Introdução
Ao mostrar o compromisso da definição tradicional do homem com a metafísica aristotélica, Descartes é instado a realizar uma reconsideração do conceito de homem. Ao praticar uma alia via, a via das ideias, que caracteriza a emergência da Filosofia Moderna, como bem assinala Pierre Guenancia1, o filósofo do século XVII pode repensar a questão do homem. Vale lembrar que ele retira o forte caráter conceitual que a Ideia tinha na tradição clássica, que consistia, por excelência, nas essências ou nos arquétipos da criação2. Entender ideia como mera ocorrência mental, permitiu-lhe pensar o seu campo como o que é mais imediatamente nosso. Uma física matemática é fundamentada nessa perspectiva, pois o matemático, que é pensável só mentalmente, condiciona o tratamento das coisas da natureza3. Nesse sentido, um dos aspectos da reconsideração do conceito ou da ideia de homem é a possibilidade do entendimento do seu corpo como mecânico, por recurso à figuração matemática. Outro aspecto dessa reconsideração, que é seu ponto de partida radicalmente filosófico, é a grande temática do cogito e da dificuldade ou mesmo da impossibilidade de sua definição. Dificuldade que, a rigor, já se manifesta quando a referência para todo o entendimento de nós mesmos é posta na ideia de infinito. Apresenta-se também na (in-)determinação do pensamento que se aprofunda na explicitação de um de seus modos, o do sentir. Esse modo abre propriamente todo o campo da união substancial e das ideias da nossa sensibilidade. Pertencendo ao âmbito da experiência propriamente dita, o modo do sentir escapa a toda conceituação definitiva e está para além de qualquer modelo explicativo. E se, afinal, ideias já não são necessariamente essências e conceitos, teremos, então, de nos enveredar por um terreno que exige, para a sua devida consideração, a descrição do que seja o homem, da sua natureza e das suas paixões, pois a via da definição já não é propriamente possível.
Em termos propriamente cartesianos, seria pensar menos pelo conceito do que pela ideia. Esse horizonte da ideia assim entendida nos leva para além da dificuldade de conceituar o homem, lançando-nos no campo mais amplo da própria possibilidade ou impossibilidade de, a rigor, definir a ideia de homem. Diante desse horizonte, irrompe uma multiplicidade de questões a serem enfrentadas, a partir de então, numa outra esfera que a da definição ou da explicação: será que o próprio do homem - radicalmente falando - não consistiria no malogro de toda tentativa definição? Descartes realmente teria formulado uma nova proposta de definição do homem? Será que a sua reconsideração pela ideia de infinito corresponderia a uma nova definição de homem? Como a dúvida cartesiana poderia ajudar-nos a entender a diferença entre ideia e conceito? Como Descartes mostra as limitações do entendimento mecânico do corpo e da própria evidência matemática? Como emerge a ideia de outro homem em Descartes? Que racionalidade é fundada nesse esforço cartesiano de reflexão sobre o humano? A teoria da criação das verdades eternas poderia reconfigurar a racionalidade humana? Como o homem poderia ser descrito a partir da vivência de suas paixões? Em que medida o homem poderia ser repensado a partir da sua liberdade? Qual relação haveria entre o bom uso da própria liberdade e a perfeição do homem? Que humanidade seria vislumbrada a partir da ideia de uma comunidade dos generosos?
A rejeição do conceito de homem
No início da Segunda Meditação, Descartes rejeita o conceito tradicional de homem em virtude da obscuridade que se multiplica quando consideramos o quadro de questões em que está inserido:
“Que acreditei ser, portanto, até agora? Um homem, decerto. Mas, que é um homem? Direi, acaso, um animal racional? Não, porque seria preciso perguntar em seguida que é um animal e que é racional, de modo que, a partir de uma questão, eu resvalaria para muitas e mais difíceis questões”.4
Ao perguntarmos pelo que o eu, o cogito, era - assim procura nos mostrar Descartes na referida Meditação - tomamos uma concepção que vem da tradição, que apreendemos por ouvir dizer; ou seja, uma concepção que assim se ensina nas Escolas. Mas, ao examinar melhor, percebemos a pobreza do conceito, a sua vacuidade cogitativa. Em A busca da verdade, um texto escrito por ele em forma de diálogo, o argumento é mais desenvolvido. Devemos notar, primeiramente, que, se nas Meditações o cogito se expressa pela primeira pessoa do singular, por meio da pergunta Quem sou eu?, no diálogo, toma a forma da segunda pessoa: é o dubitas - tu duvidas. O cogito expressa-se aí pela pergunta quem és tu? feita por Eudoxo, alter ego de Descartes, ao filósofo iniciante, Poliandro.
“Eudoxo: Tu és e sabes que és e sabes por causa disso: porque sabes que duvidas; mas tu que de todas as coisas duvidas e de que não és de ti capaz de duvidar, quem és?
Poliandro: Não é uma resposta difícil e percebo bem por que me escolheste em vez de Epistemão para satisfizer a tua interrogação: decidiste, pois, nada me propor cuja resposta não fosse muito fácil. Direi, então, que sou homem”5.
Essa seria a resposta supostamente fácil, óbvia, quase que do nosso senso comum, fortemente influenciado por uma filosofia que o sistematiza e que, ao mesmo tempo, é assumida por simples desídia, que dispensa o exame, pois assim nos dizem6: somos humanos. Mas, afinal, o que é isso? A resposta “sou humano” carece, em verdade, de simplicidade, pois não é propriamente absoluta, no sentido de independente. Ela depende, é relativa a toda uma metafísica. Vejamos:
“Eudoxo: Não atentas para o que interrogo e, embora te pareça simples, a resposta que me dás te lançaria inteiramente em difíceis e intricadas questões se eu quisesse ocupar-me apenas um pouquinho com elas. Com efeito, por exemplo, se eu perguntasse também ao próprio Epistemão o que seja o homem, como em geral nas Escolas costuma acontecer, e ele me respondesse que o homem é animal racional; e se, além destes, para que explicasse estes dois últimos termos - que não são menos obscuros que o primeiro - nos conduzisse por todos os graus que se chamam metafísicos, seremos levados à força para um labirinto do qual nunca poderemos sair.”7
Seríamos então jogados num labirinto metafísico, mostra Eudoxo, numa sequência de termos obscuros e dependentes um do outro. E desenvolve:
“Dessa questão nascem, pois, duas outras: a primeira, o que é animal; a segunda, o que é racional. Além disso, se, para explicar o que é animal, respondesse que é o vivente sensitivo e que vivente é o corpo animado e o corpo é a substância corpórea: pelo rastro vês que as questões vão ser multiplicadas e aumentadas, a exemplo dos ramos da árvore genealógica; e, enfim, é claro o suficiente que todas essas egrégias questões se tornariam uma mera batologia, que nada esclareceria e nos deixaria na ignorância inicial”.
Ou seja, dizer-me humano pode ser mero uso de sons sem nenhum significado, mero balbuciar, mera verborragia. A definição da tradição aristotélica (digo “da tradição” porque em Aristóteles há muita hesitação característica da pesquisa, há outros candidatos a nos diferenciar dos animais8) não nos remeteria à experiência do que efetivamente somos, mas nos lançaria na obscuridade do logos. Recorramos a um excelente resumo que Francis Wolff fez no seu livro que procura mapear as principais concepções de homem na História da Filosofia:
“Para Aristóteles, a essência do homem é dada por sua ‘forma’, o que significa também sua ‘espécie’ (é a mesma palavra: eidos), que ele chama às vezes de conceito (logos). Se guardamos no espírito de preferência o sentido de forma, diremos que a essência do homem é o que faz que o homem se conserve em sua identidade e em sua individualidade a despeito das variações constantes de seu corpo ao longo da vida. [...]. Se nos atentarmos para o sentido de espécie, diremos que a essência do homem é que faz que todos os homens sejam semelhantes e que a humanidade se conserve em sua identidade a despeito e através das variações locais ou temporais das existências individuais, da vida e da morte de diferentes gerações humanas. Se privilegiamos o sentido ‘lógico’ da forma (o conceito, a ‘substância lógica’, diz Aristóteles), diremos que ela determina a essência como o que pode ser objeto de conhecimento”9
Poderíamos também recorrer a Tomás de Aquino para explicitar o vínculo entre eidos e definição: “E, visto que aquilo pelo que a coisa é estabelecida no próprio gênero ou espécie é isto que é significado pela definição indicando o que a coisa é, daí vem que o nome de essência é transformado pelos filósofos no nome de quididade; e isto é o que o Filósofo denomina frequentemente ‘aquilo que algo era ser’, quer dizer, isto pelo que algo tem o seu ser”10.
Há, porém, coisas que precisam ser percebidas, aprendidas por elas mesmas, descritas. Entre elas, o pensamento, a dúvida, a existência. Como Eudoxo diz: “Mas não imagines que, para isso saber, é necessário que nos crucifixemos e forcemos a nossa inteligência a fim de encontrarmos o gênero próximo e a diferença essencial pelos quais a verdadeira definição delas é composta”. E assim conclui: “há coisas que tornamos obscuras querendo defini-las, porque, como são muito simples e muito claras, digo que o que ocorre é que não podemos melhor conhecê-las ou percebê-las do que por elas mesmas”11. Eudoxo nos permite perceber a dificuldade implicada no esforço da definição: definir o homem é pressupor um mundo ordenado metafisicamente, um cosmos. Nele o homem se encaixa, como uma das suas partes. Trata-se de um discurso em terceira pessoa, de um narrador omnisciente, que detém um único saber absoluto. Nessa condição, o proferidor desse discurso manteria algo como um consórcio com o divino, seria como que o detentor de uma ciência divina - do divino e sobre o divino -, para usarmos a expressão aristotélica12. Em Descartes, a Filosofia é ciência humana (dos homens e sobre o que o humano pode aprender; sobretudo em relação ao divino). Já não há o recurso ao eidos - forma, espécie, conceito - que igualaria, de certo modo, o conhecido e o cognoscente, na medida em que a espécie do conhecido é presente conceitualmente no cognoscente. Precisando essa rejeição cartesiana do acesso ao divino, Laurence Renault afirma: “é preciso escolher, segundo Descartes, entre a perspectiva de elevar o homem ao divino pelo conhecimento ou a perspectiva da verdade da filosofia, ou melhor, escolher entre a quimera de uma participação da ciência divina ou a certeza do saber humano”13.
Descartes é um narrador-personagem da sua própria história. Narra, portanto, a sua filosofia em primeira pessoa, sem a suposição de um único saber absoluto, comum ao divino, de um cosmos completamente iluminado, arqué de todo pensamento. Descartes quer justamente resgatar a experiência do que somos, das nossas percepções as mais próprias. Trata-se de um esforço para vencer os (pré-)conceitos, que são labirínticos e nos afastam da experiência. Os (pré-)conceitos são sempre relativos a outros preconceitos, carecendo de evidência própria. O acesso ao evidente, ao simples, ao independente, ao contrário, não é óbvio. É sempre necessário um esforço meditativo reiterado; a meditação é uma prática de pensamento em busca de nós mesmos. Poderíamos dizer que Descartes pratica uma outra via; não a da tradição (pré-)conceitual (talvez batológica), sequer também a do (pre-)judicium adventício, que põe a arqué, o princípio das coisas no mundo, no cosmos metafisicamente estabelecido e iluminado, como fonte de toda explicação e causação. Ao praticar uma alia via, a via das ideias, Descartes pode repensar a questão do homem.
O uso adjetivo da ideia de homem
Na referida investigação acurada sobre as perspectivas abertas por quatro marcantes conceitos de homem - a saber, o animal racional aristotélico, a alma cartesiana estreitamente unida a um corpo, o sujeito estrutural das ciências humanas e o animal como os outros das neurociências -, Francis Wolff indica que os conceitos das ciências humanas e das neurociências não são propriamente definições, pois não determinam essências14. Essa perspectiva pode ser entendida também, de certo modo, a partir da tese heideggeriana e sartriana de que na realidade humana há uma precedência da existência sobre a essência. No caso da epistemologia das ciências humanas, como Wolff assinala, Foucault e outros pensadores formularam muito bem a sua aporia, na medida em que não só há ausência de definição, mas também de conceito de homem:
“Poderíamos dizer de todas as ciências humanas o que Foucault dizia da Psicanálise e da Etnologia: ‘Não somente elas podem passar sem o conceito de homem, mas elas não podem passar por ele.’ Dessa condição de possibilidade implícita e negativa das ciências humanas desde seu advento, o estruturalismo fará um programa científico. Sabemos o que Lévi-Strauss dizia sobre isso: ‘Elas dissolvem o homem’; ou Maurice Blanchot: ‘O homem, o grande ausente das ciências humanas.’ Pode-se muito bem retornar à fórmula já citada de Foucault (‘Antes do século XIX, o homem não existia’), afirmando ao contrário que, desde o século XIX, ele não existe mais, no sentido de que, tendo adquirido o estatuto de uma entidade cognoscível cientificamente, perdeu sua essência e sua unidade. As ciências humanas nunca afirmam, entretanto, a inexistência do homem (até sua ‘morte’) quanto a sua perspectiva a implica como condição de sua cientificidade, uma vez que justamente esse ‘homem’ não diz respeito ao seu nível de discursividade”.15
Essa dissolução do homem é também elaborada pela perspectiva das neurociências, mas no sentido de uma rejeição da sua essência através da sua determinação pelo que ele não é (outras espécies, hominídeos etc.) 16.
Malgrado os cuidados do próprio Aristóteles no estudo da diferença específica, como o próprio Wolff apontou, a definição aristotélica determina propriamente uma essência e realiza plenamente o próprio conceito de definição, mostrando o que há de mais essencial, a propriedade que é explicativa das outras. A questão que levantamos é se poderíamos propriamente falar de uma outra definição de homem e, caso possamos, em que medida. Para Wolff, haveria, além da aristotélica, uma outra concepção essencialista, a cartesiana: uma coisa pensante estreitamente unida a um corpo. No entanto, ao contrário da tradição aristotélica, em que o homem é uma referência para pensar a substância - conceito ontológico fundamental -, “Descartes - como assinala Wolff - nunca designa o ser humano como uma ‘substância’”17. O jogo - descrito acima na referência ao eidos - entre a forma na matéria de um indivíduo - substantivo, nome próprio, como Sócrates - e a forma no sentido de espécie ou lógico do conceito - universal, substantivo também, mas nome comum, como homem - é, de certa maneira, substituído por um jogo de adjetivos em relação ao homem.
A alma humana em sua distinção com o corpo em geral é realmente fundadora de uma ciência natural, da física matemática. Com efeito, a distinção substancial fundamenta a Mecânica. Essa é a perspectiva de Wolff na sua ampla investigação sobre as concepções de homem. Porém, o fenômeno humano em Descartes está para além da constituição do objeto científico. A propósito, o próprio Wolff tem consciência disso ao se referir à união substancial. Além da alma humana, da coisa pensante finita, que é um aspecto da ideia de homem, temos também o corpo humano - que se diferencia como corpo vivo do corpo em geral e, pela sua conformação, dos outros corpos vivos - e a estreita união humana entre a alma humana e o corpo humano.
Não encontramos em Descartes um conceito unificador do substantivo homem, não encontramos uma propriedade definidora que explique e cause as outras. Encontramos adjetivos que qualificam uma condição vivida que exige estruturalmente estudo e investigação. Adjetivos que nos indicam o fenômeno humano ou a ideia de homem sem que possamos compreendê-la num substantivo conceitual, numa essência plenamente determinada.
Desde as Regulae, o adjetivo humano é muito usado por Descartes para demarcar os limites e, ao mesmo tempo, para caracterizar a nossa racionalidade científica. A “sabedoria humana” não é a única sabedoria, mas aquela que é construída a partir da nossa perspectiva, da nossa capacidade de ordenação das coisas e do mundo. Em O mundo, ou o Tratado da luz, Descartes troca o “verdadeiro mundo”, ao qual temos um acesso parcial, pelo “novo mundo”, o qual podemos imaginar inteiramente a partir das nossas faculdades humanas18. O intelecto humano é aquele que se caracteriza pela debilidade, limitação e imperfeição, pela sua radical diferença com o infinito e os seus atributos divinos. Na Quarta Meditação, embora a vontade humana formaliter et precise spectata19 nos remeta pela sua inteireza a um âmbito mais divino, pela impossibilidade de reduzir a experiência do “ou” - fazer ou não fazer -, materialiter spectata ela é limitada e qualificada por ser humana. Trata-se do fenômeno da liberdade humana. No final da referida Meditação, como assinala Emmanuel Faye, encontramos com muita força o homem na expressão: maxima et precipua perfectio hominis, “máxima e precípua perfeição do homem”20, que pode ter o seu genitivo, um adjunto adnominal, traduzido conceitualmente pelo adjetivo humano. Ela consiste no livre uso que faço da minha vontade. No entanto, paradoxalmente, essa perfeição humana se exerce na infirmitas (debilidade) humana vivida (experiar in me). É uma experiência da limitação e da finitude humanas. Nessa conjuntura, a perfeição consiste em evitar o erro procurando superar a própria debilidade. Assim, a perfeição máxima do homem não é uma racionalidade que põe o homem numa escala de perfeição superior em relação aos animais. A propósito, os animais aparentam ser perfeitos no funcionamento robusto e preciso do seu mecanismo21. Os homens têm de fazer da sua imperfeição, da sua debilidade, perfeição. Desse modo, a perfeição humana é uma mera possibilidade de aperfeiçoamento.
No Discurso do método, Descartes havia caracterizado a ocupação humana - “ocupações dos homens puramente homens”22 - como a pautada pelo estudo filosófico e pela gradação do método. Trata-se da ciência humana, no sentido do genitivo subjetivo, aquela cujo sujeito é humano, e ser humano é marca de finitude e limitação. Mas também é de perfeição própria, de afirmação do que se é propriamente - do seu ponto de vista, da certeza do saber humano -, de um Sol próprio - o Sol da sabedoria humana que ilumina todo o conhecimento humano, como nos diz as Regulae, e que substitui a marcante imagem platônica do Sol divino, a qual fez escola na Filosofia e nos remete a um único saber absoluto, a um saber divino23. O campo da teologia revelada pode vislumbrar esse domínio, conforme nos diz o Discurso do método: “e que as verdades reveladas que para lá conduzem estão acima de nossa inteligência, não ousaria submetê-las à fraqueza de meus raciocínios, e pensava que, para empreender o seu exame e lograr êxito era necessário ter alguma extraordinária assistência do céu e ser mais do que homem”24. Já não seria o caso de uma ciência estritamente humana, mas divina à sua maneira, própria de quem é mais do que homem. Além disso, na Carta-Prefácio aos “Princípios de Filosofia”, ao mencionar os graus da “ciência que ora possuímos e [...] de sabedoria a que chegamos”, Descartes exclui a revelação divina: “Sou de parecer que toda sabedoria que habitualmente existe só se adquire através desses quatro meios, e não incluo entre eles a revelação divina, porque não nos conduz de forma gradual, mas eleva-nos, de repente, a uma crença infalível”25. No início do referido texto, o filósofo já havia dito que “somente Deus é perfeitamente sábio, isto é, tem o inteiro conhecimento da verdade de todas as coisas”. Ou seja: só Deus seria detentor de uma sabedoria perfeita, que se caracterizaria pelo conhecimento completo da verdade de todas as coisas, pela ciência do ser. Logo em seguida, caracteriza a sabedoria humana por sua incompletude, por sua parcialidade, por sua gradação: “Mas podemos dizer que os homens têm maior ou menor sabedoria na medida em que possuem mais ou menos conhecimento das verdades que são importantes”26.
No Tratado do homem, a complexidade do humano já está posta: “Esses homens serão compostos, como nós, de uma alma e de um corpo. É necessário que eu vos descreva, primeiramente, o corpo à parte, depois a alma também separadamente, e, enfim, que eu vos mostre como essas duas naturezas devem estar juntas e unidas, para compor os homens que se assemelham a nós.”27 “Esses homens” - os novos homens - são descritos em seus aspectos - corpo, alma e união -, para que “nós” - os verdadeiros homens - possamos aprender, de algum modo, algo a respeito do fenômeno humano. O referido texto se inicia, portanto, pela descrição não do corpo em geral, mas do corpo humano. O corpo vivo se diferencia do corpo em geral não só por sua fisiologia - que dá sentido aos movimentos do corpo -, mas também pela sua anatomia, pois possui uma determinada unidade que torna cada uma de suas partes diferenciadas. Os órgãos, por exemplo, são diferentes, não se reduzem à extensão na sua homogeneidade característica. No caso do corpo humano, há determinações próprias à sua anatomia e à sua fisiologia. O adjetivo humano caracteriza, portanto, um corpo que se diferencia do corpo em geral, da res extensa em sua totalidade, do objeto da física mecanicista, assim como se diferencia dos outros corpos vivos. Possui uma determinada fisiologia, que conduz a sua anatomia própria. Isto é: o objeto da ciência da fisiologia humana propõe uma unificação de outra ordem. Podemos ver isso também no Tratado das paixões. Encontramos uma totalização do corpo humano, em que o termo indivisibilidade - próprio à alma no que ela se opõe à divisibilidade do extenso - é francamente utilizado, no seu artigo 30, cujo título é “Que a alma é unida a todas as partes do corpo conjuntamente”:
“... a alma é verdadeiramente unida a todo o corpo, e que não se pode propriamente dizer que ela seja em alguma de suas partes, à exclusão das outras, porque ele é um e de algum modo indivisível, em razão da disposição de seus órgãos, que se relacionam de tal maneira todos um a outro que, quando algum dentre eles é eliminado, isso torna todo o corpo defeituoso”.
A alma estabelece, assim, uma relação direta com a reunião (assemblage) de seus órgãos:
“e porque ela é de uma natureza que não tem nenhuma relação à extensão, nem às dimensões ou outras propriedades da matéria de que o corpo é composto, mas somente a toda a reunião de seus órgãos”.
A propósito do Tratado das paixões, em que temos a elaboração da união substancial, Lívio Teixeira pontua: “Contudo é de fundamental importância notar que essa distinção essencial da metafísica [entre substância pensante e substância extensa], base de toda a física cartesiana, é apresentada desde o início do Tratado para introduzir a união substancial da alma e do corpo, que, definindo aquilo que Descartes chama de “natureza humana”, virá a estabelecer quase por completo os limites da moral do filósofo”28. O verbo definindo aqui, no caso, tem muito mais o sentido de indicando para algo29que só pode ser propriamente descrito, como o próprio Lívio Teixeira nos diz: “no plano da união não há senão ideias confusas”30. No entanto, a união, como vimos, supõe as outras substâncias - pensante e extensa -, tomadas a partir do adjetivo humano com o caráter mostrador da alma humana e do corpo humano. Além disso, a nossa ciência, ciência humana - entendida pelo genitivo subjetivo - se apoia em três noções primitivas - pensamento, extensão e união31 -, a cujo fundamento mais originário não podemos remontar, na intenção de apreendermos todas as coisas. A noção pensamento foi explorada nos seus diferentes modos ao longo da obra cartesiana, a começar pelo intelectual, que permite a distância epistemológica fundadora da possibilidade de construir o objeto científico. A noção extensão foi também desenvolvida em seus modos, que sustentam também a construção do objeto científico. Essas noções epistemológicas servem de referência para a elaboração dos conceitos ontológicos de substâncias pensante e extensa32. Por outro lado, a união é uma noção que não tem como correspondente ontológico uma substância. O que caracteriza a união substancial é que substancial é adjetivo, pois, se, por um lado, a união ela mesma não é uma substância, por outro, nos remete ao caráter não acidental dessa união33. A união é justamente humana porque não há uma substância que dê conta sozinha do fenômeno do homem. Também é humana pelo seu caráter em si, não redutível, porém, ao substancial. Além disso, ela é uma natureza que só pode ser pensada como confusa. A propósito, é interessante notar que a árvore do conhecimento humano, de certo modo, mapeia a exploração dos diferentes aspectos do homem: na Metafísica predomina o estudo da alma humana; a Física, embora trate do que não é humano, ela, ainda assim, funda a Mecânica, que pode prover o homem de melhores instrumentos e de um maior conforto, a Medicina, que estuda o corpo humano e pode prolongar a vida humana, e a Moral, que estuda o humano a partir de suas paixões, que, por sua vez, resultam da natureza da união substancial34.
Em Sobre a teologia branca de Descartes, Marion procura pensar o Deus cartesiano como potência incompreensível, detentora de uma como que racionalidade sobre a qual não podemos ter nenhuma certeza se comunga dos mesmos princípios da nossa. Nessa perspectiva, a racionalidade humana não seria necessariamente uma face de um saber único pertencente, por excelência, a Deus. A teoria da criação das verdades eternas, que começou a ser enunciada nas cartas a Mersenne em 1630, rejeita a possibilidade de uma regulação necessária da atividade divina pelos nossos princípios lógicos, matemáticos e morais. Desse modo, a nossa racionalidade se constitui radicalmente a partir do arbitrário da sua criação. O que nos é natural, seja a criação, seja o nosso entendimento dela, é marcado pela nossa condição humana, de criatura que tem uma certa apreensão da criação e do criador. Para Marion, essa diferença radical reencontraria a diferença ontológica que Gilson procura explorar em Tomás de Aquino. O filósofo medieval recorreria cuidadosamente à analogia para pensar a radical diferença entre o ser do criador e o ser do homem35.
Desse modo, a racionalidade humana deve ser entendida em sua condição finita diante do infinito que se nos apresenta como potência incompreensível. Esse quadro de instauração da racionalidade humana impede que façamos as vezes de narrador onisciente, de realizarmos um discurso em terceira pessoa apoiado num único saber metafísico absoluto. A narração do que somos tem de ser feita a partir da situação ontológica em que nos encontramos. O adjetivo humano parece designar essa situação que precisa ser descrita pela Filosofia. Em Descartes e sua concepção de homem, Jordino Marques nos diz que o tratamento da questão do homem no filósofo francês tem de ser feito a partir do cogito, a partir do modo de tratamento que caracterizamos pela via das ideias: “Todo filósofo tem um ponto central de seu filosofar, do qual todos os problemas nascem e para o qual tudo converge. Partimos do fato de que o cogito é o ponto central...” Em seguida, assinala a insuficiência para o fenômeno humano de um só tipo de abordagem: “Já vimos que a consideração mecanicista, que levara Descartes a uma grande esperança na medicina, mostrou-se incapaz de explicar a totalidade do homem.”36
A busca da ideia de homem
Como dissemos, a concepção de homem em Descartes apresentada por Wolff - “a substância pensante estreitamente unida a um corpo” - é entendida, sobretudo, em sua distância epistemológica fundadora do objeto científico da física matemática. Embora essa distância seja um dos aspectos da ideia de homem que se anunciam pela via das ideias, a redução da problemática do humano assim proposta nos faria perder a sua complexidade e o seu caráter aporético. A simples menção à união, por parte do autor, mostra que ele tinha consciência dessa amplitude. Porém, para o instrutivo mapeamento comparativo do livro, talvez não fosse o caso de aprofundar pontos como esse.
Entretanto, a distância epistemológica surge de um ente - quiçá sujeito humano - que ainda não é capaz de se definir, seja porque não há mundo - se pensarmos no verdadeiro mundo - seja porque talvez haja mundo demais - se pensarmos no imaginário novo e iluminado mundo da ciência fundado na Geometria -, para que esse ente possa nele se encaixar e encontrar uma definição. A própria conceituação mecânica vai depender da ideia matemática e, então, da força de meu espírito, que ainda não sei bem o que é37. É essa (im-)possibilidade de definição que uma filosofia da ideia nos abre. Possibilidade fraca, se resumirmos a Filosofia à metodologia científica ou mesmo à fundação do objeto da física matemática, já que temos a concepção de um sujeito humano operador do conceito e da representação científica, e não propriamente uma definição de homem. Impossibilidade, se situarmos essa concepção no interior da complexa problemática do homem.
Alquié, n’O descobrimento metafísico do homem em Descartes, nos mostra o longo processo de estudo do que seja o humano. Toda a teoria cartesiana do objeto científico e de elaboração das ciências são passos apenas iniciais para a pesquisa da ideia de homem. Nessa obra, ele nos diz:
“Há então, pensamos, uma evolução do pensamento de Descartes, essa evolução ilumina um descobrimento progressivo e propriamente metafísico do homem. [...] Longe de ter partido de considerações metafísicas para fundar a ciência, Descartes partiu da própria ciência, à qual pediu a solução de todos os problemas, e descobriu apenas, em seguida, que a ciência não poderia senão ser pensada a partir de suas condições metafísicas. Então progrediu das ciências à filosofia verdadeira e à reflexão sobre o homem”38.
Ainda que possamos discutir se na metodologia científica já não havia uma elaboração metafísica que, entre outras coisas, permitiria o uso do adjetivo humano, o importante é que há, em Descartes, um aprofundamento crescente da reflexão metafísica e do estudo da ideia de homem. Alquié aponta um dado histórico decisivo: a ciência cartesiana já estava completamente estabelecida nos anos 30, no mais tardar em 1637. No entanto, Descartes continuou por muito tempo o seu estudo metafísico da ideia de homem.
A teoria do objeto científico nos mostra, como vimos, uma concepção de humanidade capaz de fundar uma física mecanicista por sua distância epistemológica, ou seja: pela distinção real entre a substância pensante e substância extensa. Essa distância é, porém, apenas um aspecto do sujeito humano. Na perspectiva da tradição aristotélica, a substância está, pelo seu eidos, na mente enquanto conceito. Entretanto, essa substância traz toda uma franja de indeterminação e acidentalidade para o conceito. A redução cartesiana do ente enquanto ente ao ente enquanto objeto permite um conceito completamente determinado da coisa39. Na tradição aristotélica, a similitudo caracteriza a presença do eidos da coisa na mente, ao passo que, a partir das Regulae, assume-se a dissimilitudo na relação entre a coisa e a mente. Todavia, a dissimilitudo será regrada, de modo que não teríamos a presença da coisa na mente, mas a sua representação, o seu objeto, a coisa completamente determinada e conhecida. Nesse sentido, a ideia, no contexto das Regulae, é entendida, sobretudo, como figura40. Ela permite a figuração ou representação científica do mundo41. O caso é que se trata de uma primeira elaboração do pensamento cartesiano, que, evidentemente, evolui na sequência. Ainda assim, essa formulação será sempre uma referência para Descartes e para a Filosofia Moderna. Trata-se da teoria do objeto científico e da explicitação da essência da representação. Explicitação que continua com Kant, ao entender que toda a apreensão do mundo se faz pelo gênero da representação e que um conceito deve ser entendido como representação universal42. Na formulação das Regulae, temos também um alinhamento entre a ideia e o conceito na constituição do objeto científico. Espinosa vai explicitar essa identidade no parágrafo 62 do seu Tratado da emenda do intelecto:
“De modo algum, portanto, há que se temer que finjamos algo, se percebermos a coisa de modo claro e distinto: pois, se porventura dizemos que homens num instante mudam em bestas, isso é dito de modo muito geral, a ponto de não se dar qualquer conceito, isto é, ideia, ou seja, coerência do sujeito e do predicado na mente; porque, caso se desse, ela simultaneamente veria o [termo] médio pelo qual e as causas por que isso se faz. ”43 (grifos nossos).
Como indicamos, há que se destacar o novo uso do termo ideia em Descartes. Mesmo na sua acepção mais materialista da mencionada Regra XII ou d’O homem44 - que pode entender a ideia pela figura traçada no cérebro -, ela é o ponto de articulação da atividade do espírito. Afinal, é por meio da (con-)figuração que imagino e formo o mundo novo, o mundo da ciência. Em outros textos, como nas Meditações sobre Filosofia Primeira, a caracterização da ideia como ocorrência da mente humana se explicita. Ela é tomada como “essa forma de cada um de nossos pensamentos”45. Entendida dessa maneira, evidencia-se mais a diferença com a tradição, que a tomava numa acepção ontológica forte desde Platão e ilustrada pela concepção cristã das Ideias como os arquétipos da criação. A ideia como ocorrência mental pode também ter um entendimento de conceito-representação, construtor do objeto científico, como se faz desde as Regulae. Contudo, a filosofia de Descartes se desenvolve e isso não é diferente com a sua ideia de ideia46. Nas Meditações, encontramos uma ideia sitiada por entidades não redutíveis à objetivação científica, como o infinito e a união substancial. Devemos, portanto, nos perguntar até que ponto o conceito de representação é capaz de dar conta da noção de ideia, pois que, de um lado, pouco consegue explicar a ideia sensível, dita materialmente falsa, na medida em que ela como que se encontra aquém do limiar da representação47 e, de outro, a ideia de infinito48, marcada pela sua (im-)possibilidade de compreensão, porquanto como que extravasa para além da própria noção de representação. Parece que, ao abandonar o questionário exclusivo pela origem das ideias, Descartes se abre para a reflexão de um campo mais amplo, o do aparecer na sua máxima amplitude, daquilo que simplesmente se mostra: trata-se de pensar, para usar o termo que ele emprega, o “exhibere”49. Após o abandono da (pré-)ssuposição das ideias adventícias, na medida em que Descartes mostra a fragilidade da suposição de uma causa exterior que lhe explique; o filósofo nos fala de uma alia via50, a via das ideias na sua máxima radicalidade, sem nenhuma causação exterior. Dificuldade que, no seu desenlace, põe finalmente na ideia de infinito a referência para todo o entendimento de nós mesmos51.
Nesse sentido, Alexandre Koyré nos apresenta um quadro interessante que permitiria pensar uma nova concepção de homem em Descartes: “O universo cartesiano oferece ao homem uma imagem desesperadora: universo inteiramente mecânico, mundo composto unicamente de extensão e movimento, mundo no qual não há lugar nem para o homem, nem para Deus”. No entanto, após dizer isso, ensaia uma definição de homem, que não tem lugar no mundo mecânico, a partir de outro que também nele não tem lugar: “Com efeito, para Descartes, poderíamos definir o homem como o ser que possui uma ideia de Deus”52. Ou seja, o ente que se define a partir da ideia de infinito, da potência incompreensível, paradoxalmente, não seria propriamente definido - circunscrito -, mas indicado53, já que se entende a partir do que só pode ser indicado ou tocado. A ideia de homem seria a de um ente que possui a ideia de um ente que não pode ser definido.
Para explicitarmos o modo como o tema da humanidade é pensado por Descartes e, por conseguinte, na ampliação do seu campo de debate, consideramos que a via das ideias, ou seja, que uma filosofia da ideia pode melhor do que uma filosofia do conceito (re-)pôr a questão do homem. É claro que podemos, como Wolff, tentar definir o homem a partir do conceito em Descartes, seguindo o caminho da Mecânica, o da distinção real entre duas substâncias. Desse modo, pensaríamos, sobretudo, a distinção: ganharíamos a noção de distância epistemológica que não há na definição aristotélica. No entanto, a situação originária é sempre da união, ou seja, da confusão. A possibilidade de que uma ideia não seja uma essência é a da mais intensa confusão. Nessa perspectiva, Gueroult descreve bem a via das ideias no âmbito geral das Meditações sobre Filosofia Primeira: parto da minha ideia, da minha razão, para saber se ela corresponde a uma essência, se há a razão; em seguida, examino se através da essência, da razão, chego a uma realidade, a uma existência exterior à mente54.
Assim, a minha razão pode não ter nenhuma razão, pode não divisar nenhuma distinção. Pois a situação em que me encontro é da confusão da união e da minha confusão em relação a outros entes. Tenho de partir da situação em que me confundo com as minhas paixões, mas também com animais - na perfeição do mecanismo corporal -, anjos - na inspeção da mente que abstrai o corporal -, e Deus - já que tenho a ideia de infinito -, para aos poucos descobrir o que sou. Ao vivenciar a via das ideias, entendo que os conceitos de homem podem entrar em conflito e malograr, ao menos parcialmente, se quiserem dar conta de todo o fenômeno do homem, porque há uma como que uma impossibilidade de definir, pois definir faz mais sentido quando tenho um mundo já dado, quando a arqué é o mundo. Como sublinhou Koyré, Descartes destruiu o mundo. No antigo mundo, as coisas são delimitáveis, definíveis, o conceito antecede a ideia, ou não se diferencia dela.
Como vimos, a reflexão humana se faz, de certo modo, a partir das noções primitivas que condicionam o alcance da mente humana: pensamento, corpo e união. Nessa perspectiva, Descartes procura descrever, a partir da própria experiência, o que seja o homem, evitando recorrer aos conceitos da tradição, ou pelo menos, pondo-os em exame por si mesmos. Procura então descrever o que se lhe apresenta, praticando a via das ideias e se afastando da dos conceitos. Tomemos o exemplo da Segunda Meditação, quando Descartes, após rejeitar o conceito da tradição, diz: “Mas, aqui, prestarei atenção de preferência aos pensamentos que até agora me ocorriam por si mesmos e naturalmente, cada vez que considerava o que eu era”55. Na sequência do texto, o filósofo descreve o corpo em geral. Nesse momento, não se põe a questão da especificidade do corpo humano e do meum corpus. No entanto, o que eu sou se explicita pelo pensamento experienciado pelo meditador. Não se trata de um saber de um narrador onisciente que, de algum modo, se exclui da trama, do mundo vivido. Essa implicação reforça a distância epistemológica responsável por um conceito possuidor de um objeto representativo da realidade como um discurso não absolutamente único. Mesmo nos textos em que se faz em terceira pessoa, Descartes assume a finitude humana, a sua representação do mundo e os limites dela. No entanto, o alcance da implicação do narrador impede que se encerre a questão ao entender o pensamento como “coisa pensante, isto é, mente ou ânimo ou intelecto ou razão” porque são “vocábulos cuja significação eu antes ignorava”56. Ou seja, é no exercício do pensamento que eu descubro o que seja razão, não é um conceito posto por um único saber absoluto. A resposta pela coisa pensante à pergunta pelo que sou, cuja ignorância sobre o que seja o homem a torna difícil, nos leva aos seus modos. Não tenho acesso ao que sou propriamente, à coisa que sou. Mas é o seu atributo pensante que nos seus modos se mostra a mim: “coisa que duvida, que entende, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente”57. Essa não é uma lista fechada. Há certa variação, como a introdução, na tradução francesa da Terceira Meditação, da “coisa que ama” e da “coisa que odeia”58. Temos uma teoria da substância flexionada em primeira pessoa, a partir do pensamento vivido de um meditador implicado na própria meditação. Essa dificuldade de acesso à coisa, à substância reconsiderada em termos cartesianos, sobretudo, nos artigos 51 a 54 e 62 e 63 da Primeira Parte dos Princípios, é, de certo modo, expressa pela tensão entre uma substância inacessível, incognoscível, e um atributo que a torna minimamente inteligível para a mente humana59. A coisa pensante enquanto coisa que entende e que imagina pode ter uma representação da coisa extensa, representação promotora da física matemática. Mas, por outro lado, quando a coisa pensante é coisa que sente ou mesmo coisa que entende o infinito, estamos para além ou aquém dos limites da representação.
O narrador-personagem da filosofia cartesiana, que flexiona o pensamento em primeira pessoa, não é necessariamente solipsista. Pois, assim como não temos o conceito de homem, assim também não temos a determinação do indivíduo humano. Essa primeira pessoa não está fechada na primeira pessoa do singular, mas está aberta a um plural indeterminado, expresso no adjetivo humano da sabedoria humana das Regulae, no uso da primeira do plural de passagens das Meditações, como: “Sonhemos”60, no sentido também da co-meditação com o leitor. E expresso também no uso da segunda pessoa, no uso do cogitas, em A busca da verdade61. Além disso, como podemos ver na Segunda Meditação, quando eu me pergunto se os chapéus e trajes que passam ao largo não seriam portados por autômatos, há uma pressuposição da ideia de outro homem para que a pergunta possa ser feita, para que ela tenha sentido62. Afinal, a pergunta só pode ser feita se houver a possibilidade daquilo que vejo ser humano.
Um encontro com o outro, seja humano, seja infinito, não é dado de antemão, não é pressuposto na ordem mecânica do mundo. Não tenho também a minha determinação individual composta por uma forma substancial, a partir da qual me entendo e, por projeção da minha identidade, entendo o outro. O caráter enigmático do que sou se estende para o outro. Outro que, no modo do infinito63, encontro na raiz do que eu sou quando o cogito é reconsiderado na Terceira Meditação64. Após a reflexão da Quarta Meditação sobre a coisa que quer, a partir da qual pensamos algo estranho à Mecânica - a saber, a liberdade -; deparamo-nos na Sexta Meditação com a coisa que sente, que sente num meum corpus, num corpo humano vivido. Como dissemos, Descartes teve então de acrescentar às noções primitivas uma nova noção para dar conta de pensar esse novo aspecto da ideia de homem: as paixões humanas.65 Paixões que são pensadas também na sua relação com o outro, reflexão que culmina com a paixão virtuosa da generosidade. Desse modo, a humanidade é redescoberta nessa perspectiva da sonhada comunidade dos generosos.
Conclusão
A dificuldade de considerar a ideia de homem é resultado de uma filosofia das ideias, que se faz por uma via das ideias - na qual “ideia” se pensa com “i” minúsculo -, a alia via dos modernos. Ela não só rejeita o conceito tradicional de substância, mas também constata a insuficiência do conceito para dar conta do fenômeno humano. Se nos apoiarmos nas noções primitivas - pensamento, extensão, união substancial -, teremos uma apreensão por aspectos da ideia de homem, que também evoluem e se desenvolvem ao longo da vida intelectual de Descartes, como a reflexão sobre as paixões em sua última fase. A própria noção cartesiana de ideia, embora seja inovadora desde o início e indicadora de um diferente modo de filosofar, foi desenvolvida no decorrer dos anos para explicitar a via de pensamento eleita, explorando toda a sua potencialidade e ampliando o seu alcance.
Nessa busca da ideia de homem, podemos encontrar algumas concepções de homem, candidatas à sua definição e a substituir a aristotélica. Neste texto, assinalamos, pelo menos, quatro: a de Wolff - uma substância pensante unida a um corpo -, a de Faye - um ente cuja principal perfeição consiste em evitar o erro -, a de Teixeira - a “natureza humana” definida pela união substancial -, e a de Koyré - um ente que possui a ideia de infinito. Todas elas se interligam porque explicitam aspectos diferentes do mesmo fenômeno no grau de problematicidade apresentado por Descartes. No entanto, a sua candidatura à definição é insuficiente para dar conta da complexidade do fenômeno e os referidos comentadores têm disso consciência. Nenhuma delas explica completamente as outras, nem é propriamente causa das outras. A substância pensante ligada a um corpo, pela distância epistemológica e pelas suas forças, partindo de si, constrói através da Matemática a Mecânica, legando-nos a teoria do objeto científico e o moderno conceito de representação. Mas o homem é também um pensante que opera para além da própria representação e da sua racionalidade quando se defronta com um outro infinito a partir do qual se pensa. Ora, o homem também é o pensante cujo modo de pensamento privilegiado é o sentir, cuja natureza confusa se encontra aquém do conceito, da representação e da racionalidade científicas66. O homem é ainda a articulação entre o que se encontra aquém da sua racionalidade e que lhe pode ocasionar o erro de juízo e o que se encontra além da sua racionalidade e lhe confere a quase divina faculdade da vontade. Ela, no seu livre exercício, introduz um elemento estranho ao mundo mecânico da racionalidade científica e determinística. Contudo, a principal perfeição do homem na medida em que consistiria em evitar o erro não seria bem uma perfeição, mas uma possibilidade de aperfeiçoamento, uma perfeição cujo sentido se relaciona diretamente com a sua imperfeição.
Consideramos que a dificuldade ou (im-)possibilidade de definir o homem a partir de Descartes decorre do seu método ou do seu modo novo de filosofar, o da via das ideias - para usar a expressão de Pierre Guenancia. Mesmo a distância epistemológica responsável pela revolução científica da Mecânica é um resultado da via das ideias, de uma expressão da força do próprio espírito. Todavia, ainda que a via das ideias muito se desenvolva, não chegamos à totalidade humana. Essa incompletude é convergente com a impossibilidade de definição do fenômeno humano na falta de um cosmos dado e constituído por um único saber absoluto, pronunciado por um narrador onisciente. A fenomenologia de Husserl explora essa perspectiva metódica ao retomar a via cartesiana de fazer uma filosofia que parta do vivido da consciência, procurando examinar todas as pressuposições científicas. A dificuldade de tematização da existência humana explicitada por Heidegger e Sartre reencontra o malogro cartesiano da recuperação de um conceito de homem. Herdeira do método filosófico inaugurado pela via das ideias - cujo roteiro é partir da mente -, a dissolução do homem anunciada por Kant - considerando a leitura de Foucault -, se expressa, entre outras coisas, pela dificuldade e importância da questão do homem, como quando o filósofo alemão põe essa questão como aquela em que se cruzam todas as outras importantes questões filosóficas formuladas em primeira pessoa: “1) Que posso saber? 2)Que devo fazer? 3) Que posso esperar?”67. O homem que põe a questão sobre si, ao ser pensado, ao ser cogitado, escapa, se dissolve; exige então o esforço de descrição das suas diferentes apresentações, dos seus diferentes aspectos. Pois, se tudo parte daquele que cogita, do seu vivido, do seu pensamento, e não do pensado, afinal quem é o pensante? Afinal, “que é o homem?”