Introdução
Aos 25 anos de idade, no dia 27 de setembro de 1928, Eva Yarwood aportava em terras brasileiras. Viera sozinha de navio da Inglaterra para se encontrar com o noivo, David Mills, que a esperava no porto de São Luís. Esse foi, também, o dia de seu casamento. O plano do casal era juntarse a Perrin Smith, um missionário canadense que trabalhava no interior do Maranhão desde 1905. Nem o missionário nem os recém-casados possuíam alguma agência ou instituição missionária por trás de tais empreendimentos, contavam apenas com a disposição de desbravar o interior “primitivo” do Norte do Brasil pela causa missionária. (MILLS, 1976).
Essa é a narrativa encontrada na autobiografia de Eva Yarwood Mills (1903-1987), ou apenas Eva Mills, como nos remeteremos a ela, por ser o nome com o qual passou a se identificar desde que chegou ao Brasil. Eva Mills assumiu a educação como seu campo privilegiado de atuação, sendo que, após trinta anos de estada neste país, há registros de iniciativas educacionais suas nos estados do Maranhão, Pará, Pernambuco e Ceará, especialmente com a abertura de escolas-internatos protestantes nas regiões Norte e Nordeste do país.
Eva Mills aposentou-se na década de 1970, recolhendo-se no Calvary Fellowship Homes, um lar para idosos nos Estados Unidos, não só por sua idade avançada, mas especialmente por sua saúde, acometida por uma leucemia aguda. Foi neste momento que ela veio a escrever e publicar três livros autobiográficos sobre o período como professora missionária no interior do Brasil (MILLS, 1976; [1982?]; [1986?]).
Este artigo é uma parte da análise do primeiro livro publicado por Eva Mills no ano de 1976, intitulado 8:28. É uma “narrativa retrospectiva em prosa” na qual a autora-narradorapersonagem “faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual”3 (LEJEUNE, 2008, p. 16). Neste livro Eva Mills se propõe a narrar-se de forma veemente, escrevendo de si e construindo os sentidos de uma ação que justificou sua vida como uma professora missionária entre “nativos” brasileiros4.
Este trabalho contribui e dialoga com três linhas de investigação no campo da História da Educação: pesquisas (Auto)biográficas, Educação Protestante e História das Mulheres. Nesse entrecruzamento, pesquisas como as de Mignot (2002), Mignot e Cunha (2003), Souza e Passeggi (2011), Silva (2014), entre outras, evidenciam um olhar mais atento às (auto)biografias, especialmente as de professores(as), como fontes importantes que permitem apreender os muitos caminhos da história da formação e profissão docente que, apesar de terem suas particularidades próprias, estão intrinsecamente ligadas. Outros autores como Hilsdorf (1977, 1986, 2002), Mesquida (2005, 2015, 2016), Chamon (2005, 2006) e Nascimento (2007) evidenciam a presença de mulheres-professoras por meio da ação de missões protestantes no Brasil na virada do século XIX para o XX.
Faz parte desta análise a “compreensão dos sentidos”, engendrados e refratados por um “sentido de trajetória”, por uma “ilusão biográfica” construída nesta obra, a partir dos conceitos de Bourdieu (1996). Esta “ilusão biográfica” diz sobre uma realidade construída, tão real em sentidos quanto a realidade que se pretende alcançar, e faz referência à trajetória, ao sentido de linearidade, de lógica atribuída a uma vida. Em uma autobiografia, não é a vida que produz o texto, mas “é o texto que produz a vida” (LEJEUNE, 2008, p. 75).
Em busca de compreender a construção identitária iniciada neste primeiro livro, há um caminho a percorrer entre “a mão do autor e a mente do editor”5 (CHARTIER, 2014), entendendo que a “imagem no frontispício, ou na página do título, na orla do texto sugere uma leitura, constrói um significado” (CHARTIER, 1990, p. 133) capaz de erigir uma dada identidade desde a materialidade do livro6.
O lugar da escrita
8:28. O inusitado título deste livro, bem como a composição de sua capa (Fig. 1), foi construído de forma não só a provocar a curiosidade editorial, chamando atenção para o que possa significar este número, como vindo a dialogar com a identificação da autorapersonagem desta obra e de um determinado público leitor.
Um dos significados atribuídos ao título está na parte subscrita do quadro em marca d’água: uma imagem que lembra uma lauda de livro. Trata-se de um pequeno fragmento de texto bíblico repetido inúmeras vezes: “Romanos 8:28 E nós sabemos que todas as coisas trabalham juntas para o bem daqueles que amam a Deus, para aqueles que são chamados de acordo com o seu propósito” (MILLS, 1976, capa, tradução nossa). Na apresentação do livro, Eva Mills justifica esta referência:
No, it isn’t a Senate Joint Resolution, No.828, nor the beginning of my Social Security number. It isn’t my telephone area code, nor even my number on the church roll. It is the declaration of Paul, the apostle of Jesus Christ, to the Romans, chapter 8 and verse 28, a declaration that has become more and more precious to me, because I have proved it to be true and absolutely guaranteed to all those who love the same Lord Jesus Christ and are walking with Him in day by day communion. He declares: “For we know that all things work together for good to them that love God, to them who are the called according to His purpose”7. (MILLS, 1976, apresentação).
A Bíblia é elemento fundante nesta escrita de si, selecionada a partir do grupo de pertencimento da autora. É por meio das lentes bíblicas, ou melhor, através das lentes do grupo protestante, que tudo parece ganhar cor. Eva Mills não está falando só, de si para si. Ela fala de um lugar para outros e também de outros. Fez sentido para ela e para seu grupo pensar que “todas as coisas” – ou seja, tudo o que foi vivenciado por ela – foram capazes de trabalhar juntas e cooperar entre si para um determinado fim, como expresso em Romanos 8:28. Segundo esta perspectiva, nada estaria fora de eixo, e as peças de sua vida se encaixariam como em um quebra-cabeça, coerente em suas unidades, capazes de formar um todo com sentido: “Brazil was to be the country of my joys and sorrows, where I would prove, over and over again through the years, the grand overwhelming truth of Romans, chapter eight, and verse twentyeight”8 (MILLS, 1976, apresentação).
Eva Mills se constrói como parte de seu contexto, em que alegrias e tristezas advêm como expressões da “Providência divina”, ao que ela recorre para colar os pedaços de uma vida vivenciada em partes, pelo menos naquilo que depende dos acionamentos da memória, que são fragmentadas e desconexas, e traçar uma trajetória de vida com sentido, capaz de ser materializada em livro. O texto bíblico foi capaz de lhe trazer uma razão de ser, um sentido de vida – o fim destas coisas que cooperam entre si é “o bem dos que amam a Deus”, daqueles que são chamados segundo o “Seu propósito”. Eva Mills não é apresentada como mais uma na multidão, pois ela se representa e é representada, para e pelo grupo, como um modelo a ser seguido: “chamada por Deus” para uma missão, “vocacionada” segundo o plano divino.
Esta ideia de Providência divina postulada por Eva Mills, a partir do texto de Romanos 8:28, assemelha-se à identificada por Max Weber entre os Calvinistas Puritanos do século XVII, como uma missão para todos e – mais que um destino sobre o qual o indivíduo deva se resignar – um chamado à ação e ao trabalho: “A todos, sem distinção, a Providência divina pôs à disposição uma vocação (calling) que cada qual deverá reconhecer e na qual deverá trabalhar, e essa vocação [é] [...] uma ordem dada por Deus ao indivíduo a fim de que seja operante por sua glória” (WEBER, 2004, p. 145).
A presença de um texto da Bíblia na capa do livro também se constitui um indício na definição ou priorização de um público leitor específico. A Bíblia é fundamento importante no campo religioso protestante, e sua utilização na capa, ou mesmo na justificação de uma escrita autobiográfica, diz sobre uma mulher que se pretende parte desse grupo e é legitimada por ele.
Para Roger Chartier, as representações do mundo social “são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza” (1990, p. 17). Dessa forma, faz-se necessário pensar na publicação do 8:28 como parte dos interesses de um grupo e não somente a partir do empreendimento individual de um sujeito. Um livro é escrito, pensado e publicado para atender objetivos tanto subjetivos quanto coletivos, porquanto é necessário que haja um público leitor interessado ou pretendido para aquela obra.
Na contracapa, há uma preocupação evidente com a definição dos propósitos deste livro e com qual grupo religioso em especial se pretende dialogar, pondo no mesmo círculo a autora, o leitor e o editor:
This world is sick: insecurity prevails, people deceive, drugs and lust allure and captivate, marriages collapse, fear and frightening experiences threaten to overwhelm, and despondency leads to despair. The purpose of this book is to encourage fellow believers-traveling along life´s jungle trail-by a testimony of personal experience. God, who calls His children to give out His amazing message to this sick word, is utterly faithful: He will do as He has said. “To those who love God, who are called according to His plan, everything that happens fits into a pattern for good” is J. B. Phillips translation of Romans 8:28. He is able to keep His children from falling and to present them without fault before the presence of His glory with exceeding joy (see Jude 24). I am happy to recommend this account of God’s faithfulness to one of his missionary servants. It makes inspiring challenging to God’s children everywhere. – James W. Reapsome, Editor, Evangelical Missions Quarterly9. (MILLS, 1976, contracapa).
O texto inicia falando de um mundo doente, das mazelas que se contrapõem à moral cristã: insegurança da vida, drogas, luxúria, pessoas que enganam, casamentos que desmoronam..., para então trazer o contraponto do livro que se pretende em um caminho oposto: encorajar “crentes companheiros”, “filhos de Deus”, a seguir pela “trilha da selva da vida” por um mundo melhor. A tônica do texto é quase uma conclamação a novos missionários a seguir o modelo ideal da autora-personagem, sendo chancelado pelo editor – que faz ele mesmo a honra de referendar o livro, trata-se, não por acaso, de James W. Reapsome. O editor é um nome de referência no campo em questão, que, não sem propósito, ainda assina seu lugar de pertença institucional, a Evangelical Missions Quarterly (EMQ).
A EMQ é uma revista missiológica publicada por Billy Graham Center, no Wheaton College, voltada para professores e alunos universitários, com ênfase em missões evangélicas mundiais, ao mesmo tempo que visa atender ao público de missionários em campo nos diversos continentes, apresentando-se como o primeiro periódico para a comunidade missionária norte-americana. James Reapsome assina a edição destas revistas – trimestrais desde o primeiro número – de 1964 até o ano de 1997, sendo não só editor como autor de muitos artigos e livros, o que demonstra ser alguém de relevância no cenário missiológico protestante norte-americano deste período10.
Reapsome apresenta a autora-personagem como uma heroína, um testemunho de experiência pessoal: Eva Mills é um padrão a ser seguido no meio protestante. Nesse sentido, compreendemos a identidade da biografada sendo construída de forma intimamente ligada à recepção do livro, àquilo que se quer despertar no leitor, ao mesmo tempo relacionada à proposição identitária de um campo específico, quando a apresenta como padrão para esse grupo. Em um de seus livros, Reapsome descreveu seu encontro com Eva Mills em um lar para idosos, o mesmo onde vivia sua mãe:
The first time I met her I recognized pure gold [...]. Regardless of her incurable illness, her eyes sparkled and her smile charmed me. I could not say No when she asked me to edit her book, which told the story of her life in Brazil. She called it ‘8:28’11 (REAPSOME, 2013, p. 58).
Pensando, a partir de Certeau (2011), na construção memorialística de um santo, encontramos a representação de uma mulher que passou pelo seu processo de martírio: Eva Mills “trilhou a selva da vida” (nas palavras de Reapsome na contracapa), durante “trinta anos de missão” (na capa); e não foi em qualquer lugar, mas no “interior primitivo do Brasil” (também na capa do livro). Mais adiante, na dedicatória, a autora traz novamente a expressão “na trilha da selva da vida” como um caminho percorrido por ela. São referências ao suplício, às dificuldades enfrentadas entre os “silvícolas”, retomadas e reforçadas de diferentes formas no corpo do texto. Ainda na dedicatória, há uma referência à “Terra de Beulá”12, uma alusão ao céu agora ansiado por ela – “onde mansões estão preparadas para mim” – em contraste às selvas por onde passou.
Elementos da autobiografia de Eva Mills podem ser relacionados à estrutura do “discurso hagiográfico” percebido por Certeau (2011): a vida de martírio na idade adulta; a evocação de sua infância, articuladora de uma “vocação/eleição” desde os primórdios; o relato dramático entre os tempos solitários de crise e centramento; e as “virtudes” de ordem pública.
A combinação dos atos, dos lugares e dos temas indica uma estrutura própria que se refere não essencialmente ‘àquilo que se passou’, como faz a história, mas ‘àquilo que é exemplar’. As res gestae não constituem senão um léxico. Cada vida de santo deve ser antes considerada como um sistema que organiza uma manifestação graças à combinação topológica de ‘virtudes’ e de ‘milagres’. (CERTEAU, 2011, p. 290, grifo do autor).
As virtudes identificadoras de um modus protestante não dizem respeito necessariamente aos milagres, normalmente requeridos ou tolerados nas hagiografias – definidas como “um gênero literário que [...] privilegia os atores do sagrado (os santos) e visa à edificação (uma ‘exemplaridade’)” (CERTEAU, 2011, p. 289). No caso da autobiografia de Eva Mills, referem-se às ações benevolentes e educacionais que carregam consigo os ideais desse grupo religioso em específico, fazendo de sua publicação um livro de edificação dos fiéis, tal qual uma hagiografia. As virtudes de um sujeito só são realmente virtudes se existir um para quem elas façam sentido. As de Eva Mills são expressões das virtudes requeridas pelo grupo religioso do qual ela fez parte e não por acaso sua vida tenha sido produzida como exemplo.
Dois anos antes da publicação do 8:28, em julho de 1974, foi realizado o I Congresso Internacional sobre Evangelização Mundial, em Lausanne, Suíça. Este foi organizado pelo batista norte-americano Billy Graham, que se apresentava como uma liderança evangélica capaz de atrair o apoio e anuência de diversos ramos do protestantismo, de diversas partes do mundo. O documento gerado ao fim deste evento, com o objetivo de apresentar os distintivos teológicos para a Igreja em termos de evangelização mundial13, o Pacto de Lausanne pretendia lançar novas luzes sobre o tema da evangelização mundial e as prioridades missiológicas da igreja protestante sobre o mundo. As perspectivas missiológicas convergiam para os pobres e para o Terceiro Mundo, substanciando uma teologia voltada para as práticas sociais, em especial por meio da educação e assistências sociais, enquanto estratégia de transformação social.
Dentre os quinze artigos elencados no Pacto de Lausanne, destacamos o intitulado “Educação e Liderança”, que diz:
Confessamos que às vezes temos nos empenhado em conseguir o crescimento numérico da igreja em detrimento do espiritual, divorciando a evangelização da edificação dos crentes. Também reconhecemos que algumas de nossas missões têm sido muito remissas em treinar e incentivar líderes nacionais a assumirem suas justas responsabilidades. Contudo, apoiamos integralmente os princípios que regem a formação de uma igreja de fato nacional, e ardentemente desejamos que toda a igreja tenha líderes nacionais que manifestem um estilo cristão de liderança não em termos de domínio, mas de serviço. Reconhecemos que há uma grande necessidade de desenvolver a educação teológica, especialmente para líderes eclesiásticos. Em toda nação e em toda cultura deve haver um eficiente programa de treinamento para pastores e leigos em doutrina, em discipulado, em evangelização, em edificação e em serviço. Este treinamento não deve depender de uma metodologia estereotipada, mas deve se desenvolver a partir de iniciativas locais criativas, de acordo com os padrões bíblicos14. (THE LAUSANNE COVENANT, 1974).
Esse trecho do Pacto é significativo para a compreensão do que possa representar a publicação da autobiografia de Eva Mills dentro desse contexto. Havia um interesse em mudança dentro do cenário protestante, e as palavras “confessamos” e “reconhecemos” denotam o caminho que não se pretendia mais trilhar, que separava evangelização da edificação dos crentes e que não vinha preparando e incentivando “líderes nacionais a assumirem suas justas responsabilidades”. Isso dá-se por críticas a um modelo colonialista de fazer missões, no sentido tanto de propagar um modelo civilizacional quanto de tornar os nativos dependentes em sua forma e recursos. Conceitos como “implantação” de igrejas, ou mesmo da religião, são questionados, inclusive no aspecto educacional como sendo estratégias de um modelo imperialista que visava “implantar” os modelos civilizacionais enquanto práticas voltadas para as elites de uma nação.
Contudo, as palavras de apoio que vêm em sequência apontam para aquilo que se busca agregar como identidade para as Missões Protestantes, ressignificando o lugar da educação como prática missionária na sociedade, devendo esta ser investida prioritariamente nas “iniciativas locais” e no preparo teológico de uma liderança local – “desejamos que toda a igreja tenha líderes nacionais que manifestem um estilo cristão de liderança não em termos de domínio, mas de serviço” (THE LAUSANNE COVENANT, 1974, tradução nossa). Importante destacar que, no Brasil, desde o início do século, já havia um movimento de nacionalização das igrejas que se fundaram a partir de investimentos denominacionais norteamericanos, como a igreja Presbiteriana em 1903, a igreja Batista em 1907 e a igreja Metodista em 1930 (REILY, 2003).
A memória de Eva Mills e sua vida no Norte primitivo do Brasil como professora está associada às representações de uma educação protestante preocupada com mudanças sociais, com a educação dos pobres e com interesse na preparação de uma liderança efetivamente nativa, preparada teologicamente para a “formação de uma igreja de fato nacional”, a partir do contexto de uma região desprovida de recursos na América Latina.
Seguindo Denys Cuche – ao analisar a obra Cultura Primitiva, de Edward Burnett Tylor –, o pensamento sobre a diferença cultural se articulou inicialmente na oposição primitivo versus civilizado:
a cultura dos povos primitivos contemporâneos representava globalmente a cultura original da humanidade: ele era uma sobrevivência das primeiras fases da evolução cultural, fases pelas quais a cultura dos povos civilizados teria passado necessariamente.
(CUCHE, 2002, p. 37-38).
Portanto, o interesse na publicação desta autobiografia, demonstrado pelo editor Reapsome, não foi fruto só dos olhos brilhantes de Eva Mills e de sua amizade com sua mãe, com quem compartilhava a vida no lar de idosos. A vida dessa mulher, construída no Brasil, dava sentido a uma identidade de grupo com forte apelo às práticas missionárias no Terceiro Mundo entre povos menos favorecidos e considerados por eles como atrasados.
Contudo, pontuamos que as autobiografias de Eva Mills não tenham sido necessariamente escritas ou construídas deliberadamente tomando por base toda essa conjuntura sócio-histórica que envolvia tanto o meio protestante quanto sua relação com outros campos – grupos religiosos ou políticos15. Pelo contrário, suas narrativas expõem tensões epistemológicas, revelando permanências e rupturas de um sujeito que vive e escreve a partir de um espaço entre culturas, expondo incoerências e testemunhos involuntários (BLOCH, 2001) entre o que a autora quer, polidamente, dizer, e aquilo que representa um olhar imperialista sobre a experiência entre os brasileiros, ao mesmo tempo que negocia com representações construídas para o seu público leitor. Enquanto Eva Mills apregoa valores como respeito e valoração do outro, por exemplo, autodescrevendo-se “tola” diante de “gigantes da floresta”, também salienta uma descrição que evidencia os traços exóticos de um povo que vive em condições primitivas e selvagens, diferentes das suas.
Para além do texto bíblico anunciado, outro elemento é apresentado como justificativa para a escolha do título:
Primarily, the title was suggested by the date: 8/28/1928. It was on August 28, 1928 that I set sail from Liverpool, England, for North Brazil, in obedience to my heavenly Father’s guidance. Brazil was to be the country of my joys and sorrows, where I would prove, over and over again through the years, the grand overwhelming truth of Romans, chapter eight, and verse twenty-eight. Brazil was where I learned to put in practice the lessons I had been taught in earlier years, the country to which my heavenly Father guided my steps and prepared me to go, trusting Him alone, by the fulfillment of rich promises from His Word, which liveth and abideth for ever. It was on August 28, 1928 that I said “Goodbye” to loved ones for Christ’s sake16. (MILLS, 1976, apresentação).
Os seus 8:28’s dizem, também, de uma data – o dia em que a autora começou a atravessar as águas do oceano da vida e, literalmente, da Inglaterra para o Brasil: “Foi em 28 de agosto de 1928 que eu disse adeus a entes queridos pela causa de Cristo”. Dois elementos, a data e o verso bíblico, se conjugaram na construção identitária da autora. 8:28 é a representação de Eva Mills. O livro é autobiográfico, diz sobre ela, fazendo referência tanto ao marco espaço-temporal de qual vida ela procurou dar destaque – sua vida no Brasil – quanto àquilo que ela usa para dar sentido e construir sua trajetória de vida, a Providência divina.
Na capa do livro, em destaque está: “Eva Y. Mills recounts the 8:28’s of her thirty years’s mission in Brazil’s primitive interior”17. O vocábulo em inglês recount seria, literalmente, recontar, narrar ou relatar de novo, trazer de novo à história. O prefixo “re” traz a conotação da repetição de algo que já aconteceu outras vezes. Eva Mills está trazendo mais uma vez à memória aquilo que já foi vivido muitas outras vezes, não só no tempo da realidade dos acontecimentos, dos fatos propriamente ditos, mas também nos tempos em que ela se narrou em cartas, em outros textos ou através da oralidade em período anterior à publicação dos livros18.
A veracidade dos fatos
No decorrer do “8:28”, é possível identificar uma preocupação em apresentar datas, a instituição à qual autora e editor são afiliados, o lugar onde Eva Mills morava, a igreja em que trabalhava, muitas referências que trazem à tona o que Lejeune (2008) denominou de “pacto de referência”. Para Lejeune, o “pacto de referência” é um elemento do “pacto autobiográfico” em que o autor, que é também narrador e personagem, compromete-se a dizer a sua verdade ao leitor, sobre sua própria vida, e o leitor, supostamente, a acreditar. Contudo,
é claro que, ao tentar me ver melhor, continuo me criando, passo a limpo os rascunhos de minha identidade, e esse movimento vai provisoriamente estilizá-los ou simplificá-los. Mas não brinco de me inventar. Ao seguir as vias da narrativa, ao contrário, sou fiel a minha verdade. (LEJEUNE, 2008, p. 121).
A questão em evidência não é a discussão sobre a verdade tal qual a História suscita. As histórias que Eva Mills narra se propõem reais, passíveis de verificação: ela apresentou-se, mostrou como chegou até ali, falou de seus diários, das cartas e dos materiais que recebeu da família na Inglaterra, capazes de trazer as lembranças e sentimentos de tempos reais:
In April 1974, Immanuel Baptist Church in Richmond, Virginia, gave me a surprise farewell before I left for Calvary Fellowship Homes in Lancaster, Pennsylvania, where I was going to spend my retirement years. During the early part of the service on that lovely Easter Sunday morning, Pastor Albert R. Fesmire called me to the microphone and gave me a few minutes to speak to my beloved “Immanuel Family”. There, below the fragrant Easter lilies, was their parting gift. Mr. James H. Richie, Chairman of the Board of Elders, brought it to me. The gift-wrapped package, with its large gold ribbon, had not suggested a typewriter. The fact that I was no typist, that I hadn’t made public any desire to engage in writing and that I was not alert enough now to consider such a venture, made the lovely gift a bigger surprise. It was a beautiful, portable, Smith Corona electric typewriter. I’m sure none of my Immanuel Family knew – and neither did I – how the typewriter was to be used. [...] So, by the large window of my peaceful room, overlooking a beautiful Garden, at Calvary Fellowship Homes, I have penned the story of God’s wise and wonderful dealings with me. Many times in my physical weakness I have sought and claimed God’s promise to Paul: “My grace is sufficient for thee: for my strength is made perfect in weakness” (2 Corinthians 12:9). Many times He has restored alertness of mind in answer to prayer. Many times, when ready to quit, I have been encouraged to continue, and helped by the patient, inspiring confidence of Editor James W. Reapsome of East Petersburg, Pa. To him I am deeply grateful19. (MILLS, 1976, prefácio).
A narrativa ali expressa era a sua história e a sua verdade, ao qual ela se empenhou em provar que não se tratava de um romance ficcional, mas de um livro que continha a realidade de uma vida, a sua, e o leitor poderia conferir – ela estava logo ali, no Calvary Fellowship Homes, cujo endereço constava no livro.
E, se sua vida e os fatos narrados não estão para serem questionados em sua verdade, vindo, dessa forma, a ser exemplo para outros; questionar as representações construídas na obra autobiográfica se torna essencial, um meio para desvelar os valores e práticas atribuídos a partir de determinados modelos. Portanto, identificar os elementos do pactoautobiográfico ajuda a problematizar e assim ampliar a perspectiva historiográfica sobre as possibilidades de análise de fontes autobiográficas para além da biografia do próprio autor, por meio de suas representações.
Corroborando com a promessa de verdade, o livro traz ainda dois mapas: um mapamúndi (Fig. 2), com marcação dos caminhos trilhados por ela entre continentes, e um recorte do mapa do Brasil (Fig. 3), presente também no livro Em Lugar do Espinheiro (MILLS, [1982?], marcando a região, cidades e outros pontos que representam sua passagem por este país, pelo seu trabalho.
No decorrer dos capítulos, mais imagens: desenhos assinados por Glover Shipp, um missionário norte-americano que também trabalhou no Brasil durante os anos de 1967 a 1985. São imagens do cotidiano que não só representam uma cena do capítulo em que se encontra, quanto trazem em si uma aura de verdade. Elas vão além da preocupação com a ilustração, pois, para quem tem ou teve a oportunidade de conhecer a região, a identificação é imediata, os detalhes são capazes de gerar um efeito de realidade, cumprindo o propósito pretendido.
A Figura 4 é a imagem de um cartão postal enviado pela filha de Eva Mills, Anna Davina, um pouco antes da publicação do livro. A correspondência expõe esta intencionalidade em aproximar o texto à ilustração. No verso do cartão, as seguintes palavras:
This is a sample of Mr. Shipp’s work. Please send us few picture of scenes and people and of 'things' mentioned in the chapters. He said the could use the picture of you handing something to the Indian. What were you giving the Indian? Could the read? Mr. Shipp said once the studies the look and pictures the actual work will not take long20. (DAVINA, 1975).
Esta imagem também se encontra no livro 8:28 (1976, p. 126) e foi usada para preceder o último capítulo: “sua incansável fidelidade”. Interessante perceber como a tônica deste capítulo está impressa nesta imagem, que mostra o retorno de pescadores cansados de um dia de trabalho à praia, mas com os baldes cheios do fruto de seu trabalho. Neste, a autora se despede resumindo seus últimos anos no Brasil, e a cena, por sua vez, é representativa de seu próprio “retorno” que, apesar de acumular as dificuldades enfrentadas na labuta de uma vida, traz suas recompensas. Na narrativa, a descrição de uma das experiências vivenciadas na Casa Carmelo, uma “casa e escola”21 para filhos de missionários da Unevangelized Fields Mission – UFM na cidade de Fortaleza-CE22:
The fisherfolk lived in small shacks on the beach. Their ‘jangadas’, built of five roughly hewn logs fastened together and a crude mast with a single sail, left at dawn each morning. Two men pushed into the ocean their frail-looking craft with the help of two logs, over which they rolled the jangada into the water. The food for the day, a bottle of water and a bucket-like container for the fish they hoped to catch, were all tied on to the mast. There was no other protection from the waves, which swept over the floating craft at will. We watched them go. The jangadas sailed away in the morning breeze, became smaller and smaller, until, one by one, they were lost to view in their large ocean world. About sundown, the women folk – mothers, wives, daughters, sweethearts – came to scan the horizon. Somehow, each could recognize the sail that seemed to her the most familiar. As each jangada became more visible, the excitement grew. How good it was to see the fishermen again, with the day’s work in their bucket. […] Sometimes the men told of difficulties, when the wind played tricks on their sails and the jangada turned upside down. It took courage to right the craft; the fishermen worked desperately, clinging to the unsinkable logs. They often lost their fish in the upturned experience.
Sometimes the wind blew the craft further out to sea and worried women watched in vain for their loved ones, who failed to return until the next day23. (MILLS, 1976, p. 129).
As imagens, que não estão ali por acaso, “assim como os textos e testemunhos orais, constituem-se numa forma importante de evidência histórica. Elas registram atos de testemunho ocular” (BURKE, 2005, p. 17). É como se elas trouxessem em si um “testemunho preciso”, fossem uma “testemunha ocular” dos fatos tais quais são ou foram um dia. Não servem só como ilustrações do texto. Elas são o próprio texto, no sentido de trazerem, elas mesmas, uma mensagem sobre as representações dialogadas no conjunto da obra.
As imagens deste livro ilustram um país tropical e selvagem: desde os rios e árvores frondosas da região amazônica e ribeirinha, aos coqueiros e mares do litoral por onde Eva Mills passou. Esta mesma representação se perpetua nos demais livros, em que as pessoas são visibilizadas em estilo de vida primitivo e em contato com a natureza, fomentando uma representação típica de um estereótipo nortista ribeirinho ou sertanejo nordestino, do qual a própria autora reclama sua participação (ver Figuras 5 e 6).
Contudo, para além do ambiente ilustrado sobre a vida no campo, algumas das imagens (a exemplo das figuras anteriores) trazem à cena a figura de personagens que estão sós, algumas delas mulheres, ou a própria missionária, sob um certo ar de solidão. Essas imagens não estão descoladas da configuração total da obra e não podem ser desprezadas na análise do livro, pelas representações por elas suscitadas. De alguma forma, apesar de Eva Mills não estar presente na maioria das imagens, é sobre a autora-personagem que elas falam.
Essa imagem se encontra no capítulo “Experiências na selva” – em que Eva Mills relata uma experiência entre as cidades de Imperatriz e Barra do Corda (cidades no estado do Maranhão). Nessa história, ela e um guia perdem a trilha e ficam perdidos sob chuvas constantes, mosquitos e cobras, no meio da floresta, quando viajavam sobre o lombo de jumentos. Anastácio, o guia experiente que a levava, adoece de varíola, impossibilitando a continuação da viagem. Eva Mills, que antes estava sob seu cuidado, vê-se em situação oposta: “I smile to myself now as I see the city baby, who must be cared for lest any harm should come to her, now caring for the courageous giant of the jungles, grown so weak and limp”24. (MILLS, 1976, p. 87).
Sob uma choupana e a promessa de cuidados de uma família que os abrigou de malgrado, por medo do contágio da enfermidade de Anastácio, ela segue viagem com um outro guia que era quase totalmente cego. Mais à frente encontram uma caravana enviada pelos seus: Dugal Smith (filho do missionário Perrin Smith) e um amigo que procuram por alguma notícia de uma missionária britânica que provavelmente foi morta pelo guia, por aquela região. Era a salvação de Eva Mills e o sinal da Providência. Aqui ela retoma o verso de Romanos 8:28 e aplica lições de dependência e cuidados divinos, fala da sabedoria dos “homens da floresta” e da “sabedoria dos animais” (no retorno com Dugal Smith para casa, eles se perderam novamente, deixando que as mulas os guiassem, o que deu certo). A imagem ilustra esse encontro com os que a procuravam, mesmo achando que ela já estaria morta – o menino Dugal, seu amigo e a mula que a levaria para casa.
Outros momentos, como este, são alinhavados durante a narrativa. Momentos de introspecção, reflexão, inseguranças e decisões durante sua vida no Brasil. O primeiro capítulo diz do seu despertar para a educação: toma a decisão de abrir uma escola em um momento de crise espiritual e readequação de vida. É nesse capítulo que ela vai retomar sua infância e lembrar o “para que” ela fora “chamada” em sua relação com o Sagrado. No segundo capítulo, ela continua falando desse “chamado”, agora na juventude, do seu sonho missionário, de sua relação com David Mills na construção desse sonho, ao mesmo tempo, no confronto com o pai, que não aceitou sua ida/vinda para o Brasil, o que exigiu enfrentamento de sua parte para permanecer no caminho traçado. É no capítulo três, o “8:28” que deu nome ao livro, em que ela descreve sua vinda para o Brasil, a viagem no navio, o casamento com David, que a esperava no porto de São Luís, e o primeiro contato com os brasileiros.
A sequência seguinte são relatos desse tempo no Brasil, de suas experiências com o brasileiro sertanejo, no público e no privado, nas escolas, nos momentos de culto, na relação com homens, mulheres e crianças. Eva Mills relata as mudanças, descreve o processo de adaptação às novas casas, às cidades diferentes, às dificuldades de uma vida experienciada na “selva”, no “primitivo”. Alinhado com o que já fora anunciado pelo editor na capa, contracapa e reforçada pelas imagens: é o longo período do martírio e do extraordinário na vida da heroína.
Após o episódio da separação matrimonial25, Eva Mills acelera a narrativa, reduzindo os vinte anos seguintes no Brasil ao último capítulo, no qual ela também relata sua ida aos Estados Unidos e sua aposentadoria. Descreve um pouco de sua última morada terrena, a casa de repouso onde residia, em momento de contemplação, do “olhar para trás”, de colar a última peça, e finda:
I look back along the jungle trail of life and see much more clearly all the way the Lord has led me through thorny paths, difficult places and stormy challenges. His method was sublime, His thoughts supremely kind. Every turn in the path, every change in circumstances was designed by Him in loving kindness, to teach me some precious lesson, that could be learned only through such experiences26. (MILLS, 1976, p. 131).
Eva Mills publicou este livro aos 73 anos e faleceu 10 anos depois. Nesse período publicou outros livros, escreveu textos, cartas e memórias de sua vida nos trópicos. Dois outros livros, com estilos (auto)narrativos distintos e públicos leitores diferentes, reforçam e completam esta autobiografia, juntos compõem a produção de um “projeto autobiográfico” (VERAS, 2017) pela construção de um “nome-próprio”27.
Considerações finais
A partir da leitura do 8:28, pudemos ver como os sentidos construídos pela edição e autoria dialogam na materialidade do livro e são capazes de produzir uma mensagem que extrapola o espaço do texto propriamente dito. Cada elemento na conceituação do livro se torna um ponto de comunicação que escolhe o leitor e direciona, como propõe Chartier, um caminho de leitura.
No entanto, encontramos uma proposta de identificação entre autor-editor-leitor que, para além da preocupação com o encaminhamento das formas de leitura, suscita uma cumplicidade de pertença a um mesmo campo – o religioso protestante – e a promoção desse espaço. Essa paridade se estabelece na autoidentificação do editor, na conceituação da autorapersonagem como modelo requerido e na seleção do público leitor. Essa relação se dá por meio da linguagem do livro, pelo acionamento de elementos caros a este grupo, como a Bíblia, a identificação com o Sagrado e a valorização de um estilo de vida próprios, alinhados aos ideais da civilização (em oposição à selva).
Percebemos o quão importante pode ser a identificação com o sagrado, no caso por meio da Bíblia, para a construção e reconstrução de si. O texto de Romanos 8:28 assemelhase a um espelho, visto que a personagem ali se viu refletida; também a uma lente de leitura, por meio da qual ela pode rever sua vida; ou ainda uma cola, capaz de unir as partes de uma vida e dar sentido a ela.
Nas imagens encontramos não só a preocupação em evidenciar aspectos de veracidade exigidos em um “pacto autobiográfico”, como elas mesmas se consubstanciaram na construção e reafirmação de um discurso no livro, corroborando igualmente na construção identitária da autora-narradora-personagem.
Podemos inferir também a importância da autobiografia para o grupo religioso protestante, não só a partir da elaboração de sua heroína – no sentido de trazê-la como modelo a ser seguido, por isso, com direito à memorialística –, mas também na construção da identidade do próprio grupo quando define seus ideais, aponta um modelo que pode servir de referência e evoca o caminho do martírio. De modo que a Providência e o regozijo inspirem o público leitor a seguir por este caminho, tal como os “companheiros de viagem na trilha da selva da vida”.
Eva Mills foi uma professora que se construiu por meio da educação tanto no Brasil quanto em suas representações nos livros. Contudo, considerar o lugar de escrita deste livro e a forma como e para quem os discursos foram proferidos nos encaminhou a uma aproximação com seu grupo de pertença no tempo da escrita/publicação de sua obra, ou seja, o campo religioso protestante estadunidense.
Assim considerar que os interesses religiosos possam ter orientado sua ação educacional, posto ser ela uma missionária, parece um ponto evidente na autobiografia de Eva Mills, em razão dos fins de uma educação articulada com o protestantismo. No entanto, esta análise inicial chama atenção para os entrelaçamentos dos interesses da autora e do seu grupo religioso na publicação do livro, além de questionar até que ponto o pertencimento ao grupo foi capaz de condicionar o olhar e a escrita da autora sobre a sua própria experiência educacional no Brasil. Não obstante esse questionamento, o livro 8:28 nos fornece importantes pistas para pensarmos a presença do protestantismo na educação da região Norte do Brasil a partir da atuação de Eva Mills.