1. Uma questão social, política e cultural de alcance continental
Hoje, graças aos estudos que nos últimos decénios se multiplicaram em vários âmbitos diferentes das ciências humanas, conhecemos de forma muito mais profunda a realidade dos inúmeros italianos e, mais em geral dos europeus que, nos finais do século XIX, deixaram a pátria de origem em busca de fortuna ou de condições de vida mais seguras. Tratou-se de um fenómeno muito complexo, com múltiplas causas e repercussões que só foram parcialmente compreendidas mesmo após cerca de um século. Até os observadores coevos tiveram dificuldade para dar uma interpretação compreensível e realista à emigração.
Os mesmos governos que lideraram a Itália nas décadas seguintes à unidade política do País demoraram muito tempo para compreender a enormidade do fenómeno, com as suas repercussões sociais e políticas bem como económicas. Dar sentido ao fenómeno migratório, que dizia respeito não só à Itália, mas à maioria da Europa entre os finais do século XIX e o pós-Segunda Guerra Mundial foi uma operação complicada e sobretudo não unívoca também para os observadores mais experientes e desinteressados. Economistas, sociólogos, cientistas políticos promoveram um debate acalorado sobre os múltiplos significados que o êxodo em massa de população para outros Estados e outros continentes assumia para a nação abandonada. Hemorragia para uns, oportunidade de relançamento económico para outros, moeda de troca e meio para alargar a sua influência política para outros ainda: tal como ainda hoje acontece, a emigração raramente foi olhada pelos contemporâneos através dos olhos do emigrante.
Uma vez que o fenómeno migratório atingiu proporções quase de massa em Países como a Itália, e inúmeras famílias encararam a escolha entre emigrar e sonhar com um futuro melhor ou ficar e aproveitar o que tinham, pensei verificar se, e como, o assunto era tratado numa fonte humilde pela sua própria natureza, mas minuciosamente difundida também entre as camadas mais baixas da população, como é o manual escolar.
É um facto que quem decidia partir era frequentemente (mesmo que nem sempre) dotado de uma fraca cultura, assim como se encontrava numa situação de tal dificuldade que a decisão de abandonar o solo nativo deslocando-se para outro País constituía uma escolha quase inconsciente, mas sem alternativa. No entanto, não é menos certo que, desde a Unidade da Itália, especialmente nas regiões do Norte, a população instruída aumentou gradualmente e eram muitos os que, embora sem acabar o percurso educativo, frequentavam, no mínimo, os primeiros anos da escola primária.
Por estas razões analisei uma seleção de livros escolares de geografia para a escola primária e secundária publicados na Itália no intervalo de tempo entre 1870 e 1925. A abordagem escolhida foi, em primeiro lugar e com base nos nossos conhecimentos,2 a de considerar os livros que nessa altura parecem ter sido os mais comuns e, em segundo lugar, os que se encontram efetivamente disponíveis, quer on line quer nas bibliotecas nacionais.
O resultado, tal como espero demostrar nas páginas seguintes, é que nos manuais de geografia se fazia frequentemente referência à emigração, e as interpretações oferecidas pelos livros escolares eram extremamente variadas. A emigração nunca foi um acontecimento que deixasse neutrais, mas sempre foi explicada e interpretada à luz de um conjunto, mais ou menos complexo, de fatores. Para ilustrar aos seus jovens leitores o que é a emigração e as razões que levavam a emigrar, os autores dos manuais não podiam eximir-se de se referir à situação política, social e económica coeva, chamando a atenção para alguns temas centrais na cultura europeia de então. Nomeadamente, sempre que se tratava de emigração, surgiam nas páginas dos livros escolares os conceitos de nação, pátria, colónia e raça: precisamente sobre estas questões vou focar a minha análise da última parte deste ensaio, para tentar recriar de forma mais aturada a perspetiva ideológica e dos valores atribuída nas escolas italianas a um acontecimento epocal como a emigração.
2. A emigração entre realidade e representação na escola
Nas décadas que se seguiram à Unidade, a Itália experimentou o problema premente de “fazer os italianos” e nesse sentido a escola adquiriu um importante papel nas intenções dos governos que se sucederam à frente do País. Além disso, o reino dos Saboia estava pela primeira vez a olhar para o estrangeiro com intenções coloniais, enquanto experimentava uma verdadeira explosão demográfica sem precedentes e registando fortes fluxos migratórios para as outras nações europeias e, mais ainda, para além do oceano Atlântico. Foi especialmente na transição do século XIX para o século XX que na Itália o fenómeno migratório atingiu proporções muito relevantes. 3
Por estas razões, mais de 90% dos manuais analisados abordam a questão da emigração. Trata-se de uma elevada percentagem, que nos surpreende sobretudo no que respeita aos livros destinados às escolas primárias, ao passo que, para um leitor de hoje, o público era realmente ainda demasiado jovem para entender concretamente um assunto tão complexo. Contudo, importa salientar que, nessa altura, a emigração dizia respeito à maioria das famílias e que, por conseguinte, as crianças possuíam dela um conhecimento direto, embora algo vago. Além disso, é preciso não esquecer que a infância era precocemente adultizada, sobretudo nos contextos de difíceis condições socioeconómicas.
Na verdade, um dado que não pode deixar de surpreender é que, ao contrário do que acontecia em outros Países europeus, como a França, os autores italianos não só lidavam com o assunto, salientando o papel dos emigrantes italianos nos Países de destino, como também davam indicações suficientemente pormenorizadas para uma emigração de sucesso.4
O Compendio di geografia generale de Luigi Giannitrapani, por exemplo, dedica um amplo parágrafo para explicar as teorias da emigração.5 De acordo com o pensamento neoidealista coevo, o autor considera os Estados enquanto organismos vivos que nascem, desenvolvem-se, alteram-se, caducam e, por vezes, se extinguem, condicionando deste modo a vida do seu povo. Tais alterações podem causar fenómenos demográficos de grande alcance como, por exemplo, a emigração. Esta pode ser determinada quer pelo aumento constante da população de um Estado, quer porque as ofertas de emprego não são suficientes para satisfazer os pedidos de todos os cidadãos ou porque o emprego não é suficientemente remunerativo, mas pode também ser fruto de condições políticas e económicas desfavorecidas para uma parte da população.
Giannitrapani, à semelhança de muitos outros autores de livros escolares, explica que, dependendo do modo como é realizada, a emigração subdivide-se em “temporária” e “permanente”. No primeiro caso os emigrantes se estabelecem temporariamente num determinado país a fim de là trabalhar, talvez apenas em certas épocas do ano, para depois regressar à pátria. Neste caso, as deslocações podem ocorrer também no interior dum mesmo Estado. No entanto, a forma mais significativa de emigração é a que decorre entre diferentes países. Trata-se, por isso, quase sempre de emigração permanente pois os migrantes vão para terras longínquas, fazendo com que a separação seja definitiva na maioria dos casos. É o que se verifica sobretudo nos Estados que têm um crescimento demográfico constante, onde a população em excesso é forçada a procurar as suas fontes de subsistência para além das fronteiras da pátria, tal como acontece com a Itália, a Inglaterra e a Alemanha.
Porém, nem sempre tal separação se revela prejudicial para a mãe-pátria: com efeito, se os êxules constituem um numero considerável dentro do novo Estado, estes podem formar uma “colônia étnica ou de povoamento”, sob a soberania do País onde residem. É este o caso dos italianos que colonizaram vastas áreas da Argentina, do Brasil e da Tunísia: “se esses filhos que estão longe da Mãe-pátria mantêm a memória da sua terra e continuam a falar a sua língua, as colónias étnicas são de grande vantagem para a pátria que envia os seus produtos em excesso para esses países recebendo em troca dinheiro e espalha, através deles, a sua língua e a sua cultura, tornando assim maior a sua importância política”.6 [“se questi figli lontani dalla Madrepatria mantengono il ricordo della loro terra e continuano a parlare la loro lingua, le colonie etniche sono di grande vantaggio alla patria che manda in quei lontani paesi i suoi prodotti esuberanti e ne riceve denaro, diffonde per loro mezzo la sua lingua e la sua cultura ed aumenta così la propria importanza politica”].
Como sublinha Carmelo Colamonico, “as colônias mais comumente chamadas de colonias políticas devem ser consideradas bem distintas das colônias étnicas: por colónia política ou posse colonial de um Estado entende-se um território em que esse estado exerce um poder dominante; geralmente o território dependente está longe do Estado soberano (Líbia). Se as organizações estatais indígenas e os líderes locais são mantidos no território dependente, trata-se de um protetorado (Tunísia). Depois, quando se trata de um território no qual um Estado, de acordo com outros Estados, reservou-se o direito a uma possível expansão político-comercial futura, estamos a falar de uma esfera de influência. Por último, o país colonial cujo governo vem temporariamente atribuído da Sociedade das Nações a um estado civilizado é conhecido como “mandato”.7
Na sua detalhada análise do fenómeno migratório, Giannitrapani explica que as colónias variam também pelo “caráter”, uma vez que são afetadas pela aptidão dos povos que emigram: por exemplo, as colónias italianas se apresentam predominantemente agrícolas pois são povoadas por camponeses, enquanto as inglesas e as alemãs são na sua maioria comerciais, sendo constituídas por comerciantes e empresários.
Explicações similares são oferecidas por Roberto Almagià no seu Manuale di geografia ad uso delle scuole superiori e delle persone colte, também este publicado em 1925.8 Almagià não se limita apenas a ilustrar de forma abstrata causas e modalidades das migrações, mas fornece ao leitor algumas indicações úteis para compreender a realidade com que se confrontam, por exemplo, os italianos que vão à procura de fortuna nos Estados Unidos: ali eles realizam os trabalhos mais humildes, “são pouco apreciados e muito facilmente explorados; […] chegando sem conhecimento e sem meios, eles ficam à mercê de açambarcadores pouco honestos. A ignorância dos próprios emigrantes, que muitas vezes não têm ideia alguma do país para onde vão e do trabalho que irão fazer, contribui para o agravamento das condições”9.
Enfim, para uma emigração de sucesso há necessidade de uma formação, também escolar, como já em 1888 declarava Gerolamo Olivati no seu Manuale di geografia cosmografica, fisica e politica ad uso delle scuole secondarie, classiche, tecniche, militari e navali, segundo o qual é indispensável “ter conhecimento prático e seguro, quer de agricultura, quer de comércio ou de indústria; ter pelo menos um mínimo de cultura intelectual (e, infelizmente, muitos dos nossos camponeses são analfabetos) e conhecer a língua do país. Caso contrário, vai-se ao encontro do destino mais lamentável e de sofrimentos infinitos e sem frutos”.10
Portanto, se existirem razões intimamente biográficas e familiares para evitar emigrar, os motivos mais coativos deveriam, com certeza, ser de natureza patriótica. Com efeito, quase todos os autores tomados em consideração partilham a opinião de Almagià, segundo o qual “a emigração permanente é um grave dano para a Itália, pois subtrai duradouramente à pátria os indivíduos mais ativos e vigorosos, deixando aqueles que são improdutivos (velhos, mulheres e crianças); além disso, libera os laços da família e o afeto pelo país. […] Em termos gerais, a emigração é um dos maiores e complexos problemas da Itália moderna e, desde já, volta a impor-se em toda a sua dimensão, já que, após o fim do conflito mundial, muitos dos que tinham voltado ao seu país por causa da guerra, cruzam o Oceano outra vez”.11
Pelo contrário, “a expansão colonial é, hoje em dia, uma necessidade dos estados mais importantes da terra; de fato, além do estímulo para aumentar consideravelmente o prestígio no mundo, esta se apoia na necessidade de encontrar uma saída para a população da mãe-pátria em constante crescimento e na necessidade de abastecer de matérias-primas a indústria em crescente desenvolvimento na mãe-pátria. Estas necessidades são fortemente sentidas pelo nosso país, onde, apesar da diminuição de intensidade dos últimos anos, a população está a aumentar substancialmente e a sua atividade industrial torna-se cada vez mais significativa. Além disso, a Itália tem uma tradição milenar enquanto potência colonizadora. Nenhum outro país, portanto, pode reivindicar direitos maiores que a Itália para uma expansão do domínio colonial”.12
3. Emigração e colonização. A população como riqueza nacional
Independentemente da atenção dispensada ao assunto, os manuais de geografia produzidos em Itália entre os finais do século XIX e as primeiras décadas do século XX referem-se a uma comum bagagem ideal, política e cultural para explicar as relações entre a Europa e os outros continentes, bem como entre a “civilização” ocidental e as das outras regiões do mundo. Na verdade, o fenómeno migratório representava apenas um dos múltiplos aspetos das políticas internacionais dos Estados europeus, sendo estes muito ocupados, na época, a disputar o controlo comercial e militar dos outros continentes. Sem esquecer que a política colonial colocava-os em competição uns contra os outros, dando origem a uma luta onde a população, o crescimento industrial, as colónias e a alfabetização representavam um conjunto de fatores fundamentais para decidir quem lideraria politica e economicamente no Velho e no Novo Mundo.
Em quanto saber consubstancial à construção e à propagação de uma ideia suficientemente clara do nosso planeta e do papel nele desempenhado pela nossa espécie, nessa altura a geografia empenhou-se em contribuir para realizar uma nova leitura da realidade, quer como ciência quer, sobretudo, como disciplina escolar. Não surpreendentemente, da geografia física, económica e, mais raramente, política, tal como foi apresentada até à década dos anos Setenta do século XIX, se passou à geografia humana, oficialmente introduzida na escola italiana pelos programas de 1888 e de 1894. A partir daquele momento, o estudo das nações e das suas formas de governação e de economia se tornou gradualmente prioritário na escola.
As novas orientações disciplinares resultaram funcionais as necessidades dos Estados europeus da época, cuja política centrava-se na conquista colonial e na descoberta e exploração dos recursos dos Países menos desenvolvidos. Com efeito, como afirma Horacio Capel, “among the reasons that explain the triumph of geography over rival disciplines, there is one of great importance: the function assigned to geography in the shaping of a feeling of nationalism”.13
Nesse sentido, também os homens se inscreviam entre os elementos de riqueza de uma nação. Se a terra era, antes de mais, terra de conquista, armada (como é o caso da África, onde foi tentado inutilmente de pôr ordem - e hoje sabemos com quais consequências! - através da Conferência de Berlim) ou industrial e comercial, os homens eram considerados como “capital humano”, capaz de tornar grande o País com o seu trabalho e o seu conhecimento. Neste contexto, os habitantes das nações europeias, mais ainda do que os das colónias, assumiram o papel de recursos económicos e políticos fundamentais, portanto a valorizar e incrementar, antes de mais através da educação, com base no princípio de que “quem mais sabe, mais vale”.
Mesmo na segunda metade do século XIX se tornou gradualmente comum a ideia de que o valor de uma população não se pode calcular apenas em termos numéricos e quantitativos, embora estes constituam um aspecto fundamental frequentemente evocado quando se fala de emigração. O nível cultural também importa ou, para dizê-lo com as palavras usadas na época, “de civilização” de que os homens são portadores. Na maioria dos casos, porém, o primeiro aspecto a ser abordado é o da importância da população enquanto recurso material para a nação: nenhuma forma de grandeza nacional é viável sem uma população numerosa e fértil. Depois, claro, na competição internacional é fundamental também o nível de educação dos cidadãos, mas o primeiro requisito que determina a importância de um País é, sem dúvida, o numero dos seus habitantes.
Um requisito que a Itália da época possuía, sem dúvida, ao contrário de outros Países vizinhos e concorrentes, como a França, que durante o mesmo período experimentava uma diminuição significativa de habitantes após séculos de crescimento. Apesar do saldo demográfico largamente positivo, os autores italianos manifestaram grande pesar pela perda de capital humano causada pelos consideráveis fluxos migratórios, embora não pudessem fingir de ignorar que o abandono da terra de origem era muitas vezes a única escolha possível para os seus compatriotas. Além disso, no caso da emigração temporâria alguns efeitos positivos também poderiam ser encontrados para o País, como também admitia a contragosto Almagià, segundo o qual “não se deve ignorar que a emigração é uma fonte de renda, pois os emigrantes que regressam, trazem para a pátria os frutos do seu trabalho e os utilizam para melhorar as suas condições; ademais, eles voltam a trabalhar mais endurecidos e empreendedores.” 14
O verdadeiro estrago pela nação resultava mesmo da emigração assim chamada “permanente”, ou seja constituída daqueles cidadãos que não só nunca teriam voltado à pátria, mas que se integraram perfeitamente na nova realidade. Por esta razão, o Testo-atlante scolastico di geografia moderna astronomica - fisica - antropologica espressamente compilato e disegnato per le scuole secondarie italiane de 1897, realçava com desagrado que “o nosso povo, após algum tempo que se instalou nos acima referidos países [da América do Sul], tende a misturar-se com o resto da população e os seus filhos esquecem a língua da mãe-pátria para adoptar a do país em que habitam”, ao contrário, por exemplo, dos descendentes dos colonos franceses, que preservam a sua identidade, a religião e a língua de origem, tornando-a “um distintivo nacional e uma razão de autonomia”15
Aliás, era este o preço a pagar, como salientava Battista Vay numa passagem muito retórica e comovente da Immagine del mondo per la quarta classe, pelo “génio e os braços” italianos, que com os seus sacrifícios e a sua força tinham permitido o desenvolvimento de Países de outra forma selvagens, como a Argentina.16
Se os emigrantes não voltarem à pátria, resultava então de vital importância manter um vínculo com eles. Era este, contudo, a única forma de tirar proveito económico da migração, aumentar a influência cultural e política da nação ou, pelo menos, manter a ligação - e uma certa influência - com aqueles que deixavam a terra mãe para alcançar terras longínquas e, frequentemente, ainda não dotadas de um forte sentimento nacional, assim como de “civilização”.
4. Emigração italiana e América do Sul
O tema da emigração no debate político coevo e, por conseguinte, nos manuais, era estreitamente ligado ao da colonização, ou seja da conquista militar e da influência económico-política sobre os Países extra-europeus. Esta abordagem ao tema da emigração era comum à todos os Países europeus, que na época lutavam entre si, politica e economicamente, antes de se oporem em armas nos campos de batalha.17
Em muitos textos afirma-se aquilo que, com toda a clareza, explica Almagià no seu Manuale di geografia ad uso delle scuole superiori e delle persone colte, ou seja que “a tendência de cada povo e nação é de se expandir. Os efeitos produzidos por essa expansão são a colonização e a emigração. No primeiro caso, os territórios exteriores são ocupados e ligados politicamente ao estado ocupante, no segundo caso uma parte dos cidadãos viram as costas ao seu país para se instalar numa terra estrangeira temporária ou definitivamente: deste modo criam-se as colónias étnicas ou de povoamento”.18
Nos manuais de geografia, os temas da emigração e da colonização são mais ou menos implicitamente ligados ao “instinto” de expansão do homem, nomeadamente de raça branca. Por esta razão, Almagià, à semelhança de muitos outros autores de textos escolares, sublinha com alguma ênfase e um certo orgulho que “estima-se que no último século a Europa tenha enviado além do Ocêano mais de 30 milhões de seus filhos”19 e que “nenhum país da Europa dá tantos emigrantes como a Itália.20
Arquétipo do Estado europeu empenhado na colonização é, sem dúvida, a Inglaterra. Também Luigi Hugues, nos seus muito afortunados Elementi di geografia ad uso delle scuole secondarie, commerciali e militari, reconhece como principal característica da Europa precisamente as posses coloniais que muitos Estados detêm nos outros continentes ou no seu (por exemplo, Gibraltar, geograficamente espanhola, mas pertencente ao Império Britânico). E para oferecer aos estudantes um exemplo prático da capacidade europeia de expanção, Hugues refere-se ao “povo inglês”, que o autor define “eminentemente colonizador”.21
No entanto, se emigração e colonização constituem as duas faces da mesma moeda, a expatriação a título definitivo para Países estrangeiros representa, sem dúvida, um elemento negativo para a pátria de origem. Aliás, como salientamos anteriormente, quando um europeu atravessa mares e oceanos para ir se estabelecer numa terra distante enfraquece a sua nação de origem e, pelo contrário, torna-se benéfico para a de destino.
Por estas razões, quando os manuais oferecem concelhos sobre onde emigrar, indicam naturalmente os lugares onde a presença europeia é já muito forte. Portanto, quando realmente se decidir deixar o solo pátrio, vale a pena fazê-lo na direção das colónias. Caso as colónias não consigam receber nova população ou se decida ir tentar a sorte virando as costas para a pátria, convém dirigir-se para o continente americano e, nomeadamente, à América do Sul, onde as possibilidades de efetuar uma emigração de sucesso ficam mais altas do que em qualquer outro lugar.
Na verdade, nem todos os Países da América do Sul são equivalentes, e nem todos os migrantes são parecidos. Se os Países jovens, mas que constituem há muito tempo o destino da colonização europeia, podem ser considerados no caminho da civilização, como a Argentina, o Uruguai e o Chile, outros, como o Brasil, são definidos como cheios de oportunidades, mas quase totalmente selvagens. Como salienta de forma pormenorizada Guido Branca na sua obra Geografia elementare proposta alle scuole primarie, muitos dos estados que compõem o Brasil “são percorridos por hordas selvagens e a ciência mal as conhece nas características mais gerais pelos itinerários de poucos viajantes que as cruzaram entre privações e perigos. A emigração europeia antes aumenta de ano para ano a população, embora lentamente; o comércio marítimo não para de crescer, são encorajadas as indústrias e os estudos, trava-se, na medida do possível, a imoralidade dos costumes que a mestiçagem e a ignorância favorecem”.22
Pouco importa se os emigrantes italianos vão muitas vezes ao encontro das aflições devidas à exploração. Autores como Giannitrapani são bem cientes de que no Brasil “em 1888, visto ter sido abolida a escravidão dos negros, essas terras permaneceram quase sem trabalhadores e foi necessário fazer regressar os emigrantes europeus, entre os quais acorreram em grande número os italianos que agora são aproximadamente 1.500.000 e são fixados enquanto assalariados nas fazendas, ou como colonos independentes”.23
Nem sempre a aventura e a falta de concorrência são garantias suficientes de sucesso. Antes pelo contrário, a presença de compatriotas e de uma numerosa colonia de europeus leva os autores dos manuais a persuadir seus jovens compatriotas que tencionam ir para além do oceano a escolher a Argentina ou o Uruguai em vez do Brasil, pois nesses Países é possível encontrar facilmente algo semelhante ao que foi deixado na pátria. Porém, também nesses casos é preciso preparar sensatamente a sua viagem a fim de tornar a emigração realmente produtiva para si e para a pátria de origem.
Em relação à Argentina, o mesmo Giannitrapani explicava que os 1,5 milhões de italianos que ali vivem “exercem uma grande atividade comercial e tomam parte ativa das iniciativas de obras públicas e agrícolas e das especulações bancárias. Mas essas atividades e iniciativas mantêm um caráter individualista nesta colónia de emigração, bem como nas outras; de modo que, sem a expressão da vida e da força coletiva que, pelo contrário, as colónias de outras nações realizam, os italianos têm pouca influência na vida pública do país. A Argentina é o país que atualmente atrai a maior parte da nossa emigração transoceânica, portanto esta colónia está destinada a um desenvolvimento cada vez maior”.24
De igual modo, depois de ter explicado que para uma emigração de sucesso em Países desenvolvidos como os Estados Unidos é necessário ter um bom nível de educação, Almagià insiste na necessidade de escolher cuidadosamente o País para onde emigrar, uma vez que a experiência que os italianos acumularam neste domínio demonstra que “no Brasil eles são empregados nas plantações de café, onde são submetidos a esforços muito mais pesados do que os que sustentam na terra de origem como camponeses, condicionados por um clima que não é favorável aos europeus e sem receber uma compensação adequada. Na Argentina e no Uruguai as condições são muito melhores, pois eles trabalham em um clima semelhante ao da pátria e tratam das mesmas culturas presentes na Itália”.25
Muitos manuais explicam que em Países como a Argentina, o Uruguai e o Chile, o emigrante italiano pode encontrar condições semelhantes às que deixou na Europa, ideais para se integrar e concretizar as suas aspirações: “Em virtude da melhor situação, especialmente nas províncias pré-andinas eles constituem grandes colónias agrícolas, cujos nomes se inspiram nas cidades e nas aldeias italianas. Um número significativo deles vive também nos centros urbanos onde exercem ofícios, artes liberais e profissões: muitos deles são apreciados e souberam alcançar posições proeminentes”.26 Não é por acaso que o maior número de compatriotas encontra-se na Argentina, que representa “o maior centro de emigração italiana na America”. Calcula-se que de 1857 a 1913 cerca de 2.000.000 de italianos se instalaram e em 1913 havia aparentemente 850.000 deles. Muitas outras colónias de italianos prosperam no Brasil e no Uruguai”.27
Se o Brasil não partilha com as colónias espanholas e inglesas uma situação de relativa saída da barbárie e de plena utilização do seu enorme potencial a culpa é, na opinião de Gerolamo Boccardo, compilador de livros escolares de sucesso, da marca deixada pela pátria de origem, que “quando em 1654 recuperou o Brasil, cuidou com tarda solicitude da única posse colonial que lhe restava do seu vasto império.” Por isso, “Portugal nunca mais se levantou da abjeção em que tinha caído. A índole preguiçosa dos habitantes os mantinha longe do trabalho e da indústria. O espírito de restrição e monopólio esgotava as fontes de riqueza e paralisava o comércio. O desejo de fazer rápida fortuna nas minas removia a população dos caminhos mais produtivos”.28
Quanto à Argentina, em geral, a opinião é diferente: esta, de facto, sob alguns pontos de vista, pode ser equiparada a um Estado europeu “precisamente graças aos imigrantes, que representam quase metade dos seus oito milhões de habitantes, designadamente da Europa do Sul, italianos em primeiro lugar”. Não por acaso, muitos manuais salientam que “a república Argentina é um Estado em grande desenvolvimento”, que possui uma rede de caminhos de ferro, linhas telegráficas e eficientes meios de comunicação terrestres e marítimos.29
O mérito dessa supremacia em relação aos outros Países sul-americanos é, sem dúvida, a imigração precoce da Europa, nomeadamente da Itália, já que, como relembra o autor, “desde 1857 (talvez alguns anos mais tarde) até 1908 a nossa emigração é escalonada para o Rio da Plata como as forças de um exército”.30
Além disso, apesar de um certo atraso socioeconómico, é inegável que o Novo Mundo possua uma extraordinária vitalidade: nas Nozioni di geografia ad uso delle scuole tecniche de Niccolò Da Ponte lê-se que a civilização americana tem muitas características em comum com a europeia, uma vez que foi importada pelos emigrantes, embora distinguindo-se por “algum ímpeto, um certo tipo de exclusividade e vitalidade características do Novo Mundo”.31 Os juízos otimistas em relação à América do Sul não são incomuns nos textos de geografia, tornando-se ocasião para elogiar a Europa colonizadora.
Se os juízos sobre cada uma das nações extraeuropeias são comuns à maioria dos manuais publicados em Itália (bem como noutros países europeus) entre os finais do século XIX e o início do século XX, é porque a representação geral do planeta é quase idêntica. O mundo é apresentado aos jovens leitores enquanto terra de conquista, uma oportunidade que as potências europeias foram ou não capazes de aproveitar. Manifesta-se uma ideia do outro extremamente estereotipada, feita de lugares-comuns, onde o que é enfatizado, mais do que a distância geográfica, é a diferença da normalidade, representada pela Europa.
Portanto, não é raro encontrarem-se ainda nos manuais do início do século XX juízos e expressões centenários, não apenas completamente infundados, mas também enganosos para os alunos. Por exemplo, não são raros os autores que continuam a definir o continente americano como “Índias Ocidentais”, evocando a epopeia das descobertas geográficas e das primeiras conquistas coloniais. À luz de estereótipos deste género não surpreende ler, em relação ao continente americano, que “os indígenas, que no passado conheceram períodos de prosperidades e de grande civilização, tal como a Asteca ou a Inca, exterminadas pelos europeus, representam a minoria da população. Entre eles, uma parte tem residência estável e pratica a agricultura, enquanto a outra é nômade e vive de caça e pesca. No entanto, o elemento civilizador foi introduzido pelos povos imigrantes pertencentes à raça branca. Esses povos, nomeadamente graças ao contributo dos ingleses, permitiram aos Estados Unidos alcançar uma importância económica e um grau de cultura equivalentes ao dos maiores e civilizados Estados europeus”.32
5. A raça como fundamento biológico das ideias de pátria e de nacionalismo
Nos manuais italianos de geografia da viragem do século XIX para XX a imagem dos compatriotas nos países colonizados e de imigração é sempre intimamente ligada à apresentação do diferente, ou seja dos outros povos e das outras raças, além da branca. De facto, a representação do outro é o que mais claramente evoluiu no período de referência. A questão da superioridade da raça branca existe, na verdade, desde os finais do século XIX, embora na época estivesse ainda numa fase embrionária e, por assim dizer, ingénua. A superioridade dos povos brancos é, de facto, justificada, acima de tudo, pela superioridade da civilização europeia. É precisamente essa vantagem cultural que autoriza, ou quase moralmente obriga, as nações europeias a expandir-se em detrimento das outras, as quais, por sua vez, podem unicamente beneficiar de uma invasão tão fecunda.33
Na verdade, a totalidade dos manuais examinados, no momento de descrever as variedades humanas presentes no globo terrestre, recorre à classificações. É preciso não esquecer que a distinção em categorias bem definidas foi uma das características das ciências positivistas, incluindo as humanas como a medicina, a psiquiatria, a sociologia, bem como a pedagogia. Nas últimas décadas do século XIX, porém, o elemento somático e biológico constituía só um dos elementos utilizados pelos geógrafos para explicar a heterogeneidade das culturas e do ser humano. Como bem salienta Plinio Cortesi “o homem pode ser considerado em relação à sua cor, à religião que professa, au grau de cultura”.34 Em relação à cor da pele são comumente distinguidas cinco raças, ou seja a “branca ou caucasiana”, a “negra ou etíope”, a “amarela ou mongólica”, a “vermelho-morena ou americana” e a “escurinha ou malaia”. Por outro lado, no que diz respeito à religião, “ou seja à maneira diferente de manifestar o sentimento religioso por parte da humanidade, os homens podem ser resumidos em duas grandes classes, isto é, naqueles que reconhecem um único Deus, que portanto são chamados de “monoteístas”, e naqueles que admitem e adoram mais deuses e que são chamados de “politeístas”.35 Existe ainda uma última distinção que decorre do “desenvolvimento das faculdades intelectuais e morais”, a qual leva a subdividir os homens em “civilizados”, “bárbaros” e “selvagens”. Podem ser considerados “civilizados quando professam uma religião, têm hábitos gentis, literatura, artes, leis e governo; bárbaros quando não conhecem escrituras ou letras, embora não careçam de instituições que os aproximem dos povos civilizados; selvagens quando têm faculdades intelectuais subdesenvolvidas, quando levam uma vida sem quase nenhuma relação com os outros homens e que, por conseguinte, pouco ou nada conhecem das artes mais necessárias para a vida”.36
Outros autores, como Francesco Borrelli, compilador do Compendio di geografia, introduzem uma quarta classificação das sociedades humanas, nomeadamente a que toma em consideração as línguas faladas por elas, dando uma descrição ainda mais diferente da diversidade cultural.37
Em geral, porém, todos os autores partilham da opinião de Schiaparelli, segundo a qual a raça branca é a que “domina todos os outros também pela superioridade da inteligência”.38 De igual modo, é muito comum nos manuais da época a tese de Luigi Giannitrapani, que defende que a “raça europeia, também chamada mediterrânea, pois a sua atividade, na antiguidade e na Idade Média, se desenrolou na bacia do Mediterrâneo, também dita de branca ou caucasiana, […] é superior às outras por ter melhor desenvolvido qualidades físicas, morais e intelectuais que lhe deram o predomínio no mundo”.39 O “povo europeu”, de facto, tem que ser considerado como “o povo mais civilizado, já que foi mais capaz do que os outros de adaptar-se ao ambiente externo e modifica-lo. Favorecido pelas condições geográficas, tem sido capaz de desenvolver qualidades excecionais, como inteligência, perseverança, iniciativa e previdência para o futuro que o ajudaram a progredir constantemente, para consolidar os resultados alcançados e expandir-se para além das fronteiras”.40
A alegada superioridade dos europeus é elogiada também do ponto de vista estético, como é o caso dos Elementi di geografia estesi anche ai programmi governativi per le scuole ginnasiali, tecniche, normali e magistrali de Giovanni Bindoni (1877), que definem a raça branca como aquela que “se destaca das demais pelas suas formas graciosas e pelo maior desenvolvimento intelectual”41 E embora “os povos se dividam em civilizados, bárbaros e selvagens consoante o grau de civilização ou de cultura” a supremacia “caucasiana” não tem ainda razões biológicas.42
O que é universalmente compartilhado pelos manuais da época é que o colonialismo deve ser considerado como uma consequência direta da superioridade cultural dos brancos, cuja civilização está imbuída de espírito de empreendimento e conquista. Esta pode ter tido certamente algum efeito negativo sobre as outras civilizações, mas se revelou fecunda na maioria dos casos e contribuiu à saída da barbárie dos outros povos.
Representativo a este respeito é o que afirma, entre outros, Wilhelm Pütz, traduzido por Amato Amati, na Guida allo studio della geografia comparata ad uso delle scuole classiche e tecniche, quando diz que uma “peculiaridade da população europeia foi a capacidade de combinar as artes e as ciências com as atividades” industriais e comerciais, que lhe permitiu, apesar de a Europa representar só uma pequena parte do mundo, alcançar “uma superioridade moral sobre todas as outras”, concretizada atravéz do domínio colonial, que se estendeu “por um terço da superfície terrestre e abrange quase metade da humanidade”.43
Os modelos interpretativos aos quais se referem expressamente os manuais são frequentemente extremamente desatualizados e vão desde o iluminista Johann Friedrich Blumenbach, fisiólogo e naturalista alemão, autor de uma classificação craniométrica, até o biólogo e naturalista Georges Cuvier (autor, entre outros, das Leçons d'anatomie comparée) e o pedagogo francês Théophile-Sébastien Lavallée, curador das obras de Madame de Maintenon e autor da atualização da geografia de Malte-Brun. Nestas fontes se inseriam, mais tarde, o evolucionismo e o positivismo aplicados à história do género humano, na esteira de autores como Darwin e Durkheim, conduzindo a uma leitura da civilização onde a pedra de toque era a cultura europeia, tida como a mais avançada, em relação à qual os outros povos colocavam-se a maior ou menor distância. Mas será necessário esperar pelos estudos etnográficos e antropológicos, como os de Richard Thurnwald, para desmantelar, não sem dificuldade e nunca completamente, os pressupostos ideológicos da interpretação eurocêntrica da história.44
A interpretação do mundo centrada na civilização e no progresso, no entanto, concedia aos povos extraeuropeus a possibilidade de civilizar-se, exatamente como tinha acontecido aos brancos. Foi, em suma, uma leitura não determinística, dinâmica, embora funcional aos interesses políticos e econômicos da Europa colonial. Tal leitura permitia a Colamonico de afirmar que “os brancos e os amarelos representam as duas raças mais ativas, mais inteligentes e mais numerosas: tais raças criaram as formas mais elevadas de civilização e impuseram a sua dominação ou a sua proteção ao resto da humanidade”.45 E a mesma maneira de pensar sugere ao já mencionado Schiaparelli afirmar, no seu Manuale completo di geografia e statistica, que, embora o “tipo negro” seja “inferior aos outros dois (o branco e o amarelo) em inteligência e nunca produziu homens e obras verdadeiramente grandes, o que não significa ainda que não possa produzi-los”.46
Ainda mais explícito foi o Manuale di geografia moderna do inglês William Latham Bevan, traduzido para o italiano por Giuseppe Carraro, pela editora Barbera de Florença. O autor começava a discussão sobre a raça especificando que “a raça humana mostra-se digna da posição que lhe é atribuída no mundo pela sua maravilhosa faculdade de se adaptar às variações do clima, de alimentação, de hábito. Enquanto os animais estão confinados dentro de áreas, as vezes muito reduzidas, o homem pode viver e, de facto, vive tanto debaixo do sol equatorial como entre as neves e o gelo polar”47 Tais características são comuns a todos os seres humanos, uma vez que “a unidade da raça é inquestionável: há apenas uma espécie com muitas variedades elementares e as investigações etnológicas confirmam isso. As numerosas e bem definidas diferenças de aspeto e de conformação física, como a cor da pele, a qualidade do cabelo, a forma do crânio e o ângulo facial, levaram a classificações das variedades humanas, que diferenciam-se muito pelo número de tais variedades e pelo princípio em que se baseiam”48
Portanto, se o que caracteriza a raça branca é o fato de ter tido um desenvolvimento mais precoce e melhor do que as outras, o que varia ao longo do tempo, com base na análise dos manuais levados em consideração, são as possibilidades concedidas a outras raças para cobrir essa diferença. Como explica Giovanni Graziani, de facto, “em virtude da evolução, que é a base da biologia, certos grupos humanos, ao viver num ambiente adequado para o desenvolvimento fisiológico e psíquico, amalgamaram-se e aperfeiçoaram-se, constituindo raças superiores. Outros grupos, por outro lado, ao viver em regiões menos favorecidas, permaneceram estacionários ou até decaíram gradualmente, apresentando-se, hoje, como povos primitivos e grosseiros”.49
Gradualmente, começa-se a explicar a superioridade dos povos europeus não apenas pela civilização, mas principalmente pelas características genéticas ou, pelo menos, indissociáveis do contexto histórico, geográfico e cultural em que se desenvolveu a raça branca. Entre os fatores considerados determinantes aparece, no início do século XX, o temperamento, que “é um importante caráter psíquico, intimamente ligado aos caracteres somáticos, correspondendo cada raça a um temperamento marcadamente particular”. Descobre-se assim que “o temperamento nervoso é próprio da raça mediterrânica” onde “o sentimento e a razão moderam-se mutuamente e, sendo extremamente desenvolvidos, conferem a essa raça uma nítida superioridade sobre todas as outras. Ao contrário, a raça mongoloide, dotada de um temperamento melancólico, por sua particular disposição de ânimo tende a olhar mais para trás do que para o futuro, pelo que é tenaz conservadora das tradições e dos seus próprios costumes, equilibrando-se numa estase que, em tempos de progresso como os nossos, é sinónimo de recuo”.50 Por isso, mesmo que as civilizações orientais possam ser consideradas quase em linha com as ocidentais, para o futuro a sua inferioridade parece ser garantida, exatamente como para as outras raças: “a raça africana tem um temperamento sangüíneo, é extremamente impulsiva e de pensamento e atos inconstantes, tem dificuldades em refletir e não tem inibições. A raça americana, dotada de um temperamento fleumático, tem em particular uma imperturbabilidade de espírito que torna insensível esta gente taciturna, e grave até diante da dor física. O temperamento colérico é característico da raça malaica, apaixonada, cautelosa, cruel”.51
Tendo em conta esta análise, a previsão de Graziani é que, dado que os povos se distinguem em relação ao grau de civilização alcançado em naturais, semi-civilizados e civilizados, “hoje, no fervor de uma civilização muito nova, o último estádio evolutivo da atividade humana seria representado pelos povos industriais e comerciais nos países onde (como na Inglaterra, na Bélgica, em muitas regiões da Alemanha, dos Estados Unidos, da França) o desenvolvimento da indústria e dos negócios assumiu uma tal importância que o valor dos seus produtos ultrapassou o da agricultura”.52
Nesse sentido, o desaparecimento dos povos menos civilizados pode ser considerado, sem muitos arrependimentos, como um dano colateral da expansão da civilização mais avançada. Não são poucos os manuais nos quais, na esteira de Darwin e Durkheim, a transição do homem selvagem para o “civilizado” é apresentada como um renascimento da humanidade. Por exemplo, Luigi Hugues, nos acima referidos Elementi di geografia ad uso delle scuole secondarie, commerciali e militari, para explicar a chacina dos Mayas e dos Astecas, embora reconhecendo a grande influência de múltiplos fatores, incluindo as guerras, as doenças importadas da Europa e o alcoolismo, afirmava que “sempre que as raças europeias entram em contato com uma raça inferior, esta rapidamente diminui e acaba desaparecendo sem deixar qualquer vestígio apreciável de si mesma.53
Preço muito pequeno a pagar se quisermos acreditar em Eugenio Comba, segundo o qual “as numerosas colónias propagam a civilização europeia além das fronteiras relativamente apertadas […] Portanto, podemos dizer que a Europa, apesar da sua reduzida extensão de território, é a dominadora de todo o mundo, sobre o qual exerce a influência mais benéfica em todos os ramos da civilização humana”.54
À luz das diferenças congênitas entre as várias raças humanas, lidas com finalidades teleológicas, a superioridade da raça branca deixa de ser apresentada como produto cultural e, portanto, transitória, para se tornar, ao contrário, perene. Precisamente nas décadas da virada do século, mas bem antes do sucesso dos totalitarismos, a superioridade da raça assumiu motivações biológicas e mecanicistas, com referências étnicas e, portanto, rigidamente imutáveis. A questão da colonização assume, dessa forma, um valor acima de tudo biológico e só depois cultural e político, não encontrando uma explicação através da política ou da economia, mas sim através da própria natureza do homem. E se a teoria da superioridade cultural permite as outras raças a possibilidade de colmatar a distância que as separa dos brancos, a supremacia baseada na componente biológica torna esta lacuna irrecuperável.
Entre o final do século XIX e o alvorecer do século XX, ou seja bem antes do surgimento do fascismo e do nazismo, de forma extremamente rápida e evidente para os rastos deixados na literatura escolar, ao juízo sobre a civilização sucedeu um juízo sobre a raça. Assim, enquanto a fisiognomonia foi em auxílio dos geógrafos, à medida que os estudos se sucediam, a catalogação dos “tipos” e dos “grupos” humanos tornou-se cada vez mais complexa. A pedra de toque entre as raças não era mais tanto a civilização, mas antes o ângulo facial, o temperamento, o clima, todos fatores indissociáveis de uma raça específica e do seu ambiente.
Uma última passagem lógica, extremamente audaz, à qual os estudantes europeus da viragem do século são iniciados, é aquela que indica o sentimento pátrio como património exclusivo da raça branca e da civilização europeia: tal como acontece no resto da Europa, também os autores italianos concordam com Giannitrapani quando este refere que “uma característica típica dos povos civilizados é o sentimento de nacionalidade, que induz os povos a adotarem instituições políticas e civis para a preservação do estado e a sua defesa”55 O mesmo Giannitrapani acrescenta que “os europeus estão entre os povos mais civilizados pois, além de suprir as necessidades materiais, tendem a satisfazer as necessidades morais e intelectuais. Esses povos, em contínua evolução, são uma fonte de progresso na agricultura, na indústria, nas ciências e nas artes”. Neles “o sentimento da nacionalidade está vivo e procuram mantê-lo através das instituições políticas e pela força das armas.56
Em perfeita consonância com a filosofia neo-idealista, ainda antes que com a política fascista, os autores dos manuais de geografia italianos avaliam o grau de civilização de um povo de acordo com a presença ou não de uma ideia de pátria ou de Estado, considerando a ausência de uma organização estatal como a demonstração da condição de atraso. Dito de outra forma, os livros de geografia esforçam-se para mostrar aos estudantes as relações entre a civilização e o nacionalismo. De resto, como as sociedades nada mais são do que a evolução da família e da tribo, os povos “selvagens” são apresentados como “naturais”, isto é, ligados às formas mais básicas da organização social, como a família e a tribo. Ao invés, os povos civis são os únicos que deram origem a formas estatais complexas, tanto do ponto de vista jurídico e constitucional, quanto, sobretudo, em relação ao sentimento de pátria.
Por estas razões, o destino das populações menos civilizadas é apresentado como inelutável. Exemplo disso é o último capítulo do livro de leitura de Arnaldo Faustini, Orrori e meraviglie dell’universo, intitulado Come muore la razza umana. Nele, o autor explicava o problema da evolução da espécie humana como um fenómeno que “desde os primórdios da história humana se reduz a uma contínua alternância, incessante e fatal de povos que morrem e de povos que surgem, como uma flutuação perene de ondas ou uma perene renovação de espírito e de matéria […] Vemos assim que a expansão territorial de um povo sempre vai em detrimento do outro: o mais fraco, que é afastado e expulsado dos seus domínios ou sufocado nos seus domínios, acaba por se empobrecer, para depois ir do empobrecimento à extinção”.57 Faustini foi em busca de “agonias humanas” exemplares no passado e no presente e identificou-as nos Mongois de Gengis Khan, nos Lapões, nos Indígenas Norte-Americanos, nas civilizações pré-colombianas e, mais recentemente, nos Aborígines australianos e nos Onas da Terra do Fogo (ou Selk'nam) derrotados pelos pioneiros argentinos e chilenos, que esgotaram com a caça a sua principal fonte de carne, o guanaco.
Embora convidando o leitor a ter pena da sorte daqueles povos fracos e infelizes, Faustini concluiu seu livro oferecendo uma leitura fatalista da extinção deles, útil de fato à sobrevivência da raça humana graças aos exemplares mais fortes: “Sic transit gloria mundi. E na perpétua morte e renovação das coisas, aqui abaixo, está precisamente toda a filosofia da vida e dos povos. Tal como os abismos do mar e do céu têm seus profundos e maravilhosos mistérios, assim também os abismos da humanidade, embora confusos nas fronteiras mais distantes da pré-história, têm mistérios não menos profundos e não menos maravilhosos”.58