Introdução
O desenvolvimento da cultura ocidental - alicerçada especialmente em processos de colonização, evangelização, escolarização, devastação ambiental, epistemicídio1 e genocídio - levou ao estabelecimento de um paradigma hegemônico de conhecimento, que está vinculado a uma forma europeia e masculina de compreender e atuar no mundo. O que não se encaixa nesse parâmetro eurocêntrico é entendido como “primitivo” e deve ser superado para que se tenha acesso ao “legítimo conhecimento”. A colonialidade do saber (QUIJANO, 2005) contribui para a desumanização de grupos através da inferiorização de seus saberes e práticas, e, por meio do epistemicídio a que são submetidos, promove o silenciamento das alternativas ao saber dominante, que tem produzido o esgotamento das condições de vida no planeta. Tal esgotamento tem a ver com uma forma monocultural e reducionista de entender a vida, a produção de alimentos, a ciência etc. Como afirma Ramón Grosfoguel (2016, p. 25), “o privilégio epistêmico do homem ocidental foi construído às custas do genocídio/epistemicídios dos sujeitos coloniais”, de maneira que o racismo/sexismo que estrutura o conhecimento ocidentalizado hoje está relacionado
ao genocídio/epistemicídio contra muçulmanos e judeus na conquista de Al-Andalus, contra povos nativos na conquista das Américas, contra povos africanos na conquista da África e a escravização dos mesmos nas Américas e, finalmente, contra as mulheres europeias queimadas vivas acusadas de bruxaria. (GROSFOGUEL, 2016, p. 25)
Ou seja, genocídios e epistemicídios foram as ferramentas fundamentais para o colonialismo e, consequentemente, para o mundo moderno capitalista se afirmar enquanto a única possibilidade. Quando consideramos como o conhecimento é entendido dentro das instituições de ensino em geral, tanto universidades quanto escolas, vemos a reprodução desse epistemicídio, o que traz consequências para uma sociedade estruturada pela violenta herança colonial. A colonialidade do saber está nos currículos escolares no que diz respeito aos temas, autores e, inclusive, na metodologia adotada. Assim, em geral, as escolas e universidades brasileiras acabam formando sujeitos subalternos ao saber dominante e que ignoram o potencial dos saberes locais.
O saber hegemônico é entendido por Vandana Shiva como monocultura da mente. A imposição de uma história única é perigosa tanto para a autonomia do indivíduo quanto para as relações sociais, como aponta Chimamanda Adichie (2009):
Poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva daquela pessoa. O poeta palestino Mourid Barghouti escreve que se você quer destituir uma pessoa, o jeito mais simples é contar sua história, e começar com “em segundo lugar”. Comece uma história com as flechas dos nativos americanos, e não com a chegada dos britânicos, e você tem uma história totalmente diferente. (ADICHIE, 2009, n. p.)
Tratar o conhecimento de forma monocultural, cujas histórias são contadas a partir de lugares hegemônicos como vemos no Brasil, colabora para o apagamento e silenciamento de outras histórias, que inclusive dizem muito mais sobre nossas vidas e são mais relevantes para a construção de um futuro democrático e plural em nosso território. Nesse sentido, este artigo procura caminhos para que outras histórias possam emergir no cotidiano escolar, repensando o papel do/a/e educador/a/e e olhando para aquilo considerado daninho como potencial de rompimento com a invenção de um “BraZil” como “terra do samba, da mulata e futebol”, subalterno aos interesses das classes dominantes de países imperialistas.
Miguel Arroyo (2012) afirma que:
Os currículos, as avaliações e a criatividade docente que se tornaram nas últimas décadas espaços de disputa, de renovação e criatividade de coletivos foram fechados e cercados para serem tratados como territórios de controle, não mais de disputa. Territórios sagrados a serem cultuados. Logo, controlados com novos rituais. O próprio campo do conhecimento objeto de disputa político-libertadora passa a ser objeto de controle. (ARROYO, 2012, p. 50)
Concordamos com Arroyo que os currículos e a docência são territórios de disputa. Ele aponta como existe uma relação tensa dos/as/es docentes com o currículo, pois “Os conteúdos, as avaliações, o ordenamento dos conhecimentos em disciplinas, níveis, sequências caem sobre os docentes e gestões como um peso. Como algo inevitável, indiscutível. Como algo sagrado” (ARROYO, 2012, p. 34-35). Essa visão do currículo como resultado daquilo que é sagrado e indiscutível impede as autorias no território dos currículos de formação e da educação básica. Essa é uma visão sagrada, messiânica e salvadora do sistema escolar e do currículo. Como ele ressalta, “Em toda disputa por conhecimentos estão em jogo disputas por projetos de sociedade” (ARROYO, 2012, p. 38). Assim como Arroyo, entendemos que “As disputas no território do currículo e da docência são disputas éticas” (ARROYO, 2012, p. 40), e é a partir dessa compreensão que este artigo foi pensado. Qual educação faz sentido no contexto em que nos encontramos? Quais escolhas éticas devemos fazer? Todo currículo é resultado de uma seleção em que muito fica de fora, o que “entra” é uma escolha ética que diz respeito com o quê e quem queremos dialogar.
Neste artigo, discutiremos as consequências de uma educação monocultural a fim de propor uma abordagem que fomenta a pluralidade de saberes através da filosofia erva-daninha. Inicialmente analisaremos a maneira como as diferenças são entendidas na escola e como seu silenciamento está vinculado a uma forma racista de entender o conhecimento, que é herança colonial. Na segunda seção do artigo, refletiremos sobre a colonialidade do saber como uma monocultura da mente, isto é, uma percepção unilateral do mundo que determina um modo único de vida. A percepção monocultural trata os saberes hegemônicos como ervas-daninhas que precisam ser eliminadas. Por fim, na última seção, pretendemos repensar o lugar daquilo que é considerado erva-daninha para o saber hegemônico apontando seu potencial para outros mundos possíveis diante das crises contemporâneas. Dessa forma, pretendemos ressignificar o que de fato é “daninho” para os desafios que o mundo de hoje nos impõe. Temos como objetivo apontar como uma educação plural é fundamental para lidar com os problemas contemporâneos de maneira humanizada, rompendo com a lógica epistemicida e genocida.
Racismo, epistemicídio e silenciamento na educação
Tomaz Tadeu da Silva (1999) entende o currículo como uma questão de saber, poder e identidade porque
O currículo tem significados que vão muito além daqueles aos quais as teorias tradicionais nos confinaram. O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade. (SILVA, 1999, p. 150)
No livro “Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo” (1999), Silva apresenta um panorama geral dos debates que envolveram o currículo nas últimas décadas, abordando as teorias tradicionais, críticas e pós-críticas. Enquanto as teorias tradicionais se preocupam especialmente com eficiência, focando sua análise no ensino-aprendizagem e nas metodologias, as teorias críticas colaboram para o entendimento do currículo na sua relação com o poder, focando a análise na busca por currículos emancipadores. Com as teorias pós-críticas há um alargamento dos debates, abarcando-se questões sobre gênero, raça, etnia, sexualidade etc., rompendo com “a ideia de um ‘verdadeiro conhecimento’ que leva a emancipação e a noção de ‘consciência’”, também “olham com desconfiança para conceitos como alienação, emancipação, libertação, autonomia, que supõem, todos, uma essência subjetiva que foi alterada e precisa ser restaurada” (SILVA, 1999, p. 149-150). Como Silva destaca, “a epistemologia é sempre uma questão de posição. [...] não é nunca neutra, mas reflete sempre a experiência de quem conhece” (SILVA, 1999, p. 94). No campo das contribuições das teorias pós-críticas, Silva aponta sob quais bases o currículo hegemônico está fundamentado:
O texto curricular, entendido aqui de forma ampla o livro didático e paradidático, as lições orais, as orientações curriculares oficiais, os rituais escolares, as datas festivas e comemorativas - está recheado de narrativas nacionais, étnicas e raciais. Em geral, essas narrativas celebram os mitos da origem nacional, confirmam o privilégio das identidades dominantes e tratam as identidades dominadas como exóticas ou folclóricas. Em termos de representação racional, o texto curricular conserva, de forma evidente, as marcas da herança colonial. O currículo é, sem dúvida, entre outras coisas, um texto racial. (SILVA, 1999, p. 101-102)
O currículo existente é a própria encarnação das características modernas. Ele é linear, sequencial, estático. Sua epistemologia é realista e objetivista. Ele é disciplinar e segmentado. O currículo existente está baseado numa separação rígida entre “alta” cultura e “baixa” cultura, entre conhecimento científico e conhecimento cotidiano. Ele segue fielmente o script das grandes narrativas da ciência, do trabalho capitalista e do estado-nação. No centro do currículo existente está o sujeito racional, centrado e autônomo da Modernidade. (SILVA, 1999, p. 115)
O currículo oficial valoriza a separação entre sujeito e conhecimento, o domínio e o controle, a racionalidade e a lógica, a ciência a técnica, o individualismo e a competição. Todas essas características refletem as experiências e os interesses masculinos, desvalorizando, em troca, as estreitas conexões entre quem conhece e o que é conhecido, a importância das ligações pessoais, a intuição e o pensamento divergente, as artes e a estética, o comunitarismo e a cooperação - características que estão, todas, ligadas às experiências e aos interesses das mulheres. (SILVA, 1999, p. 94)
Portanto, o currículo hegemônico, que está envolto em disputas, é um texto racial, moderno e masculino. Arroyo chama atenção que:
Os currículos escolares mantêm conhecimentos superados, fora da validade e resistem à incorporação de indagações e conhecimentos vivos, que vêm da dinâmica social e da própria dinâmica do conhecimento. É dever dos docentes abrir os currículos para enriquecê-los com novos conhecimentos e garantir o seu próprio direito e o dos alunos à rica, atualizada e diversa produção de conhecimentos e de leituras e significados. (ARROYO, 2012, p. 37)
Como ele destaca, “o campo do conhecimento sempre foi tenso, dinâmico, aberto à dúvida, à revisão e superação de concepções e teorias contestadas por novas indagações que vêm do real” (ARROYO, 2012, p. 38). E “Há tantos conhecimentos vivos pressionando, disputando o território dos currículos” (ARROYO, 2012, p. 38), pois “nessas escolas chegam vidas precarizadas que contrastam e contestam o culto à missão salvadora que as ciências e tecnologias dos currículos prometem superar e extinguir” (ARROYO, 2012, p. 39). E enquanto isso continuar ocorrendo, sempre haverá
coletivos de profissionais e de educandos contestando a visão sagrada, miraculosa dos conteúdos dos currículos e das avaliações. Teremos disputas por outros conhecimentos, outras racionalidades, outro material didático e literário; por outros projetos de sociedade, de cidade ou do campo; por projetos de emancipação; por explorar as potencialidades libertadoras do conhecimento. Mas que conhecimento liberta? (ARROYO, 2012, p. 40)
No entanto, quando mais organizados/as/es estão os/as/es docentes, maior é a reação conservadora, tal qual a que vivemos no Brasil e impactou decisivamente a educação nos últimos anos, expressa, por exemplo, no movimento Escola Sem Partido. A reação conservadora vem na forma de um discurso propagado pela mídia e pelos/as gestores de que os/as/es docentes são antiéticos/as/es, descomprometidos/as/es, irresponsáveis, desqualificados/as/es etc. Infelizmente, existe pouco espaço de autonomia para os/as/es docentes decidirem por caminhos mais éticos para os/as/es estudantes, como, por exemplo, no que diz respeito à reprovação:
Para os gestores, ser docente competente é ser fiel a essa visão sagrada dos conteúdos, de sua disciplina, levá-los a sério, ser exigente, cumprir com fidelidade todos os processos e rituais. Inclusive o ritual de avaliação-aprovação-reprovação, sacrificando a diversidade de culturas, de vivências, de processos de aprendizagem, quebrando identidades em uma fase tão delicada de sua formação, a infância-adolescência. (ARROYO, 2012, p. 46)
Porém, para nós, tal qual para Arroyo, “Ser docente-educador não é ser fiel a rituais preestabelecidos, mas se guiar pela sensibilidade para o real, a vida real, sua e dos educandos e criar, inventar, transgredir em função de opções políticas, éticas” (ARROYO, 2012, p. 51-52). Se o currículo forma identidade, é fundamental fazermos escolhas ético-políticas adequadas aos contextos em que nos localizamos. E isso passa por tornar os currículos, métodos e práticas plurais, representando a diversidade de povos e realidades que envolvem o território em que estamos, também, valorizando os saberes e estratégias locais. Como afirma o português Boaventura de Sousa Santos (2007, p. 54), “nosso ensino nas universidades, nossa maneira de criar teoria, reprime totalmente o conhecimento próprio, o deslegitima, o desacredita, o inviabiliza”.
O modelo de escola que temos na sociedade atual começa a se delinear com a ascensão da burguesia, e, por outro lado, com foco na vida urbana e no comércio que estrutura o início do capitalismo. A formalização do ensino tinha como objetivo desenvolver o uso correto da razão para a obtenção de conhecimento, mas também fornecer uma instrução mínima para o trabalho.
A própria noção de “cultura” se altera com o iluminismo trazendo uma compreensão monocultural. A palavra “cultura” sempre carregou em seu significado muitos paralelos com a ação de cultivar os saberes; assim como o plantio, o estudo exige cuidado e dedicação cotidiana para, com paciência, colher os frutos no futuro. “Cultura” vem do latim e significa cultivar, ação de tratar ou ter cuidado com animais ou a colheita. Entretanto, com a emergência do pensamento iluminista, por defender a razão como forma de progresso da humanidade, a palavra “cultura” passa a ser associada ao processo de instrução e evolução, numa maneira de entender a soma de saberes acumulados de forma abstrata, distanciando-se da sua compreensão ligada ao cultivo e à prática cotidiana. Nesse sentido, o “selvagem” é o “sem cultura” que deve ser instruído pelos homens “civilizados” para sair das trevas da irracionalidade e inferioridade.
Do mesmo modo as escolas de hoje veem as/os/es estudantes como “sem cultura” e, por isso, precisam ser educadas/os/es. O ideal de “cultura” eurocêntrico se pauta apenas numa única forma de compreender a realidade, que inclusive separa natureza e cultura para distanciá-la definitivamente dos saberes populares e vinculá-la a um processo de erudição, resultando na fragmentação entre vida e saber. E, assim, ao invés de ampliar e agregar cultura, as escolas podem funcionar como um reduto de aculturação, deslegitimando e criminalizando os saberes próprios das/os/es estudantes e as/os/es obrigando a anularem progressivamente sua própria cultura.
Essa é uma visão restrita de cultura, pois a entende de maneira fragmentada da vida a partir de uma única perspectiva, resumindo-se à cultura dos colonizadores. Os currículos e métodos pedagógicos escolares em geral refletem a cultura eurocêntrica; além de terem como referência majoritária apenas autores homens, brancos, europeus ou norte-americanos, baseiam-se em uma concepção específica de cultura, racionalidade e conhecimento, não oferecendo espaço para que outras formas de pensamento se manifestem. A universalização da perspectiva europeia desconsidera a possibilidade de existirem outras racionalidades e formas de aprender e entender o mundo. A monocultura curricular leva a uma relação subalterna, pois dessa forma estudantes são ensinados/as/es que sua realidade não é relevante e que não são capazes de elaborar explicações válidas sobre ela. A monocultura em todas as suas dimensões pode ser resumida como uma forma restrita de lidar com as diferenças. Na escola, quem responde diferente erra. Nessa perspectiva, não há saber e nem cultura fora dos currículos escolares e nem são consideradas outras formas de aprender e também ensinar.
Nesse processo a escola vai silenciando. Quando Monique Evelle2 fala “Nunca fui tímida, fui silenciada”, associa isso ao seu processo escolar enquanto estudante negra. Sobre esse ponto, tem muitas contribuições o trabalho da filósofa Sueli Carneiro (2005) acerca do epistemicídio no espaço escolar:
Para nós, porém, o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso a educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da auto-estima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o conhecimento “legítimo” ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a seqüestra, mutila a capacidade de aprender etc.
É uma forma de seqüestro da razão em duplo sentido: pela negação da racionalidade do Outro ou pela assimilação cultural que em outros casos lhe é imposta.
Sendo, pois, um processo persistente de produção da inferioridade intelectual ou da negação da possibilidade de realizar as capacidades intelectuais, o epistemicídio nas suas vinculações com as racialidades realiza, sobre seres humanos instituídos como diferentes e inferiores constitui, uma tecnologia que integra o dispositivo de racialidade/biopoder, e que tem por característica específica compartilhar características tanto do dispositivo quanto do biopoder, a saber, disciplinar/ normalizar e matar ou anular. É um elo de ligação que não mais se destina ao corpo individual e coletivo, mas ao controle de mentes e corações. (CARNEIRO, 2005, p. 97)
A filósofa Sueli Carneiro chama a atenção para o modo como a escola tende a ser um espaço hostil para pessoas negras/os/es e indígenas promovendo mais epistemicídio do que educação. Entre tais fatores podemos citar o currículo eurocêntrico que produz um sentimento de inferioridade intelectual destituindo tais povos de racionalidade, como aponta a filósofa, através da violência cotidiana que ocorre por parte de estudantes e docentes e também da maior perseguição moral com as/os/es estudantes negras/os/es.
Nesse sentido, gostaríamos de trazer as contribuições de bell hooks (2019), quando compara as diferenças entre o sistema educacional segregacionista e as escolas decorrentes da integração social. Hooks explica que durante o período em que as escolas eram segregadas, o ato de educar era visto por negras/os/es como uma pedagogia revolucionária de resistência, profundamente anticolonial, fundamentalmente política, uma forma de contribuir com a comunidade estimulando estudantes a “nutrir seus intelectos”, entendendo a dedicação ao estudo como “um ato contra-hegemônico, um modo fundamental de resistir a todas as estratégias brancas de colonização racista” (HOOKS, 2019, p. 10-11). Nessa perspectiva, as professoras - bell hooks afirma que quase na totalidade eram mulheres negras - se empenhavam em conhecer os/as/es estudantes: “Elas conheciam nossos pais, nossa condição econômica, sabiam a que igreja íamos, como era nossa casa e como nossa família nos tratava” (HOOKS, 2019, p. 11). No caso de hooks, como suas professoras eram as mesmas de seus pais, a capacidade de aprender era contextualizada “dentro da estrutura de experiência das várias gerações da família” (HOOKS, 2019, p. 11). Hooks relata que nesta época aprender era pura alegria, no entanto, isso mudou radicalmente com a integração social:
De repente, o conhecimento passou a se resumir à pura informação. Não tinha relação com o modo de viver e de se comportar. Já não tinha ligação com a luta antirracista. Levados de ônibus a escolas de brancos, logo aprendemos que o que se esperava de nós era a obediência, não o desejo ardente de aprender. A excessiva ânsia de aprender era facilmente entendida como uma ameaça à autoridade branca.
Quando entramos em escolas brancas, racistas e dessegregadas, deixamos para trás um mundo onde professores acreditavam que precisavam de um compromisso político para educar corretamente as crianças negras. De repente, passamos a ter aula com professores brancos cujas lições reforçavam os estereótipos racistas. Para as crianças negras, a educação já não tinha a ver com a prática de liberdade. Quando percebi isso, perdi o gosto pela escola. A sala de aula já não era um lugar de prazer ou de êxtase. A escola ainda era um ambiente político, pois éramos obrigados a enfrentar a todo momento os pressupostos racistas dos brancos, de que éramos geneticamente inferiores, menos capacitados que os colegas, até incapazes de aprender. Apesar disso, essa política já não era contra-hegemônica. O tempo todo, estávamos somente respondendo e reagindo aos brancos.
Essa transição das queridas escolas exclusivamente negras para escolas brancas onde os alunos negros eram sempre vistos como penetras, como gente que não deveria estar ali, me ensinou a diferença entre a educação como prática de liberdade e a educação que só trabalha para reforçar a dominação. (HOOKS, 2019, p. 12)
Através dos depoimentos de Monique Evelle e bell hooks é possível perceber o quanto é necessário que a inclusão esteja para além da presença, mas que todos/as/es tenham suas subjetividades e saberes vistos como relevantes e não apenas inferiorizados/as/es pelas hierarquias monoculturais. Ou seja, além de compreendermos a importante tarefa da universalização da educação como um direito humano, é preciso caminhar no sentido de uma educação em Direitos Humanos que esteja de acordo com a pluralidade de humanidades que existem. Um elemento muito importante que aparece no escrito de hooks é que a escolarização para a obediência não deixa de ser política, porém, no caso apresentado, parte de uma política de dominação racista. Embora faça parte do imaginário comum que a escola não é um ambiente político, não há possibilidade de uma educação neutra, pois sempre se parte de concepções de ensino e conhecimento que carregam muitos pressupostos, os quais partem de uma relação específica com o mundo que não pode ser entendida como neutra.
Diante do cenário descrito acima, podemos dizer que há pluralidade na escola? Estudantes são estimuladas/os/es a pensar suas próprias realidades? São incentivadas/os/es a elaborar um pensamento próprio? São estimuladas/os/es a refletir sobre os problemas contemporâneos? Quando refletimos profundamente sobre essas questões fica evidente que as escolas em geral se ocupam mais da domesticação das/os/es estudantes do que sua formação. É um processo contínuo de exclusão das diferenças, através da negação da sua existência e do silenciamento.
É possível notar que a escola não abarca as singularidades porque não pensa a diferença em si mesma, esta sempre é vista em referência a um padrão de normalidade. A diferença é entendida como um erro, um desvio da norma, algo que precisa ser corrigido. Nesse sentido, as escolas não fomentam o direito de viver as singularidades, mas apenas o direito de ascender ao que se entende como universal.
Uma educação que não fomenta que os sujeitos pensem sua própria realidade, ou que impõe que o entendimento do nosso cotidiano deve ser mediatizado por saberes eurocêntricos, não permitirá que elaboremos respostas à altura dos desafios contemporâneos e locais. Apenas pensando coletivamente e somando nossas diferenças podemos construir algo que dê conta do mundo em crise que está posto e cuja tendência é piorar nas próximas décadas. O contexto de pandemia iniciado no ano de 2020 é uma pequena amostra do que está por vir.
Quijano (1992, p. 19, tradução nossa) sugere que o que precisa ser feito é “liberar a produção de conhecimento, reflexão e comunicação, os buracos da racionalidade/modernidade européia […] para dar lugar a uma nova comunicação intercultural, uma troca de experiências e significados”. Mignolo (2017, p. 13) ressalta que a “opção descolonial não visa ser a única opção”, não é uma “verdade irrevogável da história que precisa ser imposta pela força”, mas configura-se como uma opção entre tantas outras. Fazendo alusão a uma frase do movimento zapatista mexicano, Mignolo (2017, p. 13) destaca que a descolonização é um tratado político que se pretende ser “um mundo em que muitos mundos coexistirão”. Até porque “nada menos racional, finalmente, do que a afirmação de que a visão de mundo específica de um determinado grupo étnico seja imposta como racionalidade universal, embora esse grupo étnico seja chamado de Europa Ocidental” (QUIJANO, 1992, p. 19-20).
Relações entre a colonialidade do saber e a monocultura do solo e da mente
O colonialismo estabeleceu um padrão de poder mundial que permanece e cujo principal eixo é caracterizar e hierarquizar os povos a partir da invenção da categoria de raça, que, como ressalta o sociólogo peruano Aníbal Quijano (2014, p. 106, aspas do autor), “nasce com a ‘América’”. Esse novo padrão de poder mundial que se origina do colonialismo é chamado de colonialidade do poder (QUIJANO, 1997). Como explica Ramón Grosfoguel (2010, p. 467), “a colonialidade permite-nos compreender a continuidade das formas coloniais de dominação após o fim das administrações coloniais, produzidas pelas culturas coloniais e pelas estruturas sistema-mundo capitalista moderno/colonial”. A divisão império/colônia transcende o colonialismo através das relações globais de poder, saber e acumulação de capital. Como explica Quijano (2005):
A globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial. Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população mundial de acordo com a idéia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo. Esse eixo tem, portanto, origem e caráter colonial, mas provou ser mais duradouro e estável que o colonialismo em cuja matriz foi estabelecido. Implica, conseqüentemente, num elemento de colonialidade no padrão de poder hoje hegemônico. (QUIJANO, 2005, p. 117)
A colonialidade consiste no padrão de poder hegemônico na atualidade e estrutura o sistema-mundo que vivemos a partir da ideia de raça. Tal padrão de poder global fundamenta-se numa racionalidade específica, o eurocentrismo, que serviu para legitimar práticas antigas de dominação e em benefício exclusivamente dos mesmos grupos sociais. E, desse modo, a “elaboração intelectual do processo de modernidade produziu uma perspectiva de conhecimento e um modo de produzir conhecimento que demonstram o caráter do padrão mundial de poder: colonial/moderno, capitalista e eurocentrado” (QUIJANO, 2005, p. 126). Assim, podemos dizer que esse padrão de poder hegemônico ao mesmo tempo desumaniza povos não europeus e silencia suas cosmopercepções3.
Com a invenção da ideia de que os povos não europeus eram naturalmente inferiores, que está no cerne da invenção da concepção de raça, a violência contra eles assumiu contornos de historicamente justa. Em prol de um suposto “progresso”, europeus realizaram uma repressão sistemática no âmbito das crenças de outros povos, deslegitimando suas ideias, símbolos e conhecimentos específicos. O principal alvo da repressão eurocêntrica foram os “modos de conhecer, de produzir conhecimento, de produzir perspectivas, imagens e sistemas de imagens, símbolos, modos de significação” (QUIJANO, 1992, p. 12, tradução nossa). Assim, impondo os padrões europeus de expressão e crenças, “que serviam não só para impedir a produção cultural do meio dominado, mas também como forma eficaz de controle social e cultural, quando a repressão imediata deixou de ser constante e sistemática” (QUIJANO, 1992, p. 12, tradução nossa). Contudo, a colonialidade do poder de que fala Quijano está atrelada a uma colonialidade do ser e do saber.
A colonialidade do saber pode ser entendida a partir das discussões feitas pela filósofa e física indiana Vandana Shiva (2003). O saber hegemônico é uma monocultura da mente, haja vista que parte de um contexto específico e estipula como possibilidade uma única forma de entender o mundo e, consequentemente, de viver. Nesse sentido, a monocultura do solo é reflexo de uma mentalidade monocultural que foi o elemento-chave da expansão europeia e do delineamento da modernidade. Embora o discurso dominante afirme a ideia de superioridade europeia, o sistema de plantation, baseado na monocultura para exportação através de grandes latifúndios e de trabalho escravo, está na raiz da afirmação da Europa como centro durante a colonização.
O saber ocidental dominante é uma monocultura mental porque “Descarta uma pluralidade de caminhos que levam ao conhecimento da natureza e do universo” (SHIVA, 2003, p. 80). Isso se expande a tudo que caiba na manutenção desse sistema-mundo capitalista. Nesse sentido, a monocultura não se dá apenas no modo de produção alimentícia, mas é a própria lógica do pensamento moderno que consiste numa percepção unilateral e fragmentada do mundo e dos seres que o permeiam, como explica Shiva (2003) através do exemplo da silvicultura:
a monocultura mental talvez seja mais bem exemplificada no saber e na prática da silvicultura e da agricultura. A silvicultura “científica” e a agricultura “científica” dividem artificialmente a planta em domínios separados sem partes em comum, com base nos mercados isolados de bens aos quais fornecem matéria-prima e recursos. Nos sistemas locais de saber, o mundo vegetal não é artificialmente dividido entre uma floresta que fornece madeira comercial e terra cultivável que fornece mercadorias em forma de alimentos. A floresta e o campo são um continuum ecológico, e as atividades realizadas na floresta contribuem para satisfazer às necessidades alimentares da comunidade local, enquanto a própria agricultura é modelada de acordo com a ecologia da floresta tropical. Alguns habitantes das florestas obtêm comida diretamente de seu meio ambiente, enquanto muitas comunidades praticam a agricultura fora da floresta, mas dependem da fertilidade da floresta para a fertilidade da terra cultivável. (SHIVA, 2003, p. 25-27)
Em geral, os sistemas locais se baseiam numa visão ampla dos processos de agricultura, o que permite a seus membros perceber e saber utilizar um número maior de plantas do que o saber científico tem catalogadas e patenteadas. A monocultura da percepção faz com que aqueles que legitimam o pensamento dominante olhem para a floresta a partir apenas de sua exploração comercial, entendendo, por exemplo, a madeira como produto principal e não na sua relação com a floresta e com aquilo que ela fornece para o solo e para as diferentes práticas da comunidade. Tal perspectiva reduz a multiplicidade da floresta a poucas espécies que tenham valor comercial como produto morto. Essa é uma visão fragmentada da floresta porque não entende que as plantas e árvores se relacionam - e muitas vezes dependem totalmente - das trocas que estabelecem com outras plantas e seres que as rodeiam. É por isso que as monoculturas do solo precisam de tantos insumos para se manterem, pois estão deslocadas de suas cosmorelações intrínsecas com as florestas.
Nessa perspectiva, a floresta natural é vista como “caos” e aquilo que ela tem para oferecer na sua multiplicidade e que não apresenta possibilidade de lucro à exploração comercial é entendido como “erva-daninha” que precisa ser eliminada com veneno para garantir a alta produtividade. Do mesmo modo que plantas que não são exploradas comercialmente, na floresta são vistas como inferiores e improdutivas, as sementes das plantas nativas que fazem parte do cotidiano tradicional de diversas comunidades locais são vistas como inferiores e primitivas. Shiva (2003) cita como exemplo a “batua”, planta acessível na Índia e que cresce associada ao trigo e, ainda que seja rica em vitamina A e no país 40 mil crianças fiquem cegas todo ano por falta desta vitamina, é eliminada com herbicida. Nesse sentido, são ervas-daninhas as plantas que emergem nas monoculturas do solo, mas também o estilo de vida e os saberes que fazem parte das culturas das comunidades locais:
Além de tornar o saber local invisível ao declarar que não existe ou não é legítimo, o sistema dominante também faz as alternativas desaparecerem apagando ou destruindo a realidade que elas tentam representar. A linearidade fragmentada do saber dominante rompe as integrações entre os sistemas. [...] Desse modo, o saber científico dominante cria uma monocultura mental ao fazer desaparecer o espaço das alternativas locais, de forma muito semelhante à das monoculturas de variedades de plantas importadas, que leva à substituição e destruição da diversidade local. O saber dominante também destrói as próprias condições para a existência de alternativas, de forma muito semelhante à introdução de monoculturas, que destroem as próprias condições de existência de diversas espécies. (SHIVA, 2003, p. 25)
Como afirma Santos (2007, p. 29), quando o saber se constitui como monocultura “Reduz a realidade porque ‘descredibiliza’ não somente os conhecimentos alternativos mas também os povos, os grupos sociais cujas práticas são construídas nesses conhecimentos alternativos”. Os saberes locais são entendidos pelo saber dominante como “primitivos”, como erva-daninha a ser eliminada para que o desenvolvimento e o progresso ocorram, sem questionar a que custo acontecem. Nesse sentido, saberes locais, modos de vida e povos não hegemônicos são considerados daninhos, desumanizados e descartados pela lógica desenvolvimentista hegemônica.
Do mesmo modo, os povos que habitavam essas florestas são também descartados no âmbito do conhecimento, mas recrutados para o trabalho braçal semiescravo. A eliminação por veneno ocorre literalmente se considerarmos que muitas comunidades são vítimas dos aviões que arremessam venenos, o que leva à morte de diversas pessoas, mas também porque as principais vítimas de doenças graves, como câncer decorrentes de lavouras cheias de venenos, são os trabalhadores sem opções. A eliminação dos saberes locais deixa os povos nativos sem escolha, pois a devastação ambiental, e principalmente a violência, ameaças, genocídio, assassinatos de líderes, entre outros, fazem com que não tenham como continuar em suas terras e precisem migrar para as cidades, viver de trabalho sub-remunerado na lavouras dos “proprietários” que invadiram as florestas. A autonomia no âmbito do conhecimento permite uma compreensão contextualizada e sustentável das comunidades, pois sabem suas reais necessidades e possibilidades. Por isso, o saber dominante retira as alternativas, elimina as ervas-daninhas para que não haja opções. Como destaca Shiva (2003):
Os princípios correntes da administração florestal científica levam à destruição do ecossistema das florestas tropicais porque se baseiam no objetivo de modelar a diversidade da floresta viva à uniformidade da linha de montagem. Em vez de a sociedade tomar a floresta como modelo, como acontece nas culturas florestais, é fábrica que serve de modelo à floresta. [...] As florestas tropicais, quando seu modelo é a fábrica e quando são usadas como uma mina de madeira, passam a ser um recurso não renovável. Os povos tropicais também se tornam um lixo histórico descartável. Em lugar do pluralismo cultural e biológico, a fábrica produz monoculturas sem sustentabilidade na natureza e na sociedade. Não há lugar para o pequeno; o insignificante não tem valor. [...] Aqueles que não se ajustam à uniformidade são declarados incompetentes. A simbiose cede lugar à competição, à dominação e à condição descartável. Não há sobrevivência possível para a floresta ou seu povo quando eles se transformam em insumo para a indústria. (SHIVA, 2003, p. 32-33)
Em outras palavras, ao invés da floresta em simbiose servir de modelo para a sociedade, a uniformidade da linha de montagem das fábricas que serve de modelo às florestas. Desse modo, a natureza e os povos que vivem em simbiose com a floresta são vistos como descartáveis. E aqueles que não se submetem a tal uniformização são entendidos como “incompetentes” ou “preguiçosos”, como vemos nos discursos violentos e desumanizadores dirigidos especialmente aos povos indígenas.
A fragmentação das espécies vegetais também leva a uma percepção de que elas competem entre si como se uma quisesse destruir a outra. E, nesse sentido, para garantir a qualidade do plantio, a ciência moderna desenvolve uma enorme variedade de herbicidas e “sementes milagrosas” transgênicas resistentes a eles, o que permite ao agricultor combater as ervas-daninhas. É preciso salientar que “A perspectiva unidimensional do saber dominante está baseada nas ligações íntimas da ciência moderna com o mercado” (SHIVA, 2003, p. 42). Desse modo, o saber dominante cria insustentabilidade, pois suas sementes não toleram outros sistemas e não são capazes de se reproduzir, obrigando o agricultor a comprá-las em toda safra, ficando refém das empresas que as desenvolveram. Do mesmo modo, ao eliminar os saberes locais, os povos camponeses ficam reféns do saber dominante do sistema.
A monocultura mental se baseia na imposição de uma forma única de entender e agir no mundo levando a um empobrecimento tanto intelectual quando da natureza no que diz respeito à diversidade e autonomia dos sujeitos. Ao controlar a visão de mundo das pessoas torna também seus comportamentos mais previsíveis e passíveis de serem manipulados, e, assim, controla-se também a sua vida, pois os problemas e as próprias soluções já estão previstos dentro do paradigma do saber ocidental dominante e não é possível pensar fora desta lógica. Como disse Shiva em entrevista (2014):
A cegueira que nos impede de ver tanto a riqueza da diversidade quanto a própria diversidade é o que chamo de monocultura da mente. A monocultura da mente é, literalmente, a raiz da ditadura sobre a Terra. É um instrumento de poder e controle. Não produz mais. Controla mais. (SHIVA, 2014, n. p.)
O sistema dominante se utiliza de políticas de eliminação e não de diálogo com os outros saberes. Porém, o próprio sistema dominante é também um saber local baseado em uma determinada cultura, classe social e gênero. Podemos dizer, então, que a monocultura da mente e do solo é produtora do fim do mundo, pois a uniformidade que impõe, leva ao esgotamento ambiental e da vida como um todo.
O filósofo quilombola Antônio Bispo dos Santos traz outra dimensão do pensamento monocultural sobre as ervas-daninhas no livro “Colonização, Quilombos: modos e significados” (2015). Nessa obra ele busca “compreender as diferenças e a interlocução entre a cosmovisão monoteísta dos colonizadores e a cosmovisão politeísta dos contra colonizadores” (SANTOS, 2015, p. 20). O que Shiva chama de monocultura mental, Santos (2015, p. 94) entende como o “pensamento monista dos povos colonizadores”. Ele evidencia que tal pensamento monista é consequência do monoteísmo, trazendo à tona uma perspectiva sobre o trabalho e as ervas-daninhas relevante para a análise que estamos fazendo, como é possível notar no seguinte trecho da Bíblia citado e comentado por Santos (2015) a seguir:
Javé deus disse para o homem: “já que você deu ouvidos à sua mulher e comeu da árvore cujo fruto eu lhe tinha proibido comer, maldita seja a terra por sua causa. Enquanto você viver, você dela se alimentará com fadiga. A terra produzirá para você espinhos e ervas daninhas, e você comerá a erva dos campos. Você comerá seu pão com o suor do seu rosto até que volte para terra, pois dela foi tirado, você pó e ao pó voltará”. (GÊNESIS 3:17).
Por bem dizer, o Deus da Bíblia inventou o trabalho e o fez como um instrumento de castigo. Daí entendemos o caráter escravagista de qualquer sociedade que venha a construir seus valores a partir das igrejas originárias da Bíblia.
O Deus da Bíblia, ao expedir e executar essa sentença, condenou o seu povo a penas perpétuas e indefensáveis, portanto, precisamos analisar essa leitura com certo detalhamento. Senão vejamos: ao amaldiçoar a terra e determinar uma relação fatigante entre o seu povo e a terra, classificando os frutos da terra como espinhos e ervas daninhas e impondo aos condenados que não comam de tais frutos, só podendo comer das ervas por eles produzidas no campo com o suor do seu próprio corpo, o Deus da Bíblia além de desterritorializar o seu povo, também os aterrorizou de tal forma que não será nenhum exagero dizer que nesse momento ele inventou o terror psicológico que vamos chamar aqui de cosmofobia.
E como se não bastasse o terror psicológico, a invenção do trabalho como castigo e o amaldiçoamento dos frutos da terra, os versículos [...] também comprovam o uso dos textos bíblicos como fundamento ideológico para a tragédia da escravidão. (SANTOS, 2015, p. 31)
Na análise do trecho bíblico feita por Santos, percebemos a criação do trabalho como castigo pelo pecado original e, consequentemente, como justificativa da escravidão. Para mostrar a diferença de concepção entre o trabalho na perspectiva monoteística dos povos colonizadores e na perspectiva politeísta dos povos contra-colonizadores, chamados por ele de afro-pindorâmicos, Santos (2015) destaca:
Como podemos interpretar nesta leitura bíblica, o trabalho (castigo) foi criado pelo Deus dos cristãos para castigar o pecado, portanto, o seu produto dificilmente servirá ao seu produtor que, por não ver o seu Deus de forma materializada, muitas vezes se submete a outro senhor que desempenha o papel de coordenador do trabalho (castigo). Talvez por isso nas religiões de matriz afro-pindorâmicas a terra, ao invés de ser amaldiçoada, é uma Deusa e as ervas não são daninhas. Como não existe o pecado, o que há é uma força vital que integra todas as coisas. As pessoas, ao invés de trabalhar, interagem com a natureza e o resultado dessa interação, por advir de relações com deusas e deuses materializados em elementos do universo, se concretizam em condições de vida. (SANTOS, 2015, p. 40-41)
Ao comparar a religião monoteísta e as religiões politeístas, Santos nos permite notar que enquanto para a primeira o trabalho é um castigo e aquilo que a terra fornece naturalmente é erva-daninha, para as últimas as ervas não são daninhas e a terra não é amaldiçoada, a natureza é composta por Deusas e Deuses e, consequentemente, o trabalho não é um castigo. Além disso, o autor destaca como um Deus abstrato colabora para a submissão a “senhores”. Santos entende tal processo expresso na Bíblia como uma desterritorialização.
A danação do mundo como castigo pelo pecado original se relaciona com a monocultura da mente e do solo, como explica Santos refletindo sobre o processo de desterritorialização:
os colonizadores, segundo podemos interpretar em GENESIS, foram desterritorializados ao ouvir do seu Deus que as ervas eram espinhosas e daninhas, que para se alimentarem tinham que comer do suor do próprio corpo, ou seja, transformar os elementos da natureza em produtos manufaturados e/ou sintéticos. Foi nesse exato momento que se configurou a desterritorialização e a desnaturalização do povo cristão monoteísta, fazendo com que esses só se sentissem autorizados pelo seu Deus a fazer uso dos produtos das suas artificialidades. Isso fez com que esse povo desterritorializado, antinatural, eternamente castigado e aterrorizado pelo seu Deus, sentisse a necessidade de se reterritorializar em um território sintético. Para tanto, se espraiaram pelo mundo afora com o intuito de invadir os territórios dos povos pagãos politeístas e descaracterizá-los através dos processos de manufaturamento, para a satisfação das suas artificialidades. (SANTOS, 2015, p. 96)
A desterritorialização dos cristãos se relaciona com a monocultura da mente, por estimular uma forma única de entender o mundo, mas também à monocultura do solo, haja vista que incentiva a manufaturação da natureza. Contudo, podemos dizer que a perspectiva trazida na Bíblia acerca da erva-daninha, relacionando-a ao trabalho como castigo e a manufaturação da natureza, permite-nos perceber como os saberes contra hegemônicos são vistos como uma ameaça para os herdeiros dessa tradição cosmofóbica. Além da destruição das formas de organização dos povos colonizados, os colonizadores ateavam “fogo em tudo aquilo que poderia simbolizar ou significar os seus modos de vida” (SANTOS, 2015, p. 64). Isso mostra que
os colonizadores setinam-se [...] ameaçados pela força e sabedoria da cosmovisão politeísta na elaboração dos saberes que organizam as diversas formas de vida e de resistência dessas comunidades, expressas na sua relação com os elementos da natureza que fortalece essas populações no embate contra a colonização. (SANTOS, 2015, p. 64-65)
A produção agrícola no Brasil está fortemente vinculada ao agronegócio sob mantras diários de “agro é pop” na programação aberta da televisão nacional. Nesse contexto, a relação com a natureza se resume à ideia do agricultor como técnico que reproduz sem reflexão regras pré-estabelecidas, diferentemente da compreensão da agricultura como um processo criativo que se reinventa de acordo com as condições fornecidas através da observação. Aqui cabe lembrar que os processos ancestrais, tradicionais ou agroecológicos se pautam na observação e conhecimento profundo das técnicas de outros seres, como abelhas e pássaros que atuam diretamente no desenvolvimento das plantas e propagação de sementes. O que a agroecologia faz é interagir com outros seres oferecendo condições convidativas para eles e retribuindo seu trabalho. Nesse sentido, a agricultura não é algo determinado pelo mercado, mas por relações de saber e vida entre diferentes sujeitos e seres. Podemos estabelecer paralelos disso com a monocultura do saber nas escolas, quem afirma que o saber dominante é o único possível também não aceita a autoria docente, no sentido debatido com Arroyo na seção anterior, pois entende docentes como técnicos/as/es que apenas reproduzem o conhecimento, ignorando que o saber é um campo dinâmico, em diálogo e em constante transformação.
Na perspectiva da racionalidade econômica, toda vida existente é entendida como um processo calculável para torná-la útil e o indivíduo é responsável - e culpado - sobre o controle do seu corpo para participar da vida pública. Assim, espera-se que as pessoas vivam para o trabalho e o consumo, já que é isso que suas vidas valem no aspecto econômico. Como resultado dos processos de racionalidade econômica, no contexto contemporâneo, a escola incorporou a lógica da empresa visando a formação de capital humano para atender os interesses do mercado de países cuja exploração de séculos anteriores permitiu se determinarem como potências mundiais. A fim de extrair o máximo de produtividade, na perspectiva ultraliberal, é preciso direcionar os comportamentos de acordo com os interesses da racionalidade econômica. A partir da ideia de capital humano que ganha força com o ultraliberalismo econômico, o indivíduo se torna empreendedor de si mesmo e deve investir de diversas maneiras em se tornar o mais rentável possível obedecendo o imperativo da eficiência. Com isso, a lógica da empresa se estende a todos os domínios sociais disseminando uma maneira de enxergar as relações sociais baseada na racionalidade capitalista. Nessa perspectiva, formar capital humano corresponde a “formar portanto essas espécies de competência-máquina que vão produzir renda, ou melhor, que vão ser remuneradas por renda” (FOUCAULT, 2008, p. 315).
Contudo, “A diversidade, biológica e social, se amontoa defensivamente em margens despercebidas” (TSING, 2015, p. 193). Por isso, os pequenos agricultores convivem com uma diversidade biológica muito maior do que os grandes latifundiários, as ervas-daninhas e fungos não cansam de se adaptar e proliferar nas monoculturas e os saberes locais também não param de se reinventar e produzir novas formas de saber e resistência. E é com esta diversidade que a filosofia erva-daninha se propõe a dialogar.
A filosofia erva-daninha: pensar a diferença em si mesma
Para pluriversar o conhecimento é preciso pensar a diferença em si mesma e não de forma mediatizada por algo ou alguém. Se continuarmos a pensar as diferenças como “o diferente” com relação a um polo de referência a partir de uma relação de identidade, continuaremos também reafirmando as relações assimétricas e colonizadoras entre os saberes. E, para tentar fugir de um pensamento hierárquico e dicotômico, Deleuze e Guattari (1995) propõem o conceito de “rizoma”:
Um rizoma como haste subterrânea distingue-se absolutamente das raízes e radículas. Os bulbos, os tubérculos, são rizomas. Plantas com raiz ou radícula podem ser rizomórficas num outro sentido inteiramente diferente: é uma questão de saber se a botânica, em sua especificidade, não seria inteiramente rizomórfica. Até animais o são, sob sua forma matilha; ratos são rizomas. As tocas o são, com todas suas funções de hábitat, de provisão, de deslocamento, de evasão e de ruptura. O rizoma nele mesmo tem formas muito diversas, desde sua extensão superficial ramificada em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos. Há rizoma quando os ratos deslizam uns sobre os outros. Há o melhor e o pior no rizoma: a batata e a grama, a erva daninha. Animal e planta, a grama e o capim-pé-de-galinha. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 14)
O rizoma é uma espécie de caule que cresce de forma horizontal de maneira que não é hierárquico e suas conexões se ramificam entrecruzando-se, qualquer parte se conecta com outra, seu movimento é experimentação em expansão possuindo múltiplas conexões. Por outro lado, Deleuze e Guattari criticam o modelo “árvore”, tal qual a árvore do conhecimento cartesiana, porque “sistemas arborescentes são sistemas hierárquicos que comportam centros de significância e de subjetivação” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 26), pois têm como matriz principal a raiz.
E, nesse sentido, afirmam os autores que “Muitas pessoas têm uma árvore plantada na cabeça, mas o próprio cérebro é muito mais uma erva do que uma árvore” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 24). O cérebro é associado por eles à erva porque seu funcionamento se dá por conexões não hierárquicas, se utiliza de contínuas ramificações não centralizadas. O pensamento rizomático, do mesmo modo, se dá por conexões, se apresenta pelo “meio” e as possibilidades estão abertas. Por isso, os autores associam o rizoma à erva-daninha:
No Ocidente a árvore plantou-se nos corpos, ela endureceu e estratificou até os sexos. Nós perdemos o rizoma ou a erva. Henry Miller: ‘A China é a erva daninha no canteiro de repolhos da humanidade [...]. A erva daninha é a Nêmesis dos esforços humanos. Entre todas as existências imaginárias que nós atribuímos às plantas, aos animais e às estrelas, é talvez a erva daninha aquela que leva a vida mais sábia. É verdade que a erva não produz flores nem porta-aviões, nem Sermões sobre a montanha [...]. Mas, afinal de contas, é sempre a erva quem diz a última palavra. Finalmente, tudo retorna ao estado de China. É isto que os historiadores chamam comumente de trevas da Idade Média. A única saída é a erva [...]. A erva existe exclusivamente entre os grandes espaços não cultivados. Ela preenche os vazios. Ela cresce entre e no meio das outras coisas. A flor é bela, o repolho útil, a papoula enlouquece. Mas a erva é transbordamento, ela é uma lição de moral. - De que China fala Miller, da antiga, da atual, de uma imaginária, ou bem de uma outra ainda que faria parte de um mapa movediço? (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 28)
Na perspectiva de Deleuze e Guattari, a erva-daninha leva a vida mais sábia porque nasce com poucos cuidados e preenche os vazios entre as plantas. Para fugir da dominação da árvore, que floresce na hierarquização dos saberes e das relações em geral, os autores nos atentam para um pensamento que é erva, que nasce entre, nem sobre nem sob, que se conecta de modo não centralizado. Essa proposta se conecta com a necessidade de criação de outros mundos possíveis, outros modos de vida.
Como analisa bell hooks (2019), a diversidade é uma consequência do estilo de vida moderno que aglomera várias etnias em um mesmo espaço e leva a constatação das diferenças. Porém, a pluralidade diz respeito à maneira como lidamos com a diversidade. E, assim, a presença da diversidade no pensamento, na vida, nas escolas e no ensino não gera pluralidade, podendo ocorrer sobre a lógica do “exótico” que reafirma o lugar de subalternidade desses saberes diante da monocultura, ou com o objetivo de criar novos mercados como vemos no multiculturalismo neoliberal. A inclusão não implica em pluralidade, é preciso olhar para os saberes não como erva-daninha, mas em uma perspectiva pluricultural.
Com o objetivo de olhar entre buscando a descolonização dos saberes, nesta seção, vamos pensar a monocultura sobre outra perspectiva, daqueles que a atrapalham e resistem à ela: o que as ervas-daninhas (daninhas a quem?) - e os povos que são vistos como ervas-daninhas - ensinam? Sujeitos que estão nas margens do mundo, assim como as plantas marginais denominadas de “daninhas”, são aqueles que atrapalham a monocultura e insistem em resistir. O que é “daninho” para a monocultura, talvez seja fértil para a pluricultura. O próprio termo “erva-daninha” nos apresenta um paradoxo porque a planta em seu habitat natural é vista como a invasora - “daninha” - por atrapalhar os planos econômicos dos agricultores e das corporações. O mesmo que vimos com o colonialismo, onde os invasores se sentiam os verdadeiros donos dos territórios e determinam em que condições deveriam viver - e morrer - os nativos.
Falar em ervas-“daninhas” só faz sentido numa relação monocultural. A modernidade é um fenômeno europeu que produz as desigualdades que fundamentam a relação entre centros e periferias, de modo que o centro não existe sem a exploração dos vistos como “marginais”. O primeiro movimento que faremos para responder à pergunta do parágrafo anterior será de pensar o que significa a perspectiva da margem, isto é, o local dos subalternos, da “subumanidade”, daqueles que devem ser “eliminados com veneno” quando não servirem ao desenvolvimento. A partir da obra de bell hooks, Grada Kilomba reflete sobre a perspectiva da margem:
Nesse contexto de marginalização, ela argumenta, mulheres negras e homens negros desenvolvem uma maneira particular de ver a realidade: tanto “de fora para dentro” quanto de “dentro para fora”. Focamos nossa atenção tanto no centro como na margem, pois nossa sobrevivência depende dessa consciência. Desde o início da escravidão, nos tornamos especialista em “leituras psicanalíticas do outro branca/o” (hooks, 1995, pp. 31), e em como a supremacia branca é estruturada e executada. Em outras palavras, somos especialistas em branquitude crítica e em pós-colonialismo. Nesse sentido, a margem não deve ser vista como um espaço de perda e privação, mas sim como um espaço de resistência e possibilidade. A margem se configura como um “espaço de abertura radical” (hooks, 1989, p. 149) e criatividade, onde novos discursos críticos se dão. É aqui que as fronteiras opressivas estabelecidas por categorias como “raça”, gênero, sexualidade e dominação de classe são questionadas, desafiadas e construídas. Nesse espaço crítico, “podemos imaginar perguntas que não poderiam ter sido imaginadas antes; podemos fazer perguntas que talvez não fossem feitas antes” (Mirza, 1997, p. 4), perguntas que desafiam a autoridade colonial do centro e os discursos hegemônicos dentro dele. Assim, a margem é um local que nutre nossa capacidade de resistir à opressão, de transformar e de imaginar mundos alternativos e novos discursos.
Falar de margem como um lugar de criatividade pode, sem dúvida, dar vazão ao perigo de romantizar a opressão. Em que medida estamos idealizando posições periféricas e ao fazê-lo minando a violência do centro? No entanto, bell hooks argumenta que este não é um exercício romântico, mas simples reconhecimento da margem como uma posição complexa que incorpora mais de uma local. A margem é tanto um local de repressão quanto um local de resistência (hooks, 1990). Ambos os locais estão sempre presentes porque onde há opressão, há resistência. Em outras palavras, a opressão forma as condições de resistência. (KILOMBA, 2019, p. 67-69)
Ainda que a margem seja o universo da opressão, também é o local da reação e da resistência contínua. Sem a intenção de romantizar a opressão haja vista que a luta política deve ser por um mundo em que ninguém seja colocado/a/e na obrigatoriedade de resistir, Kilomba explica que a posição marginal leva a uma compreensão mais ampla do sistema e das relações que o permeiam, pois obriga a pessoa marginalizada a dominar tanto a perspectiva do centro quanto da margem, levando a desenvolver conhecimento tanto de fora para dentro quanto de dentro para fora. Desse modo, mulheres negras e homens negros são especialistas em branquitude, enquanto mulheres brancas e homens brancos se veem como universais e muitas vezes não percebem os preconceitos e discriminações que impõem aos outros. A margem é uma posição complexa onde novas ideias podem surgir.
No contexto em que vivemos de crise ecológica e humana no qual o mundo tal como o concebemos até hoje não será possível de existir, é preciso aprender com aqueles/as que há muito tempo nos mostram outras formas de existir, que resistem e que não se submetem ao “liquidificador modernizante do Ocidente”, como afirma Viveiros de Castro no prefácio da obra A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert (2015).
O contato entre europeus e ameríndios durante a colonização resultou na imposição de um modo de vida que é insustentável e que tem sido motivo de preocupação. Quando perguntaram sobre a situação dos indígenas no cenário político atual a Ailton Krenak (2019) em uma entrevista em 2018, ele respondeu:
Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar com o seu mundo? Quais estratégias esses povos utilizaram para cruzar esse pesadelo e chegar ao século XXI ainda esperneando, reivindicando e desafinando o coro dos contentes? Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos. A civilização chamava aquela gente de bárbaros e imprimiu uma guerra sem fim contra eles, com o objetivo de transformá-los em civilizados que poderiam integrar o clube da humanidade. Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas “pessoas coletivas”, células que conseguem transmitir através do tempo suas visões sobre o mundo. (KRENAK, 2019, p. 28)
Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa. A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais. Ainda que existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 línguas e dialetos. (KRENAK, 2019, p. 31)
A necessidade constante de resistir dos povos originários tem muito a ensinar. Enquanto as diferenças são entendidas como daninhas na monocultura moderna, pensar a preservação da humanidade no planeta envolve justamente a pluricultura de modo que pode apontar caminhos a serem seguidos. Nesse sentido, explica Ailton Krenak (2020):
Assim, quando atinamos com essa ideia de vulnerabilidade, ficamos diante de uma equação muito curiosa: porque ao mesmo tempo que nós, os indígenas, somos a parte da humanidade pronta a desaparecer, nós também somos a parte da humanidade que criou anticorpos para entender como habitar outros mundos. Quem sabe, quem sempre esteve com o dedo no gatilho para fazer gente desaparecer não acabe desaparecendo antes da gente?
[...] É como se nós fossemos chapados por eventos negativos recorrentes. Isso te torna muito desconfiado em relação ao futuro. Mas como também temos uma matriz cultural fundada numa outra perspectiva, na qual o futuro não é amanhã, cresce também a resistência - e eu tenho a impressão, que a palavra resiliência talvez seja a melhor palavra para nossa experiência.
A resiliência não é a mera resistência a um evento em si, mas sim a capacidade interna de se reconfigurar diante do momento. É mais ou menos o que o camaleão faz, quando muda de lugar e luz para se reconfigurar e aumentar a sua potência. (KRENAK, 2020, n. p.)
A perspectiva indígena se apresenta como anticorpos para vislumbrar outros mundos possíveis. Acostumados a viver apesar do Estado, que segundo Krenak é “uma entidade sobrenatural, que tem o direito de deixar viver ou matar. O Estado pode matar que não é crime. O Estado é a única entidade que pode fazer a guerra” (KRENAK, 2020, n. p.); comunidades indígenas aprenderam a lidar com o futuro com resiliência para além do amanhã. Resiliência tal qual proposto por Krenak amplia nossa visão sobre a resistência, pois não consiste em apenas contrapor diante do que se apresenta, mas diz respeito a se reconfigurar e adaptar a uma situação nova.
A resiliência ameríndia é a chave para o futuro desse território e dos povos que merecem habitar ele. É importante acrescentar que não se trata de uma nostalgia purista das tradições ameríndias, até mesmo porque tais povos não fazem parte do passado, mas estão em constante transformação, e é especialmente com a sua capacidade de se transformar que temos a aprender. As filosofias ameríndias oferecem possibilidade para sobrevivência humana nesse planeta e, principalmente, num contexto como o Brasil. Nenhum outro povo teve maiores capacidades de viver nesse território do que os ameríndios, de modo que o futuro desse contexto - e provavelmente de outros também - pode ser melhor pensado com a ajuda desses povos e de outros que resistem continuamente à aniquilação colonial.
Assim como os povos marginais, as plantas marginais também nos ensinam sobre resiliência. Para discutir esse ponto trazemos o exemplo das Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs)4. As PANCs são plantas em sua maioria que nascem e se desenvolvem espontaneamente sem maiores cuidados porque estão adaptadas ao contexto de cada região, acostumadas às condições de solo, temperatura e umidade do local. As PANCs são consideradas como Alimento do Futuro por não precisarem de muitos cuidados e, portanto, não necessitarem do uso de insumos químicos para a sua produção, além de terem uma função de equilíbrio ecológico dentro do sistema em que estão inseridas. As PANCs que se desenvolvem em condições extremas - várias dessas plantas são indicadoras de excesso de alguns poluentes - se tornam tóxicas. Muitas delas até mesmo tinham espaço - e continuam tendo em muitos contextos - nos saberes locais, sendo parte da sua alimentação cotidiana, mas foram substituídas por espécies comerciais produzidas em larga escala. Hoje pouco se conhece sobre elas, sendo tratadas como ervas-daninhas e descartadas das hortas pelo mundo, haja vista que a maioria das pessoas não têm conhecimento sobre seus valores nutricionais e medicinais.
O conhecimento de ervas-daninhas como as PANCs aumenta a autonomia dos sujeitos ao ampliar seu acesso a alimentos, nutrientes, medicinas naturais, e consequentemente ampliam também o autoconhecimento e o conhecimento dos saberes locais e suas respectivas culturas. A força de resistência dessas plantas é surpreendente, o que garante sua força é justamente a diversidade de formas de resistir através da interação com seu entorno. Assim como as PANCs, pessoas, povos e estudantes vistas/os/es como erva-daninha podem ser pessoas com potencial para nutrir e cultivar formas plurais de viver em nossa sociedade, que rompam com a subserviência monocultural capitalista. Se a homogeneização leva ao esgotamento dos recursos da Terra, a humanidade só pode continuar no planeta através da pluralidade.
Além disso, assim como as PANCs que emergem em condições extremas e apontam para a toxicidade do solo, os saberes entendidos como “daninhos” podem apontar para o caráter ético das relações monoculturais. Do mesmo modo, as/os/es estudantes que são vistas/os/es como “estudantes-problema” devem nos levar a perguntar: será que as aulas são antiéticas em algum sentido? Ao invés de culpabilizar e punir estudantes devemos refletir se o ambiente que estamos oferecendo gera problemas de convivência. Estudantes entendidos/as/es como erva-daninha na escola também podem ser importantes indicadores das relações em sala de aula colaborando para a compreensão de relações éticas.
No que tange à educação é essencial refletir sobre o que é cultivado com os saberes que são fomentados em sala de aula. Romper com a passividade não deveria ser visto como daninho para as relações escolares e nem sociais. Como ressalta Krenak (2019):
Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de humanidade homogênea na qual há muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania. [...] Não tem gente mais adulada do que um consumidor. São adulados até o ponto de ficarem imbecis, babando. Então para que ser cidadão? Para que ter cidadania, alteridade, estar no mundo de uma maneira crítica e consciente, se você pode ser um consumidor? Essa ideia dispensa a experiência de viver numa terra cheia de sentido, numa plataforma para diferentes cosmovisões. (KRENAK, 2019, p. 24-25)
Como chama a atenção Krenak, a lógica do mundo atual é a padronização para o consumo que fomenta a passividade, infantiliza e imbecializa as pessoas. Que tipo de sujeito queremos formar (formatar?) nas escolas: o consumidor ou o cidadão?
Num mundo monocultural e que está em colapso, perspectivas marginais apontam para a pluralidade das relações como forma de resistir à crise ambiental, pois a padronização imposta em nome do consumo é justamente o que leva à degradação da natureza. Os povos indígenas sobrevivem há 500 anos buscando formas de resistir ao fim do mundo. Nesse sentido, Krenak propõe como solução:
Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, também existe uma por consumir subjetividades - as nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência. (KRENAK, 2019, p. 32-33)
A pluralidade tanto da natureza quanto das subjetividades é necessária para que a humanidade continue tendo espaço no planeta. O consumo da natureza é inseparável do consumo das subjetividades, pois só assim é possível convencer todos/eas/es a adotarem o mesmo modo de vida. Para que as pessoas se tornem autônomas e deixem de ser consumidoras passivas é preciso permitir que as subjetividades se enriqueçam.
Como afirma Freire (1987, p. 39), “o que pretendem os opressores ‘é transformar a mentalidade dos oprimidos e não a situação que os oprime’, e isto para que, melhor adaptando-os a esta situação, melhor os domine”. No texto “Eu me arrependo dos meus silêncios” (RIBEIRO, 2019, n. p.), Djamila Ribeiro destaca que silenciar é parte importante do sistema de dominação. A filósofa destaca que existem duas formas de silenciar: através da invisibilização de saberes marginais, gerando um sentimento de inferioridade nas/os/es oprimidas/os/es - o que fica evidente quando analisamos os currículos escolares e acadêmicos -, e por meio de estereótipos que ridicularizam aquelas/os/es que rompem com o silêncio. Ao discutir o silenciamento das mulheres negras, Djamila Ribeiro (2019) escreve:
Um dos temas que norteia o pensamento de muitas feministas negras é o silêncio. É a importância de romper com um regime de autorização discursiva que nos cala, hierarquiza a humanidade, nos põe na condição de outro do humano, aquela que não é pensada a partir de si, mas sempre pelo olhar de quem a define.
Silêncio, aqui, é entendido como forma de silenciar existências ou confiná-las a lugares marcados, subalternizados, fixos.
[…] Não só nossas vozes são silenciadas, mas também nossas existências, posto que relegadas à condição de outro.
Enfrentar, ou como disse Conceição Evaristo, estilhaçar a máscara do silêncio, torna-se fundamental para que possamos definir a nós mesmas.
[…] Quantas vezes, ao lutar contra injustiças, escutamos coisas como “deixa para lá”, “pare de criar caso”, “tenha mais senso de humor”.
Interessante perceber que a pessoa ofendida é quem precisa se calar ou ser superior moralmente em vez de exigir que quem ofende pare.
Numa sociedade de imagens, em que pessoas estão mais preocupadas em projetar uma estampa revolucionária do que de fato observar seus comportamentos, fica mais difícil não ser tachada de “louca raivosa” quando se cobra respeito. (RIBEIRO, 2019, n. p.)
Como explica a filósofa, o silêncio funciona como um modo de subalternizar fixando os lugares de cada sujeito nas hierarquias sociais nas quais nem todos têm o direito de falar. Desse modo, o silenciamento de vozes implica no silenciamento de existências, pois define quem pode efetivamente existir no mundo. Como Ribeiro escreve acima, quando uma mulher negra fala é taxada de “louca raivosa” ou “criadora de caso”, como apontava Lélia Gonzalez, o que “advém do fato de essas mulheres precisarem gritar para serem ouvidas ou terem sua humanidade reconhecida” (RIBEIRO, 2019, n. p.). Entretanto, Ribeiro cita Audre Lorde destacando que as/os/es oprimidas/os/es já se encontram vulneráveis e que perpetuar o silenciamento não melhora suas vidas, apenas coloca o silêncio como arma nas mãos dos opressores. O rompimento com o silêncio é fundamental na criação e legitimação de outros modos de existir. Nesse viés, é preciso que os currículos também rompam com o silêncio a que são submetidos os saberes não hegemônicos. Pluriversar os temas discutidos nas escolas é importante para que os diferentes grupos sociais se vejam como parte dos ambientes educativos e como capazes de construir saberes relevantes para a sociedade.
Acreditamos que o conhecimento que precisamos para um mundo em crise são aqueles que continuamente estão sendo invisibilizados e eliminados de diferentes formas. Precisamos começar a aprender algo que esteja à altura deste mundo que está por vir para nós e que para muitos já está posto há séculos, como vimos com Krenak. Precisamos pensar qual humanidade cabe nesse mundo e como podemos colaborar com a existência em todas as suas dimensões.
A partir dessa perspectiva repensamos o que é de fato daninho para este mundo. Entendemos que daninho é extrair os saberes de um contexto no qual existem relações intrínsecas sociais e políticas e aplicá-los de forma acrítica em um contexto diverso em todos os sentidos, assim como os fungos que se tornam “pragas” quando retirados de seus companheiros interespecíficos e colocados em um contexto monocultural para o qual as relações cosmopolíticas não são as mesmas que os impediam de proliferar. Nesse sentido entendemos que a colonialidade do saber se transformou em praga no contexto brasileiro, proliferou-se sem qualquer condição de controle sobre suas implicações e alienada de suas condições políticas intrínsecas, pois os saberes nas escolas são tratados de forma alienada desconsiderando seus determinantes sócio-políticos. Isso gera consequências preocupantes para o contexto brasileiro que sofre e continuará sofrendo profundamente as desigualdades de um sistema-mundo injusto que se construiu com a colonização de nosso território.
Da mesma forma que a proposta de transmodernidade de Enrique Dussel, a filosofia erva-daninha é uma tarefa “expressa filosoficamente, cujo ponto de partida é aquilo que foi descartado, desvalorizado e julgado como inútil entre as culturas globais, incluindo a filosofia colonizada ou das periferias” (DUSSEL, 2008, p. 19-20). A partir da filosofia erva-daninha, currículos e práticas educacionais se conectam com o que foi silenciado. Como afirma Santos (2015), ainda hoje os poderes dominantes
não apenas queimam, mas também inundam, implodem, trituram, soterram, reviram com suas máquinas de terraplanagem tudo aquilo que é fundamental para a existência das nossas comunidades, ou seja, os nossos territórios e todos os símbolos e significações dos nossos modos de vida. (SANTOS, 2015, p. 76)
Contudo, a filosofia erva-daninha dialoga com os povos soterrados pela terraplanagem colonial, aprende com as suas estratégias, seus saberes, com a história contada por perspectivas contra hegemônicas, aceita a diversidade de formas de aprender, ensinar e se expressar, traz outra concepção do trabalho, bem como da relação humana com a natureza.
Considerações finais
A monocultura leva a desumanização de povos e grupos não ocidentais, bem como ao esgotamento das condições de vida no planeta, devido a um modus operandi que destrói as diferenças ou as hierarquiza como se fossem desigualdades naturais. Diante desse cenário em que a monocultura do solo e da mente produz insustentabilidade em todas as suas dimensões, pluriversar a educação pode colaborar para adiar o fim mundo. É importante promover uma percepção plural que permite entendermos que o mundo ocidental ancorado em heranças coloniais não é o único possível.
A proposta trazida nestas páginas tem a ver com pluriversar os currículos e práticas em educação visando a um aprendizado em Direitos Humanos que nos permite enfrentar os problemas contemporâneos sem recorrer à barbárie. A inclusão de saberes não hegemônicos pode colaborar para uma educação em Direitos Humanos porque reconhece a legitimidade das formas de viver e entender o mundo de grupos excluídos, ou seja, reconhece como legítima a sua humanidade. Nesse sentido, romper com o epistemicídio colabora para uma luta contra os genocídios que estão no cerne do colonialismo, mas que não param de se reinventar, como vemos na atuação dos Estados contemporâneos e que podemos imaginar que vão se agravar em um contexto de escassez provocado pelas catástrofes ecológicas. Para isso, é fundamental que os saberes, hegemônicos ou não, sejam contextualizados, analisados em suas próprias categorias, a partir do que apontam seus próprios agentes. Caso contrário, a diversidade pode resultar em leituras que novamente desumanizam.
Aprender com aquilo que é descartado como erva-daninha, mas que resiste há séculos, é importante para garantir um futuro humano na Terra, bem como um futuro humanizado, no qual todos/as/es tenham espaço. A questão que este artigo deixa para a reflexão de quem o lê é: quais mundos a educação que defendemos ajuda a construir?