Apresentação
O presente dossiê, Educação em perspectiva local/municipal, pretende apresentar discussões relativas às escritas da História da Educação, mais precisamente, àquelas relacionadas às possibilidades de se investigar “novos” espaços e “novos” sujeitos. Com a extensão desses olhares emergem resultados de investigações direcionadas a cenários, épocas e temáticas até então pouco privilegiados, vindo à tona estudos dedicados a desvelar outras faces da constituição do sistema de instrução pública nos estados brasileiros e em alguns ambientes do território europeu, para além das análises macroestruturais (postura normalmente assumida pela chamada “historiografia tradicional”). Este adensamento das pesquisas centradas em espaços “menores” decorreu da formação e consolidação de grupos de pesquisas por todo o país, assim como no exterior, devotados à investigação de aspectos significativos da organização da instrução, tomando como referência os municípios, as instituições escolares (públicas e privadas), manuais pedagógicos, métodos de ensino, a imprensa (especializada ou não), etc.
Nesta ambiência, no caso do Brasil, a motivação para as pesquisas dedicadas à ação municipal sobre as coisas da instrução, aparece como reflexo da transmissão aos estados, por parte do governo federal, da responsabilidade pela educação pública. Este processo ganha mais relevo nas investigações do período compreendido da proclamação da República, em 1889, às primeiras décadas do século XX, correspondendo a um momento de grande evidência do papel dos municípios no debate sobre a situação educacional local, que abraçaram os princípios de civilidade, modernidade e progresso e procuraram superar o atraso herdado dos tempos do Império no campo da educação. Ademais, o analfabetismo – a grande chaga nacional – nessas localidades era sentido muito claramente como um dos maiores problemas, talvez o principal entrave ao seu desenvolvimento. A vereança nas Câmaras comungava a crença de que, pela via da educação, seria possível remodelar a ordem social, política e econômica e consolidar a nascente República, viabilizando sua inserção no rol das nações democráticas e civilizadas. Os republicanos municipais viam nessas ações não só o roteiro do progresso, mas também o caminho para se eliminar ou reduzir uma das principais máculas da sociedade brasileira: 80% de analfabetos, acumulados ao longo de séculos3.
Indispensável ao progresso do país, à consolidação do novo regime e elemento de civilização, a educação – com especial ênfase na instrução pública – foi objeto de diversas iniciativas por parte do poder público. No ideário republicano a conformação de uma nova sociedade demandava, se confundia com a formação de um novo tipo de cidadão. Pela via da educação, acreditava-se ser possível alcançar esse duplo objetivo, crucial também para manter vivos os ideais de ordem e progresso inseridos no pendão nacional.
A pretendida transformação da realidade educacional nos primeiros anos republicanos, no entanto, esbarrava nas prescrições legais, uma vez que fora mantido o princípio da descentralização, advindo do Ato Adicional de 1834, remetendo a responsabilidade pela organização e difusão do ensino público aos estados e municípios. Essas duas instâncias, portanto, nas primeiras décadas republicanas, tomam relevância no debate, na formulação e implantação de propostas efetivas de intervenção, no âmbito da instrução popular.
Em Minas Gerais, a estrutura legal – Constituição, lei de instrução e regulamento escolar – concedia às Câmaras Municipais relativa autonomia (e, igualmente, responsabilidade), podendo deliberar e estabelecer linhas de intervenção sobre a instrução primária e diversos outros assuntos4. Nesse contexto, a realidade municipal aparece como lócus privilegiado do esforço pela organização da instrução pública e o seu estudo adquire relevância para a história da educação.
Impasses entre centralização e descentralização marcaram o desenvolvimento educacional brasileiro ao longo dos séculos XIX e XX, pendendo ora para uma tendência, ora para outra, como num movimento pendular. O município se configura, nesse contexto, não apenas como ente político-administrativo, mas também como um território pedagógico, tendo em vista que o poder local assumiu a função de organizar e definir princípios próprios para a instrução municipal, bem como abrir escolas, contratar professores, orientar métodos, etc. O processo de organização da instrução na esfera local, em Minas Gerais, pode ser assim caracterizado:
ao se falar de educação em Minas Gerais no início da República, e talvez na maioria dos estados da Federação Brasileira, não se pode pensar num sistema único de ensino, ou num processo que atinja homogeneamente todo o território. Na realidade, o processo é heterogêneo e multifacetado. Existe a ação do Estado e existem as iniciativas complementares dos municípios. Há também omissões nas duas instâncias. Estão presentes, ainda, tentativas de se suprir as ausências de um ou outro5.
Em Minas Gerais, logo nos primeiros anos da República, foram aprovados leis e decretos que visavam reformar o ensino público primário. O texto constitucional mineiro, diferentemente da Carta Federal, dispensava maior atenção a essa questão, estabelecendo a competência estadual para legislar e promover o desenvolvimento da instrução primária em seus domínios. Além disso, a constituição estadual estabelecia a divisão administrativa do estado em municípios e distritos e definia como objeto de livre deliberação das câmaras municipais, dentre outras coisas, a instrução primária e profissional:
Art. 75. II – A administração municipal inteiramente livre e independente em tudo quanto respeita ao seu peculiar interesse, será exercida em cada município por um conselho eleito pelo povo, com a denominação de Câmara Municipal. [...]. IV – O orçamento municipal, que será anual e votado em época prefixada, a polícia local, a divisão distrital, a criação de empregos municipais, a instrução primária e profissional, a desapropriação por necessidade ou utilidade do município e alienação de seus bens, nos casos e pela forma determinada em lei, são objeto de livre deliberação das câmaras municipais, sem dependência de aprovação de qualquer outro poder, guardadas as restrições feitas nesta Constituição6 [grifos nossos].
O estado se aproveitou dessa brecha constitucional e também de outros dispositivos legais, como os previstos na lei mineira de número 2, de 14 de setembro de 1891, que “Contém a organização municipal”, que permitia às câmaras municipais “operar livremente no campo da instrução pública, criando escolas, contratando professores, fiscalizando atividades, etc” 7, para transferir/dividir os custos da escolarização popular. Dessa forma, coube aos municípios boa parte dos encargos para se promover, organizar e administrar a educação pública em sua área de competência. Isso nos permite considerar que na esfera municipal se desenvolveu grande parte do esforço republicano de organização da instrução pública, sendo significativas as realizações educacionais ocorridas nesse âmbito.
Diante da ação insuficiente ou pouco efetiva do estado, o poder municipal, respaldado ou estimulado pela legislação, se manifestava de diferentes formas: aprovando leis específicas em sua jurisdição, criando escolas, contratando e remunerando os professores, distribuindo material didático, destinando verbas para o custeio das escolas municipais e, por vezes, também, reivindicando junto ao governo estadual ações complementares em benefício da instrução pública municipal.
A Lei nº 41, de 1892, primeira reforma republicana no campo da educação em Minas Gerais, reorganizou a instrução pública. Apesar de não tratar especificamente da autonomia municipal, continha prescrições neste sentido, reforçando a liberdade de ação do poder local. Por conta desse instrumento legal, cabe aqui uma ressalva importante: não se trata de descentralização educacional propriamente dita, ao menos em termos de legislação. Desde 1892, apenas um ano após as Constituintes Federal e Estadual finalizarem seus trabalhos, o governo mineiro já tinha uma lei própria regulando a instrução pública em seus domínios, não se podendo afirmar que os municípios gozassem, portanto, de plena autonomia em termos educacionais.
Contudo, verifica-se na prática e na investigação documental que existia uma lacuna, um vazio – uma omissão? – para com as mazelas e reclamos da instrução, que será preenchida pelos municípios. Diante da crescente demanda por educação, reprimida no passado e ampliada pelas promessas da República, o poder local passa a intervir nesses assuntos. Na prática, nas duas primeiras décadas republicanas em Minas Gerais, boa parte da ação educativa se realizava em nível local.
As limitações orçamentárias do governo estadual reforçavam a sua disposição em compartilhar, ou mesmo transferir as responsabilidades e os encargos da educação pública. A preocupação do governo mineiro era que a escolarização avançasse, mas com custos que não onerassem demasiadamente as disponibilidades do estado, buscando reforço nos mais diferentes setores: “oferecer escolas à população, independentemente de sua origem pública ou privada, estadual ou municipal, leiga ou religiosa8”. A participação das municipalidades nos negócios da instrução se adequava perfeitamente a esses propósitos.
A ação do poder municipal nesse campo pode ser caracterizada como atuação pedagógica, o que nos levou a denominar esse tipo de ator como “município pedagógico9”, possibilitado nos primeiros anos do período republicano pelas brechas do aparato legislativo e pela omissão e carência de recursos por parte do estado.-Segundo Gonçalves Neto e Carvalho essa entidade permite-nos
compreender a realidade local para além de sua dimensão políticoadministrativa e pensá-la também como um espaço voltado para os aspectos educacionais, como um organismo também pedagógico, preocupado com a formação intelectual de seus munícipes e não apenas com as condições econômico-materiais que se sobressaem nas ações das administrações públicas10.
Nestes termos, o município configurou-se como instância de decisão e ação – política, administrativa e educativa. O poder local tem suas prerrogativas ampliadas e passa a desempenhar função importante em diferentes esferas, inclusive no fomento da instrução pública. A criação/supressão, transferência e manutenção de escolas, contratação e pagamento dos professores, dentre outros assuntos referentes à instrução, passaram a ser de interesse e, muitas vezes, responsabilidade dos municípios. Com essas iniciativas, somadas ao debate que ocorre no interior de muitas câmaras municipais sobre o papel da educação na promoção do desenvolvimento dos municípios e da nação, sobre os princípios que deveriam nortear a ação pública voltada para a educação, entre outras, se “advoga um poder local com capacidade de tomar iniciativas políticas, discutir e editar leis, em complemento ou para além das atribuições concedidas pelos estados” 11. Ou seja, a omissão ou insuficiência do estado de Minas Gerais, que não permitiam vislumbrar escolarização para a infância local, tornou possível ou estimulou a intervenção do poder municipal nos negócios da instrução, gerando um contexto particular de parceria entre estado e município.
No entanto, é importante ressaltar que as análises da ação educativa municipal não devem ser tomadas isoladamente dos contextos mais amplos que as cercam, mas de forma articulada com as situações de âmbito nacional e estadual. Em Minas Gerais, por exemplo, Gonçalves Neto e Carvalho observam:
entende-se que existia uma espécie de complementaridade de esforços entre estados e municípios. (...) ... a responsabilidade pela educação passa, tacitamente, para o âmbito dos estados e estes, quando possível, como em Minas Gerais, repassam parte da incumbência aos municípios. E isso estimula ou permite a concretização do que estamos chamando de município pedagógico, pois este, não tendo a quem repassar a obrigação e lidando diretamente com as demandas dos cidadãos, acaba por assumir a educação e a organizá-la dentro dos seus limites12.
Daí a importância de se estudar o processo de organização da instrução pública na dimensão local, bem como suas relações com as instâncias estaduais e nacional. Numa mudança de perspectiva, o município deve ser concebido enquanto objeto historiográfico, perspectiva sob a qual Carvalho&Carvalho salientam que “é possível articulá-lo com a política nacional/global sem se perder de vista o local13”. A realidade educacional municipal das primeiras décadas republicanas possui características próprias, que podem se articular ou mesmo contradizer processos educativos mais amplos nos quais se inserem ou as circundam. Em outros termos, reconhecer a importância da iniciativa local no processo de organização da instrução pública significa também identificar os limites e os problemas que conformaram essa ação educativa e a instrução pública municipal.
Em linhas gerais, no alvorecer da República há um intenso debate sobre a questão da escolarização da sociedade, o qual era marcada por carências de diversas ordens e pelo estado de precariedade e desorganização característicos da realidade imperial, bem como da própria República nascente. Embora os municípios estivessem impregnados pelos mesmos anseios e limitações, as transformações importantes por que foram passando – inclusive no âmbito da urbanização – e a crença no poder regenerador/propulsor da educação levaram-nos à busca da superação do arcaico passado e à busca de um porvir auspicioso, que podiam ser vislumbrados pelas portas das escolas, que promoveriam a necessária formação das futuras gerações, a grande esperança da comunidade.
Por último, destacamos que o dossiê Educação em perspectiva local/municipal, corresponde a uma possibilidade interpretativa, construída a partir das pesquisas aqui reunidas – e de outras que vêm se consolidando nos últimos anos. Dito de outra forma, as considerações apresentadas podem ser tomadas como um convite a novas reflexões que, além de contribuírem para a compreensão da temática, acenam também como parte de um processo investigativo que não deve ser descontinuado. Direcionar o foco de análise para o nível local implica na percepção do papel desempenhado pelos municípios, na forma como o poder local participa do esforço republicano em prol da educação. Desse modo, acreditamos que as reflexões aqui apresentadas, sobre as ações dos municípios, podem oferecer subsídios para uma melhor compreensão da história da educação no Brasil nos primeiros anos da República – e também em períodos posteriores/anteriores – e sobre o processo de organização da instrução pública brasileira de uma forma geral. E também uma perspectiva ampliada e comparativa quando acoplada aos resultados de estudos europeus que fazem parte do dossiê.