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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.36 no.77 Uberlândia maio/ago 2022  Epub 29-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v36n77a2022-63340 

Artigos

“Não queremos inclusivismos”: um ensaio (des)inspirado no discurso do Ministro da Educação brasileira

"We don't want inclusiveness": an (un)inspired essay by the Minister of Brazilian education

No queremos inclusivismos”: un ensayo (des)inspirado por el Ministro de la Educación brasileña

*Doutora em Educação. Professora da Universidade de Brasília (UnB) e colaboradora na Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL). Coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Aprendizagem e Inclusão (LEPAI). E-mail: seorru7@gmail.com


Resumo

Desde a Constituição federal de 1988, o Brasil tem avançado, mesmo que vagarosamente, na construção de políticas públicas de inclusão de pessoas que se encontram em condições de desvantagem social. Dentre os movimentos sociais de luta, estão as pessoas com deficiência, seus familiares e profissionais de distintas áreas de atuação. Em agosto de 2021 o Ministro da Educação brasileira proferiu discursos que se engajam em atitudes excludentes. Dentre as falas mais polemizadas, afirmou que nas escolas há crianças com deficiência que atrapalham o aprendizado dos demais alunos. O objetivo deste ensaio é discutir acerca dos discursos do Ministro como impactantes dispositivos de marginalização e exclusão social dos estudantes com deficiência. O teor do ensaio se ampara no acervo documental e legislativo que fundamenta a história, a emanação e a implementação de políticas públicas pró-educação inclusiva, bem como em autores que sustentam as Ciências Humanas e Sociais no entendimento que a diferença e as liberdades de Ser e estar no mundo, com o mundo, com as outras pessoas, sendo diferente, são valores humanos inegociáveis.

Palavras-chave: Diferença; Inclusão; Educação; Políticas públicas; Exclusão

Abstract

Since the Federal Constitution of 1988, Brazil has advanced, albeit slowly, in the construction of public policies for the inclusion of people who find themselves in conditions of social disadvantage. Among the social struggle movements are people with disabilities, their families and professionals from different areas of activity. In August 2021 the Brazilian Minister of Education delivered speeches that engage in exclusionary attitudes. Among the most controversial speeches, he stated that in schools there are children with disabilities who hinder the learning of other students. The objective of this essay is to discuss about the Minister's speeches as impacting devices of marginalization and social exclusion of students with disabilities. The content of the essay is supported by the documentary and legislative archive that underlies the history, emanation and implementation of public policies for inclusive education, as well as by authors who support the Human and Social Sciences in the understanding that the difference and the freedoms of Being and being in the world, with the world, with other people, being different, are non-negotiable human values.

Keywords: Difference; Inclusion; Education; Public policy; Exclusion

Resumen

Desde la Constitución Federal de 1988, el Brasil ha avanzado, aunque lentamente, en la construcción de políticas públicas para la inclusión de personas que se encuentran en condiciones de desventaja social. Entre los movimientos sociales de lucha se encuentran personas con discapacidad, sus familias y profesionales de diferentes áreas de actividad. En agosto de 2021, el Ministro de la Educación brasileña pronunció discursos que involucran actitudes excluyentes. Entre los discursos más controvertidos, afirmó que en las escuelas hay niños con discapacidad que dificultan el aprendizaje de otros estudiantes. El objetivo de este ensayo es discutir sobre los discursos del Ministro como dispositivos impactantes de marginalización y exclusión social de los estudiantes con discapacidad. El contenido del ensayo se sustenta en el archivo documental y legislativo que sustenta la historia, emanación e implementación de las políticas públicas de educación inclusiva, así como por autores que apoyan a las Ciencias Humanas y Sociales en el entendimiento de que la diferencia y las libertades de Ser y estar en el mundo, con el mundo, con otras personas, siendo diferente, son valores humanos innegociables.

Palabras clave: Diferencia; Inclusión; Educación; Políticas públicas; Exclusión

Proêmio

No dia 23 de agosto de 2021 em entrevista à Jovem Pan News, cuja programação é voltada ao jornalismo e entretenimento, ao tecer comentários sobre a situação e os rumos da educação do país, o Ministro da Educação, Milton Ribeiro, proferiu a seguintes palavras que transcrevo o mais fidedigno possível:

Você sabe que este mundo, que é um mundo que trata dessas questões mais sensíveis, é um mundo que tem uma linguagem própria, que embora seja eu, o ministro da educação, eu não tenho essa expertise toda. Por exemplo, eu não posso mais falar de uma criança com necessidade especial, isso está incorreto. Eu tenho que usar a palavra “uma criança com deficiência”. Eu, até então, pensava que falasse assim, eu seria um, usaria um eufemismo, né, pra dizer que a criança, ela não tem uma dificuldade maior ou coisa e tal, que não agredisse. Mas seu eu falar isso, eu sou criticado. O que eu falei a respeito dessa questão, até me desculpei publicamente usei essa palavra “atrapalhar”, eu estava me referindo a 12%, praticamente, das crianças, das escolas públicas que dentro de um universo de 1 milhão e 300 crianças que têm deficiência e que são, é, têm um limite, têm um grau de deficiência mental que impede dela ter o convívio, não o convívio social, mas dentro da sala de aula pra que elas possam aprender. Isso é interessante porque esse diagnóstico de limitações que as pessoas possuem, é um diagnóstico que é feito pela sociedade. Nós estamos no meio da paraolimpíadas. Por que? Porque nós descobrimos que existem pessoas que têm limitações físicas, no caso, que elas não podem competir com outras que não têm. Então, é, nesse paralelismo, embora com grandezas de diferentes, foi que eu usei, me referi a esses 11.9 quase 12%. O que que nós queremos? Nós não queremos um, o inclusivismo. Criticam essa minha terminologia. Mas é essa mesmo que eu continuo a usar. Por que? Quando eu abro a escola pública para que o pai, a mãe façam a matrícula do seu filho que tem deficiência, eu dô a ele essa oportunidade, ele é que escolhe. Essa nossa lei que hoje, inclusive foi, foi, é, matéria de um exame mais profundo de uma audiência pública no STF, eu estou querendo dizer o seguinte: que o pai, só que dependendo da avaliação que os psicólogos, das pessoas ali da, da escola pública fazem, elas vão recomendar, oh: “( Melhor seu filho, mesmo, ter uma classe especial”. Eu, eu recomendo, nossa política é ter uma classe especial, uma classe de recursos, algumas delas, inclusive, dependendo do grau da, da condição da criança, elas são forradas, inclusive as paredes porque às vezes as crianças se debatem. Tudo isso é uma realidade que os pais da criança me encontram na rua e falam assim: “( O senhor está certo, o senhor está certo”. Não pode colocar. Agora, é claro que existem alguns graus, por exemplo, uma deficiência como Síndrome de Down. Existem alguns graus que a criança, ela é colocada ali no meio, ela se socializa e ela chega a caminhar e é isso, não tem nenhuma dificuldade, nesse percentual. Mas 12%, esse é o número que tenho de censo lá da nossa secretaria. Elas não têm condições de conviver ali. Isto não quer dizer que eu estou excluindo, que eu estou sendo uma pessoa, usando de discriminação. Eu estou olhando não apenas para a criança que é objeto do meu cuidado, mas para as outras crianças também que vão ter dificuldade de aprender. Por que? Porque geralmente as professoras não têm a capacitação necessária, nem todas, pra cuidar de pessoas com esse tipo de deficiência. É isso que eu, que eu quero fazer: 257 milhões, o MEC gastou o ano passado pra poder é, é, fazer as classes especiais, entendeu? É, ajudar essas salas de recursos. Foi, é, isso que a agente tá fazendo. Imagine que eu com a minha formação, eu vou querer tirar uma criança que tem deficiência e jogá-la em qualquer lugar. Não! Não vou fazer isso (JOVEM PAN NEWS, 2021).

O discurso acima é uma tentativa bem (des)aventurada de se explicar em relação à prédica do dia 09 de agosto, quando o ministro afirmou que as crianças com deficiência atrapalham o aprendizado dos demais. Ruminemos:

A questão da criança com deficiência que é a, uma das questões que passa pelo nosso ministério, ela foi tratada. E, eu acho, também, é, por razões mais ideológicas do que técnicas, ela foi rejeitada por um grupo que fez um pouco mais de barulho e o assunto foi, é, levado ao STF. O assunto está lá pra análise porque se julgou que a nossa lei, era uma lei excludente, uma lei que não olhava com carinho para os deficientes e suas famílias. Mas ao contrário, essa lei, ela foi feita, a minha secretaria e a minha secretária, professora Hilda, ela enfrentou problemas com seus filhos, com seu filho, e eu tenho ali na minha, na minha equipe da secretaria, pessoas que de fato tiveram dificuldades com seus filhos. Num tô falando de um teórico de livro, tô falando de pessoas que viveram e vivem, é, de uma maneira muito direta essa problemática. Pra você ter uma ideia, eu tenho uma diretora que é surda, que só se, quer dizer, nós estamos falando em bilíngue, em sinais, em libras, mas eu tenho uma, uma diretora, muito capacitada que é surda lá nesse, nesse grupo. Agora, como fazer? É, eu acho que, foi feito no passado, um passado primeiro, não se falava em atenção ao deficiente. Simples assim. Eles fiquem aí e nós vamos viver a nossa vida aqui. Aí, depois, esse foi um programa que caiu pro outro extremo, o inclusivismo. Que que é o inclusivismo? A criança com deficiência era colocada dentro de uma sala de alunos sem deficiência. Ela não aprendia, ela atrapalhava, entre aspas essa palavra, falo com muito cuidado. Ela atrapalhava o aprendizado dos outros porque a professora não tinha equipe, não tinha conhecimento pra poder dar a ela atenção especial. E assim foi. Eu chego, ouvi a, a pretensão dessa secretaria e faço alguma coisa de diferente pra escola pública. Eu monto salas de recursos e, e deixo a opção de matrícula da criança com deficiência à família, aos pais. Eu tiro do governo, dou aos pais. Se você quer matricular sua filha ou seu filho aqui, tudo bem, mas nós temos em tal escola, um grupo de pessoas especializadas assim, assim, as salas monitoradas. Pra você ter uma ideia, existem algumas crianças com um grau de autismo que elas se jogam na parede, por exemplo. Então são, são salas almofadadas, têm lá os recursos. Nós não estamos nos omitindo como Estado de estender a mão pra essas pessoas que, sobretudo as pessoas públicas, é, ou melhor, mais de baixa renda. Pelo contrário, nós queremos ajudar (TV BRASIL, 2021).

Na mesma entrevista, defendeu que a universidade deveria ser para poucos, pautando-se em países como a Alemanha para justificar seu discurso político-educacional. Aproveitou para esculachar os professores, só aqueles que ele considera do mal, por condicionarem o retorno presencial às aulas somente após a imunização da Covid19.

Universidade deveria ser para poucos, nesse sentido de ser útil à sociedade... [...]. Tem muito engenheiro ou advogado dirigindo Uber porque não consegue colocação devida. Se fosse um técnico de informática, conseguiria emprego, porque tem uma demanda muito grande... [...]. Nós estamos vivendo um tempo em que a educação foi tomada por um viés político e ideológico. […]. Infelizmente, alguns maus professores - a grande maioria está querendo voltar e se preocupa com as crianças, fomentam a vacinação deles, que foi conseguida; agora das crianças; depois, com todo o respeito, para o cachorro, para o gato. Querem vacinação de todo jeito. O assunto é: querem manter escola fechada... [...]. O MEC tentou o retorno às aulas de uma maneira cuidadosa, diante de uma doença desconhecida, há muito tempo... (TV BRASIL, 2021).

Este ensaio anela testilhar pelas passarelas: 1) A de linhas “técnicas”, como salvaguarda o tecnicismo aspirado pelo Ministro e demais prosélitos de um saudosismo maquiavelicamente abissal de ensinos separatistas; 2) Em coexistência ideológica, ou melhor assegurando, por extensas e densas trilhas de princípios e valores que constituem as convicções das sociedades mais complexas em (des)construção por uma sociedade cada vez menos excludente. Noutras palavras: pretendo amalgamar a coexistência da técnica com a ideologia, ambos os termos professados pelo representante sênior da educação brasileira.

O teor se ampara no acervo documental e legislativo que fundamenta a história, a emanação e a implementação de políticas públicas pró-educação inclusiva, bem como em autores que sustentam as Ciências Humanas e Sociais no entendimento que a diferença e as liberdades de Ser e estar no mundo, com o mundo, com as outras pessoas, sendo diferente, são valores humanos inegociáveis. Trata-se de um debatimento introdutório na configuração de um ensaio inesgotante pelas aproximações dos aportes do pensamento de Gilles Deleuze e sua contribuição sobre o conceito de diferença; Michel Foucault e seus estudos acerca do discurso da loucura como dispositivo de poder e Paulo Freire com o emanar de uma educação amorosamente libertária1. Trilharemos as contribuições desse trio de autores críticos ao liberalismo em nexo com o que temos esgrimido em estudos anteriores que se agregam ao Paradigma da Inclusão.

As linhas “técnicas” - o poço da (des)educação neoliberal

Todo poço tem um fundo. A maquinaria do capitalismo selvagem não cessa de (re)produzir garanhões vassalos que violentam, oprimem, apartam, segregam, excluem, marginalizam e aniquilam aqueles que se encontram na condição de menos favorecidos nos contextos social, econômico, político e educacional. É ingênuo cogitar que um dia, o ciclo da violência se cessará na Terra, pois o fundo do poço sustenta e jorra o esculento que escora, assiste e perpetua os lugares de privilégio dos opressores convictos e ilude algum (des)locamento daqueles que se alternam nas ranhuras lodosas do poço, forcejando algum empino. Tão repisadas foram as palavras de Paulo Freire, porém, tal como pegadas na areia, urgem reverberar que quando a educação não liberta, ela acirra no oprimido o desejo, o devaneio, o pensamento e a esquematização de se tornar opressor, de tomar à força, esse lugar de sua retomada à humanidade:

De modo geral, porém, quando o oprimido legitimamente se levanta contra o opressor, em quem identifica a opressão, é a ele que se chama de violento, de bárbaro, de desumano, de frio. É que, entre os incontáveis direitos que se admite a si a consciência dominadora tem mais estes: o de definir a violência. O de caracterizá-la. O de localizá-la. E se este direito lhe assiste, com exclusividade, não será nela mesma que irá encontrar a violência. Não será a si própria que chamará de violenta. Na verdade, a violência do oprimido, ademais de ser mera resposta em que revela o intento de recuperar sua humanidade, é, no fundo, ainda, a lição que recebeu do opressor. Com ele, desde cedo, como salienta Fanon, é que o oprimido aprende a torturar. Com uma sutil diferença neste aprendizado - o opressor aprende a torturar, torturando o oprimido. O oprimido, sendo torturado pelo opressor (FREIRE, 1967, p. 50).

Não há no opressor nenhum querer de transformar ou detonar a maquinaria do sistema oprimente, todavia, de o acolitar enquanto paradigma e o manter como sua zona de macro e/ou micro poder. Enquanto o opressor aprende a torturar oprimindo, o oprimido aprende por experimentar e vivenciar as muitas táticas de tortura, quer corporais, psicológicas, sexuais, morais, religiosas, legais e/ou patrimoniais. Uma coisa é certa: aniquilar a identidade protagonista do aspirante à revolução social, política e econômica, é mister; derrubar os ícones de luta e minar a potência da coletividade, é ministério; revogar conquistas legais dos grupos minoritários é incumbência dos liberalistas que se sentam à mesa posta pelo utilitarismo e individualismo meritocrata.

E, um dos recursos auspiciosos para o fomento, manutenção e perpetuação do modus operandi neoliberal empregado desde o final dos anos 80 e que abarca a economia, a política, a filosofia, a vida em sociedade, é a ensinagem fundamentalmente tecnicista voltada para se prostrar e fazer as vontades do mercado. Os estudantes, portanto, são indivíduos concebidos e treinados para se converterem em mão de obra, para (re)produzirem os contratos sociais forjados pelo e para o mercado, des-humanizando-se em suas relações sociais e, consigo mesmos, cristalizando ideias ególatras, naturalizando violências sociais e banalizando o mal-estar social do país, do planeta. É uma ensinagem para a obediência, competitividade e alienação, onde gente de bem se caracteriza como conservador; indivíduo que trabalha e não problematiza as gêneses das crises; esforçado que por seu próprio mérito galgou êxitos; tarefista que não deve nada a ninguém. A ensinagem tecnicista e des-humanizada é o reflexo imagético do neoliberalismo. A instituição de ensino, escolar ou acadêmica, é utilizada como duto de escoamento dessa doutrina nefasta cuja divindade é o mercado e, por isso, acaba por operar e se mover como o próprio mercado, transvazando-se das unidades de estudo dedicadas às questões sociais e políticas que alicerçam a cidadania crítica e participativa para se focar naquelas tecnológicas, empreendedoras e exatas ( tudo é consumo e para o consumo ( e este acaba por ser o parâmetro de excelência e qualidade institucional. A ensinagem tecnicista supervaloriza a formação de mão de obra qualificada para a indústria, o comércio e a prestação de serviço para que as classes sociais alvorocem a economia nacional. Ao mesmo tempo, articula-se ao neoliberalismo em detrimento de uma educação humanista, crítica e cidadã, onde o professor protagoniza sua ação intelectual crítica e transformadora da sociedade. Ao invés de mestre, o professor é restrito a ser mero instrutor de habilidades. Esta supervalorização tem sido constante no governo atual: posicionamento técnico, político e ideológico assumido pelo Ministério da Educação e, com ela, reina o capacitismo, tal como se nota nos discursos supracitados do Ministro.

As rotas neoliberais se prestam ao escravismo moderno de incontáveis. A lógica neoliberal estrutura a governabilidade corporativa e captura as subjetividades para seus interesses cifronários. Dão as cartas do jogo, e o truco, enquanto bravata de finórios, alarida que o Estado não usufrui mestria de gerir bens, ideologias e/ou sujeitos como em outros tempos. Defendem, portanto, que cada um consiga o que deseja, sem ingerência do Estado, por sua conta, risco e mérito. Tudo pode ser comprado e tudo está à venda, tudo é regulado pelas afiadas presas do mercado que estabelece seus códigos e nexos de lucro e consumo.

Essa coisa é tão verdadeira que, praticamente, o objeto de todas as análises que fazem os neoliberais será substituir, a cada instante, o homo oeconomicus parceiro da troca por um homo oeconomicus empresário de si mesmo, sendo ele próprio seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo a fonte de renda (FOUCAULT, 2008, p.310, grifos da obra).

Este itinerário de disputas territoriais e aquisitivas, prolifera as (des)igualdades na sociedade, destrói os sonhos e as subjetividades singulares e coletivas. Como consequência, os menos favorecidos, aqueles que são agrupados por sua restrita condição econômica e/ou pelas suas diferenças abalizadas como improdutivas, ficam à mercê de políticas públicas sociais que lhes amparem com o mínimo para sobreviverem. Neste sentido, na mira de Foucault, o liberalismo não se restringe à perspectiva política ou econômica, tampouco se ancora nos princípios de liberdade como ideário político e/ou ideológico.

O liberalismo não é evidentemente uma ideologia nem um ideal. É uma forma de governo e de ‘racionalidade’ governamental muito complexa. É, eu creio, dever do historiador estudar como ele pôde funcionar, a que preço, com que instrumentos - isso, evidentemente, em uma época e em uma situação dadas (FOUCAULT, 2001, p. 855).

O sistema neoliberal se alimenta da diligência dos oprimidos sob comando de seus desejos e necessidades de consumo, amplia seus tentáculos pelos mais diversos âmbitos sociais, reforça-se a partir das demandas do núcleo familiar, das relações de trabalho, das ciladas da religião, dos tipos de educação ofertada, das urgências de coberturas econômicas de doenças e tetos para se protegerem do frio e do calor. O cada um por si e ninguém COM todos é premissa para que os indivíduos se ostralizem, cada vez mais, nas carestias de si mesmos. Na racionalidade neoliberal, o ser humano não se caracteriza apenas como consumidor, ele também é mercadoria a ser consumida.

Não é por acaso que se nomeia “salário mínimo”, cuja quantia do provento não borda o ínfimo para se viver dignamente, com acesso à alimentação saudável, à água potável, a um sistema de saúde de qualidade, à moradia aconchegante e segura, às travessas acessíveis com tráfego humanizado, a transportes públicos gratuitos e eficientes, e a uma educação pública libertária, democrática, gratuita e inclusiva para todas as pessoas, sem nenhuma distinção. Uma educação não linear, inflexível e tecnicista que acompanhe o aprendiz desde a educação básica até a pós-graduação porque, apesar do discurso do Ministro e de outros (des)representantes públicos, a universidade NÃO deve ser para poucos, mas ela é de todas e todos nós.

Paulo Freire, que no último dia 19 de setembro completaria 100 anos, assombra os tiranos em ascensão quando anuncia e enuncia aos oprimidos que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção” (FREIRE, 1996, p. 12). E uma educação libertadora, portanto, democrática e inclusiva, ruma ao estrondoso embate com a proposta de (des)educação neoliberal porque, sem amarrações e nulificações, não se pode conter a constituição de cidadãos pensantes, questionadores, emancipados, autônomos, subversivos, des-estabilizadores da sociedade moderna, de múltiplas e plurais identidades, lúcidos de seus lugares de fala, experimentadores e protagonistas de suas próprias histórias e transformadores de seus territórios. Claro está, isto não é nenhum pouco rendoso àqueles que visam a manutenção do controle social, que se mexem pelo tilintar das moedas e pelas salvas de palmas ( que coabitam a ganância e o poder como o escopo da superfície nebulosa do poço. O capitalismo sempre abocanhará as esferas que lhes vislumbrem maiores lucratividades e utilidades para suas próprias conveniências.

Há no mestre angustiado e indignado com a abundância e alastramento das (des)igualdades sociais entre (des)abastados, um tanto de paciência histórica e coragem que o forçam a cavar trincheiras ( sim, a fazer guerrilhas ( para que a educação para o desenvolvimento do espírito crítico, não seja sufocada e atordoada pelo veneno do espírito de crítica, tão presente naqueles que vivem às custas da perpetuação da ignorância entre o povo. Com Paulo, concordamos:

O educador ou a educadora crítica, exigente, coerente no exercício de sua reflexão sobre a prática educativa, ou no exercício da própria prática, sempre a entende em sua totalidade. Não centra a prática educativa, por exemplo, nem no educando, nem no educador, nem no conteúdo, nem nos métodos, mas a compreende nas relações de seus vários componentes, no uso coerente, por parte do educador ou da educadora dos materiais, dos métodos, das técnicas. [...] A questão que se coloca não é a de se há ou não educação sem conteúdo, a que se oporia a outra, a conteudística porque, repitamos, jamais existiu qualquer prática educativa sem conteúdo. O problema fundamental, de natureza política e tocado por tintas ideológicas, é saber quem escolhe os conteúdos, a favor de quem e de que estará o seu ensino, contra quem, a favor de que, contra que. Qual o papel que cabe aos educandos na organização programática dos conteúdos; qual o papel, em níveis diferentes, daqueles e daquelas que, nas bases, cozinheiras, zeladores, vigias, se acham envolvidos na prática educativa da escola; qual o papel das famílias, das organizações sociais, da comunidade local? (FREIRE, 1992, p. 56).

Não somente a universidade é de todas e todos, mas a escola também, indiscriminadamente, inclusive no tocante aos espaços privados, porque o que é público, é a Educação, ela que é pública em toda a sua ciência gestada ao longo das gerações, direito fundamental de qualquer pessoa, dever do Estado e da família, tal como explicita a Constituição Federal do Brasil: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988, artigo 205).

Esse direito social, quando possível à família, pode ser escolhido para ser oportunizado ao estudante em espaços privados. Todavia, o Estado não pode se furtar de zelar e promover uma educação pública de acesso gratuito a quem quer que seja, independentemente dos binarismos identitários que possam ser listados. O zelo que o Estado é compelido a fazer cumprir, diz respeito à educação pública enquanto conhecimento que não deve ser restrito a alguns ou apartado de outros. Por isso a importância dos dispositivos legais que acolhem as diferenças a partir de políticas públicas de inclusão, que impedem que espaços privados ou públicos lancem mão de mecanismos que trinquem brechas para a exclusão dos indesejáveis sociais nos espaços comuns a aprendizagem de todas as crianças, adolescentes, jovens e adultos.

História, princípios e acervos da inclusão

O discurso, assim concebido, não é a manifestação, majestosamente desenvolvida, de um sujeito que pensa, que conhece, e que o diz: é, ao contrário, um conjunto em que podem ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo. É um espaço de exterioridade em que se desenvolve uma rede de lugares distintos (FOUCAULT, 1987, p.61-62).

Segundo o Ministro Milton Ribeiro, em seus discursos aqui transcritos, ele com eles, não querem “inclusivismos”. Justifica que a questão da criança com deficiência foi tratada, antes de sua gestão no MEC, mais como uma questão ideológica do que técnica, levada ao STF por um grupo de barulhentos que rejeitam a “lei deles”, ou seja, o Decreto Nº 10.5022, um grupo que julgou que a “lei deles” não olhava com carinho para os deficientes e suas famílias. E segue com certo transbordamento sentimental de posse nacionalista, de amor ou ciúmes, quem sabe, meio achegado a Narciso, quando se refere aos espaços e às pessoas que gerencia, sempre recordando aos ouvintes, sua dinâmica no cargo que ocupa com suas hipotéticas posses: “minha secretaria”, “minha secretária”, “eu tenho uma diretora”, “eu faço alguma coisa diferente”, “eu monto salas”, “eu deixo”, “quando eu abro a escola pública”, “criança como objeto de meu cuidado”, “eu tiro, eu dou”... Enuncia, então, que sua equipe, formada por pessoas que tiveram dificuldades com os filhos e por uma diretora surda, falam com propriedade sobre a temática, diferentemente dos “teóricos de livros” que insinua estarem mais para o opinativo do que para a legitimidade na abordagem do tema em toda sua complexidade.

O discurso do Ministro marca um momento histórico da educação brasileira em que as suturas de uma pedagogia segregacionista, fundamentada no modelo médico da deficiência, desmancham-se de modo que a ferida da exclusão está aberta, purulenta, vulnerável a todo tipo de contaminação provocada pelo paradigma da distorção que sistematiza os métodos mais velados e explícitos de marginalização e controle social, entre eles, a supervalorização diagnóstica que dá vida à loucura, a supremacia da hegemonia e da homogeneidade, e o capacitismo em detrimento da singular multiplicidade e pluralidade dos potenciais humanos (ORRÚ, 2020).

Tecnicamente, o Ministro se encontra em um cargo político de gestão, vinculado ao poder Executivo, sendo o Ministério da Educação considerado uma das pastas mais importantes de um governo. No entanto, a exteriorização do sentimento de posse disso ou daquilo; de ter poder para tirar das mãos do governo e dar aos pais alguma coisa que não conseguiu clarificar; de sugerir quem pode ou não, quem atrapalha ou não; quem consegue ou não, conviver com outros aprendizes em salas comuns, realmente, não lhe condiz, apesar do passageiro-relevante cargo que hoje ocupa. Em um país de base democrática, há normativas a serem observadas e tratadas dentro de um processo decisório que respeita, antes de mais nada, a Constituição Federal e todo acervo legislativo e documental de políticas públicas, as quais o Brasil é signatário, no tocante à promoção da educação.

A história da pessoa com deficiência (PcD) é marcada por embates e muitas lutas doloridas para a ocupação dos espaços sociais e de seus lugares de fala. Junto aos movimentos sociais protagonizados pelas PcD e seus familiares, agregaram-se, pincipalmente, profissionais da educação, da saúde e do direito. Esse movimento não se iniciou em um dia desses ou no governo antecessor ao Golpe de 2016. Quando o Ministro sustenta que crianças com deficiência atrapalham o aprendizado dos demais alunos e, depois, busca se justificar numa suposta humildade de que ele, apesar de ser Ministro, não possui expertise para usar as terminologias dominadas pelos grupos que tratam sobre as questões sensíveis da sociedade, ele escancara seu despreparo para abordar e tratar dos temas que se relacionam à educação na perspectiva inclusiva. Ao tempo que tenta dar alguma vida ao termo “inclusivismos”, não se encontra capaz de usar as terminologias e abordagens adequadas, cunhadas ao longo dos últimos 30 anos pelos movimentos sociais, registrados na história e dissipados em nossa cultura planetária. Adiante, um quadro das principais normativas e documentos que sustentam a educação na perspectiva inclusiva no Brasil e que visam garantir que toda criança, adolescente, jovem ou adulto com deficiência, tenha acesso à educação em instituições de ensino comum a todas as pessoas, garantia de permanência e, não somente isso, mas que seja acolhido em todas as suas demandas para seguir seu caminho até o ensino superior e pós-graduação, se assim desejar e, subsequente, integre-se ao mundo do trabalho. Propositalmente, o Decreto 10.502 não compõe o quadro, uma vez que se caracteriza como um retrocesso às políticas públicas pró-inclusão constituídas nos últimos 33 anos.

Quadro 1 Acervo legislativo Pró-Inclusão (1988-2019) 

Ano Número da Legislação Objetivos no Contexto Nacional Brasileiro
1988 - Constituição Federal do Brasil - Em especial o Artigo 208.
1989 Lei 7.853 Apoio à integração social das Pessoas com Surdez (PcS).
1989 Resolução 734 - Art. 54 (Contran) “Obtenção de carteira nacional de habilitação […] categorias A ou B”.
1990 Lei 8.069 Estatuto da Criança e do Adolescente.
1991 Lei 8.160 Dispõe sobre a caracterização de símbolo que permita a identificação de pessoas portadoras de deficiência auditiva.
1993 Lei 8.686 Reajustamento da pensão especial aos deficientes físicos portadores da Síndrome de Talidomida, instituída pela Lei nº 7.070/82.
1993 Lei 8.687 Retira da incidência do Imposto de Renda benefícios percebidos por deficientes mentais
1993 Lei 8.742 Benefício de Prestação e Assistência Social às PcS.
1994 Lei 8.899 Transporte gratuito às PcS.
1995 Lei 8.989 Isenção de Impostos.
1996 Lei 9.394 Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
1998 Lei 9.610 Obrigatoriedade de reprodução de obras já divulgadas em braile.
1998 Decreto 2.592 Assegura condições de acesso individual de deficientes auditivos e da fala ao serviço telefônico.
1999 Portaria 1.679 Dispõe sobre requisitos de acessibilidade de pessoas portadoras de deficiências, [...] reconhecimento de cursos...
1999 Decreto 3.298 Regulamenta a Lei nº 7.853/89 - integração social e consolida as normas de proteção das PcS.
1999 Decreto 3.076 Criação do Conselho Nacional dos Direitos da PcS - Conade.
1999 Lei 11.405 Dispõe sobre a oficialização da LIBRAS - Língua Brasileira de Sinais e dá outras providências (Rio Grande do Sul).
1999 Lei 9.867 Criação e o funcionamento de Cooperativas Sociais, visando à integração social dos cidadãos.
2000 Lei 10.048 Prioridade de Atendimento às PcS.
2000 Lei 8.122 Acrescenta parágrafo ao Art. 30 da Lei 8.007/00 que determina que a Libras seja reconhecida como língua oficial no município de Belo Horizonte.
2000 PRS 72 Obriga a TV Senado a interpretar da língua portuguesa para a Libras toda a sua programação.
2000 Lei 10.098 Acessibilidade às PcS.
2000 Decreto 3.691 Regulamenta a Lei nº 8.899, gratuidade de Transporte às PcS.
2001 Lei 10.172 Aprova o Plano Nacional de Educação e dá Outras Providências.
2001 Decreto 3.956 Promulga a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência.
2001 Lei 10.216 Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.
2002 Lei 10.436 Reconhecimento da Língua brasileira de sinais - Libras.
2002 Lei 14.367 Dispõe sobre o atendimento a pessoa portadora de necessidades especiais em processo seletivo para ingresso em instituições de ensino superior.
2003 Lei 10.708 Institui o auxílio-reabilitação psicossocial para pacientes acometidos de transtornos mentais egressos de internações.
2003 Portaria 3.284 Dispõe sobre requisitos de acessibilidade de pessoas portadoras de deficiências, para instruir os processos de autorização e de reconhecimento de cursos, e de credenciamento de instituições.
2004 Decreto 5.296 Regulamenta as Leis nº 10.048 e 10.098 que dá prioridade e acessibilidade às PcS.
2004 Projeto de Lei 180 (PL) Altera a Lei nº 9.394/1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da oferta da Libras em todas as etapas e modalidades da educação básica.
2004 Lei 10.845 Institui o Programa de Complementação ao Atendimento Educacional Especializado às Pessoas Portadoras de Deficiência, e dá outras providências.
2004 Lei 4.309 Dispõe sobre o ingresso de Pessoas com Deficiência Auditiva nas Universidades Públicas Estaduais do Rio de Janeiro.
2004 Lei 4.304 Dispõe sobre a utilização de recursos visuais, destinados as pessoas com deficiência auditiva, na veiculação de propaganda oficial.
2005 Lei 11.126 Direito do portador de deficiência visual de ingressar e permanecer em ambientes de uso coletivo acompanhado de cão-guia.
2005 Decreto 5.626 Regulamenta a Lei nº 10.436/02, que dispõe sobre a Libras, e o art. 18 da Lei nº 10.098/00.
2007 PL 14 Altera a Lei nº 9.394/96 para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino da Libras na educação infantil e no ensino fundamental.
2007 Decreto 6.214 Regulamenta o BPC da assistência social devido à PcS e ao idoso de que trata a Lei nº 8.742/93 e a Lei nº 10.741/03...
2007 Lei 11.507 Artigo 8º - § 5º Aplica-se o regime desta Lei aos formadores voluntários dos alfabetizadores, nos termos do § 4º deste artigo, e aos tradutores e intérpretes voluntários que auxiliem na alfabetização de alunos surdos (NR).
2008 Resolução SS 25 Implantar o diagnóstico de audição em crianças recém-nascidas de Alto Risco nas maternidades e hospitais de referência para Alto-risco no Estado de São Paulo.
2008 Decreto Legislativo 186 Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo.
2008 Lei 11.796 Institui o Dia Nacional do Surdo.
2008 Edital 04 Criação ou reestruturação de núcleos de viabilizam o acesso das PcS a todos os espaços, ambientes, ações e processos desenvolvidos na instituição de ensino.
2009 Decreto 6.949 Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das PcS.
2009 Lei 13.320 Consolida a legislação relativa à pessoa com deficiência no Estado do Rio Grande do Sul.
2009 Resolução CNE/CEB 4 Institui Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, modalidade Educação Especial.
2010 Lei 12.190 Concessão de indenização por danos morais.
2010 Decreto 7.235 Regulamenta a Lei no 12.190/10, que concede indenização por dano moral às pessoas com deficiência física decorrente do uso da talidomida.
2010 Portaria Normativa 20 Dispõe sobre o Programa Nacional para a Certificação de Proficiência no Uso e Ensino, e Proficiência em Tradução e Interpretação da Libras/Língua Portuguesa - Prolibras.
2010 Lei 12.319 Reconhecimento do Profissional Tradutor-Intérprete de Libras.
2010 PL 7.081 Direitos de alunos com TDAH/Dislexia.
2011 Decreto 7.612 Institui o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência - Plano Viver sem Limite.
2011 Nota Técnica 05 Publicação em formato digital acessível - Mecdaisy.
2011 Decreto 7.611 Educação Especial e Atendimento Educacional Especializado.
2011 Decreto Estadual 48.292 Institui o Programa de Acessibilidade de Comunicação nas compras e edições de publicações, e dá outras providências.
2011 Lei 12.470 Altera a Lei 8.742 dos Benefícios de Prestação e Assistência Social às PcS.
2011 Decreto Estadual 48.293 Dispõe sobre os critérios de acessibilidade aos eventos realizados no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul.
2011 PL 2.040 Acrescenta art. 26-B à Lei nº 9.394/96 (LDB), para estabelecer condições de oferta de ensino da Libras em todas as etapas e modalidades da educação básica.
2011 Decreto Estadual 48.291 Institui Grupo de Trabalho com a finalidade de estudar a acessibilidade das pessoas surdas aos órgãos públicos do Estado do Rio Grande do Sul.
2011 PL 1.159 Criação das Escolas da Rede Pública de Educação Bilíngue para Surdos (EEBS) no âmbito do estado do Rio de Janeiro.
2012 Medida Provisória 563 Apoio à Atenção da Saúde das PcS (PRONAS/PCD).
2012 Lei 12.764 Proteção dos Direitos da Pessoa com TEA.
2012 Decreto Estadual 48.964 Institui o Plano Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência - Plano RS sem limite e dá outras providências.
2012 PL 0159 Autoriza o Poder Executivo a criar a Escola de Educação Bilíngue para Surdos no âmbito do Estado do Amapá.
2012 PL 88 Institui política pública municipal e diretrizes para a Educação Bilíngue para surdos no Município de São Paulo.
2013 Lei 5.016 Estabelece diretrizes e parâmetros para o desenvolvimento de políticas públicas educacionais voltadas à educação bilíngue, a serem implantadas e implementadas no âmbito do D.F.
2013 PL 28 Implantação de escola de educação bilíngue no Recife-PE.
2014 Portaria 2.776 Aprova diretrizes gerais, amplia e incorpora procedimentos para a Atenção Especializada às Pessoas com Deficiência Auditiva no Sistema Único de Saúde (SUS).
2014 Lei 13.055 Institui o Dia Nacional da Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS e dispõe sobre sua comemoração.
2014 Lei 13.005 Plano Nacional de Educação - PNE.
2015 PL 3.641 Inclusão de conhecimentos básicos sobre Braile e Libras nos componentes curriculares obrigatórios da educação básica.
2015 Lei 9.681 Dispõe sobre Diretrizes e Parâmetros para o desenvolvimento de Políticas Públicas Educacionais voltadas à Educação Bilíngue Libras/Português escrito a serem implantadas e implementadas no âmbito do Município de Goiânia.
2015 PL 185 Inclui o Art. 26-B à Lei nº 9.394/96, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da oferta da Libras, em todas as etapas e modalidades da educação básica.
2015 Lei 13.146 Lei Brasileira de Inclusão - LBI.
2015 Decreto 28.587 Institui as salas regulares bilíngues para surdos na Rede Municipal de Ensino do Recife.
2015 Resolução Contran 558 Dispõe sobre o acesso da Libras para o candidato e condutor com deficiência auditiva quando da realização de cursos e exames nos processos referentes à Carteira Nacional de Habilitação - CNH.
2016 PL 36 Institui o Dia Municipal dos Surdos a ser comemorado anualmente no dia 18 de Abril em Ouro Preto-MG.
2016 Lei 13.370 Altera o § 3odo art. 98 da Lei no8.112/90, para estender o direito a horário especial ao servidor público federal que tenha cônjuge, filho ou dependente com deficiência de qualquer natureza e para revogar a exigência de compensação de horário.
2017 PL 9.382 Dispõe sobre o exercício profissional e condições de trabalho do profissional tradutor, guia-intérprete e intérprete de Libras, revogando a Lei nº 12.319/10.
2017 PL 465 Altera a Lei nº 10.436/02, que dispõe sobre a Libras e dá outras providências, para tornar obrigatória a oferta de serviço de intérpretes de Libras em instituições públicas e empresas concessionárias de serviços públicos de assistência à saúde.
2017 Lei 2.271 Dispõe sobre a criação da Educação Bilíngue como integrante do Sistema Municipal de Ensino de Taboão da Serra-SP.
2017 PL 968 Dispõe sobre a obrigatoriedade de as provas de redação e interpretação de texto em concursos públicos, vestibulares e processos seletivos [...] serem corrigidas por profissionais com formação em Libras.
2018 Lei 2.368 ASSEGURA a exibição, em salas de cinema, de janela com intérprete de Libras em todos os filmes nacionais e estrangeiros no município de Manaus.
2018 Decreto 9.508 Tecnologias Assistivas e Adaptações para a Realização de Provas em Concursos Públicos e em Processos Seletivos.
2018 Decreto 9.656 Altera o Decreto nº 5.626/05, que regulamenta a Lei nº 10.436/02, que dispõe sobre a Libras.
2018 Resolução CSJT 218 Dispõe sobre o uso da Libras no âmbito da Justiça do Trabalho de primeiro e segundo graus para atendimento de pessoas surdas ou com deficiência auditiva.
2018 PL 180 Institui a criação das Escolas da Rede Municipal de Educação Bilíngue para Surdos no âmbito do município de Mossoró-RN.
2019 PL 10.964 Altera o art. 36 da Lei nº 9.394/96, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir Libras como disciplina obrigatória nos currículos dos ensinos fundamental e médio.
2019 Portaria 120 Aprova a criação da Escola Pública Integral Bilíngue Libras e Português Escrito do Plano Piloto no Distrito Federal. (08.04)
2019 Lei 8.383 Institui a criação das Escolas da Rede Pública de Educação Bilíngue para Surdos no âmbito do Estado do Rio de Janeiro.
2019 PL 562 Acrescenta o art. 26-B à Lei nº 9.394/96, que estabelece as diretrizes e base da educação nacional, para incluir no currículo do ensino fundamental e no ensino médio o conhecimento básico da Libras nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados.
2019 Decreto 9.465 Criação da Diretoria de Políticas Públicas de Educação Bilíngue para Surdos.
2019 PL “2019” Aprovação da Câmara: Projeto que estabelece que a Libras seja disciplina obrigatória, da Educação Infantil até o Ensino Médio no município de Goiânia (16.04).
2019 PL 02 Oferta de cursos de capacitação aos funcionários e colaboradores de entidades e estabelecimentos no atendimento às pessoas surdas no município de Ourinhos/SP.
2019 PL 0131 Dispõe sobre o acompanhamento de intérprete de Libras durante o pré-natal e parto de gestantes com deficiência auditiva em Goiânia.
2019 PL 682 Cria escolas bilíngues da rede pública estadual de educação de Minas Gerais.
2019 PL 11 Cria e regulamenta as profissões de Cuidador de: Pessoa Idosa, Infantil, PcD e Pessoa com Doença Rara. PL de 2016 aprovado em 21.05.19.
2019 PL 3.814 Regulamenta a profissão de tradutor e intérprete de Libras e dispõe sobre o exercício profissional e condições de trabalho do profissional tradutor, guia-intérprete e intérprete de Libras em Porto Velho-RO.
2019 Lei 3.027 Ensino da Libras da Educação Infantil ao Ensino Fundamental, como disciplina curricular obrigatória às crianças surdas e ouvintes na Rede Pública de Ensino do município de Cabo Frio.
2019 PL 1.243 Estabelece a inclusão das pessoas com deficiência auditiva entre os beneficiários da isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) incidente na aquisição de automóveis pela Lei nº 8.989/95.
2019 PL 125 Criação de escolas bilíngues para surdos no Mato Grosso do Sul.
2019 PL 136 Dispõe sobre a obrigatoriedade de bares e restaurantes oferecerem cardápio em braile ou em áudio para garantir a acessibilidade de pessoas com deficiência visual.

Fonte: SILVA (2019)

Além do acervo exposto, o Brasil também é signatário das ações internacionais pró-inclusão: Declaração Universal dos Direitos Humanos (UNESCO, 1948), Declaração Mundial para a Educação para Todos (UNESCO, 1990), Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994), Convenção da Guatemala (OEA, 1999), Carta para o Terceiro Milênio (REHABILITATION INTERNATIONAL, 1999), Declaração Internacional de Montreal (CONGRESSO INTERNACIONAL "SOCIEDADE INCLUSIVA", 2001) e Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (BRASIL, 2008).

O Ministro parece entender, equivocadamente, o trabalho dos “teóricos”, ou seja, daqueles que publicam livros, capítulos e artigos em periódicos qualificados: eles não retiram de uma cartola ideológica, ideias fantásticas sobre inclusão. Na realidade, publicizam estudos e resultados de pesquisas na forma de trabalhos científicos e demais tipos de publicação que possibilitam a fundamentação teórica na formação de professores e profissionais das demais áreas de atuação, bem como favoreçam a popularização da ciência no tocante a área da educação especial na perspectiva inclusiva. Em busca simples na base de dados da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), é possível identificar algumas informações significativas sobre o desenvolvimento da educação inclusiva no Brasil por meio de pesquisas realizadas nos programas de pós-graduação.

Quadro 2 Dissertações e Teses sobre Educação Inclusiva no Brasil (2000-2021) 

Termos de pesquisa Nº de Dissertações Nº de Teses
Educação especial 925 417
Inclusão de alunos com deficiência no Ensino Superior 363 132
Alunos com deficiência na Educação Básica 314 100
Atendimento Educacional Especializado 254 68
Alunos com deficiência na educação infantil 118 37
Inclusão de alunos com autismo 109 20
Sala de recurso multifuncional 82 22

Fonte: Elaboração própria (2021)

Não obstante, as dissertações e teses produzidas não fantasiam um mundo colorido e cheio de unicórnios onde os estudantes com deficiência são bem aceitos e convivem sem obstáculos com todos e progridem em seu aprendizado de vento em poupa. Aliás, quem é que trilha seu caminho na educação brasileira sem entraves e adversidades? Sem dúvida, não é a maioria que tem acesso à educação.

A luta da PcD e integrantes de movimentos sociais pró-inclusão tem feito com que a educação especial no Brasil seja um marco de conquistas relacionadas aos direitos humanos. Atualmente, as PcD têm garantido seu direito à saúde, à vida social, ao trabalho e à educação, como qualquer cidadão, conforme previsto pelo Ministério Público, pela União, pelos Estados e Municípios, cuja base é constitucional.

Historicamente, PcD foram marginalizadas, impedidas de desenvolverem suas capacidades e habilidades como indivíduos e cidadãos, sendo rotuladas com adjetivos capacitistas, como incapazes ou doentes, por influência de uma cultura alicerçada nos princípios do belo e do perfeito, como loucos. Durante séculos, foram reputados como seres à parte, que precisavam ficar fora do convívio de grupos sociais (MAZZOTTA, 1996). Com o Renascimento a busca do conhecimento científico deu lugar à preocupação com o indivíduo e com as soluções científicas para seus problemas. O avanço da medicina após o Renascimento e durante o Modernismo nos lançou à procura de novos horizontes que, até então, eram considerados suspeitos, pois a educação passava da transformação humanista para a científica, valorizando-se o conhecimento, somente quando este preparava o indivíduo para a sociedade e para a ação (LARROYO, 1970). Foi apenas no final do século XVIII, devido à busca do saber e o florescimento da liberdade individual, que as bases dos hospitais psiquiátricos de Bicêtre, no sul de Paris, por influência de Pinel, passaram a soltar os "loucos" das correntes e a tratar os doentes mentais de modo mais humanizado (FOUCAULT, 1994).

Minha hipótese é que com o capitalismo não se deu a passagem de uma medicina coletiva para uma medicina privada, mas justamente o contrário; que o capitalismo, desenvolvendo−se em fins do século XVIII e início do século XIX, socializou um primeiro objeto que foi o corpo enquanto força de produção, força de trabalho. O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma estratégia bio-política (FOUCAULT, 2003, p. 80).

Pela História podemos acompanhar o modo como a PcD foi tratada e concebida, conforme os padrões relacionados aos valores sociais, morais, filosóficos, éticos e religiosos nas diferentes culturas. As ações registradas a respeito da rejeição, dos maus tratos e da falta de visão, relacionadas aos que apresentavam alguma deficiência, abriram lugar ao paternalismo e ao assistencialismo, resistindo o conhecimento dos direitos do cidadão. O Brasil, em função de suas relações internacionais, foi influenciado por países da Europa e pelos Estados Unidos por volta do século XIX, formando grupos para o atendimento a cegos, surdos, deficientes mentais e físicos, por iniciativa de órgãos oficiais e, em alguns casos privados, por meio de alguns educadores que, preocupados com a questão, empenharam-se na concretização de atividades inovadoras em função delas. Apesar da formação desses grupos, somente no século XX, entre o término da década de cinquenta e início da década de sessenta, foi que a política educacional do país incluiu a educação especial no rol de suas atenções.

Durante um período de treze anos (1972-1985), as tendências políticas educacionais privilegiavam uma educação especial plenamente terapêutica, deixando os termos "preferencialmente" e "sempre que possível", darem a aparência de existirem reais preocupações com a educação do indivíduo em questão. Na realidade, conforme se situa na Portaria Interministerial n.º 186, numa atitude astuta, nem sequer havia exigência de professor especializado para a condução de classes especiais, mas este seria contratado "sempre que possível". A partir de 1986, época da construção de um governo democrático, a Educação Especial passou a ser compreendida como inerente à Educação, enfatizando o pleno desenvolvimento das potencialidades "do educando com necessidades especiais"3 por meio da Portaria CENESP/MEC n. º 69, de 28 de agosto de 1986, além de ditar normas à prestação de serviços de apoio técnico e/ou financeiro à Educação Especial nos sistemas públicos e privados de ensino.

Dois anos depois desse avanço com relação à educação especial, foi publicada oficialmente a nova Constituição Brasileira (BRASIL, 1988), que colocava como dever do Estado o Atendimento Educacional Especializado (AEE) às PcD na rede regular de ensino, e que passavam, a partir de então, a serem vistas como cidadãos brasileiros com direitos assegurados por normas constitucionais. As preocupações relacionadas às suas demandas começavam a surgir e a legislação passou a ser observada, já em atraso, a fim de melhor lhes garantir as condições de vida em sociedade.

Passos significativos foram dados para a melhoria da educação especial desde o ano de 1957 até 1993. Entre 1993 até 1996, muitos projetos foram encaminhados ao Senado para a exigência de medidas mais contundentes quanto aos direitos da PcD e, como resultado de 25 anos de seguimentos definidos pela tecnicista Lei n.º 5692/71, saiu a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, n.º 9.394, em 20 de dezembro de 1996, alterando antigos padrões da educação brasileira, inclusive os referentes à educação especial. Forma-se uma nova perspectiva para a educação especial. O marco diferencial é dado por colocá-la mais unida à educação escolar e ao ensino público, pois passa a ser caracterizada como modalidade de educação escolar, designada às PcD, iniciada ainda na educação infantil (BRASIL, 1996, Cap. V, Artigo nº 58). A LDBEN 9394/96 vigora como fundamental à preparação e capacitação do professor em plano nacional para o trabalho heterogêneo e inclusivo da PcD no ensino regular, medida essa (artigo 60) que colabora com a educação nacional, exigindo melhor qualificação do professor para ministrar aulas.

Nesta síntese acerca da história da educação especial em uma jornada de perspectiva inclusiva, é percebível que o Ministro se encontra desorientado quando discursa: “nós não queremos inclusivismos”, como se as conquistas sociais da PcD juntamente com outros integrantes do movimento pró-inclusão, fossem quimeras de um grupinho de ensandecidos sem noção. Aquele sentimento meio narcísico pelo qual toma para si a vanglória de montar salas, almofadar paredes, dar opção de matrícula, capacitar e oferecer profissionais qualificados à sociedade, nada mais é do que cumprir e fazer cumprir todo arcabouço legislativo que ampara a educação democrática, portanto, inclusiva, com Atendimento Educacional Especializado (AEE) há pelo menos duas décadas, conforme pode ser conferido no quadro 1 (Lei 10.845 BRASIL, 2004); Resolução CNE/CEB 4 (BRASIL, 2014); Decreto 7.611 (BRASIL, 2011); Lei 13.146 (BRASIL, 2015), dentre tantas outras).

Quanto a maneira mais adequada se se referir à PcD e que o Ministro afirma não ter expertise para saber sobre isto e que sugere haver uma linguagem própria, cabe dizer que a expressão “Pessoa com Deficiência” é de uso internacional e está em pauta desde 1994 por ocasião da Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994) que fortaleceu o processo de empoderamento destas pessoas para fazerem suas escolhas e tomarem suas próprias decisões, sendo protagonistas de suas histórias. A terminologia foi cunhada pelos movimentos internacionais das pessoas com deficiência e firmada na “Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência”, adotado pela Organização das Nações Unidas em 2006 e ratificado no Brasil pelo Decreto Nº 6.949, em 2009, ou seja, há 12 anos. Sem dúvida, tempo mais que suficiente para que professores da educação básica, do ensino superior, gestores da educação, profissionais da saúde e do direito, reitores e ministros, tenham tomado ciência e consciência do termo e de seu significado e sentidos produzidos na superfície e nas várias camadas turvas do poço das (des)igualdades sociais que nos (des)hidrata de justiça social.

Extensas e densas trilhas de princípios e valores pró-inclusão

O diagnóstico é uma construção social que tem pesado no entendimento da diferença. Ele tem o poder de dizer quem somos, o que somos, como deveríamos ser, como seremos e qual a rota a seguir, declarar se somos insanos ou não. O diagnóstico pautado no modelo médico da deficiência estabelece categorias a partir da diferença, agrupa indivíduos pela diferença que apresentam, compara-os e os estigmatiza como diferentes em relação a maioria dos indivíduos ( é o pareamento social da homogeneidade com a hegemonia. O diagnóstico sempre aponta algo que falta no indivíduo em relação aos demais, sobressalta déficits, ignora potencialidades. O diagnóstico sempre se repete por todo o planeta, ele é fixo e estático, ele é inanimado, porém, um poderoso dispositivo de aniquilamento e exclusão quando supervalorizado como sentença ao invés de ser compreendido como informação pontual. A exemplo, o diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista, da Síndrome de Down, da esquizofrenia, da deficiência intelectual ou de qualquer outro conjunto de sintomas, repetir-se-á pelo planeta, contudo, as pessoas nunca se repetem porque elas são únicas, são singulares e, ao mesmo tempo, complexas em toda sua subjetividade (ORRÚ, 2017).

O diagnóstico enfatiza a diferença de um indivíduo ou de agrupamentos de indivíduos em relação a maioria que se encontra dentro de um padrão estabelecido pela sociedade, majoritariamente, homogênea e hegemônica. Mas é preciso superar e lutar contra esse dispositivo que aniquila a subjetividade das pessoas, que precede às potências humanas, que é elemento de uso político para o controle e manipulação social das massas. Nas palavras de Foucault,

[...] essa série de fenômenos que me parece bastante importante, a saber, o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder. Em outras palavras, como a sociedade, as sociedades ocidentais modernas, a partir do século XVIII, voltaram a levar em conta o fato biológico fundamental de que o ser humano constitui uma espécie humana. É em linhas gerais o que chamo, o que chamei, para lhe dar um nome, de biopoder (2008, p. 3).

Os discursos do Ministro revolvem algo muito mais profundo que está posto na sociedade e que sofre manipulação conforme os interesses do Estado e da classe dominante que é a subestimação do potencial do outro que se difere de uma maioria.

É essa maneira de captar os processos de singularização e enquadrá-los imediatamente em referências teóricas por parte de especialistas, referências de equipamentos coletivos e segregadores. [...] A produção de subjetividade como instrumento do capital é percebida principalmente pelas elites: [...] as forças sociais que administram o capitalismo hoje. Elas entenderam que a produção de subjetividade talvez seja mais importante do que qualquer outro tipo de produção, mais essencial até do que o petróleo e as energias (GUATTARI & ROLNIK, 2005, p. 35-78).

A todo tempo esses indivíduos são violentados em sua identidade singular e engavetados pela diferença que é traduzida em números que se convertem em dados e que são utilizados para os interesses do capital. Aqui, no caso, são os 12% de incapazes de aprender e de conviver com outros em uma mesma sala de aula, visto que as escolas não estão adequadamente estruturadas para os receber, tampouco os professores estão qualificados para o trabalho pedagógico. Ele faz uma confusão entre convívio e capacidade para aprender. Ratifica que o diagnóstico é feito pela sociedade, o que, então, justificaria sua defesa e daqueles que com ele comungam, que esses, apenas 12%, devem ser colocados em um lugar à parte. Um lugar até bem-feitinho, bem estruturado, só que onde não atrapalhem os demais, aqueles que “eles” consideram capazes de aprender e de conviver com outros humanos baseados em critérios diagnósticos e, principalmente, na repetição e (re)produção de uma cultura excludente que aparta quem concebe como diferente para lá da margem periférica da sociedade, para lá dos muros que engolem as subjetividades humanas e torna os indivíduos invisibilizados. O Ministro vai além e cita a Paraolimpíada como se fosse um prêmio ou lugar de consolação para aqueles que, por limitações físicas, não podem competir com gente “sem limitações”. Um discurso raso, porém, riscoso, legitimador de apartheids.

O que eu falei a respeito dessa questão, até me desculpei publicamente usei essa palavra “atrapalhar”, eu estava me referindo a 12%, praticamente, das crianças, das escolas públicas que dentro de um universo de 1 milhão e 300 crianças que têm deficiência e que são, é, têm um limite, têm um grau de deficiência mental que impede dela ter o convívio, não o convívio social, mas dentro da sala de aula pra que elas possam aprender. Isso é interessante porque esse diagnóstico de limitações que as pessoas possuem, é um diagnóstico que é feito pela sociedade. Nós estamos no meio da paraolimpíadas. Por que? Porque nós descobrimos que existem pessoas que têm limitações físicas, no caso, que elas não podem competir com outras que não têm (JOVEM PAN NEWS, 2021).

Não faltam assistencialismos, preconceitos, discriminações, capacitismos nos discursos do Ministro que exalta sua formação acadêmica e sua autoridade, quando diz: “Imagine que eu com a minha formação4, eu vou querer tirar uma criança que tem deficiência e jogá-la em qualquer lugar. Não! Não vou fazer isso” (JOVEM PAN NEWS, 2021).

Mas a questão maior não é se irá jogar a criança em um lugar qualquer ou em um lugarzinho arrumadinho. Primeiramente, há que se entender que não se trata apenas de crianças, mas também de adolescentes, jovens e adultos com deficiência no que diz respeito às comoções assistencialistas que não transformam a sociedade em um lugar, realmente, melhor para todas as pessoas viverem.

Seguidamente, trata-se do direito à educação na perspectiva inclusiva em escolas da rede regular comum a todos os aprendizes, e isso se estende às instituições de ensino superior. Não é sobre tratar as criancinhas incapazes com carinho: “O assunto está lá pra análise porque se julgou que a nossa lei, era uma lei excludente, uma lei que não olhava com carinho para os deficientes e suas famílias” (TV BRASIL, 2021), mas entender que não são anjinhos especiais, seres sobrenaturais, porém, são sujeitos com direitos sociais vigentes, tal como o acervo legislativo nos evidencia em mais de 30 anos de luta por uma sociedade menos excludente. Explicando melhor, não é sobre os 12% serem (des)locados para outros lugares considerados por “eles” como mais adequados as suas diferenças incapacitantes, mas é sobre transformarmos o Brasil em um lugar melhor para todas as pessoas viverem, juntas, sendo diferentes, pois é na “híbris que cada um encontra o ser que o faz retornar, como também a espécie de anarquia coroada, a hierarquia revertida, que, para assegurar a seleção da diferença, começa por subordinar o idêntico ao diferente” (DELEUZE, 1988, p. 49).

Cabe dizer que a exceção de 12%, aberta pelo Ministro, é perniciosa, pois dá margem para o alargamento do abismo da segregação que nunca se saciará e que por meio de relatórios realizados por profissionais da saúde, muitas vezes feitos em minutos de um único encontro com o indivíduo “diferente”, fabricará, novamente, incontáveis laudos de onde se partirá o pretexto para colocá-los/matriculá-los/depositá-los em espaços institucionais especializados e/ou classes especiais que os categorizam, definitivamente, como deficientes incapazes de conviver com outras pessoas que se encontram em um patamar superior, inalcançável para limítrofes e loucos.

A história da loucura e da clínica nos aponta à produção social de conjuntos de seres humanos em poder de ações clínicas e terapêuticas em uma incessante tentativa de normalizar a vida desde os primórdios do século XVII. Essa normalização foca na docilização do corpo e obtenção violenta de sua resistência, na padronização das pessoas aclamada pela sociedade que se orienta pela lógica do mercado, do produtivismo, do lucro, da manipulação do indivíduo. [...]. A normalização enunciada pelo instrumento diagnóstico que aponta o que é o anormal parece bem-aceita pela sociedade que não questiona o biopoder; ao invés, o engrandece e o ratifica, pois quem poderia contrariar os saberes acumulados da medicina? (ORRÚ, 2017, p. 17).

Comungo com a substância de Gilles Deleuze: “Queremos pensar a diferença em si mesma e a relação do diferente com o diferente, independentemente das formas da representação que as conduzem ao mesmo e as fazem passar pelo negativo” (1988, p. 8). Neste prisma, a diferença não é apenas do outro cujo diagnóstico ressalta déficits, inabilidades e incapacidades como categoria negativa. Porém, a diferença é de todos, somos todos, igualmente, diferentes! A diferença é minha, é sua, é do outro, é do outro do outro. A diferença é um atributo próprio da espécie humana, ela nos constitui a todas e todos. A diferença não é fixa e estática, ela não pode ser aprisionada e fixada pelo instrumento diagnóstico que atua na supressão da subjetividade das pessoas. A diferença é múltipla e plural, ela nos arranca do vício discursivo das repetições e sobrevalorações, sempre tão colado ao pensamento neoliberal.

Se somos todos diferentes, temos potenciais e dificuldades diferentes; aprendemos de modos diferentes; temos capacidades e habilidades diferentes; sentimos, percebemos e reagimos ao mundo e no mundo de formas diferentes. Nesta lógica, o avanço de um governo não está na exclusão de pessoas por sua diferença dos espaços sociais comuns. Mas está na capacidade de romper com as estruturas conservadoras e tradicionais de um ensino baseado na memorização, repetição, fixação e alienismo das questões sociais tão insalubres para todos nós pela brutalidade com que trata os que se encontram em condições menos favorecidas. Está na determinação de investir na qualificação dos profissionais da educação e da saúde, bem como na infraestrutura e acessibilidade das instituições de ensino e de saúde para que acolham todas as pessoas, com deficiência ou não, com metodologias de ensino, valorosamente, encorajadoras do potencial de aprendizagem de todas e todos; criativas e desapegadas de ranqueamentos e competitividades que roubam a infância e a doçura de serem crianças, mulheres e homens amorosos, generosos, capazes de viverem e construírem juntos, uma sociedade cada vez menos bruta, menos capitalista, menos patriarcal, menos injusta, menos excludente, menos des-humanizada.

Esta diferença que nos constitui tem sido capturada e enclausurada em gavetas sociais como manobra a favor do mercado que se exaspera quando o sonho do oprimido não é se tornar opressor, mas ser protagonista de sua própria história e, assim, transformar-se a si mesmo enquanto transforma o mundo e este, transforma-se para acolher a todas e todos, sem distinção, sem acepção de pessoas, sem distorções imagéticas que amenizam, pelo discurso assistencialista e especial, o tamanho da (des)igualdade e da exclusão no país.

Considerações inesgotantes

Não há enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo: ele se integra sempre em um jogo enunciativo, onde tem sua participação, por ligeira e ínfima que seja. [...]. Não há enunciado que não suponha outros; não há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo de coexistências (FOUCAULT, 1987, p.114).

Não há enunciados livres e neutros de ideologias. Resta-nos ter ciência de que princípios e valores estamos lançando mão para a (des)construção de nossa sociedade. Os discursos do Ministro podem ser matérias para muitas outras análises possíveis, mas para este ensaio, ele se traduz uma estrutura de percepções e doutrinas que legitimam o poder econômico daqueles que dominam pela e para a hegemonia com fins mercadológicos, explícitos ou velados de exclusão.

Os princípios e valores da Inclusão se constituem uma rede de possibilidades de transformação da sociedade sem concílios com aparatos assistencialistas ou, explicitamente segregacionistas, que depredam a dignidade humana, silenciam os oprimidos e esquartejam a justiça social.

Diante da compreensão de que a diferença não pertence a um grupo de indivíduos que se distanciam do padrão homogêneo e hegemônico da sociedade, mas que é uma qualidade própria da espécie humana, resta-nos formular as questões de maneira plausível. Em outras palavras, a interrogação principal não é: O que devemos fazer ou onde devemos colocar os “especiais” com deficiência para que não atrapalhem os demais estudantes? Problematizar os problemas é preciso por meio de uma vontade verdadeira de construir possibilidades de aprendizagem para todas as pessoas, em espaços comuns, com garantia do usufruto de direitos sociais conquistados ao longo das décadas para que todas e todos sejam abraçados por uma educação democrática, portanto, inclusiva, preferencialmente, pública e gratuita de excelência, principalmente, na constituição de cidadãos mais generosos, mais amorosos, mais cônscios de seus deveres colados à promoção da dignidade humana e da justiça social, principalmente para os que se encontram em condições menos favorecidas. Algumas questões problematizadoras poderiam ser: o que tem atrapalhado a inclusão se movimentar e estabelecer uma sociedade justa e acolhedora para todas as pessoas? Quem, de fato, e por que, é beneficiado com a segregação e marginalização de indivíduos considerados improdutivos ao capital? A quais interesses um governo neoliberal serve e quem ganha com isso? A instituição de ensino com foco na competitividade, métodos repetitivos e inflexíveis de ensino e repetição, ranqueadoras de resultados, comparativas e excludentes, beneficiam a quem? A essas indagações este ensaio buscou contestar dentro de uma perspectiva inesgotante do tema, uma vez que o tamanho das (des)igualdades sociais e a densidade dos dispositivos de exclusão, ainda não podem ser apercebidas ou cessadas nas águas estagnadas desse poço tão fundo, sempre abastecido pelas forças da ganância e do poder de uma minoria dominante que não se basta de explorar e sacrificar os incautos oprimidos.

O caráter revolucionário da Inclusão não faz conchavos com o menos pior ou com o fatalismo enquanto sistema ideológico que favorece o neoliberalismo. Conquanto, na perspectiva inclusiva da educação, os (des)locamentos não ocorrem para o afastamento dos sujeitos dos espaços sociais que devem ser comuns a todas as pessoas, conforme o acervo legislativo e os estudiosos da temática nos apontam. O (des)locamento deve se dar nas concepções reducionistas dos seres humanos para um outro espaço que só pode ser construído e ocupado a partir da consciência cidadã e em coletividade na compreensão, experiência e vivência da diferença e das liberdades de Ser e estar no mundo, com o mundo e com as outras pessoas, sendo diferente.

“Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome” (Clarice Lispector, 1998).

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1Para este ensaio foram escolhidos como referenciais teóricos três autores de bases epistemológicas distintas: Paulo Freire da epistemologia crítico-dialética, Gilles Deleuze e Michel Foucault do pós-estruturalismo.

2Decreto nº 10.502, de 30 de setembro de 2020 que institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida. O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria, referendou a liminar deferida pelo ministro Dias Toffoli na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) para suspender a eficácia do Decreto 10.502/2020 que debilita o dever de as escolas incluírem alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na rede comum de ensino a todas e todos os estudantes. O decreto se constitui um retrocesso à Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva construída a muitas mãos pelos movimentos sociais pró-inclusão (BRASIL, 2008).

3Expressão usada pela primeira vez em substituição do termo "aluno excepcional". Foram muitas as terminologias utilizadas ao longo das décadas até chegarmos ao termo atual: pessoa com deficiência.

4Milton Ribeiro é teólogo, pastor da Igreja Presbiteriana, advogado, tem algumas especializações lato sensu, mestrado em direito e doutorado em educação. É professor universitário e foi vice-reitor em uma universidade privada.

Recebido: 21 de Setembro de 2021; Aceito: 17 de Maio de 2022

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