Introdução
Quando faleceu em junho de 1984, Michel Foucault (Poitiers, 15 de outubro de 1926 - Paris, 25 de junho de 1984) deixou como legado uma considerável referência bibliográfica com a qual ganhou notoriedade. Para além dos livros publicados em vida, também oportunizou um importante material que acabaria sendo editado e lançado a partir dos anos que se seguiram: o quarto volume da História da Sexualidade (2018); treze cursos ministrados no Collége de France e um em Louvain (publicados na França entre 1997 e 2012); sua Tese Complementar, Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant (2008); e uma série de debates, artigos, seminários, e, o mais importante para esta pesquisa, um conjunto significativo de entrevistas concedidas e textos que haviam sido enviados para jornais, sendo posteriormente publicados em livros como aqueles da Coleção Dits et Écrits (1994).
Entre as discussões que promoveu sobre a prática jornalística, Foucault comentou que a relação entre Filosofia e o Jornalismo não era recente e que, ao final do século XVIII, Immanuel Kant (1724-1804) e Moses Mendelssohn (1729-1786) haviam respondido a pergunta proposta para o jornal Berlinische Monatsschrift em 1783, “Was ist Aufklärung?” Na análise elaborada por Foucault, os textos de Kant e Mendelssohn teriam inaugurado “‘um jornalismo filosófico’ que foi, com o ensino universitário, uma das grandes formas de implantação institucional da filosofia no século XIX” (FOUCAULT, 2011a, p. 427). Enfim, seria possível pensar as respostas destes filósofos tanto pelo uso que fizeram dos jornais para a difusão de certos temas como, também, a partir de uma postura filosófica que tinha como objetivo colocar a atualidade em discussão (o tempo no qual os homens estão inseridos1).
De tal modo, quando faz uso do Jornalismo e mesmo o critica, Foucault teria adotado uma postura que o vincularia a alguns filósofos. Contudo, e por isso suas críticas ao jornalismo, talvez para ele também fosse preciso compreender o momento específico no qual ele estava inserido: sendo necessário tratar das especificidades dos problemas, bem como das questões políticas e econômicas que, por exemplo, impediam que jornalistas e Jornalismo tratassem de certas adversidades sem se afastar de uma moralidade de origem burguesa. Isso sendo dito, o presente trabalho tem como objetivo analisar como o jornalismo mantém relação com a filosofia foucaultiana e, a partir disso, pode ser percebido politicamente em seu pensamento2.
Uma discussão sobre a ‘obra’ de Foucault
A emergência dos textos de Michel Foucault coloca em discussão a potencialidade de seus “escritos”. Muito mais que autor de História da Loucura (1961), As Palavras e As Coisas (1966), Vigiar e Punir (1975) e A Vontade de Saber (1976), a ele passou a ser associada uma série de textos icônicos, com os quais se tornou possível a concepção de um percurso de leitura para sua Filosofia. A partir dessas novas possibilidades, a discussão sobre seus escritos permite problematizações sobre o contexto político e cultural, bem como leva à desconfiança para com esta série de textos: se devem ser considerados como parte da obra; se uma determinada resposta (dada por Foucault em uma entrevista) teria sido concedida no “calor do momento”; ou se remeteria a algo de fundante de seu pensamento. Essas e outras pontuações demonstram o quanto sua “obra” ainda pode ser discutida.
Nesse sentido, trataria não apenas de questionar se se deve ou não aceitar que textos “menores” sejam incluídos no conjunto da obra foucaultiana, mas, aos aceitar, expressar a qualidade e lugar de discussão que cada um deles pode ter no todo de seus escritos. Em consonância com tal posição, em 1988, por advento do Colóquio “Michel Foucault, Filósofo”, Gilles Deleuze mostrou atenção à obra foucaultiana: deve-se compreender a posição de Foucault, suas análises e o que delas pode ser distinto, já que ele foi capaz de realizar análises e elaborar juízos de fato sem se comprometer com eles. Isso poderia levar, sobretudo, ao risco de realizar leituras equivocadas. Assim, Deleuze fez algumas observações importantes para que o leitor de Foucault:
acreditou-se por vezes que Foucault desenhava o quadro das sociedades modernas como outros tantos dispositivos disciplinares, por oposição aos velhos dispositivos de soberania. Mas não se trata disso: as disciplinas descritas por Foucault são a história daquilo que deixamos de ser pouco a pouco, e nossa atualidade se delineia em dispositivos de controle aberto e contínuo, muito diferentes das recentes disciplinas fechadas (1991, p. 86 - itálico do autor).
Se assim o fez, Foucault teria mantido entreaberto um diálogo capaz de se atentar às diferentes condições. Assim, como ainda salientou Deleuze, seria preciso “distinguir as linhas do passado recente e as do futuro próximo”, “a parte da analítica e a do diagnóstico” (DELEUZE, 1991, p. 86 - itálicos do autor). Portanto, o trabalho de Foucault não poderia ser dimensionado unicamente no plano da análise, sem que, com isso, não se buscasse elaborar o diagnóstico do que “nos” é próximo: o presente, a atualidade. Seria necessário dar atenção aos seus “grandes livros”, os arquivos ali bem delimitados (DELEUZE, 1991, p. 87), mas também considerar o que está para além deles: nos livros, Foucault explicitaria parte de sua atividade, cabendo ao leitor uma participação. Sua preocupação,
ele [Foucault] a formula, só e explicitamente, nas entrevistas contemporâneas a cada um de seus grandes livros: que se passa hoje com a loucura, a prisão, a sexualidade? Que novos modos de subjetivação vemos aparecerem hoje que, certamente, não são gregos nem cristãos? (DELEUZE, 1991, p. 88).
Esse é o sentido impresso nas discussões feitas por Foucault, sobretudo em seus estudos relacionados à História. Seria preciso análises atentas, romper com os padrões universalistas, observar as rupturas e singularidades para pensar esses “novos modos de subjetivação” em lugar de pensá-los como meras continuidades em processos seculares. Considerando ainda as preocupações de Foucault - os problemas/temas que mobilizavam sua atenção (FOUCAULT, 2014a, p. 119) -, a preocupação com a atualidade ganha certo contorno em sua obra. Por isso, Deleuze comentou ainda sobre a “importância” dada por Foucault às entrevistas, “na França e mais ainda no estrangeiro”: para além dos livros escritos por ele, nas entrevistas aparecem as “linhas de atualização que exigiam um outro modo de expressão que as linhas assinaláveis nos grandes livros. As entrevistas são diagnósticos” e, portando, “a obra completa de Foucault, tal como a concebem Defert e Ewald, não podem separar os livros todos marcantes e as entrevistas que nos conduzem para um futuro” (DELEUZE, 1991, p. 88 - negritos adicionados).
Certamente, Deleuze foi um dos primeiros a observar esse movimento realizado na obra foucaultiana e o colocou em prática quando escreveu o livro “Foucault” (DELEUZE, 2013). Também o fizeram outros pesquisadores, como Alessandro Fontana e Pasquale Pasquino quando da edição italiana (1977) que deu origem às diferentes versões de Microfísica do Poder. Na ocasião da publicação desse livro, os editores realizaram uma entrevista com Foucault na qual discutiram seu propósito, em especial pelo que tratava da relação do intelectual com o poder e a verdade. Além de especificar a diferença existente entre os intelectuais específico e universal, Foucault comentou sobre seu desejo “de formular algumas ‘proposições’ - no sentido não de coisas aceitas, mas de coisas oferecidas para experiências ou provas futuras” (FOUCAULT, 1979, p. 14). A posição assumida, notadamente, tem origem na discordância com o que era solicitado ao intelectual universal, uma posição de profeta da qual o autor buscou se afastar. Não apenas isso, ele indicou que seus livros poderiam ser lidos no bojo de uma ação política maior, cuja capacidade não se faz desligada dos leitores: são eles que recebem, experimentam e/ou põem à prova os elementos oferecidos.
Desde o início da década de 1970, principalmente em decorrência das greves iniciadas pelos presos das penitenciárias francesas, Foucault tratou do caso do intelectual específico, apto a contribuir com sua experiência profissional - em lugar de assumir posição de representante maior da consciência de uma classe. Novamente, as observações de Deleuze podem possibilitar uma interpretação para esse modo de agir: nos livros, Foucault apresentaria a metade de seu trabalho, restando ao leitor a possibilidade de tomar posição (DELEUZE, 1991, p. 87-88). Disso resultariam duas possibilidades: a primeira, como o próprio Deleuze explicitou, que a outra metade do trabalho de Foucault tenha sido apresentada nas entrevistas concedidas por ele. A segunda possibilidade talvez seja a de que, com tal atitude, Foucault tenha buscado rearticular a atuação dos intelectuais e, por conseguinte, as relações de poder.
Assim, as entrevistas de Foucault podem ser compreendidas por apresentarem a outra parte de seu trabalho e por darem uma maior atenção ao leitor, convidando este a participar, de algum modo, da política. Nesse caso, não apenas haveria uma proximidade do leitor com a Filosofia, o convite remeteria às experiências que este leitor poderia desenvolver ativamente como, por exemplo, ao assumir um papel em determinada circunstância como um “intelectual específico” (FOUCAULT, 2014b, p. 77). Em suma, não se trataria meramente de colocar em evidência a pessoa do autor ou os livros ligados a ele (no sentido autoral).
A Relação de Foucault com o Jornalismo
Dentre os textos publicados na Coleção Ditos e Escritos3 (1994), um grupo pode ser relacionado à prática jornalística, devido ser composto basicamente por entrevistas, muitas delas publicadas por jornais e revistas. Por outro lado, também não é incomum encontrar nos escritos foucaultianos manifestações sobre a prática jornalista ou sobre o modo como ela deveria se desenvolver. Em suma, uma averiguação da relação entre Foucault e jornalismo passaria por diferentes perspectivas: por um lado, (i) é visível pela relação entre Filosofia e Jornalismo promovida por Foucault, como ao conceder entrevistas, expressando a outra parte de sua obra (aquela situada para além dos livros); por outro, (ii) se apresenta também quando realiza comentários sobre o tema ou, ainda, relaciona Jornalismo e Filosofia (teorizando a relação ou o jornalismo); por fim, (iii) põe-se à prova quando o próprio autor se situa na prática jornalística, ao escrever ele mesmo para jornais. Dito de outra forma, uso do jornalismo; conceituação ou discussão da prática jornalística; e atuação jornalística. Portanto, embora cada um desses aspectos possa configurar uma pesquisa em si, a análise aqui pretendida leva em consideração esses três aspectos para tentar depreender certa relação entre Jornalismo e Filosofia.
Embora as primeiras entrevistas concedidas por Foucault (para os jornais) tenham ocorrido ainda no início década de 19604, sua relação com jornais e jornalistas somente se intensificou a partir do início da década seguinte. Foi naquele contexto que Foucault e outros “intelectuais” se engajaram na criação do GIP (Grupo de Informações sobre as Prisões), uma outra forma de chamar atenção para a situação dos detentos que haviam iniciado uma série de protestos e greves de fome nas prisões francesas, em busca de melhores condições ou em apelo para que fossem reconhecidos como presos políticos. Com o “Manifesto” do GIP, o grupo expôs que seu trabalho era “apenas fazer conhecer a realidade” (FOUCAULT, 2012a, p. 2) a partir das palavras dos presos. De fato, com sua participação nesse grupo, pode-se identificar o entrecruzamento de duas críticas realizadas por ele. Primeiramente, ela decorre do fato de jornalistas e jornais se silenciarem, de se deixarem conduzir pelo sistema5. Depois, no caso dos filósofos, estes, segundo Foucault, haviam se afastado da realidade, “não podem se aproximar dela” (FOUCAULT, 2011b, p. 295). Quando de sua participação na criação do GIP, Foucault demonstrou que articulava uma forma diversa de realizar a prática filosófica. Tratava-se, ali, de se atentar para os problemas que a atualidade apresentava. Ao fazê-lo, também os meios de comunicação se voltaram para tais problemas. Na perspectiva foucaultiana, Filosofia e Jornalismo teriam em comum a capacidade de expor a atualidade e de colocá-la em discussão, ainda que de formas distintas. Por isso, sua crítica aos “filósofos” (que se afastaram da realidade) deve ser compreendida como uma crítica aos mesmos modos de fazer Filosofia sem se ocupar de outras temáticas ou sem precisar os modos diferentes para realizar o trabalho, e com isso possibilitar mudanças.
A partir da ação do GIP em “fazer conhecer a realidade” das prisões, é possível pensar que “os detentos souberam que existia na França um movimento de luta contra o sistema penal”, uma “contestação política do sistema das prisões”. De tal modo, em suas reinvindicações, eles puderam se dirigir “à opinião pública, aos jornalistas” para expor os seus problemas. Os presos “sabiam que, ao dizerem isso, eles não encontrariam os jornalistas debochando ou uma opinião pública hostil” (FOUCAULT, 2012a, p. 76). Conforme Foucault havia dito ao ser questionado sobre a “constituição orgânica” do GIP, de certa forma o objetivo em expor as informações advindas dos presos era “mostrar à administração e aos jornalistas” que se sabia o que ocorria dentro das prisões; elaborar “um instrumento para questionar a prisão e a agitação nas prisões, mas também um meio de inquietar a administração penitenciária e os jornalistas” (FOUCAULT, 2012c, p. 140). Pode-se com isso discutir que Foucault observava certa dualidade na atividade jornalística: de trabalhar em prol de um sistema, mas, sobretudo, de ser portadora da possibilidade de romper e articular outra forma de ação, atuar no outro polo das lutas. Como exemplo desse segundo sentido, nesse mesmo período Foucault se engajou na denúncia do “Caso Jaubert”, jornalista que, ao cobrir o término de uma manifestação, acabou “ensanguentado, com as roupas rasgadas”6 (FOUCAULT, 2010b, p. 25) devido à ação dos policiais:
Alain Jaubert, jornalista de Le Nouvel Observateur, é brutalmente espancado numa viatura policial ao tentar acompanhar até o hospital um manifestante ferido. Em seguida é acusado de rebelião e violência contra agentes da força pública. Como é jornalista, o caso provoca sensação. Michel Foucault, Gilles Deleuze, o advogado Denis Langlois, o dr. Timsitt e alguns jornalistas se reúnem para realizar uma ‘contra-investigação’ e reestabelecer a verdade (ERIBON, 1990, p. 214).
Na ocasião, é possível notar que a crítica buscava discutir o “sistema” no qual “magistrados e policiais se dão as mãos” de modo a ameaçar “a todos” (FOUCAULT, 2010b, p. 26). Para Foucault, “Jaubert foi agredido não pelo que havia feito (...), mas pelo que era: jornalista. Ao lado de antigos racismos, ao lado do novo racismo ‘antijovens’, eis agora o racismo ‘profissional’: é que os jornalistas exercem uma profissão insuportável para a polícia: eles veem e falam” (FOUCAULT, 2010b, p. 25-26). Portanto, Jaubert, ao cobrir o fim da manifestação, colocou-se ao lado do jornalismo que questionava o funcionamento do “sistema”: buscava “ver” e “falar” sobre aquilo que está a acontecer, manifestações e reações da polícia.
É o fato de Filosofia e Jornalismo darem atenção a esses problemas que se pode notar traçada certa relação entre tais práticas. No sentido atribuído por Foucault à prática filosófica ou ainda na atividade de um intelectual, é encontrada uma ruptura com o que o faz diferente de outros filósofos, como seria o caso de Jean-Paul Sartre. Sartre teria sido o “último profeta” em seu modo de discutir os problemas no mundo. Diferente disso, Foucault poderia se declarar “um jornalista”7 (FOUCAULT, 2012a, p. 258). A ele caberia o desenvolvimento de ferramentas específicas, usadas para tratar de questões particulares, para certos problemas e situações colocadas pela atualidade. Não teriam como objetivo uma tentativa de abarcar a totalidade da realidade. Nos casos dos presos ou da agressão sofrida por Jaubert, bem como aquele contexto do pós-Maio de 1968, cabia uma interrogação do sistema, do modo como a justiça e a polícia terminavam por demonstrar a existência de um caráter político em suas ações: as prisões e condenações de manifestantes, jornalistas, etc. De qualquer forma, reforça-se que a atividade tinha de colocar em discussão certos problemas presentes em um momento específico, cuja dimensão inviabilizava o alcance de alguns dos autores clássicos. Tal necessidade possivelmente foi colocada por Foucault a partir da experiência da Segunda Guerra Mundial: conduzia a uma ruptura com o Hegelianismo, a Fenomenologia e também com a “filosofia do sujeito” tal como elaborada por Sartre (FOUCAULT, 2010b, p. 289-290).
Isso sendo considerado, talvez seja possível sustentar a hipótese de que existam relações de proximidade entre Filosofia, o Jornalismo e o poder. Em um primeiro momento, tal relação poderia ser discutida ante as indagações de jornalistas acerca do “problema do poder”, uma questão que “nos tenha preocupado tão intensamente” durante o final do século XX (FOUCAULT, 2012b, p. 37). Nesse caso, uma relação de circulação, isso é, uma relação que se constitui à medida que a Filosofia8 (FOUCAULT, 1979, p. 75) e, depois, o Jornalismo colocam em debate questões concernentes ao poder. Aqui, Foucault se serve do jornalismo no sentido de que este introduz o tema do “poder” para um variado grupo de pessoas que venham a se deparar com uma entrevista ou artigo jornalístico (ainda que, como ocorrido com Foucault, esse tema tenha sido tratado inicialmente sob a desconfiança jornalística). Depois, a conjunção entre jornalismo e poder poderia sofrer alterações: não seria mais apenas um caso de colocar em discussão o poder, mas de tratar dele em suas relações, expor os dispositivos de segurança, discutir as formas de fazer com que tais relações de poder sejam levadas aos mais baixos níveis (FOUCAULT, 2014c, p. 71). Em suma, isso não seria alcançado apenas sendo exposto em livros, já que os problemas colocados pela atualidade excedem a atuação acadêmica.
Ainda no âmago dessa elaboração, caberia reforçar tal postura como um modo de romper com a academia e com aquelas questões que tratariam da Soberania, da formação da Sociedade e do Estado em lugar das relações de poder. A publicidade da discussão em torno das relações de poder coadunaria com a perspectiva foucaultiana, colocando em evidência os sujeitos em lugar da posição de dominação. Obviamente, isso poderia ser discutido ante a consideração de Foucault (2012a, p. 27) de que haveria um “ressentimento” de alguns profissionais, como no caso dos jornalistas, e que estes poderiam passar a se articular contra a “opressão” do poder político. Segundo o autor, durante os séculos XVIII e XIX, o sistema penal (em parte devido à burguesia) havia desempenhando seu papel de controlador de pessoas “perigosas”. Nesse sentido a burguesia pôde “impor ao proletariado, por via da legislação penal, da prisão, mas também dos jornais, da ‘literatura’, certas categorias da moral dita ‘universal’” (FOUCAULT, 2010b, p. 46-47). Portanto, o que estava ocorrendo no século XX poderia ser algo que retornaria àqueles problemas, mas de um modo diverso, o que acabaria contemplando o outro lado: em lugar de tratar de uma moral universal de origem burguesa, a denúncia das condições que levariam alguém a ser preso. Propriamente, de um jornalismo praticado por profissionais que passaram a, como já dito, se ressentirem com aquilo que haviam feito (FOUCAULT, 2012a, p. 27).
Atuação intelectual e jornalística
Como já salientado, uma pesquisa que vise tratar da relação entre Foucault e o Jornalismo deve refletir essa relação mediante três condições, considerando o uso que o filósofo faz do jornalismo, com suas entrevistas, para a divulgação de sua obra e pensamento; pelas referências que ele faz à prática jornalística, de modo a conceituá-la ou atribuindo mudanças em suas características e possibilidades na atualidade; e, por fim, tendo o próprio autor desempenhado uma função mais próxima aos jornais, como se fosse ele mesmo um “jornalista”.
Quanto à terceira condição, a efervescência política francesa e as questões culturais possibilitaram a Foucault atuar ainda mais próximo ao jornalismo. Em verdade, sua atuação extrapola o âmbito francês, conforme pode ser visto na série de textos que escreveu para alguns jornais no final da década de 1970. Os protestos de Maio de 1968, por exemplo, poderiam ser relacionados às manifestações nos presídios franceses. Esses, por sua vez, foram marcantes para que Foucault e um grupo de intelectuais intervissem nas discussões e criassem o GIP, ante a “necessidade de manter a opinião pública informada sobre o que se passa nas prisões” (ERIBON, 1990, p. 215) - e daí certa aproximação de Foucault com os jornalistas. Contudo, também por esses desdobramentos é possível compreender sua atuação quanto à determinada crítica ao jornalismo, considerando a posição dual na qual os jornais e jornalistas ainda estavam inseridos: uma relação de denúncia, mas também de proximidade com os valores morais da burguesia. Tais questões políticas podem ser percebidas no jornal La Cause du Peuple, quando do acontecimento do crime Bruey-em-Artois: “Numa cidadezinha do norte da França uma mocinha de dezesseis anos é assassinada à noite num terreno baldio. O Juiz de instrução suspeita de um dos dignatários locais, o notário encarregado das transações imobiliárias da Compagnie des Houillères” (ERIBON, 1990, p. 230). Nesse período, Sartre “é o editor de La Cause du Peuple” e “não quer cobrir” os comentários feitos por maoístas naquele jornal. Ele se pergunta, ante o que os demais escreviam no jornal, se trataria de fazer “linchamento ou justiça popular”. Os maoístas não estavam fazendo uma cobertura jornalística e nem procediam com análises dos fatos encontrados, mas, a partir de uma luta de classes que se impunha dentro daquele jornal, condenando desde o início.
Quanto a isso, Foucault e Sartre partilharam das mesmas impressões9. Para Foucault, o modo como o caso de Bruay foi tratado pelo La Cause de Peuple é significativo para que ele mesmo se engajasse quando da criação e lançamento das bases do jornal Liberátion (a partir do núcleo da “Agence de Presse Libération”, APL, criada em 1971 por Maurice Clavel). A APL, enquanto opção para romper com certo sectarismo, buscava “reunir, difundir as notícias sobre as lutas, sobre os movimentos, difundir as fotos e os comunicados que encontravam muitas dificuldades em passar pelo filtro das outras agências e achar espaço nas colunas dos jornais”. Segundo Foucault, o projeto do jornal passava por “escrever artigos ‘sob controle popular’”. Assim, com a ideia de controle popular, a criação do Libération poderia ter como “contra-exemplo” os “artigos de La Cause du Peuple sobre Bruay”. Para ele, o “problema da redação posterior do artigo (...) deve ser prévia e honestamente exposto às pessoas que serão interrogadas. Elas devem saber que serão ouvidas com a intenção de reproduzir suas falas entre aspas”. Portanto, “todos devem saber que participam da redação pelo simples fato de falar, enquanto em La Cause du Peuple tem-se a impressão de que havia a possibilidade de seleção”. E “a isso” Foucault dizia “não” (ERIBON, 1990, p. 232). Portanto, o desenvolvimento do projeto do jornal Libération é “ao mesmo tempo muito simples e muito ambicioso: lançar um diário popular que reflita as lutas sem ser o órgão de uma corrente política” (ERIBON, 1990, p. 233). O engajamento de Foucault vai além do fato de ser o “padrinho” do jornal: “propõe ter nele uma crônica da memória operária, em relação com a atualidade” e, também, que naquele periódico fosse “aberta uma rubrica dedicada ao movimento homossexual”10 (DEFERT, 2011, p. 41). Quanto à crônica da memória operária11, a intenção de Foucault aparece ante a atividade do intelectual em sua capacidade de apoiar e por em discussão os problemas enfrentados pelos diversos grupos. Com isso, o papel do intelectual não seria o de
formar a consciência operária, visto que ela já existe, mas de permitir a essa consciência, a esses saber operário entrar no sistema de informações, difundir-se e ajudar, consequentemente, outros operários ou pessoas que não têm consciência do que se passa (FOUCAULT, 2010b, p. 87 - negrito adicionado).
Sob a perspectiva de Foucault, podem ser feitas duas indicações iniciais, e delas proceder com outras elaborações. Primeiramente, demarca a limitação do papel do intelectual: este não está mais ligado à capacidade de falar em nome do universal, seu saber “é parcial”. Por isso, o saber operário é redimensionado. Este tem a capacidade de falar em seu próprio nome e difundir o seu saber para outros operários e para a sociedade. Portanto, as atividades do intelectual e do operário se entrecruzam e passam a aumentar seus alcances. Reforça, com isso, “que os meios de informação estão nas mãos da burguesia”, motivo pelo qual “esses valores” e “pensamento autônomo” dos operários não poderiam ser exprimidos por eles só, sem o referido apoio (FOUCAULT, 2010b, p. 89). A correção no modo como os intelectuais atuam seria capaz de alterar o modo como operários se comunicariam: em lugar de um (intelectual) usar o outro (operário) para difundir suas teorias ou ideologias, haveria uma junção capaz de modificar o modo como ocorriam as relações de poder. Portanto, quando trata das questões concernentes ao jornalismo, seria presumível que tais problemas estariam mais ligados à prática do jornalismo do que de sua prática filosófica, já que a ação visava dar a atenção à atualidade e aos problemas que fugiriam dos autores clássicos da Filosofia. Contudo, quando observadas atentamente, nota-se que tais questões poderiam alterar o modo como filósofos, intelectuais e operários, por exemplo, atuariam politicamente.
No Libération, Foucault pretendia não se limitar “a escrever um artigo de vez em quando”. Ele queria “participar ativamente: fazendo reportagens, assistindo a reuniões, participando das decisões” (ERIBON, 1990, p. 235). Somada à impossibilidade da constante presença no jornal, também se deve atentar para o fato de que os jornalistas não verem “com muitos bons olhos a presença dos intelectuais” nas redações, já que os jornalistas tinham “uma concepção muito mais ‘manipuladora’ do que Foucault poderia imaginar” (ERIBON, 1990. p. 235). A ruptura com a ideia inicial projetada para o jornal leva ao afastamento de Foucault. Ele não mais “escreveu no Libération” e, “no período de 1975 a 1980”, preferiu “se expressar em Le Nouvel Observateur”. Embora volte a colaborar com o periódico na década de 198012, Foucault “fala de sua tristeza em ver esse jornal mentir todos os dias, tal qual a impressa de direita mais empenhada em deturbar os fatos”. E, como lembra Eribon, “nessa época um tema aparece no discurso de Foucault sobre a política: quem quer ter credibilidade, quem quer ser eficaz, precisa antes conhecer e principalmente dizer a verdade” (ERIBON, 1990, p. 235 - itálico do autor).
Conforme já salientado, no final da década de 1970 Foucault propôs outro “projeto jornalístico”, mas, dessa vez, não se tratava da criação de um jornal. Convidado pelo diretor do Corriere della Sera para “escrever crônicas para suas colunas”, Foucault sugeriu “substituir essa fórmula por reportagens” (ERIBON, 1990, p. 261). Ao apresentar a concepção de seu projeto em “As ‘reportagens’ de Ideias” (1978), comentou que haveria “mais ideias sobre a terra do que com frequência imaginam os intelectuais. E essas ideias são mais ativas, mais fortes, mais resistentes e mais apaixonadas que o que delas podem pensar os políticos”. Por isso, seria necessário “assistir ao nascimento das ideias”, algo que não se encontraria enunciado nos livros, “mas nos acontecimentos nos quais elas [as ideias] manifestam sua força, nas lutam (sic) que travamos pelas ideias, contra ou a favor delas” (FOUCAULT, 2012c, p. 125). Se os intelectuais se encontravam limitados, seria preciso romper com suas limitações, apreciar nos acontecimentos as possibilidades de outra forma para agir politicamente.
É nesse contexto que Foucault viajou para o Iran e escreveu uma série de reportagens durante os meses próximos ao acontecimento da Revolução Iraniana (1979)13. Observando o descontentamento com o regime dos xás, e mais especificamente para com as ações do xá Reza Pahlevi, seus escritos buscaram tratar das “reivindicações” dos iranianos: um “governo islâmico” (FOUCAULT, 2010b, p. 226). Tão logo Reza Pahlevi foi retirado do poder, o governo islâmico do Aiatolá Ruhollah Musavi Khomeini passou a perseguir os opositores. Khomeini “diz não” para as “tentativas de conciliação. Não a todos os meios termos. Nada de eleição, nada de governo misto” (ERIBON, 1990, p. 265). Foucault, que havia dito não saber “fazer a história do futuro” e ficar “sem jeito de prever o passado”, acreditava que aquele poderia ser o “trabalho do jornalista”: tentar “alcançar” o que estava “se passando” (FOUCAULT, 2010b, p. 251 - itálicos do autor). Queria “ser um simples jornalista”, mas não o era. Reconhecidamente como um dos grandes filósofos de sua época, foi cobrado por seus erros, se tornou “o alvo de uma série de ataques, às vezes violentos” (ERIBON, 1990, p. 269), devido aos desdobramentos da Revolução Iraniana e do modo como Khomeini passou a atuar. Em um “longo artigo publicado (...) na primeira página de Le Monde” (“É inútil Revoltar-se?”), respondeu pela última vez aos seus críticos, procedeu com uma “magnífica saída de um homem amargo e magoado, que com altiva elegância mantém o que disse e justifica suas palavras perante todos aqueles que se julgavam autorizados a lhe dar lições de moral política” (ERIBON, 1990, p. 270). Ele se justificou comentando que
anos de censura e perseguição, uma classe política tutelada, partidos proibidos, grupos revolucionários dizimados: em que, a não ser na religião, podiam então se apoiar a desordem e depois a revolta de uma população traumatizada pelo ‘desenvolvimento’, pela ‘reforma’, pela ‘urbanização’ e por todos os outros fracassos do regime? (FOUCAULT, 2012b, p. 78).
Em suma, Foucault acreditava que a religião possibilitaria uma reestruturação da política iraniana, recuperando os elementos que levariam os iranianos a um processo democrático. Ainda em sua última resposta sobre o caso, ele expôs sua posição como intelectual e antiestrategista, devendo “ser respeitoso quando uma singularidade se insurge, intransigente quando o poder infringe o universal”, sendo ainda “preciso ao mesmo tempo espreitar, por baixo da história, o que a rompe e a agita, e vigiar um pouco por trás da política o que deve incondicionalmente limitá-la” (FOUCAULT, 2012b, p. 80). De qualquer forma, uma escolha ativa entre as possibilidades14.
Considerações finais
Afinal, Foucault teria avaliado ingenuamente a capacidade do jornalismo? Errou e, se sim, qual teria sido o erro? Como Deleuze havia salientado sobre a postura de Foucault e modo como poderia ser concebida sua obra, faz parte da preocupação de Foucault expor ao externo suas análises, de modo a permitir/solicitar que os seus leitores também pudessem atuar. Nesse sentido, o filósofo não imporia modos de ser ou agir, com sua “escolha”.
Além disso, talvez seja necessário oferecer uma interpretação “final” para consideração de Foucault e que o faz distinto de outros autores. Quando responde aos estudantes se dizendo um “jornalista” em oposição à figura do “profeta”, ele não está dizendo que seria mesmo um jornalista, e não um filósofo. Sua exposição pode ganhar outro sentido se se pensar que o jornalista, em sua atuação, tem como objeto elementos do presente, enquanto o profeta trata de fazer profecias sobre o futuro, algo que não pode ser controlado - e que pode ou não acontecer. Isso seria dar por determinadas, por exemplo, as ações dos sujeitos. Em lugar disso, há inúmeras possibilidades que dependeriam do modo como os leitores, por exemplo, optam por agir no mundo. Por isso também, Foucault impõe destaque em sua atuação ante outros filósofos, que se distanciam da realidade. Logo, trata-se, sim, de uma analogia, não de uma adequação à determinada atuação.
Como pôde ser observado em sua relação com o jornalismo, Foucault tanto usou daquele meio para compartilhar suas ideias (e coloca-las à prova), como também elaborar a crítica da prática jornalística e atuar ele mesmo como um jornalista. Na analogia elaborada por ele sobre o jornalismo e Filosofia, manifestou a impossibilidade de predizer o futuro, se atentando ao presente. Por isso, expor que “se quisermos ser os mestres de nosso futuro, devemos fundamentalmente formular a questão do hoje”. A Nesse sentido, para ele a Filosofia era “uma espécie de jornalismo radical” (FOUCAULT, 2011a. p. 309) e motivo pelo qual os filósofos não poderiam se afastar da realidade.