Introdução
François Courtine sugere em seu estudo ‘Suarez et le système de la metaphysique’ que o ser real é reduzido pelo doutor Exímio ao ser objetivo, isto é, ao mero poder ser objeto para uma mente, ao mero ser cogitado; assim, seria um ente real mesmo um ente forjado pela mente humana, um fictum; a metafísica teria ‘secretamente’ deixado de ser uma ciência sobre o ‘ser real’ e se tornado uma ciência sobre o ‘ser objeto’1. Esta interpretação, como Rolf Darge coloca, sugere que para Suárez a metafísica não trata do ente ‘real’, mas do ente ‘objetivo’, isto é, do ente como uma estrutura intramental2. A metafísica não trataria propriamente das propriedades, causas e tipos fundamentais das coisas reais fora da mente humana, mas sim daquelas estruturas subjetivas fundamentais do ‘ser objeto’ para a mente humana. A metafísica trataria de tudo aquilo que é pensável sem contradição, isto é, de tudo aquilo que pode ser objeto para a mente humana e, portanto, seria implicitamente uma ciência sobre o objeto da mente humana3. Esta interpretação buscaria confirmar em Suárez uma hipótese histórica, delineada por Heidegger e Gilson, segundo a qual a metafísica sofreu a partir de Duns Escoto, passando por Suárez, Leibniz e Wolff, um processo de subjetivação que termina em Kant, no qual ela deixa de ser ciência do ente real e é transformada numa ciência sobre o que pensável e, portanto, numa ciência sobre estruturas a priori do pensamento e conhecimento humano 4.
Rolf Darge, porém, coloca-se contra esta interpretação e sustenta que para Suárez a metafísica trata do ente ‘real’ e não do ente como objeto do pensamento humano.5 Os conteúdos intencionais de nossos conceitos, os chamados ‘conceitos objetivos’, não seriam separados da realidade concreta das coisas, mas seriam as próprias coisas ou o conteúdo real das próprias coisas6. Haveria nas coisas contingentes do mundo empírico algo de necessário, que as torna objetos possíveis de uma ciência necessária; a metafísica consideraria as coisas contingentes enquanto ente, revelaria as estruturas necessárias do ente real enquanto tal e teria como referência a existência independente do pensamento7. Isto seria confirmado pelo fato da metafísica ser uma ciência a posteriori, que só pode descobrir e explicar as estruturas necessárias do ente real através de uma análise dos conceitos, os quais foram todos obtidos a partir da experiência8.
A interpretação de Rolf Darge me parece mais plausível, tendo em vista o fato de Suárez ter explicitamente colocado a questão sobre o objeto da metafísica no início de suas ‘Disputas Metafísicas’, de ter rejeitado a tese de que a metafísica trata também de entes de razão - isto é daquilo que pode ser pensado, mas não pode existir fora da mente humana - e de ter sustentado que a metafísica trata do ente real enquanto tal - isto é daquilo que é apto a existir fora da mente humana9.
Neste texto, entretanto, pretendo verificar mais especificamente aquele argumento que aparece muito rapidamente no texto de Darge. Como vimos acima, ele sugere que a metafísica é para Suárez uma ciência sobre o ‘real’ e não meramente sobre o ‘objetivo’, porque ela é para Suárez uma ciência a posteriori. Esta sugestão é bastante plausível. Com efeito, é possível traçar um paralelo entre este raciocínio e o pensamento de Kant. Pois parece que para este a metafísica deixa de ser a ciência do real para se tornar uma ciência sobre as estruturas a priori da mente humana, justamente porque para ele a metafísica não poderia ser uma ciência a posteriori10. Com efeito, se a metafísica é composta de proposições necessárias e universais e se, como destaca Norman Kemp-Smith, um pressuposto fundamental do pensamento de Kant é que a universalidade e a necessidade não podem ser alcançadas através de nenhum processo que seja empírico, então é plausível concluir que não há uma ciência metafísica que trata do real fora da mente humana, mas no máximo uma ciência que trata daquilo que a mente a priori exige para algo ‘ser objeto’ para ela11. Assim também, em sentido contrário, se as proposições necessárias e universais da metafísica forem derivadas em última instância da experiência, é plausível concluir que ela trata das estruturas necessárias do ente real.
Neste texto, portanto, pretendo verificar se de fato e em que sentido a metafísica é para Suárez uma ciência a posteriori. Assim, vou primeiro expor resumidamente como exemplo de dedução metafísica sua demonstração da existência de Deus, destacando algumas das proposições que nela aparece a título de exemplo; em segundo lugar, vou mostrar em que sentido estas proposições são ditas a priori, mostrando como podem ser reduzidas a uma explicação ou análise do conceito ‘ente’; em terceiro lugar, vou mostrar como o conceito ‘ente’ é derivado em última instância da experiência, apresentando alguns elementos de sua teoria do conhecimento.
I
Nas Disputas 28 e 29 Suárez busca demonstrar a existência de Deus, entendendo a palavra ‘Deus’ como ente necessário único. Farei uma exposição simplificada desta demonstração com o intuito de destacar algumas proposições que nela aparecem para usá-las como exemplos de proposições metafísicas e depois mostrar em que sentido elas são a priori e em que sentido a posteriori.
Constatamos na experiência que há entes que não existem por si mesmos, mas a partir de outro. Com efeito, constatamos coisas que não existiam e passaram a existir. Ora, antes de existirem, estas coisas não eram nada e no nada não poderia haver algo que tivesse a capacidade de produzir alguma coisa. Uma coisa, portanto, não pode produzir a si mesma. Assim, se uma coisa não existia e passou a existir, então já existia algo antes que tinha alguma capacidade de comunicar a existência para aquilo que foi produzido. Constatamos, portanto, na experiência que há entes que existem a partir de outros entes12.
Entretanto, se há entes que surgiram a partir de outros entes pré-existentes, este outro ente pré-existente, por sua vez, pode também ser um ente que não existe por si, mas cuja existência ele recebeu de um terceiro. Não se pode, porém, seguir ao infinito numa cadeia de entes que só existem por que recebem sua existência de outro, isto é, não se pode ir ao infinito numa cadeia de entes dependentes. Deve haver pelo menos um ente que existe por si, isto é, deve haver pelo menos um ente necessário e independente. Com efeito, uma cadeia infinita de entes dependentes seria um conjunto composto de um número infinito de membros todos eles dependentes. Caberia então perguntar: seria este o conjunto composto por um número infinito de membros dependentes necessário e independente? Evidentemente que não, pois o ser do conjunto não é distinto do ser dos membros do conjunto. Se todos os membros-indivíduos de um conjunto são dependentes, então o conjunto como um todo é dependente. Assim, não se pode negar a existência de pelo menos um ente independente e necessário. Com efeito, ao se negar a existência de pelo menos um ente necessário, supõe-se que haja uma série infinita de entes dependentes, recebendo cada um dos quais recebendo sua existência do ente anterior ao infinito. Supõe-se, portanto, que de fato existe um conjunto infinito de entes dependentes. Mas deste modo também o conjunto como um todo é dependente para existir. Assim, se este conjunto de fato existe, ele recebeu sua existência de algo exterior a ele. Portanto, deve ser afirmada a existência de pelo menos um ente independente e necessário exterior ao conjunto infinito de entes dependentes13.
Entretanto, só pode haver um único ente necessário. Com efeito, se fosse possível mais do que um ente necessário, então seria possível um número infinito de entes necessários. Com efeito, se houvesse uma espécie ‘ente necessário’, por que haveria nela somente dois ou três ou quatro indivíduos? Por que não haveria nela um número infinito de indivíduos? Assim, se for possível mais do que um ente infinito, então é possível um número infinito de entes necessários. Mas se um ente necessário é possível, então ele de fato existe. Um ente necessário não pode existir a partir de outro, mas só por si mesmo. Assim, a possibilidade de ele ser só pode surgir de si mesmo. Assim, ele só é possível, porque de fato existe. Assim, se fosse possível um número infinito de entes necessários, existiriam de fato um número infinito de entes necessários, o que ninguém admite. Há, portanto, um único ente necessário14.
Nesta versão simplificada da demonstração da existência de Deus de Suárez três proposições se destacam: ‘uma coisa não pode produzir a si mesma’, ‘o ser do conjunto não é distinto do ser dos membros do conjunto’ e ‘se um ente necessário é possível, então ele de fato existe’. Tomando estas três proposições como exemplos, buscarei mostrar em seguida em que sentido estas proposições podem ser ditas a priori e depois como elas são em última instância a posteriori.
II
Na Disputa I, seção 3 Suárez diz que a metafísica é uma ciência no sentido aristotélico da palavra, isto é, ‘um conhecimento ou hábito que proporciona um conhecimento certo e evidente das coisas necessárias pelos princípios e causas delas, se for ciência perfeita e a priori15. Ela é, portanto, uma ciência a priori, na medida em que nela há demonstrações a partir de princípios e de causas. Como toda ciência neste sentido, é tarefa dela demonstrar proposições, nas quais certos predicados - que significam propriedades ou afecções - são atribuidos a um sujeito - que significa o objeto desta ciência. Estas demonstrações são feitas a partir de princípios - no sentido de proposições compostas conhecidas pelos próprios termos - os quais, portanto, são conhecidos a partir de outros princípios - no sentido de causas reais ou razões formais que explicam porque certo tipo de efeito surge de certo tipo de causa ou porque certo tipo de propriedade pertence a certo tipo de coisa. Tais demonstrações são chamadas a priori16.
Isto é dito com mais clareza na Disputa 3, seção 3, onde Suárez explica quais são os dois tipos de demonstração que ocorrem na metafísica. Ele repete que é tarefa de uma ciência demonstrar quais propriedades necessariamente cabem ao objeto dela; ora, se o objeto desta ciência é o ente real, então esta ciência deve demonstrar quais são as propriedades necessárias do ente real enquanto tal. Mas para fazer isto, ela deve explicar que tipo de demonstração aparece nela ou, mais especificamente, que tipo de princípio de conhecimento é usado nela. Assim, ele se pergunta se a proposição ‘é impossível o mesmo ser e não ser simultaneamente’, a qual chamarei neste texto de ‘princípio de não-contradição’, é o primeiro e como que único princípio das demonstrações da metafísica.17
Antes de responder esta pergunta, ele fará algumas observações: primeiro, que para que a metafísica seja uma ciência deve haver na base dela princípios que são conhecidos por si mesmos, isto é, proposições que não são demonstradas a partir de outras proposições, mas cuja evidência é imediata. Com efeito, as ciências são um conjunto de conclusões suficientemente demonstradas e uma conclusão só pode ser suficientemente demonstrada se ela for derivada de proposições evidentes por si mesmas; do contrário, a demonstração não terminaria nunca e a conclusão não seria suficientemente demonstrada. É a partir destes princípios que serão demonstrados os atributos transcendentais dos entes e os atributos de alguns entes particulares.18
Segundo, para que a metafísica seja uma ciência que deve haver na base dela mais do que um princípio indemonstrável nesta ciência, pois toda demonstração supõe duas premissas. Assim, para que uma conclusão seja suficientemente demonstrada são necessárias duas proposições evidentes por si. Portanto, se princípio é entendido como ‘proposição conhecida por si mesma’, não pode haver único primeiro princípio da metafísica e o princípio de não-contradição, tal como formulado acima, não pode ser o único princípio da metafísica. Entretanto, pode-se perguntar se um princípio é anterior a outro em outros sentidos, isto é, na medida em que é mais conhecido por nós ou é mais evidente para nós, ou na medida em que sua aplicação é mais universal que outro19.
Tendo feito estas observações, ele faz a distinção entre dois tipos de demonstração: a primeira é chamada ‘ostensiva’: a partir das causas são mostrados os efeitos, ou a partir da essência da coisa são mostradas certas propriedades dela. Esta demonstração é chamada a priori, pois ela não depende da experiência, mas do conhecimento da causa ou da essência da coisa20. A metafísica trata do ente real enquanto tal; assim, para que ocorra nela demonstrações ‘ostensivas’, deve haver na base dela proposições evidentes por si mesmas, cujo sujeito seja o ente real e cujos predicados indiquem propriedades ou afecções que surgem como necessariamente ligados ao ente real. Uma vez conhecida a noção intrínseca - ou essência ou natureza - do ente real não será preciso recorrer à experiência para mostrar que a proposição ‘todo ente é uno’, por exemplo, é verdadeira. Basta conceber distintamente a noção - ou essência ou natureza - de ente real e de uno para saber que ‘todo ente é uno’. Esta proposição é assim conhecida por si mesma; ela é, neste sentido, um primeiro princípio, e partir dela outras proposições podem ser demonstradas ‘ostensivamente’21.
O outro tipo de demonstração é ‘conduzir ao impossível’ (a costumeiramente chamada ‘redução ao absurdo’). Por causa da fraqueza do intelecto humano ou por causa de algum defeito moral, nem sempre concebemos distintamente as essências ou naturezas significadas pelos sujeitos ou predicados dos primeiros princípios e, portanto, não reconhecemos de maneira direta e evidente a verdade deles. Nestes casos, como não se pode demonstrar diretamente um princípio a partir de outro princípio, pode-se levar o intelecto humano indiretamente a dar o assentimento ao princípio, mostrando que a negação dele levaria algo impossível. Em outras palavras, podemos demonstrar indiretamente a verdade de um princípio, mostrando que o mesmo não pode ser e não ser simultaneamente ou que duas afirmações contraditórias não podem ser simultaneamente verdadeiras, o que ocorreria ao se negar o princípio em questão. E em geral é desta maneira que se demonstra as conclusões derivadas de primeiros princípios22. Este tipo de demonstração está baseado no princípio ‘é impossível o mesmo ser e não ser’, pois toda demonstração por redução ao absurdo termina neste princípio. Caso não tenha ainda chegado nele, a demonstração não foi concluída e o intelecto não é levado a dar seu assentimento à proposição em questão.23 O princípio ‘é impossível que o mesmo, simultaneamente, seja e não seja’ pode ser dito ‘primeiro’ nas ciências humanas e, sobretudo, na metafísica humana, não no sentido que através dele se demonstra ‘ostensivamente’ a verdade dos outros princípios, como se o conteúdo peculiar de cada princípio pudesse ser retirado dele, mas no sentido em que sempre precisamos do princípio de não-contradição para mostrar a impossibilidade de negar um princípio. Portanto, ele é ‘primeiro’ no sentido em que sua aplicação é mais universal do que outros princípios. Mas o princípio de não-contradição também é ‘primeiro’ no sentido em que ele é o mais evidente para nós. Ele ajuda nosso intelecto a compreender e a dar seu assentimento àqueles princípios, cujas noções significadas não são facilmente concebidas distintamente, o que costuma ocorrer na metafísica, cujas noções são inicialmente apreendidas de modo tão confuso que suas proposições e demonstrações parecem todas tautológicas e vazias24.
Entretanto, o próprio princípio de não-contradição é uma proposição conhecida por si mesma direta e ostensivamente. Com efeito, ele está baseado ‘na natureza do próprio ser, que por si exclui o não ser’. Afirmamos que ‘é impossível que o mesmo seja e não seja simultaneamente’, isto é, afirmamos que o ente é distinto do não-ente, por que há uma incompatibilidade formal entre o que é significado por estes termos. Em suma, princípio de não-contradição, ainda que formulado negativamente, é uma explicação da noção de ente 25 .
Assim, todas as demonstrações da metafísica, sejam demonstrações ‘ostensivas’, sejam demonstrações por absurdo, podem ser reduzidas a princípios que são explicações da noção de ente real. A metafísica parece, portanto, ser uma mera análise da noção de ente real26.
Isto pode ser confirmado através daquelas proposições que destacamos acima na demonstração da existência de um único ente necessário. Em primeiro lugar, a proposição ‘uma coisa não pode produzir a si mesma’. É ela uma explicação do conceito de ente? Sim, pois nela se exprime a diversidade fundamental entre o ente e o nada. E se alguém a nega, isto é, se alguém disser que ‘uma coisa que não era nada pode produzir a si mesma’, implicitamente ele está dizendo que o nada é algo, que o não-ente é um ente. Em segundo lugar, a proposição ‘o ser do conjunto é o ser dos membros do conjunto’. É ela também uma explicação do conceito de ente? Sim, pois nela se exprime que o ente real é individual e que, portanto, não se tem uma noção correta do ente real ao se conferir realidade ao que não é individual, isto é, ao se conferir realidade a um conjunto em si, como se ele fosse independente dos indivíduos dele. Em terceiro lugar, a proposição ‘se o ente necessário é possível, então ele de fato é’. Também é uma explicação do conceito de ente? Sim, pois nela se exprime que um ente real só pode existir, se já houver um ente real existente; com efeito, um ente real não poderia existir a partir do nada; portanto, se ele pode existir, ele pode existir a partir de algo que já existe; ora, o ente necessário não existe a partir de outro, mas de si mesmo; portanto, se ele é possível, ele existe.
Estes princípios não são derivados diretamente do princípio de não-contradição. Eles são antes explicações ‘ostensivas’ ou ‘positivas’ do conceito de ente real. Entretanto, como a noção de ente é inicialmente apreendida por nós de modo confuso, de modo que nem sempre compreendemos distintamente aqueles princípios, usamos o princípio de não-contradição para compreendê-los indiretamente. Através da não-contradição nosso intelecto é como que levado a compreender com clareza as noções presentes naqueles princípio e a lhes dar assentimento. Mas também o princípio da não-contradição é uma explicação da noção de ente. O uso dele na demonstração indireta de outros princípios está fundada na evidência direta dele, que é a mais evidente para nós.
Além disso, retornando à Disputa 1, na seção 4, Suárez diz que a metafísica ajuda o intelecto a reconhecer os primeiros princípios explicando qual é o significado dos termos deles ou através de uma comparação com aquilo que não é o significado do termo ou por alguma descrição daquilo que significam 27.
Parece claro, portanto, que a metafísica é uma explicação da noção de ente real, seja ela uma explicação direta e ostensiva, seja ela indireta, através do princípio de não-contradição. Ela é uma ciência a priori, portanto, na medida em que nela as deduções se dão pela causa ou pela razão e dependem somente do conhecimento da noção de ente real.
Mas cabe perguntar como se dá este conhecimento da noção de ente real. Com efeito, não parece que a noção de ente real é um conceito totalmente produzido pelo intelecto humano ou um conceito inato no intelecto humano, mas algo concebido pelo intelecto humano a partir da experiência. Com efeito, na Disputa I, seção 4, ele afirma que o intelecto humano é uma pura potência, como que uma tabuinha raspada e que o conhecimento dos primeiros princípios, do qual depende a metafísica enquanto conhecimento de conclusões, não deve ser confundida com a luz natural do intelecto humano ou com a faculdade de inteligir28. Diz lá também que o conhecimento sensível é necessário para qualquer ciência, pois é necessário para a apreensão dos termos e para o conhecimento dos princípios, pois todo nosso conhecimento começa pelos sentidos29. Parece, portanto, que em última instância nenhum dos conhecimentos da ciência metafísica é inato ao intelecto humano, mas que todos eles são adquiridos a partir da experiência e que a metafísica é em última instância uma ciência a posteriori.
Pretendo, portanto, em seguida mostrar em que sentido para Suárez a experiência é necessária para o surgimento da noção de ente real na mente humana.
III
Na Disputa 2, seção 1, Suárez esclarece que o termo ‘conceito’ é correntemente entendido em dois sentidos: como conceito formal, isto é, como o ato pelo qual o intelecto concebe alguma coisa ou alguma noção comum; ou como conceito objetivo, isto é, como aquela coisa ou noção que é conhecida ou representada pelo conceito formal.30 E afirma que de fato o ser humano possui um conceito formal de ente enquanto tal, distinto de outros conceitos formais e que corresponde a este conceito formal um único conceito objetivo adequado de ente, que abarca tudo que de algum modo é31. E que foi convencionado usar o termo ‘ente’ para significar muitas coisas em um mesmo sentido, justamente porque há um único conceito objetivo comum a muitas coisas, que é diretamente significado por este termo 32.
O termo ‘ente’, portanto, é um termo universal, pois significa um conceito formal universal que representa muitas coisas num único conceito objetivo comum a elas. Para Suárez, entretanto, os universais enquanto universais só existem na mente humana. Na realidade fora da mente humana não há nada comum a muitas coisas singulares, mas só as próprias coisas singulares33.
Assim, para responder a questão se a metafísica trata somente do conceito objetivo de ente - como que somente uma estrutura mental - ou se ela trata do ente real fora da mente, cabe perguntar em geral como surgem os conceitos comuns ou universais na mente humana e em geral se eles representam algo fora da mente. O conceito ‘ente’, com efeito, é só um caso particular de conceitos objetivos comuns ou universais.
O primeiro ponto que deve ser destacado é que Suárez afirma que, mesmo sendo produzidos pela mente humana, os universais têm um fundamento nas coisas individuais fora da mente humana34. As coisas individuais fora da mente podem ter uma natureza singular ou uma essência singular tal que não lhe repugna haver outras coisas singulares com naturezas ou essências semelhantes. Assim, elas podem ser semelhantes umas às outras segundo suas naturezas ou essências. Elas podem coincidir umas com as outras segundo as essências e segundo as propriedades que são conectadas intrinsecamente a estas essências. Quando isto ocorre, o intelecto humano pode abstrair destas coisas individuais conceitos comuns a elas e a partir deles podem ser feitas predicações universais, isto é, podem ser formuladas proposições que exprimem a conexão intrínseca entre as essências e as propriedades representadas. A verdade destas proposições será necessária na medida em que elas exprimem relações intrínsecas entre as essências e as propriedades delas de modo atemporal. Tais proposições representam diretamente conceitos objetivos comuns a muitos objetos singulares, mas isto não quer dizer que elas não representam de nenhum modo as próprias coisas singulares fora da mente35.
Isto é reforçado se considerarmos o modo como conceito universal é produzido.
Na Disputa 6, seção 6 ele explica como é produzido um universal. O intelecto humano considera primeiramente no conceito de um indivíduo a natureza deste indivíduo de maneira precisa, isto é, separada de suas propriedades individuais. Assim, separo no conceito de Pedro as propriedades individuais e considero nele somente sua natureza. Neste primeiro momento, o momento da ‘precisão’ ou ‘separação’, obtém-se o chamado ‘universal absoluto’, mas ele ainda não é reconhecido em sua universalidade36. No segundo momento, o intelecto compara a natureza de Pedro com a natureza de Paulo e reconhece a semelhança entre elas. Esta comparação, entretanto, só é possível, porque antes o intelecto havia considerado nos conceitos individuais de Pedro e de Paulo suas naturezas ‘precisamente’. Num terceiro momento, o intelecto, ao comparar Pedro e Paulo e reconhecer que a semelhança entre eles se dá segundo a natureza ‘ser humano’, reconhece diretamente a própria natureza, compara-a com os indivíduos particulares, Pedro e Paulo, e reconhece que a natureza é apta a estar em muitos indivíduos. É neste momento que surge na mente humana o conceito universal enquanto tal37. O conceito universal, portanto, é produzido pela mente humana por atos de ‘precisão’, nos quais ao isolar nos conceitos individuais as naturezas são produzidos conceitos da natureza ‘absoluta’, e depois por atos de ‘comparação’ entre a natureza e os indivíduos, nos quais reconhecemos a aptidão da natureza anteriormente isolada estar em muitos.
Como para a produção dos conceitos universais são necessários por atos de ‘precisão’, nos quais são isoladas as naturezas nos conceitos individuais, o intelecto humano deve possuir anteriormente conceitos das coisas indivíduais. E de fato, Suárez afirma no seu comentário ao Sobre a alma de Aristóteles que temos conceitos próprios e distintos das coisas individuais, por ex. de Pedro38. O intelecto produz primeiro a partir da imagem sensível de Pedro uma ‘especie inteligível’ que representa Pedro e só depois, a partir das ‘espécies inteligíveis’ que representam individuos é que ele produz uma ‘espécie inteligível’ comum a muitos indivíduos39. Ora, esta ‘espécie inteligível’ do indivíduo representa a mesma natureza que a ‘espécie sensível’ (a imagem) representa. Somente o modo de ser das espécies sensíveis e inteligível são distintas, não o que é representado por elas40. Mas esta espécie sensível interior (esta imagem), por sua vez, representa o mesmo que a espécie sensível exterior. Em outras palavras, aquilo que é representado no sentido interior, na imaginação, é o mesmo que o que é representado no ato da visão41. Os atos dos sentidos exteriores, por fim, se dão por uma certa união da coisa individual com a potência sensitiva e com o orgão correspondente, união que se dá através de uma ‘espécie sensível’ que emana da coisa e que a representa, não no sentido que tenha a mesma forma que a coisa representada, mas tal como uma sombra ou uma pintura representam uma coisa 42.
Assim sendo, nos conceitos universais não é representado nada além do que já estava representado nos conceitos individuais, nestes não é representado nada além do que já era representado nas imagens e nas imagens são representadas as mesmas coisas que nos aparecem nos atos dos sentidos exteriores. Portanto, se através dos atos dos sentidos exteriores conhecemos as coisas fora da mente humana, então através dos conceitos universais também conhecemos as coisas exteriores à mente humana43. Assim, só se poderia dizer que a metafísica para Suárez trata das estruturas fundamentais da mente humana e não das coisas de fato existentes, se se disser que para ele os atos dos sentidos exteriores não representam as coisas exteriores, o que ele nunca disse.
A metafísica, portanto, trata das coisas reais, porque ela trata do conceito objetivo de ente real, que foi adquirido a partir das sensações, que representam as coisas que de fato existem e não estruturas mentais interiores. Assim, a metafísica é uma ciência a posteriori, isto é, fundada na experiência no sentido de ´conhecimento obtido a partir da percepção sensorial. Mas cabe perguntar se a metafísica também não está baseada na experiência em outro sentido. Com efeito, para Suárez o termo ‘experiência’ também pode ser entendido como uma certa habilidade que surge quando várias percepções singulares são recordadas e confrontadas umas com as outras e através da qual a mente acaba reconhecendo uma conexão usual entre causas e efeitos. Neste sentido, ‘experiência’ é o conhecimento obtido pelo processo de indução, isto é, o processo, pelo qual o intelecto recorda e compara diversas percepções singulares e estabelece ‘leis’ que descrevem a associação frequente entre tipos de fatos 44.
Seria a metafísica fundada na experiência neste sentido? Para Suárez, não. A experiência neste sentido não alcança todos os casos singulares, de modo que através dela nunca chegamos a proposições necessárias e universais, que deve haver numa ciência. Ela não gera a certeza própria da ciência. E na melhor das hipóteses, gera um conhecimento de ‘que’ as coisas são assim, mas não do ‘por que’ as coisas são assim, o que também é necessário numa verdadeira ciência 45.
Assim, a metafísica não é derivada da experiência entendida como indução, mas é derivada da experiência entendida como conhecimento sensível em geral 46. Com efeito, é a partir da percepção sensível que nosso intelecto entende os conceitos expressos nos termos dos princípios, a partir dos quais são derivadas as conclusões desta ciência.
Entretanto, além desta função, a ‘experiência’ parece ter outra na produção desta ciência. Com efeito, ao ler as ‘Disputas Metafísicas’ frequentemente encontramos argumentos nos quais ele recorre diretamente à experiência. Por exemplo: para mostrar que todos os entes finitos têm causas finais, ele recorre à experiência da ordem no mundo, ordem esta que seria inexplicável sem causas finais47; para mostrar que todos os entes finitos têm uma causalidade eficiente própria a eles, ele recorre à experiência da existência de órgãos e instrumentos nos seres vivos, existência esta que seria inexplicável se não houvesse uma causalidade eficiente real neles48. Nestes casos, ‘experiência’ não aparece nem como percepção sensível, a partir da qual abstraimos os conceitos universais, nem como uma indução, que fundamentaria um princípio. Qual seria a função da ‘experiência’ nestes casos?
Nestes casos, a experiência aparece como uma ‘disciplina’, que ajuda o intelecto humano a conceber corretamente as naturezas das coisas, ao comparar os conceitos universais nele presentes e as proposições deles derivadas com a experiência, corrigindo-os caso sejam contestados por alguma experiência. Com efeito, o intelecto humano é limitado e imperfeito e nem sempre concebe corretamente as naturezas das coisas e costuma errar sobre elas ao se afastar da experiência. Assim, ao propor um princípio, o intelecto precisa compará-lo com a experiência e verificar se ele não sofreu nenhuma contestação dela. Só então se pode saber que tal proposição não é a explicitação de um conceito forjado arbitrariamente, mas de um conceito verdadeiramente abstraído de coisas reais fora da mente. 49
Por exemplo: independente da experiência se pode forjar um conceito de ente, que não tenha uma causa final e a partir deste conceito propor o princípio ‘não há nos entes uma causalidade final’. Mas ao se comparar este princípio com a experiência, constata-se que esta proposição não está de acordo com aquilo que empiricamente constatamos, a saber, a ordem ou a regularidade entre os fatos singulares. Somos assim levados a rejeitar aquele conceito forjado de ente sem causa final e a conceber o ente como tendo uma causa final. Como este novo conceito de ente não sofre contestação da experiência, temos a confirmação de que ele representa as coisas fora da minha mente, isto é, que é o conceito que representa os entes reais. Outro exemplo: pode-se forjar um conceito de ente finito incapaz de causalidade eficiente própria e dele formular o princípio ‘não há causalidade eficiente entre os entes finitos’. Entretanto, na experiência constatamos que muitos entes finitos têm orgãos, que tem formas adequadas a certas funções: espinhos para a proteção, dentes para mastigar, olhos para ver etc. Mas se não houvesse causalidade eficiente entre os entes finitos, não haveria razão para estes orgãos terem estes formatos. Assim, somos levados a corrigir o nosso conceito de ente finito de modo a incluir neles alguma causalidade eficiente própria.
Conclusão
Para Suárez, a experiência é necessária para o surgimento do conceito universal de ‘ente real’ na medida em que qualquer conceito universal só pode surgir na mente humana depois de uma percepção sensorial e segundo ela. E a experiência também serve para corrigir falsos conceitos de ‘ente real’ que eventualmente surjam em nossa mente. A experiência é fonte e disciplina da ciências em geral e da metafísica em particular.
Assim, parece-me que a interpretação de R. Darge é correta. A metafísica é em última instância uma ciência a posteriori, pois ela é uma explicação do conceito de ‘ente real’ que foi obtido a partir da experiência. E ela se refere não só a estruturas fundamentais da mente humana, mas a estruturas fundamentais das coisas reais. Só é possível negar isto, recusando totalmente à percepção sensível a capacidade de representar as coisas reais. Mas isto claramente Suárez nunca fez50.
Na verdade, como bem aponta Jack Zupko, a capacidade das perceções sensíveis de representar as coisas exteriores, é algo que só se torna problemático, se você tiver uma concepção dualista do ser humano, no qual temos de um lado uma coisa pensante totalmente desconectada do corpo e do mundo material. Uma vez feita esta separação, fica difícil explicar como se passa de um lado para o outro e como as percepções sensíveis podem representar as coisas reais. Mas isto não é tão problemático para um escolástico que tem a concepção do ser humano próxima daquela de Aristóteles. Ele não tem tal concepção dualista do ser humano, pois para ele é a mesma alma que organiza a matéria e dá vida e forma para o fígado, por exemplo, tornando-o capaz de certas funções, que dá vida e forma para os olhos, tornando os capaz de percepções sensíveis, nas quais as coisas materiais são representadas, e que a partir destas percepções produz conceitos universais numa potência chamada ‘intelecto’. Não há nele uma separação radical entre entre matéria e vida, nem entre corpo e espírito. Nele não há separação radical, portanto, entre a visão, enquanto potência da alma, e os olhos, enquanto orgãos materiais vivos desta potência. Assim sendo, a capacidade das percepções sensíveis de representar coisas reais não é tão misteriosa como é para os discípulos de Descartes51. E não pode haver dúvida que Suárez seja um destes escolásticos52.