Introdução
Em sua obra Ensaios reunidos de Sociologia da Religião de 1920, do qual a Ética Protestante e o espírito do capitalismo2 constitui a primeira parte, Max Weber, por meio de um estudo genealógico, procurou compreender em que medida os efeitos da constituição de uma religiosidade subjetiva proporcionada pelo ascetismo protestante teria resultado em uma conduta de vida voltada para a vocação. Por meio da análise histórica, cultural e sociológica da transfiguração ética dos fundamentos da ascese protestante que, desde o século XVI teriam possibilitado a constituição da especialização como destino social e educacional do homem moderno. Estes estudos permitiram a Weber estabelecer os princípios que teriam fundamentado o processo de racionalização e secularização que caracterizariam, segundo sua concepção, a modernidade ocidental. Este artigo tem como objetivo compreender qual teria sido para Max Weber, o papel da vocação, compreendida como dever profissional, na constituição da subjetividade moderna.
O processo de racionalização seria, para Weber, tanto um processo de subjetivação quanto de socialização, uma vez que teria se constituído pela produção de modos de existências que teriam na intersubjetividade a condição de constituição da subjetividade. A percepção objetiva do mundo, instituída pelo processo de racionalização, teria sido orientada segundo categorias subjetivas que ofereceriam significados objetivos, socialmente racionalizados, de compreensão da realidade (FREUND, 1990).
Um dos interesses fundamentais dos estudos do processo de racionalização empreendidos por Weber constituiu-se pelo problema de como o trabalho, tomado em sua forma geral de labor, teria se convertido, por meio da concepção de vocação (Beruf) em profissão mundana (SCHLUCHTER, 2017).
Na Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (WEBER, 2004); (WEBER, 2005), Weber apresenta a proposição segundo a qual o ascetismo protestante, inicialmente fundado em uma ética religiosa soterológica, transubstanciou-se em espírito do capitalismo. A força intrínseca da ascese intramundana ofereceu ao capitalismo o dinamismo que gradualmente orientou racionalmente a condução da vida cotidiana e, por meio da vocação, fez do crente um profissional e do sucesso econômico neste mundo o objetivo último de todas as atividades humanas. O protestantismo ascético impôs, como exigência para a salvação, o exercício virtuoso das atividades exercidas pela profissão temporal que deveria ser implacavelmente, permanentemente e sistematicamente submetida aos escrutínios da fé. A elevação da profissão à condição de salvação teria sido o resultado da concepção de vocação, introduzida pelo ascetismo protestante, elemento que teria permitido a transição do trabalho, como obra de salvação para a glória de Deus, para o trabalho profissional capitalista. Se no ascetismo protestante a vocação era a condição para a salvação, no capitalismo transubstanciou-se em especialização profissional, objetivo em si de toda a atividade humana.
Para Weber, a especialização é uma das facetas mais eficazes da racionalização ocidental e uma das condições objetivas da existência humana na modernidade. A emergência do homem especializado (Fachmenschen) seria o principal elemento constitutivo da ordem social especificamente ocidental e sua formação exigiria um tipo de instrução própria, a educação para a qualificação especializada. A educação também passaria, assim, por um processo de transubstanciação. O ideal clássico da educação geral, polímata preconizada na concepção clássica de Bildung, torna-se Ausbidung, treinamento. A educação que antes visava educar os alunos para tornarem-se Kulturmenschen, homens de cultura, na modernidade visa a instrução dos Fachmenschen , os especialistas.
Racionalização, desencantamento do mundo e a intelectualização das imagens do mundo
Weber considerava que os processos de racionalização e desencantamento que caracterizaram o desenvolvimento capitalista no Ocidente, teriam decorrido do processo de racionalização religiosa. Sua gênese se encontraria no desencantamento dos sistemas míticos de interpretação do mundo. Como observa Schluchter (1988) são as imagens do mundo que são racionalizadas e desencantadas por meio da eliminação das concepções mágicas do mundo e pela sistematização e formalização dos conteúdos culturais.
A constituição de um processo de desencantamento pressupõe a existência de orientações e visões de mundo encantadas e mágicas que o teriam precedido. Neste sentido, tratar do processo de desencantamento do mundo é tratar das condições que levaram à gradual redução dos aspectos mágicos que constituíam as imagens de mundo no Ocidente e que teriam sido acompanhados pela racionalização e secularização do campo do conhecimento sobre o mundo (SCHLUCHTER, 1988). Em particular na Ética Protestante e Espírito do Capitalismo, Weber teria procurado determinar quais valores éticos subjetivados teriam orientado a ação dos sujeitos determinando as escolhas que orientaram a sua ação no sentido de uma cada vez maior racionalização (WEBER, 2004); (WEBER, 2005).
Em seu estudo sobre a Ética Econômica das Religiões Mundiais (WEBER, 1989), procura estabelecer em que medida o processo de racionalização é associado a uma crescente autonomização e diferenciação das diversas esferas de conhecimento. Formalizadas e institucionalizadas como campos científicos específicos, legitimadas por métodos de investigação cada vez mais racionalizados, e configuradas como disciplinas universitárias e técnicas autônomas, as diferentes esferas de conhecimento afastam-se das imagens de mundo de caráter mítico e religioso que antes tinham lhe outorgado sentido. O processo de racionalização corresponde, assim, a um processo de intelectualização e cientificização, cuja tendência é a constituição de esferas cada vez mais distintas e especializadas de conhecimento.
As imagens do mundo, formuladas pelas diferentes culturas, consistiriam de elementos coordenados e coerentes que permitiriam atribuir significados aos aspectos obscuros da existência humana e teriam sido concebidas, predominantemente, por grupos profetas, grupos religiosos e intelectuais. Essas imagens do mundo deveriam oferecer elementos orientadores de uma racionalização coerente das condutas práticas constituindo, dessa forma, uma teodiceia racional (TENBRUCK, 1980).
As imagens mágicas e encantadas do mundo, que teriam precedido o processo de desencantamento, conceberiam um mundo governado por forças imanentes, por deuses intramundanos que habitariam a própria natureza das coisas. A multiplicidade de deuses corresponderia à própria essência multíplice da vida e do mundo. O aparecimento do conceito monoteísta determinou a transformação da essência multíplice e imanente em um Deus supramundano. Os profetas do judaísmo antigo teriam introduzido uma interpretação intelectualizada das visões de mundo que acrescentava à divindade aspectos punitivos e recompensadores das ações humanas neste mundo. O destino dos homens, neste mundo, passava a ser governado de acordo com a observância de mandamentos éticos estabelecidos por um Deus localizado fora e para além da própria esfera da vida (WEBER, 1989); (TENBRUCK, 1980).
Em particular, as interpretações intelectualizadas das visões de mundo, por meio de uma teologia fundamentada em uma interpretação coerente do mundo que materializariam imperativos éticos, teriam possibilitado a constituição de um saber organizado e racionalizado, ainda no período anterior ao desenvolvimento do capitalismo no Ocidente. Ao superar as descrições mágicas ou a busca de instrumentos de intervenção mágica no mundo, por meio da constituição de um saber organizado, a gradual interpretação intelectualizada do mundo teria fornecido um sistema de compreensão que imprimia uma organização lógica entre a visão de mundo e os imperativos éticos religiosos. Neste sentido, para Weber, teriam sido os interesses práticos, orientados pela necessidade de estabelecer uma ordem ética às relações intramundanas que teriam determinado os primeiros estágios do processo de racionalização.
A ascese protestante, iniciada com a reforma luterana no século XVI, teria constituído, para Weber (WEBER, 2004); (WEBER, 2005), o estágio final do processo de racionalização e desencantamento do mundo e seu desdobramento teria sido o espirito capitalista.
A conclusão do processo de desencantamento religioso fornece o espírito a partir do qual o capitalismo se desdobra em seu papel de força racionalizadora da modernidade. A emergência do último estágio da racionalidade é levada adiante por novos agentes - ciência, economia, política. (TENBRUCK, 1980, p. 322)
O processo de intelectualização inerente ao próprio processo de racionalização e ao processo de desencantamento do mundo teria determinado, em seu limite, a cientificização e especialização, aspectos característicos da modernidade.
A ascese protestante e a profissionalização do homem moderno
Em seu estudo sobre a Ética Protestante e espírito do Capitalismo (WEBER, 2004); (WEBER, 2005) Weber apresenta a tese segundo a qual a ascese protestante pretendia assegurar a salvação por meio da internalização de um ideal ascético que imprimia uma necessidade de controle metódico de toda a conduta humana. A vocação constituiria o elemento interiorizado que se materializaria na intervenção no mundo exterior por meio da profissão.
A ascese protestante ofereceu, por meio da predestinação, uma visão de mundo capaz de superar o abismo representado pelo abandono do homem à existência terrena por um Deus supra-terreno cujos desígnios não podem ser perscrutados. Sendo desconhecido o destino individual, a atividade de dominação do mundo, que inclui dominação do próprio corpo, dos desejos e paixões, converteu-se na busca de indícios ou sinais de salvação, diante da angústia provocada pelas incertezas em relação ao estado de graça (SCHLUCHTER, 1988).
A ascese compeliu o protestante puritano a exercitar um metódico e incessante controle de toda a sua atividade mundana. Tratar-se-ia, para Weber (2004; 2005), de um processo de intelectualização de todos os atos cotidianos. Não haveria lugar para espontaneidade ou desejos incontidos. O resultado seria, portanto, uma modelagem racional e sistemática de todos os atos da vida que assumiriam uma configuração moral em sua totalidade.
A intelectualização de cada ação corresponderia à permanente reflexividade de toda a conduta de vida que se tornaria a perspectiva racionalizada de toda ação. A graça e a salvação seriam, desta forma, o resultado desta constante vigilância sobre si e todo o ato deveria ser antes escrutinado e orientado pelos princípios da fé.
A ascese protestante forneceu um instrumento de racionalização intelectual e individual do mundo. Diante da incerteza da possibilidade da salvação, o crente encontraria na racionalização permanente da conduta de vida a tranquilidade interior por meio da certeza que a vida virtuosa lhe forneceria. Por meio da ascese protestante a salvação, que no catolicismo estava localizada na esfera extramundana, é incorporada à esfera deste mundo, e garantida pelas ações cotidianas. Weber atribui papel essencial à vocação neste processo.
A ascese católica correspondia à vocação do monge, que se refugiava do mundo para o exercício pleno da fé. O mosteiro era o lugar por excelência daqueles que tinham ouvido o chamado de Deus e cumpriam o destino de sua vocação afastados das tentações do mundo por meio do cumprimento das regras monásticas. A excelência pretendida pelo monge consistia na especificidade da vida santa que estava assegurada pela superação da moralidade intramundana. A ascese protestante, entretanto, corresponderia a uma realização da vocação neste mundo, em meio a todas as tentações mundanas exigindo, do fiel, uma resignação ética que deveria ser exercida em todos os momentos de sua vida. A secularização da fé teria tido o seu caminho aberto pela ascese intramundana e um dos seus principais expositores teria sido Martinho Lutero.
Ao apresentar as duas teses sobre a liberdade e servidão do espírito no Tractatus de libertate Christianade 1520, Lutero afirmou: “O cristão é um senhor libérrimo sobre tudo, a ninguém sujeito. O cristão é um servo oficiosíssimo de tudo, a todos sujeito” (LUTERO, 1989, p. 437).Esta aparente contradição corresponde à natureza dupla do cristão como “ pessoa interior” e como “pessoa exterior”. Esta dualidade corresponde ao reconhecimento da liberdade subjetiva do homem e a um processo de secularização da fé. Como Flickinger (2018) observa, Lutero procurou solucionar a contradição aparente entre a liberdade interior do homem e o homem exterior reconhecendo no homem uma liberdade subjetiva, alcançada mediante a fé que o teria libertado das regras e imposições propagadas pelos poderes eclesiásticos católicos. Lutero alertava, entretanto, que a liberdade do homem interior, que lhe poderia garantir o domínio sobre todas as coisas do mundo, o deixaria exposto às tentações do mundo exterior.
Ainda que a pessoa [...] seja suficientemente justificada interiormente, segundo o Espírito, por meio da fé, tendo tudo o que precisa ter, a não ser que esta mesma fé e opulência tem que crescer dia a dia, até a vida futura - ainda assim a pessoa permanece nesta vida mortal sobre a terra, na qual é necessário que ela governe seu próprio corpo e lide com pessoas. (LUTERO, 1989, p. 447)
Os impulsos e desejos provenientes do mundo poderiam sobrepor-se às conquistas interiores alcançadas pela fé. Um risco que só poderia ser evitado, se as tentações pudessem ser mantidas sob um controle eficiente. A solução apresentada por Lutero é a submissão do homem à racionalidade da ordem social dada, com vistas a disciplinar as forças que ameaçassem a fé evitando o risco desta liberdade individual afundar a própria sociedade no caos. O homem exterior luterano deveria, assim, governar o seu próprio corpo no convívio social. Este governo demandaria um treinamento e subjugação do corpo por meio de jejuns, vigílias e trabalho, disciplinando-o com moderação, tornando o homem exterior submisso à fé do homem interior pela via da razão (FLICKINGER, 2018).
Estas obras, porém, não devem ser feitas na opinião de que por elas alguém fosse justificado perante Deus - pois a fé, que sozinha é a justiça perante Deus, não suporta esta opinião falsa. Elas devem ser feitas apenas com a intenção de levar o corpo à servidão e purificá-lo de suas más concupiscências, de maneira que o olhar se volte tão-somente para as concupiscências a serem expurgadas (LUTERO, 1989, p. 448).
Lutero apresenta o trabalho nas obras deste mundo não é expiação dos pecados, mas demonstração livre do amor gratuito a Deus, que não tem nenhum outro objetivo senão o louvor.
Visto que a alma é purificada pela fé e levada a amar a Deus, ela quer que tudo seja purificado de igual modo, precipuamente o próprio corpo, para que com ela tudo ame e louve a Deus. Assim acontece que a pessoa, por causa da exigência de seu corpo, não pode ficar ociosa, e por causa dele é obrigada a obrar muitas coisas boas, para submetê-lo à servidão. Mesmo assim, as obras não são aquilo pelo qual [a pessoa] é justificada perante Deus, mas ela as faz por amor gratuito em obséquio de Deus, nada objetivando senão o beneplácito divino, ao qual gostaria de obsequiar em tudo da forma mais oficiosa. (LUTERO, 1989, p. 448)
Lutero alerta, entretanto, que não são as próprias obras, por maiores que sejam, ou mesmo os castigos e o trabalho que levariam à salvação. A repressão da lascívia e concupiscência do corpo é um ato livre de fé, e apenas esta pode garantir a salvação.
Por isso cada um pode concluir com facilidade em que medida ou discrição (como dizem) deve castigar seu corpo: jejuará, vigiará e trabalhará tanto quanto julgar suficiente para reprimir a lascívia e a concupiscência do corpo. Os que, porém, presumem ser justificados pelas obras dão valor não à mortificação das concupiscências, mas unicamente às próprias obras, pensando que se fizessem o mais possível e as maiores, estariam bem e se teriam tornado justos, inclusive lesando, às vezes, o cérebro e destruindo a natureza, ou, ao menos, tornando-a inútil. É uma enorme insensatez e ignorância da vida e fé cristã querer ser justificado e salvar-se sem a fé, pelas obras (LUTERO, 1989, p. 448)
Isto implicou, para Weber (2004; 2005), a ampliação e intensificação da ascese, que agora secularizada, era estendida para além dos mosteiros a todos os leigos. A busca soteriológica torna-se intramundana e a vocação, concebida como profissão, constitui-se como o exercício racional da salvação compreendida como obra de Deus neste mundo. A profissão seria o trabalho racionalizado em um mundo desencantado. A ascese puritana consistiu, assim, em uma transubstanciação do trabalho no tempo profano em uma vocação, que subordinou todos os aspectos da vida à salvação. A ideia do trabalho árduo adquiriu um novo alcance e uma nova substância convertendo-se em virtude e como o meio mais seguro para a salvação.
A sistematização racional da conduta da vida constituiu-se, nesta perspectiva, como um processo de sujeição internalizado, fundado em uma fé subjetiva intransigente que integraria todas as esferas da vida. Trata-se de um processo que Schluchter (1996) identifica em termos de individuação, secularização e cotidianização (SHLUCHTER, 1996). O ascetismo constituiria, assim, um modo de conduta que permitiria regular o conflito entre o ideal ético da salvação e as exigências objetivas do mundo cotidianamente impostas pelas atividades econômicas, ordenando a multiplicidade da vida mundana. Colocado a todo o momento de sua existência diante da alternativa de eleição entre os prazeres mundanos e a salvação, o protestante ascético deveria exercer a vocação para a salvação por meio de todas as atividades diárias, garantindo a virtude de todas as ações intramundanas. Diferia, assim, do católico, cuja esperança de salvação era extramundana, fundada no desejo de superação das tensões deste mundo em uma vida após a morte. No caso do protestante ascético seria, essencialmente, a ausência de qualquer possibilidade de se conhecer os indícios de salvação que justificavam a concepção segundo a qual a confirmação da salvação encontrar-se-ia na carreira temporal.
A obra no mundo contribuiria para a maior glória de Deus, conferindo um parâmetro objetivo para a possibilidade de salvação. Nesta perspectiva, a eficácia da fé tinha como medida a própria eficácia da transformação do mundo como tarefa individual e subjetiva. A vocação apresentar-se-ia como elemento de transitividade entre a ética subjetivada e o sucesso objetivo neste mundo, passível de verificação pelo êxito econômico. Moldar o mundo e a ordem social para glória e maior magnificência de Deus conduzia à racionalização cada vez maior das atividades intramundanas como orientação das atividades cotidianas. A eficiência seria, desta forma, um critério de avalição da vocação, não porque resultava na prosperidade econômica, mas porque constituía um dispositivo de evidência objetiva da eleição ética subjetiva.
Na opinião de Garcia (1992), Weber teria procurado expressar a transição da Bildung para Beruf, que teria como fio condutor a influência de Goethe. Seria na conferência “Ciência como Vocação” (Wissenschaft als Beruf) que Weber apresentaria uma síntese desta transição, uma vez que se entrecruzam ali os temas do trabalho, destino e as “exigências do dia”. Garcia anota que Weber teria procurado substituir a atitude passiva pela ação, pela necessidade de se responder, como homem e como profissional ao momento presente, isto é às exigências de cada dia (die Forderung des Tages) referência direta a Goethe3.
Weber identifica a existência de uma ética profissional especificamente burguesa como decorrência direta das afinidades eletivas entre o protestantismo e sua compulsão ascética à poupança e à produção da riqueza privada burguesa. A imposição do infatigável, constante e sistemático trabalho secular, era concebida como o mais seguro meio de redenção e a obra neste mundo era a obra para Deus. Combinando a restrição do consumo ascético com a liberdade de busca de entesouramento dos estágios pré-capitalistas, o resultado, segundo Weber seria previsível: a acumulação capitalista. As restrições impostas ao uso da riqueza adquirida levavam ao seu uso na produção, como aplicação na forma de capital. A ascese puritana teria fomentado, assim, a acumulação de capital e a acumulação de capital teria impulsionado o sentido de graça da ascese puritana. Weber apresenta inúmeros exemplos da adesão ao puritanismo de pequenos artesãos, agricultores e classes em ascensão. Entretanto, Weber observa que gradualmente a sóbria virtude econômica começou a dar espaço à secularidade utilitária. Uma ética profissional especificamente burguesa substituiu a antiga ética puritana: “consciente de estar na plena graça de Deus, e sob sua visível benção, o empreendedor burguês [...] podia agir segundo os seus interesses pecuniários” (WEBER, 2004, p. 127).
Weber prossegue afirmando que desde que o ascetismo começou a remodelar o mundo e a se desenvolver, os bens materiais passaram a assumir uma força crescente e inexorável sobre os homens como nunca antes visto.
O capitalismo vencedor, apoiado em uma base mecânica não precisava mais da segurança do ascetismo e o resultado foi a busca pela riqueza despida da roupagem ético-religiosa. O ascetismo contribuiu poderosamente para a constituição de uma ordem econômica e técnica. “O puritano queria tornar-se um profissional, e todos tiveram que segui-lo” (WEBER, 2004, p. 130)
O poder da ascese religiosa tinha posto à disposição dos trabalhadores que se apegavam ao trabalho como ato de fé, uma finalidade desejada por Deus, garantindo a tranquilidade de que a desigual distribuição de riqueza neste mundo era obra da Divina Providência, que, com essas diferenças, e com a graça particular, perseguia os seus fins secretos e desconhecidos pelos homens. Concluía-se, assim, o processo de racionalização como vocação profissional e o mundo desencantado poderia abrir espaço para o trabalho secularizado como obra de Deus. Gradualmente, o tratamento do trabalho como vocação seria tão característico da modernidade como a atividade acumulativa burguesa.
Um dos componentes fundamentais do espírito moderno do capitalismo, e não apenas deste, mas de toda cultura moderna seria, para Weber, constituído por uma conduta racional baseada na ideia de vocação nascida da ascese cristã.
A limitação do trabalho especializado com a renúncia à faustiana universalidade do homem por ela subentendida é a condição para qualquer trabalho válido no mundo contemporâneo; daí a “ação” e a “renúncia” hoje inevitavelmente se condicionarem uma à outra (WEBER, 2004, p. 130).
E Weber continua:
Esse traço fundamentalmente ascético do estilo de vida da classe média [...] foi o que Goethe quia no ensinar no auge de sua sabedoria, tanto nos Wanderjahren4, como no término de vida que ele deu a seu Fausto. Para ele essa consciência implicava na despedida de uma era de plenitude e beleza humana, que, no decorrer de nosso desenvolvimento cultural tem tão poucas chances de se repetir como a época de florescimento da cultura ateniense da Antiguidade (WEBER, 2004, p. 130).
Weber, no final da Ética Protestante sentencia:
Neste caso os “últimos homens” desse desenvolvimento cultural poderiam ser designados como “especialistas sem espírito, sensualistas sem coração, nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado” (WEBER, 2004, p. 131).
As citações de Goethe não deixam dúvida, estamos aqui diante de uma nostalgia pela perda do ideal de Bildung, formação humana integral, restando agora apenas a resignação. “O ideal do Fachmensch (homem profissional), do especialista, substituiu o ideal do Kulturmensch (GARCIA, 1992).
Na conferência Wissenschaft als Beruf - “A Ciência como vocação”, pronunciada em 1919 a convite da Associação dos Estudantes Livres da Baviera, Weber (2005b) acusou a estreita especialização promovida pelos cursos universitários ao afirmar que as transformações da Universidade na modernidade fazem parte de um longo processo de racionalização que fez da ciência um processo de intelectualização e de dominação do mundo, cujo resultado seria o desencantamento do mundo. Como observou adequadamente Carvalho (2005):
(...) baseado em regras da lógica e do método, o trabalho científico moderno não ofereceria um maior conhecimento das condições da vida do homem como tradicionalmente fazia. Irremediavelmente especializado, impessoal e progressista descartaria qualquer realização de resultados duradouros. (CARVALHO, 2005, p. 84-85)
Consequentemente, a vida individual, imersa no progresso do que chamamos de civilização, já não faz sentido. Hoje, o conhecimento especializado da ciência já não nos ensina nada sobre o significado do mundo (VINCENT, 2009); (WEBER, 2005).
Considerações finais
Os estudos de Weber permitem compreender em que medida o processo de racionalização, representado em seu último estágio pela ascese protestante, permitiu, por meio da vocação (Beruf) imprimir um caráter eminentemente profissional a toda a esfera educativa.
O processo de racionalização ocidental conheceu um destino que em sua gênese não era possível distinguir: um capitalismo livre das amarras da ética protestante que o engendrou fundado segundo os princípios de uma racionalidade formal, técnica emecânica. Como decorrência, o legado da ascese protestante, o dever profissional (Beruf), continua a rondar as vidas dos homens do Ocidente. Agora, sem a dimensão ética de outrora, os homens tornaram-se “Fachmenschen ohne Geist, Genuβmenschen ohne Herz” (especialistas sem espírito, usufruidores sem coração) (WEBER, 2005) e a educação tornou-se a formação de profissionais cada vez mais especializados.