natureza humana, não são mais do que os efeitos morais da interacção entre a criança e quem cuida dela, normalmente resultado do facto de não existir meio-termo entre obedecer e ser comandado19.
Regressando a Ribeiro Sanches, o autor verifica que se operou uma degradação da educação da fidalguia portuguesa sobretudo a partir do momento em que essa educação deixou de acontecer no Paço para passar a acontecer nas casas particulares das famílias fidalgas.
A história narra que, em tempos de guerra, estando a fidalguia concentrada junto do rei, os jovens fidalgos eram educados no Paço. Ribeiro Sanches refere, aliás, a preocupação demonstrada pelos reis de Portugal em promover essa educação notando que apenas a partir de Dom Manuel se desobrigaram os reis de educar os fidalgos. Estes passaram a viver nas casas particulares das suas famílias, com os seus pais e restantes elementos da família. Estas casas eram “[...] ricas e poderosas pelas dádivas dos Reis em Comendas, Pensões Governos e Cargos [...]” e a educação dos elementos mais novos das famílias, entregue nas mãos de “[...] amas e mulheres comuns [...]” degradava-se (SANCHES, 2003, p. 52).
Analisando por partes as afirmações anteriores, importa perguntar: a degradação da educação dos meninos fidalgos deve-se ao facto de estar entregue a amas e mulheres comuns20, ao facto de as casas fidalgas serem ricas e luxuosas ou a ambos? A resposta encontrar-se-á na Carta dedicada à discussão sobre o melhor lugar para educar a nobreza e fidalguia de Portugal.
Essa resposta avança que a educação da nobreza e da fidalguia não poderá continuar a dar-se no contexto doméstico, particular da família. Este tipo de educação poderá tornar um rapaz um “pio Cristão”, ou até mesmo instruí-lo nos conhecimentos que dependem de alguma capacidade de memória. A educação doméstica não poderá, contudo, elevar-lhe o juízo, dar-lhe a conhecer a vida civil e as relações de autoridade e de obediência que animam as interacções entre os homens pertencentes à mesma nação. Pelo contrário, a educação no contexto da cada família tende a produzir meninos acanhados, “[...] ignorantes dos costumes da vida civil [...]”, ou até com um ânimo depravado (SANCHES, 2003, p. 53). Quem é educado no contexto doméstico, não conhecerá outra relação de subordinação senão aos seus pais desconhecendo, por isso a “[...] subordinação que deve ter como Súbdito e Cristão” (SANCHES, 2003, p. 53).
O que Ribeiro Sanches parece pretender aqui dizer encontra-se formulado de forma mais explícita e desenvolvida na obra de Gaetano Filangieri. No sexto tomo da sua Ciência da Legislação o autor Italiano defende que ainda que a educação particular seja a melhor a dar a um indivíduo, não será a melhor para formar um povo. A educação pública serve o propósito de elevar a alma das crianças21 neutralizando os efeitos de tudo aquilo que destrói a energia da alma e deprava o carácter das crianças, contrariando aquela tendência da educação privada, que Ribeiro Sanches lamenta, de produzir “meninos acanhados”. Por essa razão, o autor da Ciência da Legislação afirma que a educação pública deve ser universal, acessível a todos22, o que não significa, porém que deva ser igual para todos. Aproximando-se do que Ribeiro Sanches defende um pouco por todas as suas Cartas à Mocidade, Filangieri afirma que ainda que todos devam ter acesso à educação pública, esta deve ser ajustada à condição de cada um de tal modo que o camponês seja educado para ser cidadão e, em simultâneo, um homem do campo e não para ser um magistrado ou um general; para que aprenda a afastar-se do vício e a conduzir a sua conduta pela virtude, pelo amor à pátria, pelo respeito pelas leis e que adquira os conhecimentos necessários à prática da sua indústria23.
À semelhança do que sucedia com a mocidade plebeia, também a fidalguia e a nobreza portuguesas devem ser educadas com vista à utilidade da nação. Nesse sentido afirma Ribeiro Sanches que “[...] a Educação que se deve dar à Nobreza e à Fidalguia Portuguesa, deve proporcionar-se à necessidade e ao estado actual da sua pátria” (SANCHES, 2003, p. 52). E essas necessidades são muito concretas. Cabe à fidalguia e à nobreza contribuir para a conservação da monarquia e isso passa inevitavelmente pelo exercício de funções enquanto Oficiais de Mar e Terra o que implica, no século em que escreve, “[...] o exercício das Matemáticas, e de algumas partes da Física [...] uma vez que “[...] a arte da guerra hoje é ciência fundada em princípios que se aprendem e devem aprender, antes que se veja o inimigo: necessita de estudo, de aplicação, de atenção e de reflexão” (SANCHES, 2003, p. 52):
[...] Do referido se vê a necessidade que tem o Reino da Educação da Fidalguia, não só nas letras humanas, mas também na Política e nas Matemáticas, para servir a sua pátria, nos cargos da guerra, e nos da paz; e que por faltar semelhante Educação, chegaram tantas Monarquias da Europa àquela decadência desde o ano de 1500, que parece impossível relevar-se, se não se reformar esta omissão tão considerável. (SANCHES, 2003, p. 53)
Tal constituição, exigida pelas necessidades da nação e para a manutenção da monarquia portuguesa, exigem que se negue a educação doméstica em detrimento da educação em sociedade e em colégios tais como o Colégio de Cadetes, a Escola Militar ou o Colégio dos Nobres (SANCHES, 2003, p. 54). A educação doméstica, com os pais e amas não favorece a aquisição de qualidades de bravura, sociabilidade e respeito que se exigem daqueles que se pretende que sejam os defensores da pátria. Por esta razão, não será difícil prever a resposta à questão colocada anteriormente, a saber, a degradação da educação dos meninos fidalgos deve-se ao facto de estar entregue a amas e mulheres comuns, ao facto de as casas fidalgas serem ricas e luxuosas ou a ambos? Ainda que se possa encontrar na riqueza das casas particulares da nobreza e da fidalguia uma explicação para esta questão, na medida em que Ribeiro Sanches atribui ao luxo, introduzido na fidalguia em virtude da circulação intensa de riquezas fruto do comércio com África e Oriente “[...] o Estado da falta da sua Educação” (SANCHES, 2003, p. 51), este argumento acaba por não encontrar sequência no raciocínio do autor.
Por outro lado, a má influência das amas é explicada na Carta que o autor intitula de “Consequências por não criarem as Mães seus filhos”. Nesta parte da obra, o autor afirma que são consideráveis e lamentáveis os danos “[...] que se imprimem no ânimo das crianças criadas por amas” (SANCHES, 2003, p. 57). As amas, diz Ribeiro Sanches, imprimem ideias “[...] de terror, feitiços, de feiticeiras, de duendes, de crueldade, e de vingança” nas mentes dos mais jovens ou seja, ideias contrárias àquelas que se deseja que os jovens Fidalgos tenham e pelas quais se espera que ajam no contexto da sociedade.
As amas “[...] são os primeiros Mestres da língua, dos desejos, dos apetites e das paixões depravadas” (SANCHES, 2003, p. 57) e com as suas supersticões destroem a inteligência dos mais novos. Junte-se a uma ama ignorante e supersticiosa uns pais cuja conduta seja fonte de maus exemplos e teremos garantida a destruição de toda a boa educação de uma criança. Por isso, e para neutralizar a má influência das amas e dos maus exemplos dos pais, Ribeiro Sanches propõe que as meninas sejam educadas numa escola com clausura e os meninos nos colégios militares (SANCHES, 2003, p. 58).
A proposta pedagógica de John Locke: a educação da aristocracia
Tal como foi afirmado anteriormente, o meio e as influências que dele nascem são factores preponderantes na educação de uma criança. Importa relembrar o que havia sido dito atrás por Ribeiro Sanches sobre este assunto: se para a mocidade plebeia o exemplo dos seus pais, trabalhadores e dedicados a um ofício, é favorável à aquisição, pelos seus filhos, de princípios de conduta conformes aos imperativos do trabalho, da virtude individual e da utilidade da nação; para a mocidade fidalga e aristocrática, o luxo das casas onde vivem e a influência das amas ignorantes e supersticiosas não favorecerão o desenvolvimento de temperamentos corajosos e inteligentes.
Por esta razão, os tratados de educação que foram aqui tomados como objecto de estudo procuram, frequentemente, e em primeiro lugar, identificar os maus exemplos e influências que se movem no contexto doméstico do educando; e, em segundo lugar, engendrar modos de neutralizar as influências do meio onde as crianças vivem. Estas preocupações explicam que tais tratados pedagógicos teçam tantas considerações sobre o luxo das casas e a ignorância das amas (Ribeiro Sanches), o carácter adulador dos criados, o deboche a horas tardias e os excessos alimentares (John Locke). Explicam também que conselhos muito concretos, e especificamente dirigidos à orientação da conduta das crianças, sejam muitas vezes acompanhados de conselhos para os pais, para os criados, enfim, para aqueles que se movem no contexto doméstico e que exercem uma influência inegável sobre as crianças.
A obra que Locke dedica ao tema da pedagogia é disso mesmo exemplo. Alguns Pensamentos sobre Educação contêm, por um lado, as propostas pedagógicas do seu autor e, por outro, considerações sobre o meio aristocrático do seu tempo. A forma como são descritos os hábitos promovidos nesse meio produz, por si só, junto do leitor a imagem de um meio perservo, perversidade que é ampliada ao se constatar a forma como corrompe a educação da criança que nele cresce. Por isto, muitos dos conselhos que Locke dirige a Edward Clarke têm como objectivo neutralizar os efeitos negativos da exposição da criança a tal ambiente e evitar que ela desenvolva hábitos que Locke observa no comportamento de aristocratas e pessoas com posses.
Reside na adopção desta linha de argumentação um pressuposto importante. A obra que Locke dedica ao tema da educação pressupõe que o meio influi na educação da criança nomeadamente por meio dos exemplos a que a expõe24. Desta forma, o meio aristocrático pode ser alvo da crítica de Locke por não favorecer a educação uma vez que os exemplos que fornece, e as tendências que cria, não beneficiam o principal objectivo da educação, a saber, o de inculcar nas crianças bons hábitos de conduta, isto é, hábitos conformes à virtude e à sabedoria capazes de sujeitar os apetites à razão25.
A afirmação do elitismo de Alguns Pensamentos sobre Educação realiza-se igualmente noutras frentes. Esta obra é elitista porque se constituiu, originalmente, como um conjunto de cartas endereçadas a Edward Clarke, um aristocrata; e porque o seu autor admite a impossibilidade de generalizar os preceitos nela contidos para a educação de qualquer criança (SANTOS, 2005, p. 99).
O cunho “elistista” da obra, e a utilidade parcial dos conselhos que contém, acabaram por determinar a secundarização de Alguns Pensamentos. Apesar disso, alguns leitores defendem a relevância incontestável da pedagogia de Locke, e sobretudo a possibilidade de a obra ser posta em cooperação e diálogo estreitos com outras, nomeadamente políticas e epistemológicas. Não ignorando o facto incontornável da exclusividade do seu auditório26, justifica-se o facto mostrando que para o filósofo os tratados generalistas sobre educação seriam inúteis na medida em que a melhor abordagem à pedagogia reside no estudo cuidado do sujeito a ser educado. Os objectivos da educação - de orientar os educandos para a aquisição de princípios de virtude, ou até para métodos de estudo - podem ser conseguidos de modo mais eficaz se as técnicas forem adaptadas ao talento particular e às potencialidades de cada um (YOLTON, 1989, p. 43). Aqui reside o imperativo pedagógico do melhoramento, característico da educação lockeana.
Apesar da controvérsia em torno da classificação, a obra pedagógica do filósofo Inglês afimou-se por si mesma logo desde a sua publicação (1693) e um dos aspectos cruciais da recepção da obra foi a tentativa de generalização do seu auditório (YOLTON, 1989, pp. 100, 101). Tal foi sendo tentado por meio da afirmação da relevância das propostas pedagógicas de Locke para qualquer criança, de qualquer extracto social. De facto, os leitores do tratado entenderam a educação de Locke como um instrumento de promoção do progresso social, enfatizando a relação estreita entre pedagogia e virtude ou “moralidade social”. A educação permitia gerar homens virtuosos e úteis. Pode dizer-se que a generalização das sugestões pedagógicas de Locke para, potencialmente, qualquer criança se deu a par do reconhecimento do papel da educação para a preparação das crianças para a vida em sociedade. Isso mesmo ecoa em obras literárias do século XVIII. Eustace Budgell escrevia em 1712 que a virtude é o aspecto mais importante na educação dos mais novos porque lhe permite viver feliz em sociedade ou em solidão, enquanto uma má educação defrauda o país e deixa a posteridade morrer à fome. Em 1731, George Osborne escreve no The London Journal que a raíz de toda a corrupção reside numa má educação (EZZEL, 1991, p. 233).
Em 1762, com a publicação de Émile de Jean-Jacques Rousseau, opera-se a cristalização destas imagens contrastantes e dicotómicas: a criança pobre versus a criança rica; a educação no campo versus a educação na cidade. Apesar do papel fundamental que a obra pedagógica de Rousseau teve na disseminação de ideias sobre educação, defende-se que é em Locke que reside a origem deste discurso27.
O mesmo pode ser encontrado nas obras de Ribeiro Sanches e de Gaetano Filangieri. De recordar que, para o último, a universalização da educação é necessária de modo a garantir que todos têm a ela acesso. A universalidade da educação é, por sua vez, defendida à luz do facto de que qualquer homem integrará a sociedade em adulto sendo, por isso, necessário que saiba mover-se harmoniosamente nela. A inculcação das virtudes, elementares para garantirem a paz da sociedade, deve ser garantida para todos os que a integrarão na qualidade de cidadãos. Por outro lado, Filangieri também defende que a universalidade da educação não implica a sua uniformização. Cada criança deve ser educada para servir a nação da forma que lhe cabe, a saber, desempenhando os ofícios e tarefas determinados pela sua condição social.
Conclusões: educação e desigualdades
Verifica-se existir nas Cartas de Ribeiro Sanches uma distinção fundamental entre trabalho assente na força física e, por outro lado, o trabalho que é realizado por meio do exercício da capacidade intelectual. Como se referiu, à mocidade plebeia interessa desenvolver as capacidades físicas e adquirir uma constituição física forte e vigorosa para poder assumir os ofícios dos seus pais nos campos, por exemplo. Pelo contrário, interessará às crianças fidalgas e aristocratas o desenvolvimento da capacidade intelectual uma vez que lhes cabe o trabalho associado às funções de generais, diplomatas, políticos, e de essas funções dependerem, no tempo de Ribeiro Sanches de uma capacidade para para elaborar estratégias diplomáticas e políticas.
As diferenças expressas nas orientações pedagógicas são, assim, sustentadas por uma diferente atribuição de ofícios consoante o estrato social de origem da criança. As diferenças também espelham uma preocupação em garantir que cada um desempenha as funções já desempenhadas pelos seus pais. Nesse sentido, como se mostrou, se desaconselha a multiplicação de escolas de ler e de escrever pois com isso incutir-se-ía o desejo, junto da mocidade plebeia, de abandonar os campos e os trabalhos a eles associados numa tentativa de procurar em outros ofícios, fisicamente menos exigentes por convocarem quase exclusivamente o exercício da capacidade intelectual, o seu sustento.
A forma como o futuro destas crianças é pensado pelo autor, e esta atribuição rígida de ofícios exclusivamente determinada pelo estatuto social de cada um parece ser, contudo, determinado apenas por um critério de utilidade (sobretudo com vista à utilidade da nação) e não por uma concepção de diferença natural entre crianças plebeias e crianças aristocratas. Recorde-se o exemplo invocado por Ribeiro Sanches acerca da ineficácia da lei que determinava que os filhos assumissem para si os ofícios dos seus pais com o fito de impedir o abandono dos campos. Este exemplo é ilustrativo de que as diferenças sociais que se verifiquem entre adultos são potenciadas pelos planos de educação a que foram sujeitas pois são esses planos que produzem as diferenças nas capacidades exibidas por cada um e, posteriormente, nos seus desejos e ambições. Admitindo-se que a educação tem um papel fundamental, porque formativo, da moralidade particular do indivíduo; e que um plano pedagógico pode determinar e potenciar, logo desde os primeiros anos de vida, o desenvolvimento de umas capacidades em detrimento de outras (por exemplo, da capacidade e destreza físicas em detrimento da capacidade intelectual, pela aquisição de competências de leitura e de escrita); então a educação pode passar a ser entendida como instrumento que garante eficácia na determinação do lugar que cada um ocupa na sociedade e na perpetuação da transmissão de ofícios de geração em geração. E aqui estará pressuposto o aspecto comum e fundamental das obras destes autores dedicados à pedagogia, a saber, a constatação e afirmação da influência decisiva da educação no desenvolvimento do indivíduo humano e o modo como é possível moldá-lo (o que nem sempre se traduzirá na optimização, e consequente melhoramento, de todas as suas capacidades) para o bem da utilidade pública.