SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.36 número76A Relação entre a Filosofia Foucaultiana e o Jornalismo: possibilidades para pensar a “Atualidade”Nos degraus do cadafalso: resenha de Reflexões sobre a guilhotina, de Albert Camus índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.36 no.76 Uberlândia jan./abr 2022  Epub 29-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v36n76a2022-64867 

Artigos

O lugar da teologia paulina no pensamento de Giorgio Agamben

The place of Pauline theology in the thought of Giorgio Agamben

El lugar de la teología paulina en el pensamiento de Giorgio Agamben

*Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor adjunto de Filosofia na Universidade Federal do Tocantins (UFT). E-mail: oneidepe@yahoo.com.br


Resumo

A partir do célebre e provocativo curso de Jacob Taubes sobre a teologia política de Paulo, Giorgio Agamben assume a tarefa de desdobrar as principais intuições do filósofo alemão, além de trazer muitos elementos originais e extremamente significativos para debate em torno da teologia paulina na filosofia contemporânea. Nosso artigo pretende, ao acompanhar a cuidadosa leitura do filósofo italiano realizada no livro Il tempo che resta: un commento alla Lettera ai Romani, destacar a dinâmica e a importância do messianismo do qual as cartas do apóstolo estão carregadas e identificar o seu lugar e papel no projeto filosófico do autor.

Palavras-Chave: Paulo de Tarso; Jacob Taubes; Giorgio Agamben; Tempo Messiânico; Lei

Abstract

From the famous and provocative course by Jacob Taubes on the political theology of Paul, Giorgio Agamben takes on the task of unfolding the main insights of the German philosopher, in addition to bringing many original and extremely significant elements to the debate around Pauline theology in contemporary philosophy. Our article intends, by following the careful reading of the Italian philosopher carried out in the book Il tempo che resta: un commento alla Lettera ai Romani, to highlight the dynamics and importance of the messianism of which the apostle's letters are loaded and to identify its place and role in the author's philosophical project.

Keywords: Paul of Tarsus; Jacob Taubes; Giorgio Agamben; Messianic Time; Law

Resumen

A partir del famoso y provocador curso de Jacob Taubes sobre la teología política de Pablo, Giorgio Agamben asume la tarea de desplegar las principales intuiciones del filósofo alemán, además de aportar muchos elementos originales y sumamente significativos al debate en torno a la teología paulina en la filosofía contemporánea. Nuestro artículo pretende, siguiendo la atenta lectura del filósofo italiano realizada en el libro Il tempo che resta: un commento alla Lettera ai Romani, destacar la dinámica y la importancia del mesianismo del que están cargadas las cartas del apóstol e identificar sus lugar y papel en el proyecto filosófico del autor.

Palabras-clave: Pablo de Tarso; Jacob Taubes; Giorgio Agamben; Tiempo Mesiánico; Ley

Introdução

A importância e a centralidade da tradição teológica para a construção do pensamento do filósofo italiano Giorgio Agamben são fatos amplamente conhecidos por quem tem ou teve contato com seus escritos. E esse recurso à teologia não é obra do acaso ou resultado de algum capricho ou predileção do autor. O ocidente é profundamente marcado pelos paradigmas que se formaram no seio da tradição cristã, seja no que se refere às formas de organização social, política, econômica, seja no que tange à estruturação de formas de vida. Ou seja, uma genealogia ou arqueologia que se ponha a mergulhar nos paradigmas teológicos de outrora, não está simplesmente fugindo das questões “atuais” da filosofia e de seus desafios. Ao invés disso, está tentando lançar luz sobre as questões atuais desde modelos que, em grande parte, explicam suas lógicas e dinâmicas de funcionamento. Castor Ruiz faz uma análise bastante acurada desta questão:

O método arqueo-genealógico não questiona a veracidade ou validade das verdades dentro do discurso. Ele não se pergunta sobre a veracidade ou erro de uma verdade dentro do discurso que a produz, neste caso da teologia. Este método investiga os efeitos de poder das verdades nos sujeitos e sociedades que as aceitam como discursos verdadeiros. Toda verdade, quando é aceita como tal, produz um efeito sobre os sujeitos, instituições e sociedades que as acolhem como verdadeiras. A pesquisa de Agamben pretende traçar os efeitos de poder das verdades teológicas sobre as instituições ocidentais, notadamente sobre as técnicas de governo desenvolvidas pelo discurso da economia política. Agamben não se pergunta sobre a validade ou não do discurso teológico cristão, ainda que em muitas ocasiões tenha se manifestado não cristão e como tal não partilha da validade destas verdades. (RUIZ, 2013).

O universo teológico é capaz de nos esclarecer distintas estruturas que continuam amplamente atuantes. Em primeiro lugar, em um contexto de análise das lógicas do poder soberano e das formas de governo da vida humana, é na teologia que encontramos a constituição do paradigma da sacralidade. Isto é, tornar sacro é separar. É afastar do uso. Dessa maneira, aos poucos, certas esferas da vida humana foram sendo transferidas para um espaço sagrado, espaço este onde a ação e a decisão humanas não as alcançam mais. Nas palavras do próprio Giorgio Agamben:

Sagradas ou religiosas eram as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses. Como tais, elas eram subtraídas ao livre uso e ao comércio dos homens, não podiam ser vendidas nem dadas como fiança, nem cedidas em usufruto ou gravadas de servidão. Sacrílego era todo ato que violasse ou transgredisse esta sua especial indisponibilidade, que as reservava exclusivamente aos deuses celestes (neste caso eram denominadas propriamente “sagradas”) ou infernais (nesse caso eram simplesmente chamadas “religiosas”). (AGAMBEN, 2007, p.65)

A dinâmica própria deste paradigma, no entanto, extrapola o âmbito teológico e se insinua de forma extremamente poderosa em muitos espaços da sociedade secularizada. Decisões acerca de vários âmbitos de nossa vida são constantemente transferidos para esferas onde passamos a nos submeter passivamente sem nenhuma ou quase nenhuma resistência. O poder constitutivo, tanto jurídico, como político, econômico, continua retirando dos indivíduos a capacidade de agir em certas esferas.

No entanto, a genealogia ou arqueologia que mergulha nos modelos teológicos não revela apenas essa lógica sacralizadora da qual restam tantas similaridades em nossa sociedade. A tradição teológica é o lugar, também, da constituição de forças de resistência, de ruptura. O messianismo, de forma muito particular, revela-se em um conjunto de manifestações muito potentes que tem a força de subverter completamente sólidas estruturas de poder. Dessa maneira, percebe-se como o hábito de frequentar os meandros das tradições teológicas pode ajudar o filósofo na tarefa de acompanhar a emergência de paradigmas de constituição do poder e também no esforço de rastrear modelos de enfrentamento e resistência.

Jacob Taubes

No ano de 1987, no Instituto de Investigação da Comunidade Científica Evangélica de Heidelberg, Jacob Taubes, já bastante debilitado pela doença que o levaria à morte algumas semanas depois, dispõe-se a tornar pública sua peculiar e original leitura da carta de Paulo aos romanos. A ideia do curso, como o próprio filósofo ressalta, surge a partir de um pedido de Carl Schmitt, que, apesar de todas as diferenças que o separam do filósofo de Berlim, ficara impressionado com a leitura a ponto de dizer: “Taubes, antes de morrer, você precisa contar isso a alguém” (TAUBES, 1993, p.11). Esta originalidade pode ser atestada pela reação imediata que provocou na comunidade filosófica, instigando vários pensadores extremamente importantes na cena filosófica contemporânea a fazerem suas próprias leituras de Paulo de Tarso. O fato é que a teologia paulina adquiriria, desde esta leitura, um lugar de destaque na filosofia. O caso de Giorgio Agamben será, como veremos, ainda mais devedor da leitura proposta no livro A teologia política de Paulo, cuja edição e lançamento ocorre em 1993, seis anos após o curso de Heidelberg, organizado a partir dos textos das lições de Taubes. Aleida Assmann e Jan Assman são os principais responsáveis por este trabalho de edição.

A dívida de Agamben para com este livro é evidente por dois motivos. Em primeiro lugar, o programa do livro do filósofo italiano sobre Paulo é sugerido expressamente por Taubes em seu curso. “Fundamentalmente, pode-se perceber, depois de compreender a carta, que tudo já estava no seu prescrito.” (TAUBES, 1993, p.23). E, logo depois, podemos ler: “Quando alguém propõe para si mesmo um aprofundamento sobre o prescrito, no sentido talmúdico, percebe que tudo já nele contido. Basta saber extrair.” (TAUBES, 1993, p.26). O prescrito da Carta aos Romanos é sua abertura. As primeiras palavras que, como bem percebeu Taubes, têm um peso extraordinário, especialmente no caso das cartas paulinas. Agamben, como iremos perceber, faz uma homenagem e presta um justo reconhecimento a Jacob Taubes em seu livro. Além disso, toma para si a tarefa que Taubes apenas enunciou: extrair das primeiras palavras da Carta aos Romanos todo o profundo sentido deste escrito tão importante e peculiar. Em segundo lugar, a direção para a qual aponta a leitura de Agamben é profundamente impactada pela leitura de Taubes. Ambos, inclusive, buscam reconstruir - neste sentido Agamben avança bastante em relação ao curso de Taubes - a presença da teologia paulina nos escritos de Walter Benjamin. A filosofia insubmissa e revolucionária de Walter Benjamin e a natureza messiânica do escrito paulino, tantas vezes encobertas pela tradição, serão assim os núcleos a partir dos quais ambas as leituras serão construídas.

Podemos entrever a originalidade da leitura de Jacob Taubes na seguinte afirmação:

Quero destacar que escrever uma carta à comunidade de Roma, uma carta que deveria ser lida publicamente, sem saber em que mãos poderia cair (e os censores não são idiotas), e introduzi-la precisamente com estas palavras, é uma declaração de guerra política. Sua introdução poderia ter tido um caráter petista, quietista, neutro, ou ter usado a forma costumeira, mas não, nada disso. Dessa maneira, minha tese é a de que a Carta aos Romanos é uma teologia política, uma declaração política de guerra aos césares. (TAUBES, 1993, p.27).

A tese de Taubes é a de que a carta paulina torna visível o centro de uma lógica messiânica. Paulo seria uma espécie de novo Moisés que estaria propondo uma Nova Aliança. Uma nova Ecclesia. E o enfrentamento da lex romana é o primeiro aspecto disto, tendo em vista que Jesus Cristo nos fornece um novo critério de justificação. Não será a lei romana que deverá justificar a nova comunidade messiânica. A lei romana matou o Cristo. Por outro lado, é uma Nova Aliança, pois difere da primeira aliança, que é baseada no etnos. Judeus e gentios, circuncidados e não-circuncidados poderão fazer parte desta comunidade. A antiga lei judaica é, assim, também ela, tornada inoperante. Como Taubes destaca, “não a Lei (Nomos), mas aquele que foi pregado na Cruz pelo Nomos é o imperator. [...] Isto significa inverter todos os valores deste mundo. Isto contém uma carga política explosiva.” (1993, p.38).

Segundo Taubes, será preciso não esquecer que Paulo é um judeu e, como tal, está profundamente embebido pela tradição messiânica do judaísmo. E o messianismo é essencialmente anárquico, subversivo. As próprias tradições religiosas frequentemente tentam esvaziar movimentos messiânicos que surgem em seus seios. Será, portanto, a partir desta carga explosiva do messianismo colocado no centro de teologia paulina que o curso de Taubes chega até Giorgio Agamben, cujo papel será desdobrar filosoficamente as intuições do filósofo filho de rabinos. É certo que nessa tarefa Agamben acabará por trilhar um caminho próprio, que será muito interessante de ser acompanhado.

Walter Benjamin

Um dos melhores exemplos deste movimento de conduzir intuições de Jacob Taubes a um desenvolvimento mais detalhado e bem estruturado é o caso da identificação da presença de Paulo de Tarso na filosofia benjaminiana. O autor de A filosofia Política de Paulo identifica a presença da teologia paulina especificamente no Fragmento Teológico-Político. Agamben, por sua vez, amplia consideravelmente o escopo da análise e percebe os traços de Paulo de Tarso em muitos outros momentos da obra de Walter Benjamin. Sendo amplamente conhecida a importância da filosofia benjaminiana na formação do pensamento do filósofo italiano, será interessante acompanhar os principais elementos dessa análise. As palavras de Agamben são elucidativas:

No que me dizia respeito, Taubes tinha sido o único a sugerir uma influência possível de Paulo sobre Benjamin, mas a sua hipótese se refere a um texto do começo dos anos 1920, o “Fragmento teológico-político”, que ele coloca em relação com Rm 8, 19-23. A intuição de Taubes é certamente justa; todavia, não somente não é possível, nesse caso, falar de citação (exceto talvez para o termo benjaminiano Vergängnis, “caducidade”, que poderia corresponder ao vergengliches Wesen, na tradução luterana do versículo 21) - mas há, entre os dois textos, diferenças substanciais. (AGAMBEN, 2016, p.161-2).

Agamben, dessa maneira, localizará a presença paulina na filosofia benjaminiana em outros momentos. Especialmente na concepção messiânica de história que perpassa as teses Sobre o Conceito de História e, especificamente, no uso dos conceitos de fraca força messiânica e Jeztzeit (tempo-de-agora). Em relação à concepção messiânica de história, Agamben lembra a primeira tese:

Vocês se lembrarão certamente, na primeira tese Sobre o conceito de história, de Benjamin, da imagem do anão corcunda que está escondido sob o tabuleiro e que, com seus contramovimentos, assegura a vitória ao fantoche mecânico vestido de turco. (...) ele acrescenta que aquele anão é, na realidade, a teologia, “que hoje é pequena e feia e que não deve em nenhum caso deixar-se ver”, e se o materialismo histórico souber tomá-la ao seu serviço, então ele ganhará a partida história contra os seus temíveis adversários. Desse modo, Benjamin nos convida a considerar o próprio texto das teses como um tabuleiro sobre o qual se desenvolve uma batalha teórica decisiva, que devemos supor, também nesse caso, conduzida com a ajuda de um teólogo escondido nas entrelinhas. Quem é esse teólogo corcunda, que o autor soube ocultar tão bem no texto das teses, que ninguém até agora conseguiu identificá-lo? E é possível encontrar nas teses indícios e rastros que permitam atribuir um nome àquele que não deve de forma alguma deixar-se ver? (AGAMBEN, 2016, p. 159).

Os indícios para a conclusão de Agamben, de que este teólogo é, na verdade, Paulo de Tarso, mostram-se antes mesmo de qualquer análise conceitual mais refinada. Paulo é o nome escolhido para substituir Saulo, depois do chamado (Kletos). E o nome “Paulo significa simplesmente “pequeno” (Paulum...minimum est: In Sl 72,4)” (Agamben, 2016, p.24). Como dissemos, a teologia paulina inverte a lógica valorativa, a lei vigente. O que é fraco passa a ser visto como forte. Aquilo que é forte revela-se como fraqueza. A famosa formulação de 1 Cor 1, 27 é emblemática neste sentido: “o que é fraqueza no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte.” Paulo, dessa maneira, ao apresentar-se como pequeno, fraco, escravo (doulos), assume essa posição que a filosofia benjaminiana recupera com tanta admiração.

E é no final da segunda tese Sobre o conceito de História que Agamben localiza aquele que será o conceito que inevitavelmente colocará Walter Benjamin no espírito da teologia paulina. “Para nós, como para todas as gerações que nos precederam, foi dada uma fraca força messiânica (eine schwache messianische Kraft mitgegeben)” (BENJAMIN, 1991, p.694; AGAMBEN, 2016, p. 160). Ao destacar a fraqueza da força messiânica, Benjamin, seguramente, afasta-se da compreensão, tão comum na história do ocidente, de que este ou aquele Império irá realizar a obra de construção do Reino de Deus. Não é a força que é o sinal do Messias. Pelo contrário, serão os oprimidos da terra, os fracos, aqueles que foram mortos pelos poderes constituídos e que continuam exigindo justiça. Por mais poderosos que possam ser os Impérios, a comunidade messiânica é anunciada para que a injustiça não se eternize.

Neste sentido, Agamben recupera outro conceito que Walter Benjamin toma diretamente e literalmente das cartas paulinas. Jetztzeit ou tempo-de-agora, que Walter Benjamin utiliza justamente para fazer uma crítica do tempo vazio e homogêneo, é um conceito que promove uma visão profundamente descontínua da história. No tempo-de-agora uma imagem do passado mais remoto pode ressoar de forma poderosa e constituir o impulso para a quebra da linearidade dos acontecimentos. E essa mesma expressão, ho nyn kairós, lembra-nos o filósofo italiano, “é a designação técnica do tempo messiânico em Paulo” (2016, p. 164).

Portanto, ainda que tenhamos abreviado as considerações sobre a obra de Walter Benjamin, que sempre é muito significativa para Agamben, percebemos claramente aonde conduziu o trabalho minucioso de seguir as pistas da teologia paulina no autor das teses Sobre o conceito de história. Agamben, dessa maneira, amplia consideravelmente e dá consistência àquela intuição de Jacob Taubes, anteriormente referida. Além de perceber conceitos que são literalmente assumidos por Benjamin e que teriam como fonte as cartas de Paulo de Tarso, o que se enfatiza nessa leitura é, sobretudo, um sentido profundo do entendimento do tempo messiânico e que faz com que as obras do filósofo alemão e as cartas do apóstolo se comuniquem com uma força extraordinária.

As jornadas agambenianas

Onze anos depois do seminário de Jacob Taubes em Heidelberg, Giorgio Agamben toma para si a tarefa de examinar cuidadosamente o prescrito da Carta aos Romanos. O texto original de Rm 1, 1 diz: “PAULOS DOULOS CHRISTOU IESOU, KLETOS APOSTOLOS APHORISMENOS EIS EUANGGELION THEOU.” (AGAMBEN, 2016, p.18). Cada uma destas palavras será examinada pelo filósofo com o objetivo de restituir ao texto paulino o caráter que dois milênios da tradição acabaram por apagar: o de ser “o mais antigo - e o mais exigente - tratado messiânico da tradição judaica.” (AGAMBEN, 2016, p.15). O anacronismo de ler Paulo a partir da tradição católica posterior é muito comum. Nestas leituras, portanto, o apóstolo é compreendido, fundamentalmente, como alguém que estaria se distanciando de suas raízes judaicas. E a consequência disso é o ato de apagar o contexto onde estava originalmente enraizado, provocando uma profunda deturpação na leitura, especialmente no que se refere à natureza messiânica do texto. Entender o significado do messianismo para um judeu da diáspora e ler o texto à luz desta tradição, apesar da escrita em grego: este é o desafio.

Seguiremos, neste artigo, tentando não fazer simplesmente uma síntese de cada uma das seis jornadas que Agamben propõe. Ao invés disso, a partir das palavras do prescrito, tentaremos indicar seu respectivo lugar e significado nesta interpretação proposta.

Paulos

O problema do nome do apóstolo - que passa de Saulos para Paulos - tem uma longa tradição interpretativa entre os teólogos cristãos. No entanto, apesar de Agamben admitir que existam possibilidades de um uso interessante da fofoca - assim denomina a série de especulações posteriores sobre a questão -, seu método é bastante diverso.

A minha escolha metodológica (que é também uma precaução metodológica mínima), nesse caso como, de forma mais geral, para toda a interpretação do texto paulino, é a de não levar em conta as fontes a ele posteriores, compreendidos os outros textos neotestamentários. Paulo, nas suas cartas, chama a si mesmo sempre e somente de Paulos. Eis tudo, não há nada a acrescentar. (AGAMBEN, 2016, p.20).

No entanto, a série de especulações históricas em torno do nome e do porque de sua mudança vem, especialmente, da passagem de Atos 13,9: “Então Saulo, que também se chamava Paulo”. Esta formulação Saulos ho kai Paulos, como bem nos lembra o filósofo, em geral introduz um apelido. Esta mudança de uma letra, um sigma trocado por um pi, não é algo propriamente novo na tradição hebraica. Abraão e Sara tiveram seus nomes mudados por Deus em Gn 17. No entanto, não se trata apenas de adotar um cognome romano para não deixar imediatamente à vista de todos um nome tão tradicionalmente hebraico como o é Sha’ul. Trata-se, antes de algo muito mais profundo:

Saulos é, de fato, um nome régio, e o homem que o portava superava qualquer outro israelita não só pela sua beleza, mas também pela sua grandeza (1 Sm 9,2; no Alcorão, Saul é dito, por isso, Talut, o grande). A substituição do sigma pelo pi significa, então, nada menos que a passagem do real ao ínfimo, da grandeza à pequeneza - paulus, em latim, significa “pequeno, de pouco valor” e em 1 Cor 15,9 Paulo se define “o menor (eláchistos) dos apóstolos”. Paulo é, portanto, o apelido, o signum messiânico (...) que o apóstolo se dá no momento em que assume plenamente a vocação messiânica. (AGAMBEN, 2016, p.22).

Todas as coisas se tornam novas na perspectiva do evento messiânico. Não importará o nome, a etnia, o lugar que ocupa na sociedade. Tudo isso será como se não fosse. E o nome Paulo será o signo de que o pequeno, o subjugado, o escravo (doulos), terá o protagonismo no anúncio da vinda do messias. Não é a realeza que reconhece o messias. São os fracos e os pequenos que o reconhecem.

Doulos

Agamben lembra-nos (2016, p.23) que “o nome Paulo está imediatamente encostado na palavra doulos, ‘escravo’.” Esse termo, doulos, em português, é geralmente traduzido por servo. O que precisa ser destacado, em primeiro lugar, é o fato de este termo dar ainda mais ênfase ao nome Paulo (pequeno, de pouco valor). Paulo entende a si mesmo como chamado a realizar um serviço, entende-se como servo. E, mais uma vez, neste aspecto, as raízes judaicas de Paulo de Tarso ficam extremamente visíveis. A utilização desta formulação, servo de Deus, é algo bastante conhecido já no Antigo Testamento. Podemos citar dois exemplos bastante significativos neste sentido, apesar de o filósofo italiano não fazê-lo em seu livro. O primeiro deles é Moisés. Em Dt 34,5, pode-se ler: “E Moisés, servo de Iahweh, morreu ali”. Depois, em Js 2, 8, consta: “Josué, filho de Nun, servo de Iahweh”. Portanto, por um lado, a expressão doulos quer enfatizar uma espécie de anti-idolatria, no sentido de mostrar que não há nenhuma glória requerida por parte daquele que foi chamado, que se trata de um serviço, de anular-se para servir ao Senhor. Por outro lado, ao utilizar essa expressão, já amplamente conhecida no Antigo Testamento, Paulo reforça mais ainda sua pertença ao judaísmo da diáspora. Reforça, assim, ainda mais, a exigência de ser lido no contexto correto.

Outro aspecto que cabe destacar, de acordo com Agamben, é o fato de não haver escravo ou servo sem que haja um Senhor. Isso mostra a dificuldade de entender as palavras do prescrito sem entender as formulações mais amplas das quais elas fazem parte. Metodologicamente, pretendemos seguir aqui os aspectos destacados pelo filósofo italiano, palavra por palavra. No entanto, o objetivo último é alcançar um panorama desde o qual estejamos em boas condições de compreender o contexto, a estrutura e a lógica própria da carta paulina. Doulos, portanto, está em estreita conexão tanto com o nome Paulo, bem como com o que segue depois deste termo. Assim:

Doulos adquire, em Paulo, um significado técnico (como em “escravo do messias”, ou na quase gíria hypér doulon, “superescravo, ultraescravo” em Fm,16), porque ele se serve do termo para exprimir a neutralização que as divisões nomísticas - e, de forma mais geral, todas as condições jurídicas e sociais - sofrem por efeito do evento messiânico (AGAMBEN, 2016, p. 25).

Portanto, ao reconhecer e proclamar o messias, Paulo coloca-se na condição de servo, de escravo. A luz plena sobre o termo, inevitavelmente, virá de uma análise mais cuidadosa das palavras que seguem doulos no prescrito.

Cristou Iesou

Neste ponto se torna fundamental uma percepção que Agamben destaca desde o início de sua leitura da Carta aos Romanos. Paulo é um judeu que escreve em grego. Portanto, as palavras gregas irão remeter a termos da tradição judaica. Isso não pode ser esquecido quando se fizer a leitura dos escritos paulinos. As palavras do filósofo italiano são bastante precisas:

Paulo pertence a uma comunidade judaica da diáspora que pensa e fala em grego (em judeu-grego) exatamente como os sefarditas falarão em ladino (ou judeu-espanhol) e os asquenazes, em iídiche. Uma comunidade que lê e cita a Bíblia na tradução dos Setenta, como o faz Paulo toda a vez que tem necessidade dela (mesmo se, às vezes, ele pareça dispor de uma versão correta sobre o original ou, como se diria hoje, personalizada). [...] Não há nada mais puramente judaico do que habitar uma língua de exílio e trabalhá-la desde o seu interior até confundir a sua identidade e torná-la outra coisa que não uma língua gramatical: língua menor, gíria (como Kafka chamava o iídiche). (AGAMBEN, 2016, p.16,17).

E isto precisa ser destacado, pois a formulação Cristou Iesou não é simplesmente o nome próprio de uma pessoa. De acordo com Agamben,

Cada leitura e cada nova tradução do texto paulino deve começar pela advertência de que christós não é um nome próprio, mas é, já nos Setenta, a tradução grega do termo hebraico masiah, que significa o ungido, isto é, o messias. (AGAMBEN, 2016, p.27).

Uma longa tradição foi, paulatinamente, apagando do texto o termo messias e, em seu lugar, permaneceu algo como se indicasse um nome de uma pessoa: Jesus Cristo. E isto não é uma mera questão filológica de menor importância. O que se apaga do texto quando se esquece de que christós é a tradução grega de masiah é o significado e o alcance do messianismo na tradição judaica.

E uma leitura moderna como aquela que apresenta Paulo como o apóstolo que prega a justificação pela fé, sem qualquer relação com a configuração histórica e política da época, só é possível após este gesto de anular o peso da tradição judaica em seus escritos. O messianismo, nesta tradição, jamais tem o significado de um mero evento “interior”. O lugar e tempo nos quais podemos testemunhar a vinda do messias são o aqui e o agora da história. Ressoa, neste momento, com bastante força, a leitura de Jacob Taubes. Para este, a carta de Paulo é um manifesto político contra o poder instituído. Seja ele o poder do Império Romano, seja ele, no campo religioso, a lei judaica. As ordens que estes poderes constroem, baseadas em classificações e divisões, serão aniquiladas pelo evento messiânico.

Kletós

“O termo kletós, do verbo kaléo, chamar, significa ‘chamado’ (vocatus, traduz Jerônimo).” (AGAMBEN, 2016, p.33). Já no início de suas considerações sobre o termo em questão, Agamben procura restituir o significado filologicamente adequado do termo na carta paulina e não se orientar simplesmente sobre as especulações que foram guiando as traduções ao longo da tradição cristã posterior. O caso de maior destaque, neste sentido, é a tradução proposta por Lutero, klésis por Beruf. Este termo alemão é o que faz referência à profissão. E a profissão de determinado indivíduo é a sua posição no interior de uma determinada sociedade, seu lugar na engrenagem que põe uma determinada ordem social em movimento. No entanto, quando recuperamos o contexto original no qual este termo é utilizado pelo apóstolo, logo percebemos uma profunda diferença. Para isso, o filósofo cita uma passagem célebre. Trata-se de 1 Cor, 7, 17-22:

Ademais, viva cada um segundo a condição que o Senhor lhe assinalou em partilha e na qual ele se encontrava quando Deus o chamou. Foi alguém chamado à fé quando circunciso? Não procure dissimular a sua circuncisão. Foi alguém incircunciso chamado à fé? Não se faça circuncidar. A circuncisão nada é, e a incircuncisão nada é. [...] Permaneça cada um na condição em que se encontrava quando foi chamado por Deus.1

Percebe-se, a partir da citação, uma clara diferença entre a posição ou situação de um determinado indivíduo na sociedade onde vive, incluída sua profissão, e o seu lugar na comunidade messiânica para qual é chamado. De acordo com Max Weber, citado por Agamben (2016, p.34), há uma “indiferença escatológica”, no texto paulino, em relação a qualquer profissão ou mesmo posição mundana. O evento messiânico provoca uma profunda metamorfose onde todas as coisas serão novas. A condição em que alguém se encontra, dessa maneira, ao ser chamado, não terá nenhuma importância ou papel na comunidade messiânica. Parodiando o texto paulino: o escravo será livre no senhor. O homem livre será, doravante, escravo do messias. Como destaca o filósofo italiano: “A vocação messiânica é a revogação de toda vocação.” (AGAMBEN, 2016, p. 37).

Não escapa a Agamben o parentesco entre os termos klesis e Classe. E o que se insinua, fundamentalmente, nessa aproximação, é o fato de a ideia marxista de uma sociedade sem classes ser uma espécie de secularização do tempo messiânico. A revolução, a ser conduzida pela classe proletária, que para ela é chamada, não libertará apenas essa classe. O que se pretende é o fim de todo e qualquer sistema de dominação. O que se pretende é a destruição de um sistema de desigualdade e exclusão e a construção de uma realidade social nova.

Em síntese, o que este termo kletós traz à reflexão é o fato de o chamado à comunidade messiânica não excluir ninguém e não levar em consideração a situação da pessoa como critério. Homens livres e escravos; homens e mulheres; ricos e pobres; todos são chamados. Aquele que foi chamado [...] morre no velho mundo (Rm 6,6) para ressuscitar em nova vida (Rm, 8,11).

Aphorisménos

Aphorisménos é o particípio passado de aphorízo e significa “separado”, segregatus, como traduz Jerônimo.” (AGAMBEN, 2016, p.61) O termo separado adquire, no contexto da carta paulina, um significado imediatamente central. E isto porque Paulo se reconhece como fariseu, ou seja, como aquele que se separa da massa de judeus ao se autoimpor a observação das regras da pureza sacerdotal, mesmo não sendo sacerdote. Portanto, é trazido à tona, neste exemplo, o conjunto de separações que a lei, seja ela qual for, enseja. “O termo grego nomos”, lembra-nos Agamben (2016, p.64), “do qual se serve para designar a Torá, mas também a lei em geral - que deriva de nemo, ‘dividir, atribuir partes’”. Ou seja, o conjunto das leis humanas, sejam elas de caráter político ou mesmo aquelas que estruturam as tradições religiosas são, em grande parte, dispositivos de separação. Separam-se aqueles que podem frequentar determinado lugar daqueles que não podem. Aqueles que podem falar em determinada situação daqueles que não podem. E assim por diante. Pode parecer estranho, desta forma, que Paulo queira fazer uso justamente deste termo para fazer referência ao seu chamado messiânico. E certamente a escolha deste termo não é gratuita. A forma como Agamben pretende ler o termo é justamente no sentido de que se trata de uma separação em segunda potência, ou seja, uma separação da separação. O exemplo que o filósofo italiano utiliza em seu texto é o do “corte de Apeles”, uma espécie de linha quase imperceptível que corta e torna inoperante a linha que divide.

Sabe-se muito bem da importância, no texto paulino, de não restringir o chamado à comunidade messiânica aos judeus. Isto, porém, não significa que estes não sejam chamados. Um resto destes judeus e um resto dos não judeus serão salvos. O “corte de Apeles”, assim, divide a divisão. A divisão circuncidados/não circuncidados perde sua importância. Mas, ao mesmo tempo, ao invalidar as tradicionais separações, não se está simplesmente afirmando uma universalidade ou totalidade. Neste ponto, a crítica de Agamben (2016, p.68) se dirige a Alain Badiou e sua leitura de Paulo como fundador do universalismo. Para Agamben, a noção de resto é aquela que torna impossível qualquer universalidade no sentido de uma coincidência do todo consigo mesmo ou da parte consigo mesma. “No instante decisivo, o povo eleito - todo povo - se põe necessariamente como um resto, como não-todo.” (AGAMBEN, 2016, p.71). No tempo messiânico, portanto, a lei dos homens, aquela que estabelece divisões bastante precisas, é tornada inoperante pela lei, pela separação, realizada pelo messias. Como consta em Rm, 10,4, “O Messias é o telos da lei”.

Apóstolos

“O apóstolo é um enviado, nesse caso um enviado não por homens, mas pelo messias Jesus e pela vontade de Deus para o anúncio messiânico.” (AGAMBEN, 2016, p.77). Portanto, em primeiro lugar, é preciso perceber que o apóstolo é aquele que fala em nome de alguém. Ainda que seja ele próprio a escolher as palavras, fala a partir de uma incumbência que lhe foi atribuída por um mandatário. Revela-se, assim, não somente figura religiosa, mas, sobretudo, jurídica. E nisto consiste a sua diferença em relação a uma figura extremamente importante na tradição: o profeta.

O que é um profeta? É, em primeiro lugar, um homem que está em relação imediata com a ruah Jahwé, com o sopro de Javé, e recebe de Deus uma palavra que não lhe pertence propriamente. “Assim fala - ou falou - Javé” é a fórmula que abre o discurso profético. Como porta-voz extático de Deus, o nabi se distingue nitidamente do apóstolo, o qual, enquanto mandatário para um escopo determinado, deve, ao contrário, executar a sua incumbência com lucidez e encontrar sozinho as palavras do anúncio, que pode, portanto, definir “o meu Evangelho” (Rm 2,16; 16,25) (AGAMBEN, 2016, p. 78).

No entanto, ainda mais fundamental para perceber a diferença entre o apóstolo e o profeta é a sua relação com o tempo próprio da realidade. O profeta olha para um tempo futuro em seu anúncio. O apóstolo, por sua vez, habita o próprio tempo messiânico. O messias já chegou e é a partir desta presença - ho nyn kairós, tempo-de-agora - que Paulo se reconhece como apóstolo, e não mais profeta. É preciso, pois, para entender a especificidade deste termo, entender o que é, propriamente, este tempo messiânico. Este é um dos pontos de maior intensidade da leitura agambeniana.

Como destaca o filósofo, não se pode cometer o erro, tão comum na tradição, de confundir o tempo messiânico e o escatológico. “O messiânico não é o fim do tempo, mas o tempo do fim (AGAMBEN, 2016, p.80). O que se quer destacar com isso é que o tempo messiânico não pode ser medido cronologicamente de forma simples e ser definido e determinado. O tempo messiânico é um intervalo, um resto, entre uma temporalidade cronológica que se vê subitamente habitada por um evento que a interrompe, que provoca um abalo sísmico em sua pretensa linearidade, e o fim dos tempos, a parousia. Ou seja, o tempo messiânico é um lugar de absoluta indeterminação. “O tempo se contrai e começa a acabar” (AGAMBEN, 2016, p.81). Cada instante carrega em si uma intensa possibilidade. Nada mais está seguro. A ordem do velho mundo e sua temporalidade inerente começam a desabar. O chronos vê-se tocado pelo kairós. O tempo messiânico, portanto, não é outro tempo em relação ao tempo cronológico. Nisto consiste o erro de muitas leituras. Ou seja, não se trata de opor duas temporalidades distintas, simplesmente. Mas de perceber a possibilidade de uma delas ser invadida pela outra. Desse modo, “o mundo messiânico não é um outro mundo, mas é esse mesmo mundo profano com um pequeno deslocamento.” (AGAMBEN, 2016, p.87).

Eis euaggélion theoú

Assim como o tempo messiânico não é simplesmente outro tempo em relação ao cronológico, também a linguagem do messianismo paulino não é outra em relação à linguagem corrente na época. Por exemplo, ao chamar Jesus de Senhor (Kyrios) e ao proclamar sua mensagem como a boa nova (euaggélion), utilizando, portanto, termos característicos do culto aos imperadores, o que se está propondo é a inscrição de uma nova ordem na própria linguagem, de um apropriar-se de signos para a caracterização do tempo messiânico. Trata-se, portanto, como ademais muito bem destacou Jacob Taubes (1993), de um manifesto de caráter profundamente político.

A palavra euaggélion, no contexto das cartas paulinas, ainda não está, obviamente, fazendo referência a um livro ou a um conjunto de livros. Trata-se do anúncio de uma boa notícia: a vinda do messias. Portanto, o que é necessário para que tal notícia seja crível, é a convicção de quem anuncia e a fé de quem ouve o anúncio. E o messias, como já foi demonstrado, surge como aquele que rompe com uma linearidade histórica marcada pela injustiça e pelo pecado. O que se põe, portanto, no centro do anúncio do tempo messiânico é a dialética da lei. Ou seja, em outras palavras, como o advento do messias impacta as ordens política e religiosa de sua época. A lei judaica, a torá, e a lex romana serão anuladas ou mantidas no tempo messiânico?

Em primeiro lugar, é importante recordar, que esta é a questão que perpassa a história desde o anúncio paulino até a filosofia política contemporânea. Parafraseando Walter Benjamin, o estado de exceção é a regra. Ou seja, a lei está estruturada para a manutenção de sistemas de poder, de autoridades que se legitimam a partir dela. A lei, de maneira geral, mantém uma estrutura social injusta e violenta. O messias, portanto, não poderia permanecer indiferente a isto. Mais ainda, o próprio messias foi morto pela lei. Julgado e condenado. A lei, portanto, não está no início da relação do Deus com o seu povo. Por isso, a depravação ou fetichização da lei é possível. No início desta relação está a promessa feita a Abraão e não a lei entregue a Moisés. Agamben cita neste ponto Gl 3, 17,18:

A lei, surgida 430 anos depois, não invalida um pacto concluído por Deus, tornando, assim, inoperante a promessa. Se a herança viesse da lei, ela não seria mais proveniente da promessa. Mas Deus deu graça a Abraão mediante a promessa (AGAMBEN, 2016, p.112).

E, logo antes deste trecho, em Gl 3, 16 “Não diz: ‘e aos descendentes’, como referindo-se a muitos, mas como a um só: e a tua descendência, que é Cristo.” O messias, portanto, advém como cumprimento de uma promessa e não para o cumprimento da lei.

No entanto, por paradoxal que isto possa parecer, aí pode ser encontrado, justamente, o sentido de frases como Rm 3, 31 “Tornemos, portanto, inoperante a lei através da fé? De forma alguma! Ao contrário, mantenhamos firme lei.” Esta aparente contradição, segundo Agamben, só pode ser entendida se tivermos em mente a diferença entre a promessa e a lei. A lei surge, historicamente, como meio para a melhor realização da promessa. A lei existe em função da manutenção da promessa. O messias vem para cumprir a promessa, como destaca o apóstolo. Dessa forma, vem também cumprir o sentido mais profundo da lei. A lei não é absoluta, em outras palavras. O que é absoluto é a promessa. Nas palavras pontuais de Dussel (2016, p.81): “A lei de Moisés, que mata quando se fetichiza, é superada pela nova lei da liberdade, da vida, da fé, do amor, do novo eon, que resgata e redime”.

A teologia paulina no pensamento de Agamben

A famosa tese VIII de Walter Benjamin, em seu derradeiro documento Über den Begriff der Geschichte, expõe de forma concisa e clara a tarefa de uma filosofia que não queira se deixar levar com a corrente conformista que, em última instância, alimenta o fascismo. Vejamos as palavras do filósofo alemão:

A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção; e graças a isso, nossa posição na luta contra o fascismo tornar-se-á melhor (BENJAMIN, 1991, p.697; LOWY, 2005, p. 83).

Esta formulação tem a força de nos colocar, de imediato, no centro das preocupações filosóficas de Giorgio Agamben. Todo seu grandioso projeto em torno do Homo Sacer parece pretender mostrar as estruturas de constituição do poder que alimentam a lógica da exceção. E fazer uma crítica filosófica deste estado de coisas, portanto, requer a ousadia de descolar a filosofia de qualquer função apologética, para que as raízes do atual estado de coisas possam ser colocadas à vista de todos. Em outras palavras, é neste projeto filosófico do pensador italiano que podemos acompanhar, de forma muito consistente, o desenvolvimento e a demonstração da intuição benjaminiana de que o estado de exceção é a regra.

No entanto, a filosofia de Agamben não tem apenas a dimensão negativa de fazer a crítica às lógicas de exceção que sobrevivem mesmo nas contemporâneas democracias. Em muitos momentos, ao longo de sua obra, procura mostrar a potência de movimentos capazes de romper com as lógicas do poder instituído. E o messianismo, neste sentido, é uma espécie de reserva energética que, quando irrompe, ameaça até mesmo a ordem religiosa no seio da qual emerge. As tradições religiosas e sua frequente tentativa de desacreditar movimentos messiânicos mostram isso muito bem. Nada mais benjaminiano, neste sentido, do que mapear os pontos de fuga que a lógica da exceção não consegue neutralizar.

Explica-se, a partir disso, a centralidade do messianismo e o profundo interesse de Agamben pelo tema. Para compreender melhor o alcance e significado do messianismo na tradição judaica, solo do qual emerge a teologia paulina, será interessante acompanhar as palavras de um dos maiores especialistas sobre a questão, o historiador Gershom Scholem:

O messianismo judaico é, na sua origem e por sua natureza - e isto não pode ser suficientemente enfatizado - uma teoria da catástrofe. Esta teoria enfatiza o elemento revolucionário, cataclísmico, na transição de todo presente histórico ao futuro messiânico. (...) É precisamente a falta de transição entre história e redenção que é sempre sublinhada por profetas e apocalípticos. A Bíblia e os escritores apocalípticos não conhecem progresso na história conduzindo à redenção. A redenção não é resultado de um desenvolvimento imanente tal como é sugerido pela reinterpretação moderna do Messianismo (SCHOLEM, 1995, p.7-10).

O messianismo, portanto, opera uma espécie de corte no tecido da história. O que está em curso - um passado que se desdobra a partir de certa lógica na direção de um tempo futuro, por isso mesmo de algum modo previsível - perde a força de atuação sobre o evento messiânico. Este torna inativas e inoperosas as forças históricas que determinavam o curso dos acontecimentos.

Neste ponto chegamos àquele que é talvez o núcleo de interesse do messianismo para esta tradição da crítica filosófica, especialmente no caso de Giorgio Agamben. Uma afirmação como a de Walter Benjamin de que “a tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção no qual vivemos é a regra” (BEJAMIN, 1991, p. 697) não nos diz pouca coisa. Assumir tal afirmação é colocar-se consciente de que na história do ocidente imperaram lógicas de poder extremamente sólidas. Estas lógicas, por sua vez, e o conjunto de dispositivos que as tornam operativas, capturam a vida para o interior de seus conjuntos maquínicos. A potência da vida é posta em ato neste contexto. E a própria vida perde, aos poucos, a referência de uma potência que não aquela atuante no interior destas lógicas. O messianismo paulino, e este é um dos pontos pelos quais as cartas do apóstolo fascinaram Jacob Taubes e, depois dele, Giorgio Agamben, põe no centro de seu anúncio de um tempo messiânico o conceito de Katárgesis, ou seja, o tornar inoperante. Tornar inoperante, fundamentalmente, significa desativar certas lógicas. Não significa simplesmente destruir uma ordem ou uma lei, mas, ao desativar o seu sentido corrente, voltar-se para a potência constitutiva que pode levá-la ao seu verdadeiro cumprimento.

Para Paulo, a potência messiânica não se esgota no seu ergon, mas permanece nele potente na forma da fraqueza. A dýnamis messiânica é, nesse sentido, constitutivamente “fraca” - mas é precisamente através de sua fraqueza que pode exercitar os seus efeitos: “Deus escolheu as coisas fracas do mundo para confundir as fortes” (1 Cor 1, 27). A inversão messiânica da relação potência-ato tem também um outro aspecto. Como a potência messiânica se realiza e age na forma da fraqueza, ela tem efeito sobre a esfera da lei e de suas obras não simplesmente negando-as ou aniquilando-as, mas desativando-as, tornando-as inoperantes, não-mais-em-obra. Esse é o sentido do verbo katargéo: assim como no nomos, a potência da promessa foi transposta em obras e em preceitos obrigatórios, do modo correspondente, agora, o messiânico torna essas obras inoperantes, as restitui à potência na forma da inoperosidade e da inefetividade. O messiânico não é a destruição, mas a desativação e a inexecutabilidade da lei (AGAMBEN, 2016, p. 115-116).

Portanto, Agamben retorna até a oposição entre a promessa e a lei. Na medida em que a lei, com as divisões que estabelece e com as prescrições que realiza, afasta-se do espírito da promessa, o messias é a força - “fraqueza” no contexto da lei - que é capaz de torná-la inoperosa para que a promessa em toda sua potência nos faça enxergar a nova lei, nova aliança. Isto lança luz sobre formulações aparentemente contraditórias como “o messias, por um lado, ‘tornará inoperante (katargese) todo principado e toda potestade e potência’. (1 Cor 15,24) e, por outro, constitui ‘o telos da lei’ (Rm 10,4).” (AGAMBEN, 2016, p.116). A lei, em síntese, não esgota a promessa e, dito de outro modo, a promessa nunca se esgota na lei. Essa dialética da lei ocupa lugar central em qualquer consideração sobre o messianismo. O próprio Agamben o expressa numa formulação extremamente esclarecedora em um texto sobre Walter Benjamin:

O caráter provavelmente essencial do messianismo é precisamente a sua relação particular com a Lei. Tanto no âmbito judeu como no âmbito cristão ou chiita, o acontecimento messiânico significasobretudo uma crise e uma transformação radical de toda a ordem da lei. A tese que gostaria de propor é que o Reino Messiânico não é uma categoria entre outras no interior da consciência religiosa, senão que é o seu conceito limite. Porque o Messias é a figura no qual a religião se confronta com o problema da lei, chega a um acerto de contas definitivo para com ela. E, posto que a filosofia está constitutivamente comprometida em uma confrontação com a lei, o messianismo representa o ponto de maior proximidade entre religião e filosofia. Por isso, as três grandes religiões monoteístas trataram sempre de controlar e reduzir por todos os meios suas próprias instâncias messiânicas essenciais, sem consegui-lo nunca plenamente. (AGAMBEN, 1988, p.13).

Considerações Finais

O objetivo deste artigo foi localizar o lugar da teologia paulina no pensamento de Giorgio Agamben. O profundo conhecimento do autor no campo teológico, de maneira geral, salta à vista de qualquer um dos seus leitores. No caso da teologia paulina, em particular, essa propriedade argumentativa, aliada aos conhecimentos filológicos e históricos, revela-se em toda sua plenitude. Agamben entende a Carta aos Romanos, como destacamos no início de nosso estudo, como sendo “o mais antigo e o mais exigente tratado messiânico da tradição judaica.”. Por este caráter absolutamente fundamental e radical, o confronto com a teologia paulina passa ser fonte que atravessa um grande conjunto de desdobramentos da filosofia agambeniana.

O primeiro destes desdobramentos é a demonstração de que nem sempre a tradição é apenas conservadora, no sentido de constituir fonte legitimadora do estado de coisas atual. E isto de maneira muito especial no caso das tradições religiosas. Elas próprias, como vimos, tendem a esvaziar e controlar os movimentos messiânicos, temendo o caráter cataclísmico e revolucionário deles. Se, por um lado, ganha força toda uma leitura conservadora e legitimadora do poder a partir das Cartas de Paulo de Tarso, em especial da Segunda epístola aos Tessalonicenses e a correspondente interpretação do Katechon, um dos primeiros padres da igreja até Carl Schmitt, como algum poder terreno que mantém a ordem (o nomos) e evita o caos; por outro lado, há uma potência explosiva nestes escritos - o messianismo - que a tradição sempre buscou domesticar e conter. Em geral a leitura conduzida institucionalmente aproximou-se, dessa maneira, de uma leitura katechontica, sem aqui entrar no debate sobre a outra possibilidade de ler o Katechon paulino desde Agamben, sendo que a leitura messiânica, o seu exato oposto, foi sendo encoberta do mesmo modo como se procurou encobrir a pertença de Paulo a uma comunidade judaica da diáspora.

O segundo desdobramento se aproxima, subitamente, do núcleo político do pensamento do filósofo italiano. O messianismo, toca no núcleo da questão da lei, da dialética da lei, desde seu alcance e efetividade como da possibilidade de torná-la inoperosa. Este movimento messiânico de tornar inoperosa a lei constitui uma espécie de protótipo de toda ação política possível no interior das contemporâneas sociedades administradas. Desativar os efeitos de subjetivação de uma determinada ordem social e seus dispositivos sobre os indivíduos a ponto de permitir-lhes vislumbrar outras formas-de-vida, eis o que se coloca como condição para a ação revolucionária. E para os que preferem referir-se a esse movimento como uma utopia vazia e distante, os movimentos messiânicos testemunham o caráter concreto de tal possibilidade.

Por fim, diante do que foi dito, fica claro que também o interesse de Agamben por Paulo de Tarso não é “arqueologia, mas sim atualidade” para usar a exata formulação de Reyes Mate (2006, p.32). A teologia paulina, que, de repente, desperta um intenso interesse em um grande grupo de intelectuais da crítica filosófica contemporânea, de Jacob Taubes até filósofos latino-americanos com Dussel (2016) e Franz Hinkelammert (2012), passa por fim a ser reconhecida como tratado político extremamente potente. Se foi Taubes (1993) que teve o mérito de direcionar este olhar da filosofia contemporânea para estes textos, foi Agamben (2000) que consolidou esta “nova perspectiva” sobre Paulo na filosofia, ao fazer o delicado e consistente trabalho de comentar a Carta aos Romanos.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. II Messia e il sovrano. II problema déla lege in W. Benjamín. In: SCATIGNO, Anna (Org.). Anima e paura. Studi in onore di M. Ranchetti. Quodlibet: Macérala, 1988. [ Links ]

AGAMBEN, Giorgio. Il tempo che resta: un commento alla Lettera ai Romani. Torino: Bollati Boringhieri, 2000. [ Links ]

AGAMBEN, Giorgio. O tempo que resta: Um comentário à Carta aos Romanos. Trad: Davi Pessoa e Cláudio Oliveira. 1.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. [ Links ]

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad: Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007. [ Links ]

BENJAMIN, Walter. Über den Begriff der Geschichte. In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Erster Band. Unter Mitw. von Theodor W. Adorno und Gershom Scholem hrsg. von Rolf Tiedemann und Hermann Schweppenhäuser. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991. [ Links ]

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002. [ Links ]

DUSSEL, Enrique. Paulo de Tarso na filosofia política atual e outros ensaios. Trad: Luiz Alexandre Solano Rossi. São Paulo: Paulos, 2016. [ Links ]

HINKELAMMERT, Franz J. A Maldição que pesa sobre a Lei: as raízes do pensamento crítico de Paulo de Tarso. São Paulo: Paulus, 2012. [ Links ]

LÖWY, Michael. Walter Benjamin: Aviso de Incêndio - uma leitura das teses ‘Sobre o Conceito de História’. Tradução de Wanda Nogueira C. Brant. São Paulo: Boitempo, 2005. [ Links ]

MATE, Reyes. Retrasar o acelerar el final. Occidente e sus teologias políticas. In: MATE, Reyes; ZAMORA, José A. (Orgs.). Nuevas Teologías Políticas: Pablo de Tarso en la construción de Occidente. Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial, 2006. [ Links ]

RUIZ, Castor Bartolomé. Giorgio Agamben, genealogia teológica da economia e do governo. In: IHU- Online. Edição 413, 01 de abril de 2013. Disponível em: https://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/4862-castor-bartolome-ruiz-12. Acesso em: 4 fev. 2022. [ Links ]

SCHOLEM, G. The Messianic Idea in Judaism And Other Essays on Jewish Spirituality. New York: Schocken Books, 1995. [ Links ]

TAUBES, Jacob. Die politische Theologie des Paulus: Vorträge, gehalten an der Forschungsstätte der Evangelischen Studiengemeinschaft in Heidelberg,23-27. Februar 1987. Hrsg. von Aleida und Jan Assmann. München: Fink, 1993. [ Links ]

1Preferimos utilizar aqui a tradução proposta pela Bíblia de Jerusalém. No texto de Agamben, na versão em português, consta um erro de tradução. No original italiano consta: “Uno è stato chiamato circonciso? Che non se tiri il prepuzio.” (AGAMBEN, 2000, p.25). Essa frase, obviamente, não faz sentido se nos ativermos na tradução do texto em português: “Um foi chamado circunciso? Que não se retire o prepúcio.” (AGAMBEN, 2016, p.33). Estando sem o prepúcio, não faz nenhum sentido exortar alguém a não retirar o prepúcio. No original grego do trecho 1 Cor, 7,18 consta: “περιτετμημένος τις ἐκλήθη μὴ ἐπισπάσθω” (AGAMBEN, 2016, p.187). No entanto, a formulação “μὴ ἐπισπάσθω” que Agamben traduz por “Che non se tiri il prepuzio”, na verdade quer dizer, literalmente, “que não se puxe o prepúcio”. O verbo tirare tem inicialmente este sentido de puxar, e não de retirar. E sabe-se de vários relatos sobre judeus que, em tempos de perseguição, tentavam dissimular o fato de serem circuncidados, puxando de volta o prepúcio com pequenos artefatos de ferro. Em nossa pesquisa, identificamos uma referência explícita a esse costume de “reestabelecer seu prepúcio” no Primeiro Livro dos Macabeus (1Mc, 1,15). A tradução proposta pela Bíblia de Jerusalém está, pois, exata.

Recebido: 24 de Fevereiro de 2022; Aceito: 15 de Junho de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons