Considerações iniciais
Hermenêutica reconstrutiva é um método não tradicional que compreende a busca, por meio da problematização da fala/texto, entre concordâncias e discordâncias, de uma universalização discursiva. Trata-se de uma abordagem que objetiva alcançar saberes que possam ser benéficos a todas/os. Por meio do enfoque na universalização discursiva, pretende trazer para a coletividade a reconstrução de saberes amplamente discutidos e pacificados entre diferentes sujeitas/os, em que os dissensos pressupõem o direito à participação no diálogo, à busca pela compreensão voltada ao bem comum, assim como diz respeito ao dever de quem fala, da apresentação de razões/argumentos, justificações; os diferentes pontos de vistas baseados no mundo da vida, ou na vida comum, interagindo com vistas a um entendimento mútuo. É contrária, portanto, à universalização hegemônica, verticalizada, tão criticada em pesquisas que tratam de políticas de identidade e/ou que tomam os marcadores sociais1 como base para suas discussões. Assim, trata-se de uma ideia de universalização que não busca apagar identidades, mas construir vivências coletivas a partir de uma posição que tenha o mundo compartilhado como base e orientação.
Ao utilizar a abordagem da hermenêutica reconstrutiva nas pesquisas em educação, torna-se possível reconstruir o posicionamento de análises que se estabelecem a partir do centro, e voltar o olhar para as “margens”, um giro no qual pesquisadoras e pesquisadores assumem a postura de tomar o “outro” como princípio e como referência. Posicionamento decolonial e horizontalizado que dialoga com a teoria interseccional em que, no intuito de desmarginalizar as pesquisas, examina-se de “baixo” para cima, sem que isso signifique restringir as análises às individualidades pré-determinadas, mas voltando o olhar para a busca de entendimentos mais complexos e estruturantes das desigualdades dentro de um contexto mais amplo, mais global. Assim, os estudos estão inseridos no horizonte interpretativo estabelecido a partir dos ideais de equidade.
O presente artigo fundamenta-se, portanto, no diálogo entre hermenêutica reconstrutiva e interseccionalidade, levando em conta que a hermenêutica reconstrutiva tem a interpretação, a compreensão, a vida prática, o real linguístico e o ser humano como características principais. Caracteriza-se como uma abordagem de produção de conhecimento ampliada que, articulando-se com a racionalidade comunicativa, configura-se como um importante instrumento teórico e interpretativo para as pesquisas em educação, por carregar a possibilidade de compreensão do agir pedagógico, de produção e reprodução de sentidos confiáveis, por meio de acordos coletivos voltados ao bem comum (DEVECHI; TREVISAN, 2010). Tal perspectiva auxilia na compreensão das diferentes nuances que a proposta interseccional pode desvelar, quando empregada em diferentes estudos educacionais.
A interseccionalidade teórico-metodologicamente surge sob o propósito da justiça social, propondo a realização de análises “de baixo pra cima”, ou horizontalizadas, contrárias às universalizações hegemônicas, verticais, que podem tensionar estruturalmente o status quo e tornar mais possível uma abordagem focada na equidade. Patrícia Hill Collins e Sirma Bilge (2021, p. 11) destacam que, como mostrou Kimberlè Crenshaw, “o objetivo dos estudos interseccionais é contribuir para iniciativas de justiça social”. A interseccionalidade é, portanto, vislumbrada como “um constructo da justiça social, não como uma teoria da verdade desconectada das preocupações com a justiça” (COLLINS; BILGE, 2021, p. 112).
A interseccionalidade pode ser utilizada na análise de sistemas de poder2 (patriarcalismo, racismo e capitalismo, etc.), e também dos marcadores sociais, como os de gênero, raça e classe, por exemplos; e ainda ser admitida como referencial interpretativo dos estudos, como o paradigma utilizado para explicar os fenômenos sociais pesquisados (COLLINS, 2019). Coloca-se como uma lente para auxiliar na compreensão das realidades supostas nas pesquisas.
Quando se propõe que as análises ocorram das margens para o centro, ou de “baixo” para cima, contudo, não se está criando um modelo estático para os estudos interseccionais, mas buscando demonstrar a possibilidade de um maior aprofundamento quando o interesse é examinar a estrutura, os sistemas, a produção de desigualdades e privilégios e a construção das identidades. Pensar desse modo, é fazer do “outro” - entendido como estrangeiro, diferente - a referência, o princípio. Tratam-se de características da interseccionalidade que se aproximam da hermenêutica reconstrutiva, pontos comuns que permitem um fecundo e favorável diálogo para a pesquisas em educação, tanto teórica e epistemológica, quanto empiricamente.
Para discutir essa aproximação, organizamos o artigo em três partes. A primeira caracteriza a abordagem hermenêutica reconstrutiva, com destaque para sua compreensão de universalização discursiva; a segunda apresenta a interseccionalidade como perspectiva voltada à desmarginalização das análises do mundo da vida e das desigualdades, reposicionando o “outro” agora como centro. Por último, fazemos uma discussão articulada, avizinhando as perspectivas a partir de seus pontos comuns e de seus compromissos com as investigações que colocam falantes e ouvintes em posições horizontais na legitimação dos saberes.
Hermenêutica reconstrutiva e universalização discursiva
A proposta, segundo Habermas (2003a), para se pensar a hermenêutica diz respeito à razão comunicativa em ação, com diálogo e questionamentos, em que as pessoas agem, colaborativamente, em busca de propósitos comuns, tendo como referência o suposto mundo objetivo, social e subjetivo. Assim, nas interações comuns, cotidianas, o mundo da vida das/os sujeitos de linguagem é reconstruído nas relações coletivas, com o “outro” e consigo. A racionalidade comunicativa parte do discurso do conhecimento proposicional nos atos de falas, sendo contrária à racionalidade instrumental, em que não há uso comunicativo. A proposta traz um conceito mais amplo de racionalidade com conotações que, em última análise,
remontam à experiência central da capacidade de unir, sem coações, e de gerar consenso, por um discurso argumentativo em que diversos participantes superam a subjetividade inicial de seus respectivos pontos de vista e, graças a uma comunidade de convicções racionalmente motivada, asseguram, ao mesmo tempo, a unidade do mundo objetivo e a intersubjetividade do contexto em que desenvolvem suas vidas. (HABERMAS, 2003a, p. 27)
Habermas (1989) destaca que a/o intérprete deve atuar como agente comunicativa/o que precisa apresentar pretensões de validade a serem reconhecidas no discurso. Dando destaque ao papel ativo de quem interpreta, enxergando na/o intérprete a possibilidade de aprender nesse movimento de troca intersubjetiva. Para o autor, entendimento significa a obtenção de um acerto entre participantes de uma comunicação acerca da validade de um proferimento, dizendo respeito ao reconhecimento intersubjetivo da pretensão de validade de falante que apresenta argumentos racionais diante das/os participantes da comunicação (HABERMAS, 2003b). Destaca-se o reconhecimento da capacidade e da autonomia de, e para, se interpretar, considerando conhecimentos prévios, a história e a capacidade interpretativa da/o ouvinte; no entanto com a necessidade de justificar as suas compreensões diante do “outro”.
Nesse sentido que, ao elaborar uma perspectiva baseada na racionalidade comunicativa, Habermas incorpora a historicidade da compreensão de Gadamer, estruturando-a com uma posição crítico-dialética em relação à hermenêutica, dando destaque ao entendimento de Gadamer quanto à interpretação, pois para ele essa tem a capacidade de tornar visível a compreensão do ser e, também, a estrutura do ser, ora invisível. A crítica de Habermas é realizada apontando, sobretudo, para a necessidade de se levar em conta a totalidade da vida social nas quais as relações são instituídas por meio de diálogos contextualizados que, por sua vez, são construídos sob relações de poder carregadas de movimentos e contradições refletidas nessas comunicações.
É partindo desse destaque interpretativo e intersubjetivo trazido, principalmente, por Habermas, e sua abordagem discursiva da hermenêutica que, no contexto das pesquisas qualitativas, se forja a hermenêutica reconstrutiva, desde o ponto de vista da racionalidade comunicativa, com a finalidade de
contribuir para explicitar os limites e possibilidade dos elementos que dão base aos fundamentos epistemológicos e ontológicos de cada abordagem. A partir de um horizonte comum, como lugar de fala ou possibilidade de aproximação das diversas abordagens teóricas, é possível superar as ambiguidades das discussões que acabam criando mais um clima de animosidade do que, convenientemente, de concertamento. Na medida em que compreendemos as abordagens qualitativas para além dos seus detalhamentos, portanto, a partir de enfoques fundamentadores, podemos fazer a sua associação com o mundo da vida, ultrapassando desse modo a compreensão negativa que poderia provocar a sua relação equivocada com o senso comum. (DEVECHI; TREVISAN, 2010, p. 150)
Desse modo, a hermenêutica reconstrutiva é aqui apresentada como recurso metodológico elaborado a partir da teoria reconstrutiva de Habermas, entendida como categoria estruturante do seu projeto de racionalidade comunicativa. Com foco na discussão da obra “Verdade e Justificação” (HABERMAS, 2004), sustenta-se na ideia de que a validade do saber exige a participação em um processo discursivo com o “outro”, sendo o objeto entendido não como algo a ser conhecido, nem apenas compreendido, mas como suposição de realidade situada como uma referência necessária ao entendimento.
A abertura e o reconhecimento do “outro”, na visão de Habermas, é a base para o agir comunicativo. A interação, mediada pela linguagem, só é possível pressupondo uma interação não coercitiva, em que toda aceitação e rejeição são bem-vindas na busca pelo entendimento. Porém, mesmo não havendo aceitação, o processo de aprendizagem prossegue, pois a não aceitação significa a necessidade de apresentação de melhores argumentos.
Essa capacidade e possibilidade interpretativa de práxis, de ação, abre espaço para que o texto possa, na verdade, ser reconstruído com base no “mundo da vida” das/os intérpretes, seus valores, conhecimentos. Trata-se de uma possibilidade de elaborar um outro texto que não invalida o primeiro, mas o torna mais “contemporâneo”, mais contextualizado e adequado. Um processo realizado por meio das relações intersubjetivas, na conversação que, não findo ou estanque, leva em conta todas/aos as/os sujeitas/os envolvidas/os e os contextos temporais e históricos. É uma ideia de reconstrução alicerçada nas relações que buscam intersubjetivamente a compreensão diante do mundo comum compartilhado.
Desse modo, o objetivo da abordagem hermenêutica reconstrutiva é permitir a resolução de problemas de maneira comunicativa, sem depender da determinação e dos limites dos sentidos, pois propõe que o “outro” contemporâneo participe da validação do que está sendo apresentado.
De outra maneira, ela é fiel nesse ponto aos pressupostos da crítica por meios comunicativos, como consciência aguda de negação da alteridade, sejam minorias exploradas, movimentos sociais, povos que lutam pela sua independência e os diferentes. Sendo assim, enquanto a hermenêutica tradicional identifica a tradição com o conhecimento, limitando as possibilidades do compreender, ela propõe uma hermenêutica que se utiliza do processo de reflexão crítica. Compreende igualmente que a hermenêutica não deve ficar presa na substancialidade que o texto determina, e sim constatar e romper com as possíveis determinações por processos reflexivos. (DEVECHI; TREVISAN, 2010, p. 153)
A hermenêutica reconstrutiva surge nas pesquisas educacionais, portanto, conforme Catia Devechi e Trevisan (2010), para superar os problemas deixados por outras abordagens interpretativas. O caráter crítico nessa abordagem, encontra-se na comunicação interativa em busca de entendimento sobre algo problemático, pois esse só pode ser alcançado por meio de acertos construídos a partir de argumentações racionais, nas quais é intrínseco a competência de aceitação ou não das pretensões de validade apresentadas. As justificações ocorrem sempre de modo intersubjetivo, alicerçadas nas demandas do mundo compartilhado.
Para tanto, pensada como abordagem para pesquisas em educação, a hermenêutica reconstrutiva caracteriza-se por envolver a produção de dados pelo contato direto com a situação estudada, por enfatizar mais o processo do que o produto, preocupar-se em retratar a perspectiva das/os participantes da pesquisa e oferecer a abertura para a validação das interpretações diante do “outro”. Assim, segundo Repa (2008, p. 143), a produção de dados é proporcionada pela consciência de regra de falantes competentes “mediante procedimentos maiêuticos operacionalizados pelo cientista, e não mediações de variáveis do comportamento linguístico, como na abordagem empírico-analítica”.
Essa abordagem permite uma análise mais contextualizada das situações com as quais pesquisadoras e pesquisadores se defrontam ao se abrirem para compreender diferentes realidades e (inter) subjetividades por meio da intersecção de marcadores sociais. Pesquisas com essa perspectiva, baseadas na “inclusão da subjetividade”, não podem, portanto, ser pensadas sem a participação da intersubjetividade (DEVECHI; TREVISAN, 2010, p. 150).
A hermenêutica reconstrutiva é, para além da questão metodológica, segundo Catia Devechi e Trevisan (2011), uma perspectiva teórica importante nos estudos acerca da formação de professoras e professores por possibilitar a interação comunicativa da multiplicidade interpretativa, na qual, as múltiplas vozes contribuem na busca por solução de problemas. Desse modo, “a proposta é produzida na contingência como expediente para a produção de novos proferimentos, não para ser mecanicamente aplicados às diferentes realidades, mas sobretudo para ser reconstruídos diante das necessidades das práticas vividas” (DEVECHI; TREVISAN, 2011, p. 414).
Ou seja, trata-se de um processo de reconstrução que não objetiva um fim em si mesmo, mas uma discursividade contínua a respeito da problemática. A pretensão repousa em, de acordo com a teoria discursiva de Habermas, empreender uma aprendizagem cíclica, uma vez que se entende, nessa perspectiva, “o discurso como possibilidade de uma aprendizagem sempre melhorada pelo embate crítico entre as múltiplas interpretações, fruto das diferentes experiências com o mundo” (DEVECHI; TAUCHEN, 2018, p. 10), por meio do qual se consegue superar os equívocos interpretativos que surgem no cotidiano. O conhecimento é assim, uma aprendizagem que acontece de maneira circular entre a experiência com o mundo e a experiência discursiva com o “outro”, o que pressupõem reconhecer a multiplicidade que compõe o ser humano em sua integralidade, logo, considerando as diferentes intersecções presentes na constituição das identidades das/os sujeitas/os.
A interseccionalidade reposicionando o “outro” das margens para o centro
Como conceito, a interseccionalidade surge no final dos anos 1980, quando a jurista negra norte-americana Kimberlè Williams Crenshaw sistematiza e dá nome a uma importante perspectiva do pensamento feminista negro estadunidense3. Essa construção, podemos dizer, surge de suas experiências pessoais, profissionais e, sobretudo, a partir das problematizações sociais e identitárias realizadas no interior dos estudos da teoria crítica da raça, tese que fundamenta grande parte de seus escritos.
O termo é registrado no artigo “Desmarginalizando a intersecção de raça e sexo: uma crítica feminista negra à doutrina antidiscriminação, teoria feminista e políticas antirracistas”, de 1989. Nele, a interseccionalidade é apresentada como método, a lente, que Kimberlé utiliza para problematizar as limitações das doutrinas, legislações antidiscriminatórias de raça e gênero dos Estados Unidos da América - EUA. Utilizando-se de uma análise de três casos nos quais mulheres negras representaram contra suas empresas empregadoras argumentos de tratamento desigual e discriminatório direcionados a elas, a autora mostra que o “cruzamento”, “composição” e “sobreposições” dos marcadores sociais de gênero e raça não são reconhecidos em âmbito judicial.
O primeiro caso analisado pela jurista data de 1976 e diz respeito a Ema DeGraffenreid e mais quatro mulheres negras que entram com uma ação contra a General Motors, empresa na qual são funcionárias, alegando que o sistema de antiguidade e política de dispensa da empresa (última pessoa contratada primeira demitida) perpetuava os efeitos do passado histórico de discriminação contra mulheres negras. A decisão do tribunal afirmou que elas só poderiam reivindicar do ponto de vista da discriminação de gênero, ou de raça, mas não a partir de uma combinação de ambos, pois isso, segundo o entendimento, geraria a criação de um “super remédio” jurídico ainda não previsto nas legislações. No segundo caso - também de 1976, a funcionária Willie Mae Payne entra com uma ação demandada por ela e mais duas mulheres negras4 em que apresentam queixa de discriminação racial por parte da empresa em relação ao quadro de trabalhadoras e trabalhadores negras/os. O diferencial desse caso é que a ação é coletiva, levantada em nome de todas as pessoas negras empregadas da farmacêutica Travenol Laboratories. Como resultado, o tribunal recusou que as duas mulheres fossem representantes de todo o corpo de funcionárias e funcionários negras/os, pois não retratavam os homens negros, portanto, deveriam restringirem-se à categoria de mulheres. No terceiro caso, de 1980, a funcionária negra Tommie Moore alegou que a empresa Hughes Helicopter praticava discriminação racial e de gênero em promoções a cargos de nível superior e de supervisão. Para isso, apresentou estatísticas que demonstraram a grande disparidade entre homens e mulheres, e entre homens negros e brancos (essa com menos desigualdade) em trabalhos de supervisão. Tommie Moore teve sua alegação desautorizada juridicamente sob os mesmos argumentos usados para o caso da General Motors.
A partir da análise dos casos, Kimberlé Crenshaw evidencia que as especificidades das mulheres negras não são consideradas e reconhecidas nos tribunais, os quais optam por manter a prevalência de uma análise unidimensional (sob o viés da raça ou do gênero, separadamente). Nas palavras da autora:
Com as mulheres negras como ponto de partida, torna-se mais aparente como as concepções dominantes de discriminação condicionam-nos a pensar na subordinação como desvantagem que ocorre ao longo de um único eixo categórico. Quero ainda sugerir que este quadro de eixo único apaga as mulheres negras na conceitualização, identificação e remediação da discriminação racial e sexual, limitando a investigação às experiências de pessoas privilegiados do grupo. (CRENSHAW, 1989, p. 140, tradução nossa)
Ou seja, em relação ao gênero, as mulheres brancas; e à raça, os homens negros, não tornando possível a admissão de que as mulheres negras sofrem sexismo e racismo de modo “conjugado” e, por isso, necessitam de uma atenção diferenciada que considere essa especificidade para que possam encontrar defesa na lei frente às discriminações e injustiças que sofreram no ambiente de trabalho (CRENSHAW, 1989). Nas decisões dos tribunais o entendimento é de que as mulheres negras reivindicavam um tratamento “preferencial” que, para eles, é incoerente com a ideia de igualdade universal. Elas, observadas pelo sistema de justiça como seres duplos, não conseguem reivindicar sob o viés do gênero, pois a discriminação alegada não atingia a todas as mulheres, nem sob o viés da raça, porque a discriminação não atingia os homens negros.
As limitações apresentadas pelos tribunais fazem com que Kimberlé Crenshaw, aplicando as ideias do feminismo negro, apresente críticas às leis de antidiscriminação e sua negação às especificidades das mulheres negras, sistematizando, de uma forma didática, com vistas a tornar mais perceptível, o lugar diferenciado dessas mulheres, seu pensamento interseccional.
Considere uma analogia ao tráfego num cruzamento (intersecção), indo e vindo nas quatro direções. A discriminação, tal como o tráfego de um cruzamento, pode fluir num sentido, e no outro. Se um acidente acontecer num cruzamento, pode ser causado por carros que viajam de qualquer uma das direções, de mais de uma, e, por vezes, de todas elas. Da mesma forma, se uma mulher negra for prejudicada por estar no cruzamento, o seu ferimento pode resultar de discriminação sexual ou discriminação racial. (CRENSHAW, 1989, p. 139, tradução nossa)
As mulheres negras, entendidas como esse “outro”, vivenciam as discriminações experimentadas por mulheres brancas e as experimentadas por homens negros, ou melhor, elas, como mulheres negras, vivenciam a “combinação” de ambas, não como uma soma de raça e gênero, mas como uma “unidade”, uma “conjugação”. Não se trata de uma compreensão aditiva, mas de pensar em como as estruturas se relacionam e modificam umas às outras, não é estático. Por exemplo, mulheres brancas tem desvantagem de gênero e privilégio de raça, então é pensar como a junção tem se relacionado para produzir a experiência ou fenômeno. A situação de imigração pode ser passageira, e uma vez sendo modificada, a situação de vulnerabilização permanece, na maioria das vezes, mas a condição foi modificada pela dinâmica das estruturas de subordinação. E, muito embora as questões referentes à raça e gênero possam ter um aspecto mais determinístico devido ao patriarcado heterossexual e ao racismo estrutural, também esse cruzamento pode gerar configurações diferentes em culturas diversificadas, e ainda assim continua sendo uma análise interseccional.
Então, o que ela propõe é trazer o “outro” - no caso de seus estudos, a mulher negra, das margens para o centro, para assim se pensar como as pessoas estão posicionadas na sociedade em decorrência de questões culturais, como as dos marcadores sociais, e também como os sistemas de poder estruturam essa hierarquização, essa pirâmide social na qual a mulher negra está na base. Assim, no cruzamento, na intersecção, pensada pela autora, as avenidas são os vários eixos de poder (raça, etnia, gênero e classe) que estruturam os terrenos sociais, econômicos e políticos, e as dinâmicas do (des)empoderamento se movem nessas avenidas. Assim, quando ela fala em mapear as margens, levanta a necessidade de que sujeitas/os excluídas/os marginalizadas/os sejam também considerados dentro do “mapa” das políticas públicas, ou seja, identificadas/os.
Destacamos, contudo, o alerta de Kimberlé Crenshaw para se “entender a interseccionalidade como um trabalho em andamento” e que, por isso, é preciso se “imaginar outros tipos de trabalho em que se possa empregar a interseccionalidade para realizar” (CARBADO et al., 2013, p. 305, tradução nossa). Essa afirmação se deve ao fato de que, embora tenha dado ênfase em seus textos às mulheres negras, não devem ser elas as sujeitas antropomorfiadas das pesquisas interseccionais. Desse modo, ela, assim como Patrícia Hill Collins e Sirma Bilge (2021), faz um convite para se pensar em outras abordagens para uso da interseccionalidade. Kimberlé Crenshaw (2020, s.p.) diz que a interseccionalidade é “simplesmente sobre como certos aspectos de quem você é aumentarão seu acesso às coisas boas ou sua exposição às coisas ruins da vida”, logo, aplicável a diferentes espaços, sujeitas/os, objetos de investigação.
Trata-se de uma dinamicidade que se dá por meio de movimentos realizados em diferentes espaços e por diferentes indivíduos de “diferentes gêneros, etnias e orientações sexuais” que “tem movido a interseccionalidade para engajar uma gama cada vez maior de experiências e estruturas de poder”, o que destaca o fato de que ela “não está fixada em nenhuma posição social particular”, pois, como teoria, “pode e se move” (CARBADO et al., 2013, p. 305, tradução nossa). Assim, tomar o conceito para diferentes análises e articulações, sobretudo no campo acadêmico, traz amadurecimento teórico e metodológico à categoria analítica. Conforme as autoras e autores,
nenhuma aplicação particular da interseccionalidade pode, em um sentido definitivo, compreender a gama de poderes interseccionais e problemas que assolam a sociedade. Essa compreensão do trabalho em andamento da interseccionalidade sugere que devemos nos esforçar, continuamente, para mover a interseccionalidade para lugares inexplorados. (CARBADO et al., 2013, p. 306, tradução nossa)
É com esse entendimento e parecer mais aglutinador que propomos uma ponte discursiva entre interseccionalidade e hermenêutica reconstrutiva. Para nós, é um posicionamento que reforça o potencial teórico e metodológico do conceito. Faz ressoar a importância do feminismo negro, dos movimentos sociais e das mulheres ativistas e intelectuais, uma vez que, ao ser empregada em outras investigações e articulada a outras teorias, pode desvelar as estruturas das dinâmicas de poder ainda não alcançadas, enriquecendo as pesquisas e o debate crítico acerca de verdades incontestáveis. Tal articulação pode ampliar e refinar possibilidades de estudo, considerando que “a interseccionalidade não se move apenas em relação à mudança de assuntos, mas se move de forma mais ampla como um prisma que liga e engaja subcampos acadêmicos, metodologias de pesquisa e investigações atuais” (CARBADO et al., 2013, p. 309, tradução nossa).
Uma ponte entre hermenêutica reconstrutiva e interseccionalidade
A interseccionalidade, cumpre destacar, teve muito sucesso com a sistematização realizada por Kimberlé Crenshaw, tendo em vista que o conceito foi amplamente difundido nos movimentos sociais e ganhou cada vez mais espaço dentro da academia. Contudo, em que pese a importância de um nome (COLLINS, BILGE, 2021), muito antes dessa categorização, as demandas das mulheres “de cor” já eram representadas: no movimento de mulheres, mostrando como a raça, etnia, trazia um abismo entre as pautas e reivindicações, e no movimento negro, sob a reivindicação de gênero, mostrando como a supremacia masculina e o sexismo as silenciavam. Então, as demandas dessas mulheres sempre foram apresentadas sob uma perspectiva interseccional.
Percebe-se, assim, que a ideia de trazer a mulher negra das margens para o centro das discussões e das análises, fundamento da interseccionalidade, não se condiciona ao identitarismo, mas à ideia de que ao se compreender as opressões da base, tem-se, de modo mais profundo, a compreensão das opressões de outros grupos (DAVIS, 2013), uma aproximação com o ideal de discursividade e intersubjetividade da hermenêutica reconstrutiva. Para Audre Lorde (2013, s. p.), a unicidade, integralidade, é uma das características mais importantes para um debate interseccional profundo, pois corrobora com a ideia de que interseccionar os sistemas de opressão e marcadores sociais não é apenas propor uma somatória, uma adição, mas buscar a profundidade das composições que os cruzamentos trazem.
Tais posicionamentos ratificam o pensamento de Sirma Bilge (2021, s. p.), em que a interseccionalidade “é uma ferramenta analítica, um enquadramento, para compreender como o poder opera na sociedade. É uma ferramenta para analisar o poder”. Assim, as pesquisas educacionais com a lente interseccional podem enxergar a educação em sua totalidade, em seu contexto, ou seja, levar em conta todas suas implicações históricas, culturais e sociais. Não deixar de lado as compreensões sociais que atravessam e moldam os sistemas de ensino, por exemplo, como a questão da classe, da raça e do gênero. Observa, nesse sentido, as múltiplas problemáticas trazidas por esses marcadores, uma vez que o conteúdo social é construído pelas pessoas, pelas relações estabelecidas entre si, ou seja, é resultado da multiplicidade de interesses, necessidades conflitantes e, ao mesmo tempo, da reprodução do existente e da capacidade de criação do novo.
A hermenêutica reconstrutiva, articulada à interseccionalidade, pressupõe considerar que as relações são constituídas mutuamente, considerar suas ambiguidades e consensos e, assim, “conhecer os fundamentos das diferenças, particularidades, ao mesmo tempo em que revela que o movimento de contraposição, resistência está presente no desenvolvimento da realidade” (CARVALHO, 2014, p. 139). Numa perspectiva de classe, por exemplo, implica, “considerar não apenas a dinâmica do movimento do capital, mas também seus meandros, suas articulações e os processos mediadores entre o geral e específico” (CARVALHO, 2014, p. 139).
Por esse motivo, é necessário levar em conta as articulações de marcadores sociais, como os de gênero, raça e classe, e a influência que exercem nas diferentes dinâmicas, instâncias, sujeitas/os do processo educacional. Esse pensamento possibilita ouvir as diferentes posições e buscar entendimento sobre mecanismos de acolhimento para grupos minorizados. Pensar, coletivamente, os preconceitos atuais e perenes que perpassam o ambiente escolar, acadêmico, como sexismo, machismo, racismo e preconceito de classe, por exemplo. Realizar pesquisas que destaquem a necessidade de se abordar não apenas o particular, mas tratar de problemas comuns, principalmente em se tratando de estudos em educação.
Levar em conta uma análise que considere o contexto de investigação é empreender, de acordo com Elma Júlia Carvalho (2014, p. 137), um estudo sobre as especificidades dos diferentes elementos, reconhecendo as particularidades, ao mesmo tempo em que se compreenda a impossibilidade de desconsiderar o que há de universal neles.
É nesse sentido que a interseccionalidade pode ser a lente interpretativa de análise das pesquisas, o referencial interpretativo, quando o que se almeja é compreender em profundidade os contextos investigados. As pesquisas com essa abordagem se voltam para a vida cotidiana, para o estudo de caso, para a descrição da realidade na perspectiva de quem as vive, para a diversidade de culturas, para as questões locais e regionais. Promovendo um resgate da “heterogeneidade [gênero, raça, etnia, grupo social] e a singularidade das experiências vividas e das visões de mundo, em oposição ao etnocentrismo cultural ou à hegemonia dos modelos únicos e universalizados” (CARVALHO, 2014, p. 136-137), um elemento fundamental da discursividade, por oferecer mais possibilidades para se evitar uma análise unidimensional.
Lançando mão de investigações que levem em conta as intersubjetividades e especificidades que trazem diferentes secções, pode-se evitar de cair em armadilhas polarizadas e binárias presentes em muitas pesquisas educacionais. Tais estudos ao considerar apenas o gênero, por exemplo, acabam por abandonar a complexidade das relações sociais e suas articulações múltiplas, negando que tais marcadores são construções sociais históricas. Esse pensamento mostra, ademais, o perigo dos estudos que generalizam explicações para as diferenças, de cima para baixo.
Desse modo, deve-se buscar “entender não somente as dinâmicas de raça, classe e gênero, mas também como suas intersecções no mundo das vivências reais geram tensões, contradições e descontinuidades nas vidas cotidianas” (KINCHELOE; STEINBERG, 2009, p. 6 apud JACKSON, 2015, p. 245). Realizar estudos que generalizem explicações para as complexidades da educação é um dos perigos de se abordar marcadores sociais separadamente, pois “as significâncias de raça, classe e gênero são altamente dependentes do contexto social, como são as maneiras pelas quais cada uma gera impactos sobre as outras” (JACKSON, 2015, p. 245). Já quando se colocam as lentes da interseccionalidade, os estudos podem, por exemplo, “detalhar como os indivíduos vivenciam a educação de maneiras diferentes como consequência de gênero e, também, podem focalizar mais estreitamente suas experiências à luz de fatores como gênero, classe e etnicidade/raça” (JACKSON, 2015, p. 244-245).
É nesse sentido que a compreensão dos dados de uma pesquisa com a abordagem da interseccionalidade deve se dar na abertura para o discurso com “outro” e com os pares, estando a crítica no olhar desse “outro” que avalia, que aceita ou não, o que está sendo apresentado, características da hermenêutica reconstrutiva. Tal visão que não é aplicada apenas à construção dos dados, mas também em toda constituição teórica do estudo e na abordagem dos contextos diversos que cercam o tema estudado.
Considerações Finais
Patrícia Hill Collins, ao escrever seu livro “Pensamento Feminista Negro”, publicado originalmente em 1990, faz isso por meio de um trabalho intelectualmente rigoroso, com fundamentação teórica diversa, em que articula filosofia afrocêntrica, teoria feminista - com destaque para as ideias de Ângela Davis, bell hooks, Alice Walker e Sandra Harding, o pensamento social marxista, a sociologia do conhecimento, a teoria crítica e o pós-modernismo. Para ela, essa pluralidade é uma recusa à adoção de uma teoria única, dada a complexidade das interconexões entre raça, gênero e classe social na vida das mulheres negras. E, ao tratar especificamente da interseccionalidade, a autora, juntamente com Sirma Bilge, observa que tal abordagem, empregada metodologicamente, não elimina ou subestima as contradições entre as diferenças das distintas tradições políticas e acadêmicas de raça, classe, gênero etc., mas exigem que sejam negociadas. É, portanto, uma metodologia de base dialógica, discursiva, “que não admite nenhuma conexão pré-formatada” (COLLINS; BILGE, 2021, p. 220). De tal modo que, “consequentemente, a heurística da interseccionalidade é um ponto de partida para a construção de solidariedades intelectuais entre formações acadêmicas distintas, mas inter-relacionadas” (COLLINS; BILGE, 2021, p. 220).
É com essa mesma compreensão que propomos articular a abordagem hermenêutica reconstrutiva - advinda da teoria habermasiana, e, com isso, do pensamento moderno, à interseccionalidade, oriunda da teoria crítica racial, do feminismo, movimento negro, e, com isso do pensamento pós-moderno. Superar o separatismo intelectual e trazer os clássicos para dialogar com as teorias decoloniais vai ao encontro de seu pensamento, de que “a luta por justiça social é maior que qualquer grupo, indivíduo ou movimento social” e que “a injustiça social é um problema coletivo que requer uma solução coletiva” (COLLINS, 2019, p. 25). Assim, também o seja no ponto de vista intelectual, no fazer da pesquisa.
A interseccionalidade pode, para tanto, ser utilizada como referencial interpretativo, ferramenta analítica, devido a sua capacidade averiguadora e sua capacidade de assumir várias formas, por ajudar na compreensão de uma grande gama de problemas. Conforme Patrícia Hill Collins e Sirma Bilge (2021), encontra-se sempre aberta ao elemento surpresa. É por isso que focalizamos seu potencial de realização, “no que ela faz, não no que ela é” (COLLINS; BILGE, 2021, p. 53), afinal não se trata de uma estrutura pronta a ser aplicada na pesquisa, mas que vai se desenhando a partir da realidade pesquisada. Assim, acrescentamos que a práxis crítica é uma importante característica a ser considerada nas investigações em educação, pois “desafia o status quo e visa transformar as relações de poder” (COLLINS; BILGE, 2021, p. 53), auxiliando a repensar questões e instituições sociais importantes.
Nessa perspectiva, as diferentes realidades das e dos participantes da investigação, a partir dos marcadores de gênero, raça e classe etc., podem contribuir para a própria problematização acerca do que está se considerando. É assim que o caráter intersubjetivo de um estudo que leva em conta as diferenças como parâmetro para uma abordagem mais equânime de pesquisa cobra assumir uma postura comunicativa voltada ao entendimento, pautando-se nas diferentes realidades que coexistem no mundo, uma vez que a base da hermenêutica reconstrutiva é o reconhecimento do “outro”.
Com essa premissa, Habermas (2003a, p. 119) afirma ser “o mundo da vida, intersubjetivamente compartilhado, que constitui o contexto da ação comunicativa”. Assim, almejamos “ter como pressuposto a análise das crenças pela aceitação pública, como voz a ser levada em consideração em todas as decisões da vida pública”, uma vez que tais abordagens consideram não apenas o contexto, “mas uma ideia de universalidade, ou seja, o conhecimento é acordado diante dos interesses gerais, porém sempre suscetível de falibilidade” (DEVECHI; TREVISAN, 2010, p. 154).
É por isso que a produção de dados de pesquisas com abordagem hermenêutica reconstrutiva e com a lente da interseccionalidade leva em consideração o mundo da vida das pessoas que protagonizam a construção, reconstrução e a perspectiva intersubjetiva dos saberes a serem desproblematizados. Para tanto, as metodologias e técnicas devem buscar garantir uma posição de participação. Assim, o interesse de aprofundar a construção do conhecimento de modo intersubjetivo orienta a busca por instrumentos que tem como característica a interação, o que deslegitima instrumentos que estabelecem relações hierárquicas entre pesquisadora, pesquisador e protagonistas do estudo. Deve-se buscar uma relação interativa que ganhe vida por meio da troca dialógica e argumentativa.
As metodologias e técnicas utilizadas são as mesmas das outras abordagens: questionário, entrevista, observação participante, narração, história de vida, estudo de caso, etnografia, pesquisa participante e pesquisa-ação; contudo com o diferencial de tratamento dos dados que deve buscar sempre “a validade diante do outro e do todo maior” (DEVECHI; TREVISAN, 2010, p. 159). Portanto, a diferença nessa abordagem está na posição da/o sujeita/o e na compreensão do objeto, e, para a hermenêutica reconstrutiva, a centralização está nas relações entre as/os sujeitas/os em que o objeto é referência comum do acordo, considerando que é por meio das considerações prévias de um mesmo mundo objetivo que os acordos se tornam possíveis. Ou seja, “a compreensão ocorre mediante a reflexão intersubjetiva dos problemas oriundos do mesmo mundo objetivo” (DEVECHI; TREVISAN, 2010, p. 159), sendo este possível apenas como suposição, pois mesmo na abordagem reconstrutiva só podemos acessar a realidade por meio da linguagem.
A compreensão crítica permite observar a realidade social na qual se está inserida e todas suas patologias e desigualdades, colocando em relevo fenômenos ideológicos em todas as instâncias da vida. É desse modo, que dialética e hermenêutica, em conjunto, são capazes de produzir racionalidades que se baseiam tanto em oposição quanto em mediação. Essa abertura crítica para o “outro”, a validação intersubjetiva, uma investigação que leva em conta as diferentes vozes, a possibilidade de reconstrução de saberes, sobretudo também a possibilidade de uma aprendizagem que visa a compreensão mútua, são contribuições da hermenêutica reconstrutiva a orientarem também um olhar interseccional na pesquisa em educação.