Palavras iniciais...
A caricatura que abre o presente artigo é de J. Carlos3 e fora uma dentre muitas utilizadas para representar Henrique Maximiano Coelho Netto ao receber o título de “Príncipe dos Prosadores” por uma eleição promovida pelo O Malho, em 1928. Nela podemos observar além das sobrancelhas e bigode marcados, terno e óculos como elementos que sempre estiveram presentes em fotografias, charges ou imagens a seu respeito, a pena, objeto que caracterizava um homem que viveu de sua escrita. Essa visão do caricaturista captura a mesma imagem propagada por muitos de seus biógrafos, ou seja, um sujeito que publicou muito e de modo diversificado como romances, crônicas, discursos parlamentares ou de outra natureza, artigos em jornais, contos e histórias para crianças.4 Também escreveu peças de teatro como Pelo amor!, Ártemis, Hóstia, Bonança, dentre outras, influenciadas pelos clássicos eruditos ocidentais, como aponta o estudo de Carvalho (2009), sobre a renovação teatral defendida por Coelho Netto. Sua relação com a escrita e o teatro também se dava pela crítica teatral. Pelas páginas de Fagulhas, assinando como N., Coelho Netto criticava o entusiasmo do público pelas peças populares que eram carregadas de licenciosidades, conotação sexual, danças sexuais e despidas de qualidade. No seu entendimento, “os espetáculos do gênero em questão não ensinavam nada de bom ao público que, por meio deles, piorariam o seu vocabulário e guardariam na memória as belezas inúteis do cenário e as imoralidades levadas às cenas pelos artistas” (CARVALHO, 2009, s/p). Por outro lado, os artistas que atuavam profissionalmente vinham das classes populares e iam para o teatro “estropiar a doce e amável língua portuguesa. Não temos um só artista preparado para o teatro - é um elenco de parvenus” (COELHO NETTO, 1897, p.3 apud CARVALHO, 2008, s/p).
Tão intensa era sua dedicação à escrita que, ao longo da vida, publicou mais de duzentas obras literárias, lançando mão de vários pseudônimos como Puck, Ariel e Caliban (no jornal Cidade do Rio), Vítor Leal (utilizado coletivamente no folhetim Paula Matos), Charles Rouge (no folhetim Os narcotizadores - história verídica de um bando de ciganos), Henri Lesongeur (na Gazeta de Notícias), N. (no Diário de Notícias e O Paiz), Anselmo Ribas (em O Paiz, A Notícia e Gazeta de Notícias), Amador Santelmo, Alcide, Domonac, Blanco Canabarro, C., C.N., conforme assinalado por Silva (2017).
Uma parte do tempo desse escritor e professor foi também dedicada a escrever cartas, tarefa recorrente na vida de homens de letras5 entre o final do século XIX e início do XX. Parte delas foi destinada a atender às demandas que a direção da Escola Dramática Municipal exigia. Aliás, muitas são as razões para se enviar uma carta, como sugere Petrucci:
Durant els últims 5000 anys, a les societats organitzades del món mediterrani i d’Europa occidental sempre hi ha existit una necessitat, major o menor, de correspondència escrita. La carta representa, per això, una de les practiques d’escriptura de méstra dició i estabilitat, a més de la principal manifestació de la comunicación escrita entre persones. Des de les clases acomodades finsa les persones comunes, els homes i dones que en algún momento de la seves vides han sentit la necessitat de comunicar-se a mitjançant l’epístola són infinits. (PETRUCCI, 2003, p. 93 apud CASTILLO GÓMEZ, 2013, p. 134)
Dentre as possibilidades mais recorrentes de se abordar o estudo da correspondência em sua dimensão histórica6, estão aquelas que utilizam as cartas para reconstrução de distintas biografias; conhecer as redes de sociabilidade tecidas pelos eixos epistolares; aproximar-se da vivência de tal sujeito; e, saber dos sentimentos explícitos ou velados confessados em missivas mais íntimas e pessoais (SANCHIS, 2000 apud CASTILLO GÓMEZ, 2014). Este gênero de escrita, “responde a un orden textual bastante estable, mantenido con pocas variaciones desde su formulación embrionaria en algunos tratados de época clásica hasta casi nuestros días” lembra Castillo Gómez (2014, p. 25) e acrescenta, ainda, na mesma perspectiva de Petrucci (2019), ao considerar o ato da escrita epistolar pertencente a uma história milenar7. Ao pensarmos nas cartas, elas
se convierten en el elemento más representativo de la extensión social de las prácticas de escritura, debido a una difundida necesidad de escribir vinculada con fenómenos tan decisivos en la vida de cualquier persona como la emigración, la guerra, la prisión, la represión o el exilio [...] La escritura se convierte, ligada a estas circunstancias, en un medio de supervivencia, ya que supera las distancias y evita el olvido. (SIERRA BLAS, 2002, p. 124)
A prática de escrever cartas está relacionada, ainda hoje, com a questão da distância e ausência, ao revelarem que “cartas movem-se entre presença e ausência, ao mesmo tempo em que, à distância, mantêm vínculos” (BASTOS, CUNHA E MIGNOT, 2002, p.5). Quais vínculos Coelho Netto pode manter presentes em sua vida através da sua correspondência pessoal?
A escolha pela presente temática justifica-se, primeiramente, ao fato de o sujeito aqui estudado já ter sido abordado, principalmente em estudos nas áreas de Literatura, Literatura Comparada, Artes Cênicas e História Social, pesquisas que, em sua maioria, privilegiam as obras publicadas: crônicas, romances, peças de teatro, livros didáticos, discursos.8 Buscamos, aqui, um caminho diverso, que pode nos apontar os bastidores de sua atuação enquanto diretor e professor de uma instituição de ensino. Como sugere Sanchis, “las cartas privadas - más o menos confidenciales - permiten esclarecer las relaciones de amistad o antipatía entre individuos o grupos, tanto en el campo político como en el cultural” (2000, p. 18). Além disso, o autor observa que “muchas veces, los epistolarios contribuyen a conocer en profundidad el funcionamiento de las instituciones” (SANCHIS, 2000, p. 20), instigando a interpretar as cartas que tratam da escola para formação de ator no Brasil, durante a Primeira República, que ainda se encontra em atividade. Quais foram as estratégias adotadas por esse homem de letras para que a Escola Dramática permanecesse de portas abertas?
Com o objetivo de interpretar a atuação deste sujeito como diretor e professor da mesma, tomamos como fio condutor as missivas localizadas na Academia Brasileira de Letras (ABL)9, presentes no Arquivo Pessoal do Acadêmico, na Fundação Biblioteca Nacional (FBN)10, que guarda grande parte da sua correspondência na Seção de Manuscritos11, e esporadicamente na Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), sem perder de vista a necessidade de entrecruzar com outros documentos que ajudam a compreender afinidades e divergências no campo cultural. Tomamos como referência os estudos pioneiros de Elza Andrade (1996, 2009 e 2014) sobre a referida escola, dentre outros que abordam ou tangenciam a mesma. A interpretação dessas cartas permitiu indagar: para quem Coelho Netto escrevia e de quem o mesmo recebia cartas? Qual o conteúdo dessas missivas? Quando e onde eram escritas? O que elas podem contar sobre sua atuação na direção da escola de teatro?
Pretendemos, assim, apresentar Coelho Netto a partir de sua escrita epistolar de maneira ampla para, depois, focalizá-lo frente à referida escola, visando contribuir para ampliar o conhecimento acerca da história desta instituição, a trajetória deste sujeito que teve sua atuação no magistério ofuscada na historiografia e na historiografia da educação, frente às suas outras facetas de cronista, poeta, escritor, político e jornalista.
Um professor entre cartas dispersas
Guardar é diferente de esconder. Guardar consiste em proteger um bem da corrosão temporal para melhor partilhar; é preservar e tornar vivo o que, pela passagem do tempo, deveria ser consumido, esquecido, destruído, virado lixo. (MIGNOT e CUNHA, 2006, p. 41)
É possível imaginar que, por muitos anos, Coelho Netto teria guardado as cartas em sua pasta de couro verde12. Outras, talvez, em uma cesta de papéis, preservadas no seu gabinete de trabalho à Rua do Roso, n. 79, onde ele viveu quase metade de sua vida, podendo ter um espaço para “preservar seus documentos, eternizar sua imagem e preparar o legado para o futuro” (MIGNOT, 2014, p. 214). Independentemente do local onde foram protegidas e preservadas, tais documentos permitem entrever a atuação deste homem de letras e seus ofícios diários em suas múltiplas facetas. Dentre estas últimas, podemos observar aquelas enquanto diretor da Escola Dramática, acadêmico, jornalista, escritor, deputado, mas também as que sugerem acontecimentos de sua vida pessoal como pai, amigo e esposo.
Quem era esse sujeito que escrevia e recebia inúmeras cartas? Esta é a primeira questão que fazemos quando nos debruçamos sobre a farta correspondência, pois quando trabalhamos com esta escrita não estamos interessadas apenas nos assuntos tratados. Na perspectiva da história da cultura escrita, conforme lembra Antonio Castillo Gómez (2017), é necessário interpretar as práticas, representações e usos da escrita das mesmas, o que implica em interrogar sobre quem escreve, o contexto da escrita e as motivações para escrever, remeter e ler cartas.
Assim, cabe pensar inicialmente em aspectos da vida de Coelho Netto, sem a pretensão de traçar uma biografia. Para um de seus biógrafos, o seu filho Paulo Coelho Netto, o escritor inicia sua carreira jornalística e participa das campanhas abolicionistas e republicanas, especialmente do círculo literário que posteriormente, fundaria a Academia Brasileira de Letras, composto por Lúcio de Mendonça, Luís Murat, José do Patrocínio, Olavo Bilac, dentre tantos outros, quando retornou ao Rio de Janeiro, em 1885, depois de ter abandonado o curso de Medicina e a Faculdade de Direito, que cursava em São Paulo (COELHO NETTO, Paulo, 1957). Devido às relações sociais estabelecidas depois de seu casamento com Maria Gabriela Brandão, filha do educador Alberto Brandão,13 em 24 de julho de 1890, tendo como seu padrinho de casamento, Hermes da Fonseca,14 Coelho Netto teria conseguido cargos importantes, dentre eles, o de Secretário do Governo do Estado do Rio de Janeiro, função pública que exerceu até 1891. Seu sogro tem uma participação importante na conquista de cargos comissionados para Coelho Netto. Isto pode ser observado na correspondência do mesmo presente na FBN, em que Alberto Brandão pede a conhecidos, que exercem posições de destaque na cena política da época, cargos para seu genro. Nem sempre o pedido fora atendido,15 porém, permitiu que, ao menos, um cargo administrativo, como o de Secretário do Governo, fosse concretizado.
Somente aos 37 anos de idade, Coelho Netto presta concurso para o cargo de Lente de Literatura do Ginásio de Campinas, atual Colégio Culto à Ciência, conseguindo ser efetivado, apesar de ter exercido o magistério de modo esporádico anteriormente, como lembra seu biógrafo Paulo Coelho Netto (1957, p. 7). A chegada desse professor em Campinas, segundo Lapa (1960) significava que naquela cidade se contava com um sujeito que já possuía prestígio na vida literária do país, tendo publicado obras de destaque como: Miragem, Inverno em Flor, A Conquista, O Rajá de Pendjab, além de novelas, contos, crônicas, peças de teatro, etc. Afirma, ainda, que ele teria passado pelo magistério, tendo ocupado o cargo de Lente de Belas Artes, no Rio de Janeiro, e que o principal motivo da mudança de Coelho Netto para Campinas fora pela abertura dos concursos para diversas cátedras do ginásio local, já que os artigos em jornais e venda de livros não davam para o sustento da família, como apontado por Paulo Coelho Netto (1957). É importante salientar que Campinas, em 1900, era considerada uma cidade provinciana, sem muitos atrativos para quem estava acostumado com o polo urbano do Rio de Janeiro. O historiador expõe, por fim, que os Concursos do Ginásio de Campinas atraiam a atenção de todos na cidade, “principalmente pelos nomes que disputavam as cadeiras vagas” (LAPA, 1960, p. 28). 16
No Ginásio de Campinas, Coelho Netto participou da fundação de um grêmio, propondo-lhe o nome de “Centro de Ciências, Letras e Artes”, onde participou ativamente desde o começo das atividades, permanecendo como orador apenas na gestão da primeira Diretoria, em 1901.17 Também foi redator da Revista do Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas, que foi criada em 1902, e destinava-se a mostrar sobre a cidade de Campinas, o Centro de Ciências, Letras e Artes (agremiação de origem), os sócios fundadores e mantenedores da instituição e do próprio periódico. Lapa (1960) ressalta que o objetivo de Coelho Netto no Centro de Ciências fora transformá-lo em uma casa de cultura, “a serviço da gente campineira, e não uma Academia fechada” (idem, p. 35). Sendo assim, umas das propostas de autoria de Coelho Netto fora que esse grêmio oferecesse aulas gratuitas de matérias como desenho linear, noções de arquitetura, canto coral, estética, dicção e rudimentos da história das artes.
Em sua atuação no Ginásio de Campinas Coelho Netto lutara em nome da arte e da pátria. Esta primeira, a partir da democratização da cultura, como pretendia através das aulas em locais abertos e gratuitos para os alunos que não possuíssem condições, pudessem ter contato com as artes. Pretendia, assim, contribuir para embelezar a cidade de Campinas de modo que ela pudesse “civilizar-se” segundo os padrões europeus.
Outra estratégia adotada por Coelho Netto, para legitimar-se como intelectual era se vincular a associações, grêmios, clubes literários, educandários e atividades de trabalhos diversificados, podendo deste modo fazer crescer suas redes de sociabilidade, “numa sociedade onde o apadrinhamento era natural e esperado, exercendo ações para grupos específicos ou para si próprios”, como apontado por Santos (2011, p. 77). A autora revela ainda que, em muitas vezes, essa relação era utilizada quando se pretendia obter um favor, um emprego ou fazer alianças. Sendo assim, uma das maneiras de se perceber os vínculos que iam se formando é através da escrita epistolar dos sujeitos.
Depois de sua experiência como docente efetivo do Ginásio de Campinas, entre 1901 a 1904, ele retorna ao Rio de Janeiro em busca de sua estabilidade profissional e financeira, conseguindo a vaga para Lente de Literatura no Externato do Ginásio Nacional (atual Colégio Pedro II), interinamente, em 1907, tornando-se docente efetivo dessa instituição, sem precisar prestar concurso, em 1909. Além dessas atividades, transitou também pelo meio político. Uma carta confidencial de Coelho Netto dirigida a Rui Barbosa permite observar que seu desejo de participar da vida política na capital da República vinha desde 1899:
Meu caro mestre
Não há duvida que é ousadia [...] eu, sem outra assistência mais que a do meu nome, pedir o amparo forte da rija Penna adamautiva que fulge como cauda d’astro e apúia como louça para a muita causa, que reputo digna vim do desse conceito o meu atrevimento em requerer apelo a quem só dá favores á justiça. Quem sou eu para, ao nascer político, receber micuso de um mago como V. Ex.? pressumpção desmarcada, dirá V. Ex. e eu responderei - ambello desmedido. Ambello em dar mais força á doutrina que prego com a Penna, seu desabuto bem que haja razão para mais, ai do por diante contra tropeços, gozando com o soffrimento, tirando coragem da própria indifferença, arremettendo quando melhor seria recuar. Homem de Lettras e nada mais (bem pouco é se’ esta terra) apresento a minha candidatura aos eleitores do 1° Districto para o cargo de intendente municipal dando apenas, como programma, o que mais parece uma divisa e larga. [...] ‘honrarei o meu nome’[...] n’estas palavras há grande responsabilidade porque vai n’ella sem pensado o dote do meu filho, não o jogaria se não tivesse, como cautela, a minha consciência. Vendo a V. Ex. peço a minha sagração honrado com uma [...] de tão illustre mestre mesmo da derrota saberei com orgulho e, do que disser V. Ex. farei o meu catechismo curico da vida nova que [....] por amor das minhas ideas que são as de um artista.
Veneradamente assigno
Admirador de V. Ex.
Henrique Coelho Netto. (17/01/1899, FCRB)
Ao tratar da polêmica acerca da construção do Teatro Municipal, no Rio de Janeiro, Figueiredo (2011) observa ter sido Artur Azevedo, dramaturgo que lutou pela realização do mesmo, que havia proposto que Coelho Netto se candidatasse a intendente municipal para viabilizar uma mobilização política indispensável à concretização de seu sonho, já que ele fora um defensor extremo da nacionalização do teatro no Brasil. Em 1909, mesmo ano de criação do Teatro Municipal, Coelho Netto elegeu-se deputado federal pelo Maranhão, conseguindo ser reeleito por três mandatos consecutivos. Por não conseguir uma quarta reeleição, assume o cargo de Secretário Geral da Liga da Defesa Nacional, passando a nela atuar ativamente.18
Cartas guardadas
Em suas cartas, Coelho Netto agradecia, enviava livros e saudações, convidava, concordava, discordava, recomendava, avisava, lamentava, informava, pedia e, até, desculpava-se. Isto, porque a correspondência não é homogênea. De diversos tipos de cartas, elas eram oficiais, públicas, privadas, íntimas, abrigando diferentes formas discursivas e de práticas epistolares. Como nos lembra Venancio (2002), as cartas podem ser categorizadas em três grupos para melhor definir seus assuntos e que puderam nos iluminar acerca do presente estudo. No primeiro grupo podemos encontrar aquelas missivas que se caracterizam como expressivas de suas relações de amizade e de prestígio político que podemos subdividir em social (englobam mensagens de Natal e de boas festas, felicitações, etc) e assuntos políticos (discussão sobre eleições, pareceres, etc). No segundo, estão aquelas formadas pela correspondência ordinária, no sentido da representação das atividades cotidianas do intelectual, onde estão as referentes à aquisição de bens materiais (principalmente aquisição de livros) e as que tratam sobre assuntos cotidianos (pagamentos, empréstimos, causas judiciais, etc). No terceiro e último grupo, estão aquelas que a autora caracterizou como pertencentes à comunidade de leitores e do grupo de troca do próprio intelectual. Destas, encontramos aquelas referentes às questões intelectuais (tratam sobre livros, solicitação de artigos, pedidos de doação de livros para bibliotecas, convites para prefaciar etc.) e as de agradecimentos (especialmente pelo envio de livros como presentes).
Um mapeamento das cartas sob a guarda da Seção de Manuscritos da FBN permitiu observar que a quantidade de cartas enviadas por Coelho Netto foi menor em relação às recebidas por ele nessa instituição. Enquanto na primeira há um total de 47 cartas, na segunda tem um total de 395. Já no seu Arquivo Pessoal enquanto acadêmico, localizado na Academia Brasileira de Letras, localizamos algumas missivas na Série 1 (Correspondência Pessoal), bem como na Série 3 (Documentos Institucionais), e, nesta última, as cartas possuem temáticas relacionadas às atividades de Coelho Netto na ABL19.
Das 395 missivas localizadas na FBN que compõem a correspondência passiva de Coelho Netto, algumas sugerem que o elo comunicativo teria começado pelo escritor, como uma resposta a uma carta anterior por ele enviada. Sendo assim, essas respostas se tornam pequenos pedaços de um quebra-cabeça dispostos a serem interrogados e interpretados.
Dentre os seus remetentes estão nomes que ocupavam lugares de destaque na vida política e cultural do país, tais como: Alberto de Oliveira20, Euclides da Cunha21, Emídio Dantas Barreto22, Olavo Bilac23, Medeiros e Albuquerque24, João Ribeiro25, Luís Murat26, Paulo Barreto27, por exemplo, que tratavam de diversos assuntos, como: eleições na Academia Brasileira de Letras, traduções de obras de Coelho Netto para outras línguas, assuntos particulares e algumas tecendo comentários sobre seus livros.
Observa-se uma diferença entre a guarda da correspondência ativa de Coelho Netto e sua correspondência passiva. As cartas recebidas são em maior quantidade, pois ele teve a preocupação de guardá-las e seus herdeiros zelaram por sua preservação. Assumiram, assim, a missão de dar um novo destino para estes papeis, na perspectiva salientada por Schapochnik:
De quem parte, usualmente se diz, fica a lembrança. No entanto, bem sabemos, lembranças e heranças, quando é o caso, são objetos de partilha. [...] inevitavelmente, alguns bens, por serem investidos de uma dimensão simbólica e afetiva, ficam sob a tutela do guardião do “museu familiar” [...] dessa maneira, o papel desempenhado pelo guardião se assemelha ao de um dublê de arquivista, que reúne e atribui uma ordem de pertinência ao acervo. (1998, p. 460)
O guardião dos documentos de Coelho Netto, possivelmente, após sua morte, fora seu filho Paulo Coelho Netto que, por anos, reuniu os pertences do pai, a fim de publicar a sua biografia, no intuito de que sua memória fosse eternizada e não caísse ao esquecimento. A significativa quantidade de cartas presente na sua correspondência passiva mantida no Arquivo do Acadêmico/ABL, torna possível concluir que ela se deve à preocupação do próprio titular do arquivo em guardar estes tipos de papéis. Provavelmente foram arquivadas por ele mesmo, permitindo, assim, percebê-lo como um grande colecionador de papéis. Afinal, arquivar a própria vida é um exercício autobiográfico, o indivíduo existe através de seus papéis, na intenção de um futuro leitor [autorizado ou não] (ARTIÈRES, 1998), evidenciando que Coelho Netto, desejava perpetuar seu legado também através de suas cartas.
Já a correspondência ativa de Coelho Netto, como anteriormente observado, foi preservada por terceiros, uma vez que na maioria das vezes, quando não se tinha cópia, só a pessoa que recebeu a carta teve o direito de fazer o que desejar: guardar, jogá-la no lixo, rasgar, rasurar, responder, etc. Neste caso, das inúmeras cartas que Coelho Netto enviou, em torno de 137 foram salvas na FBN, ABL e FCRB. Muitas podem ter sido perdidas pelos seus destinatários. Outras se encontram hoje dispersas em instituições de guarda, como já comentado, e naturalmente já passaram por um processo de seleção. Sendo assim, mergulhar na leitura e interpretação dessas cartas se torna importante para a compreensão desse sujeito. Para tal, foi necessário também desconstruir a lógica presente nas instituições de guarda a fim de compreender um sujeito e sua escrita epistolar:
A despeito do que às vezes parecem imaginar os iniciantes, os documentos não surgem, aqui ou ali, por efeito [de não se sabe] qual misterioso decreto dos deuses. Sua presença ou ausência em tais arquivos, em tal biblioteca, em tal solo deriva de causas humanas que não escapam de modo algum à análise de exercícios técnicos, tocam eles mesmos no mais íntimo da vida do passado, pois o que se encontra assim posto em jogo é nada menos do que a passagem da lembrança através de gerações. (BLOCH, 2001, p. 83)
Dentre as missivas em geral trocadas por Coelho Netto, pudemos identificar também, aquelas que tratavam sobre assuntos acerca da Escola Dramática Municipal, enquanto ele exercia a função de diretor e de professor de História e Literatura Dramática. Podemos, deste modo, refletir tanto sobre os destinatários de suas missivas como sobre os remetentes, a finalidade e o contexto da escrita; e, a relação que Coelho Netto mantinha com seus interlocutores e a escola em questão.
Entre saudações e cortesias: o Brasil ganha uma escola de teatro
Snr, Dr Henrique Coelho Netto,
Tendo recebido a melhor impressão possível da prova publica de fim de anno dos alumnos da Escola Dramática, realisada no Theatro Municipal em 24 de Dezembro p. fundo cumpro o grato dever de louvar-los pela alta competencia e extremado amor com que tendes dirigido esse importante instituto de arte, comprovando o meu acerto em vos confiar tão árdua tarefa.
Peço-vos tornes extensivo este elogio aos vossos dignos auxiliares do corpo docente e bem assim aos alumnos pela applicação e aproveitando que demonstrara.
Saudações
Bento Ribeiro. (04 /01/1912, FBN)
Em carta de Bento Ribeiro28 enviada a Coelho Netto, como exposto acima, o então Prefeito do Distrito Federal tece elogios pela competência com que o professor dirigia a Escola Dramática Municipal depois de dois anos de sua fundação. Também pediu para que os mesmos chegassem ao corpo docente e alunos da escola. Na época, a Escola Dramática era constituída, segundo o seu regulamento, pelo diretor, o pessoal da administração (secretário, contínuo e servente) e o corpo docente formado pelos professores: João Ribeiro (Prosódia), Alberto de Oliveira (Arte de Dizer), Cristiano de Souza e Eduardo Victorino (Arte de Representar), Fernando Magalhães (Fisiologia das Paixões) e Coelho Netto (História do Teatro e Literatura e também Diretor).29
Apesar dos elogios, a luta para mantê-la em funcionamento e com a disciplina com que Coelho Netto desejava, não foi tarefa fácil, levando-o quase a desistir, como apresentado em uma carta enviada ao prefeito Serzedelo Corrêa, em 20 de setembro de 1910, meses após sua inauguração. Nela, pedia demissão e reclamava da má administração do Sr. Guilherme da Rosa, na época, empresário responsável por dirigir o Teatro Municipal, que não atendia os pedidos feitos por ele acerca das demandas da escola de teatro que dirigia. Porém, Bento Ribeiro não aceita o pedido de demissão de Coelho Netto, preferindo rescindir o contrato com o empresário, e logo depois expedindo o Decreto nº 823, do art. 4º, em junho de 1911, deliberando sobre o regulamento da escola. (ANDRADE, 1996)
A instituição também demorou a ter um lugar fixo, tendo funcionado, primeiramente, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, depois, no Instituto de Educação, em uma sala emprestada na Avenida Venezuela, e no Teatro João Caetano, só tendo sua instalação definitiva na casa que foi do Barão do Rio Branco, anos depois. Além disso, a exemplo de tantas outras instituições de ensino que vão assumindo diferentes denominações, em função de interesses políticos e reformas educacionais, ela passou por diversas mudanças de nomes, sendo conhecida por Escola Coelho Neto, Escola de Teatro e Cinema, Escola de Teatro Martins Pena, e, atualmente, por fazer parte da rede FAETEC, chama-se Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Pena. (MIGNOT, 2014)
Figueiredo indica que a história da Escola Dramática esteve ligada à construção do Teatro Municipal, que nasceu “em meio à polêmica e esteve longe de contar com a unanimidade, mas [seu] impacto, uma vez concluído, acabou por calar - ou pelo menos intimidar - os críticos” (2011, p. 46). O autor ressalta que, na opinião do cronista João do Rio, o Teatro Municipal havia proporcionado à cidade o “seu mais belo edifício” (idem), posicionando-se assim favorável à construção que provocara polêmica que dividia as opiniões dos cariocas:
Parte deste passado começou a vir abaixo ao ritmo da célere reforma urbana promovida na cidade do século XX. Assistindo a essas demolições com sentimentos ambivalentes, os cariocas dividiam-se entre progressistas e nostálgicos. O poeta Olavo Bilac decididamente não se incluía entre esses últimos. ‘Na cidade continuam as demolições’, comemorou ele, escrevendo numa crônica da Gazeta de Notícias publicada em 1903. Nela registrava com uma ponta de satisfação a chegada daquela onda avassaladora à área do antigo largo: ‘Agora já vetusta rua da Guarda Velha começa a ser desafogada. Talvez haja quem lamente a queda daqueles pardieiros medonhos - porque, neste mundo extravagante, não falta quem goste do que é abominável. Eu por mim confesso que a cada golpe das picaretas demolidoras, sinto um alívio no coração. Não há quem, mais do que eu, adore as tradições desta terra. Mas a tradição, para viver perpetuamente, não carece de ficar materializada em casas medonhas, em ruas tortas, em exemplares de arquitetura teratológica’. (FIGUEIREDO, 2011, p. 48)
Assim como Olavo Bilac e João do Rio, Coelho Netto também compartilhava da ideia de que a construção do Teatro Municipal seria importante para revigorar e modernizar a cidade do Rio de Janeiro, que contava apenas com poucas casas de espetáculo - Lírico, Apolo, Recreio, Carlos Gomes, Pálace, São Pedro, Exposição e Lucinda - para uma população de 800.000 habitantes, como lembra Andrade quando explica que, no momento em que foi criado, a Capital Federal passava por um processo de modernização, com reformas urbanas, e a sociedade vivia dominada pelo francesismo que informava e conformava “as idéias da literatura, da educação, da moda, das diversões. A própria reurbanização introduz a arquitetura art noveau. Mas, paralelamente há uma crescente reação nacionalista, que vem desde 1890, e que visa principalmente a valorização do homem brasileiro” (ANDRADE, 2009, p.4).
Nesse período, Coelho Netto e Arthur Azevedo, dentre outros, não se cansavam de chamar atenção pela imprensa para “a decadência do teatro nacional, para a necessidade da criação de uma companhia brasileira e de uma escola de arte dramática, ao mesmo tempo em que, provavelmente, ir ao teatro era um dos melhores programas da cidade” (ANDRADE, 2009, p.4). Para responder a crítica que fazia ao modo como os atores eram recrutados para encenar as peças no Rio de Janeiro Coelho Netto convidara para encenar a sua peça Pelo Amor! (1898), artistas amadores e, em especial, estudantes de cursos superiores e grêmios amadores das artes (CARVALHO, 2008).
É nesse contexto histórico e social que a Escola Dramática fora criada, pelo Decreto nº 1.167, no dia 13 de janeiro em 1908, na cidade do Rio de Janeiro, atrelada à construção do Teatro Municipal:
Artigo 19º - O Prefeito promoverá a criação de uma escola dramática destinada ao estudo da língua portuguesa, reta pronúncia, declamação e prática teatral. As aulas, que serão regidas por profissionais de reconhecida competência destinar-se-ão a ambos os sexos e serão de frequência gratuita. (ANDRADE, 1996, p. 73)
Na visão de Paulo Coelho Netto (1957), a indicação de Coelho Netto para a direção da escola se deu em decorrência do sucesso que havia conquistado na inauguração do Teatro Municipal, evento no qual foi apresentada Bonança, peça de sua autoria. A inauguração da mesma só aconteceria dois anos depois, no dia 15 de abril de 1910, quando Coelho Netto proferiu seu primeiro discurso, publicado posteriormente, junto a outros discursos e conferências dele, no livro Palestras da tarde (1911), quando discorreu sobre a finalidade da escola, defendendo que:
Aqui o alumno virá aprender a reproduzir as emoções humanas, desde a que ri, na comedia, até a que alucina e desfigura na tragédia; reflectirá como um espelho e, reproduzindo a alegria ou o soffrimento, será, ao mesmo tempo, o interprete da nossa poesia dramatica, tanto tempo e humilhantemente açacanhada pelo córdace obsceno; virá afinar o seu dizer pela nossa prosódia, sem, todavia, sacrificar o vernaculo, senão apurando-o no falar estreme; virá exercitar-se na arte das cenas movendo-se com elegancia, ouvindo com discreção, atalhando com aproposito, dialogando com eloquencia, sabendo estar em todas as attitudes, sem comprometer a graça com o jeito canhestro do pastrano nem affectar, até ao ridículo, a posição e o jeito; virá, enfim, a ter ideias geraes do bello e conhecer a historia do theatro, desde os grandes dias dyinisiacos até ao referver da vida intensa deste seculo. Já era tempo de termos esta didascalia. (COELHO NETTO, 1911, p. 135)
Nele, Coelho Netto também defendeu que fundar uma escola era construir o futuro, pois acreditava que era nela que o povo poderia se transformar em nação. Justificou que apesar da escola que ali estava sendo inaugurada, não fosse “das que iniciam a intelligencia no trato das letras” (idem), se referindo à educação primária e secundária, a sua instrução seria para imitá-la, guiada, com isso, ao “conhecimento da alma” (idem). Acrescenta que os governos deveriam saudar as inaugurações de escolas, pois, a construção destas, significava prosperidade e defesa da pátria.
Sobre esta questão, Marta M. Chagas Carvalho aponta que o modelo de escola, instaurado durante a República, representou uma nova ordem para fugir das trevas, obscurantismo e opressão marcado pelo regime que o antecedia, e um futuro luminoso, no qual saber e cidadania andavam juntos para se chegar ao progresso. Tornava-se necessário a escola se fazer ver “como signo da instauração da nova ordem, [...] daí a importância das cerimônias inaugurais dos edifícios escolares [...] o rito inaugural repunha o gesto instaurador” (1989, p.23). Nesse sentido, a construção de uma escola de formação do ator também seria uma reforma do teatro brasileiro, marcado pelo teatro obsceno, que só visava o lucro que Coelho Netto tanto apontava em seu discurso. Para ele, o desânimo dos poucos artistas que labutavam nessa causa, a favor da arte, foram cedendo lugar aos “invasores”, referindo-se, assim, aos estrangeiros que comandavam as companhias de teatro no país.
Com isso, o papel do ator seria, então, o de interpretar o poeta, que, por sua vez, interpretaria o povo, de modo a interpretar o tempo, acreditando que era essa a “vida que [aparecia] no Theatro em clarões mais ou menos intensos - ora pallidos, ora rubros, ora violáceos, mas sempre a Vida” (COELHO NETTO, 1911, p. 138). O entusiasmo pela educação depositado durante a Primeira República entre os intelectuais, assim como foi com Coelho Netto, fundamentava-se na crença de que era através desta que se solucionariam todos os males da sociedade, como também defendeu em outros escritos, como crônicas em jornais, livros didáticos e outros, destinados ao público adulto, bem como ao infantil. Assim,
o papel da educação foi hiperdimensionado: tratava-se de dar forma ao país amorfo, de transformar os habitantes em povo, de vitalizar o organismo nacional, de construir a nação. Nele se forjava projeto político autoritário: educar era moldagem de um povo, matéria informe e plasmável, conforme os anseios de Ordem e Progresso de um grupo que se auto-investia como elite com autoridade para promovê-los. (CARVALHO, 1989, p. 9)
Outras missivas que merecem destaque para seguir um pouco mais nos caminhos traçados por Coelho Netto na Escola Dramática, são aquelas enviadas por João Ribeiro e recebidas pelo diretor, tratando sobre: sua substituição na disciplina “Prosódia”, uma por motivo de viagem, em outro momento a propósito de uma cirurgia que iria fazer, dentre outros30. Silva e Clemente (2014) sugerem que um dos motivos pelo qual João Ribeiro teria aceitado assumir a cadeira de Prosódia da escola de teatro, envolvia a relação que estes sujeitos mantinham, e que poderia ser explicitado através de suas cartas. Em uma delas, tratando sobre seu afastamento para se sujeitar à cirurgia, podemos observar a informalidade com que se comunicavam:
Meu Caro Coelho Netto,
Venho pedir-lhe uma desgraçada licença de 25 a 30 dias. Estou com grande pedra na bexiga, o que não sabia, apesar de muitos sofrimentos que tenho passado. O Dr. Alberto Ramos determinou que sem perda de tempo me recolhesse ao [...] Hospital (rua da Passagem) onde devo ser operado sem demora, pois estou sob risco de infecção mortal.
Entro para o hospital n’esta semana e o mais irá a Deus misericórdia.
Um abraço,
João R. (23/03/1913, FBN)
Ao observar os protocolos de escrita epistolar presentes nessas cartas enviadas por João Ribeiro, podemos encontrar seis partes como o endereço de quem envia, o endereço de quem recebe, a data, os cumprimentos de início, o corpo da carta e a despedida, “que acreditan la función comunicativa depositada en la producción epistolar y la sacralización de cuanto rodea dicha actividad” (CASTILLO GÓMEZ, 2002, p. 15). Nesta carta, percebemos que o professor utilizava uma linguagem informal, referindo-se a Coelho Netto como “Meu caro”, sem um papel de muita qualidade ou timbres e selos para compor sua mensagem.
A linguagem das cartas, principalmente as de cunho pessoal, segundo Cunha, “é desprovida de formalidades ou palavreado rebuscado” (2015, p. 279). Assemelha-se a um diálogo entre amigos, por isso há liberdade de ideias e sentimentos. Portanto, podemos dizer que as cartas entre João Ribeiro e Coelho Netto são cartas entre amigos, ao mesmo tempo, que o seu conteúdo aponta para o trabalho exigido, pois o remetente pedia licença para que pudesse se ausentar por motivo de doença, e a escreve para Coelho Netto por ser o seu chefe:
Meu Coelho Netto,
Chegas hoje nas primeiras horas da noite; e estou impossibilitado de ir ao teu encontro. As [...] horas começa um pequeno sarau em nossa casa onde tenho que receber varias pessoas. Comemorando-se o dia de Stª Cecilia [...]
Iremos, depois, ver-te e a Gaby que aliás devem estar monopolizados pelos filhinhos tão [...].
Um abraço
O João.
P.S.
Na Escola Dramat. Estamos a concluir os exames. Então foi bem. (22/11/1913, FBN)
O post scriptum, como todos os elementos que compõem uma carta, exige interpretação e, nesta, chama a atenção para o fato de que naquele momento Coelho Netto encontrava-se ausente do Brasil. Duas notas publicadas no jornal O Imparcial, no dia 3 de maio de 1913, indica que o diretor da Escola Dramática viajaria para a Europa e que deixaria, temporariamente, em seu lugar, João Ribeiro:
Partirá para a Europa, a 27 do corrente, tendo tomado passagem no transatlântico allemão “Sierra Nevada”, o grande escritor patrício e ilustre deputado federal Henrique Coelho Netto.
Coelho Netto, ultimamente, não tem passado bem de saúde, e, a conselhos de seus médicos e dos seus muitos amigos e admiradores, resolveu empreender essa viagem, que lhe será, cremos, de todo em todo aproveitável, restituindo-lhe, a completo, a saúde.
Em sua companhia, partirá tambem a sua extremosa esposa, exma. Sra. d. Gaby Coelho Netto, ornamento das altas esferas da sociedade carioca.
A ambos, respeitosamente, antecipamos todos os votos de felicidades.
Por todo este mez, talvez no dia 27, partirá para a Europa o dr. Coelho Netto, director da Escola Dramática Municipal.
O ilustre literato, a conselho medico, vae fazer uma estação de aguas em Vichy, em companhia de sua esposa.
Durante a ausência do dr. Coelho Netto, assumirá a direção da Escola Dramática um dos seus professores.
Dizem que o escolhido será o dr. João Ribeiro, que também lecionará a cadeira de historia do theatro.
Ao regressar de Vichy, sabemos que o Dr. Coelho Netto, juntamente com o dr. Oliveira Passos, director do Theatro Municipal, vae, de acordo com o general Bento Ribeiro, tratar seriamente da organização definitiva do theatro nacional. (O IMPARCIAL, ed. 00150, 03/05/1913, p. 8, Hemeroteca Digital da FBN)
Posteriormente, por motivo de viagem que realizaria à Europa, João Ribeiro escreve novamente ao amigo e diretor, em 30 de abril de 1914, dessa vez, solicitando a exoneração de seu cargo. Estava decidido a se mudar de vez para Suíça, e por conta disso escreve ao “chefe, amigo e companheiro excellente”. Ao retornar para o Brasil, em função da guerra, João Ribeiro tenta de alguma maneira voltar ao corpo docente da Escola Dramática, pois em carta datada em 06 de fevereiro de 1915, o ex-professor de Prosódia se diz convencido de que com a verba atual da escola, seria impossível readmiti-lo em uma cadeira nova da instituição.
Termina a carta lamentando não lhe restar mais que agradecer os bons desejos do amigo e resignar-se à crise, como pode ser observado na figura anterior. Ao voltar para o Brasil, João Ribeiro estava pleiteando uma nova cadeira da escola de teatro, pois, provavelmente sabia que fora substituído por José Oiticica,31 convidado por Coelho Netto para reger a cadeira de Prosódia. Em agradecimento, por carta, o professor Oiticica respondeu:
Illmo. Im. Diretor da Escola Dramatica Saúdo a V.I.
Profundamente penhorado com o honroso convite que me fez V. I. para assumir a regencia da cadeira de prosodia da Escola Dramatica em substituição ao povicto professor João Ribeiro, respondendo a V. I. agradecendo a confiança que em mim deposita e promptificando-me a secundar o nobre esforço de V. I. fazendo quanto em mim couber por não desmerecer de tão alta incumbencia.
Aguardando as ordens de V. I.
Subscrevo-me
Admirado e obrigado
José Oiticica. (04/05/1914, FBN)
Enquanto nas cartas de João Ribeiro a Coelho Netto demonstravam ser trocas de palavras entre amigos, a carta de José Oiticica irá apontar distância entre os dois, devido ao tratamento formal utilizado pelo seu remetente que, em 1917, foi nomeado professor de português do Colégio Pedro II, enquanto Coelho Netto encontrava-se em disponibilidade desse ginásio nessa época, mas ainda mantinha vínculo com a instituição, indicando que as redes de sociabilidade entre os professores das duas instituições permaneciam.
O mesmo tipo de formalidade da carta de Oiticica estará presente também nas cartas que Coelho Netto enviou a Eduardo Victorino32- que, posteriormente publicou um material sistematizado sobre o que ensinava nessas aulas, chamando-o de Compêndio da Arte de Representar (1912),33 reeditado e ampliado em 1916, com o título Para ser ator -convidando-o a preencher a vaga de professor da cadeira “Arte de Representar”. É interessante notar a linguagem rebuscada utilizada por Coelho Netto, a letra desenhada e o tratamento formal: “Illmo Sr. Eduardo Victorino”, “Emº Sr. General Bento Ribeiro”, “V. S.”, além do papel timbrado da Escola Dramática, mais especificamente do “Gabinete do Director”, e na parte de cima da cartão escrito “Prefeitura do Distrito Federal”, indicando que poderia se tratar de uma carta oficial, isto é, administrativa, representando o contrato selado entre o diretor, Coelho Netto, e o professor, Eduardo Victorino.
Localizamos, nesse mesmo arquivo, outras cartas de Coelho Netto endereçadas a esse mesmo remetente, como veremos adiante, no qual, a partir da data, se pode perceber que Eduardo Victorino já estava atuando como professor da Escola Dramática, e que, pelo formato da escrita aparentemente, menos formal, sinaliza que Coelho Netto não se comunicava enquanto diretor, mas sim como amigo. Dentre as missivas localizadas nos acervos em geral, havia algumas nas quais Coelho Netto apresentava alguém ao destinatário, como demonstrado pelo cartão da Figura 4, com as iniciais do seu nome no papel timbrado, ora pedindo, ora concedendo um favor a alguém. Neste caso, Coelho Netto apresentava Christiano Guimarães a Eduardo Victorino, propondo-lhe que seu cunhado preenchesse a vaga de secretário da Companhia Nacional, garantindo ser um excelente auxiliar, inteligente e ativo. Podemos perceber as relações implícitas de autoridade a partir dessa carta, pois Coelho Netto indica o cunhado para trabalhar com Eduardo Victorino, garantindo-lhe que ele faria um bom trabalho. Como recusar uma indicação feita pelo seu próprio diretor?
Já na carta da figura 5, podemos observar que Coelho Netto já modifica sua saudação ao professor Victorino utilizando “Illmo. Sr. Eduardo Victorino”, falando sobre um professor que não poderia substituir o destinatário, interinamente, na direção da Comédia Brasileira, que, contudo, apresenta-lhe outro professor que teria a generosidade de aceitar a substituição e que logo trataria diretamente com ele. Em despedida, Coelho Netto escreve “fazendo votos que cheguem a acordo, subscrevo-me de v.s. abrº Coelho Netto”.
Em 16 de novembro de 1912, Coelho Netto escreveu novamente ao professor da Escola Dramática, dessa vez, uma carta com duas páginas completas, com a letra também desenhada, com uma caligrafia bem característica do remetente e com o mesmo tratamento utilizado no cartão anteriormente “Amigo Sr. Eduardo Victorino”. Ao correr de sua pena, tece elogios ao professor de Arte de Representar, agradecendo-lhe por ter dirigido a peça “O Dinheiro”, de sua autoria e dizendo que havia realizado um sonho:
Quando o convidei para companheiro de jornada, apresentando-o ao Exmo. Sr. General Prefeito como homem que eu, ansiosamente, procurava, com força d’alma bastante para a obra formidavel do reerguimento do nosso Theatro, já lhe conhecia a inteligência por havel-a sentido, clara e firme, na cadeira da Escola Dramatica, que a sua proficiência illustra. O didacta assiduo e energico anunciava o administrador provecto, o ensaiador minucioso, o agitador d’almas que surgiu no palco levando dos originais dos nossos escriptores, não figuras de cordel, mas personalidades, e movendo-as com segurança de mestre a ponto de fazer de um corpo morto, qual era o nosso Theatro, uma vida que vibra. Já pelas suas mãos passaram 4 originaes brasileiros e todos tiveram a sorte que teve o barro nas mãos divinas. Os autores disseram-lhe palavras de justo louvor. Eu venho, por minha vez, agradecer-lhe o interesse e a dedicação com que galvanisou a peça da minha lavra escassa. Mas não é só como autor d’O dinheiro que aqui me tem agradecido, mas principalmente porque lhe devo a realização de um sonho. Estávamos á beira do jazigo do nosso Theatro contemplando-lhe o frio cadáver. Faltava-nos um homem ousado que lhe descesse ácrypta, levantasse nos braços o corpo inerte e nelle insuflasse alento e lhe reaccendesse os olhos, abrisse-lhe a voz, distendesse-lhe os nervos, definisse-lhe o sangue, e por fim, lhe bradasse o “Surge et ambula” do milagre. Foi o que fez o amigo merecendo a gloria grande dessa ressureição. Hosannah!
Devo um testemunho publico da minha gratidão aos interpretes do Dinheiro: a Maria Falcão e Ferreira de Souza; a Gabriella Montani e Antonio Ramos; a Luiza de Oliveira e João Barbosa; a Judith Saldanha e Carlos Abreu; a Martha de Sousa e Alvaro Costa; a Castello Branco e Antonio Sampaio e a Jayme Silva, que illustrou o meu trabalho. Estendo os meus agradecimentos aos demais da Companhia que, se não entraram na peça que alinhavei, muito fizeram pelo exito da minha ideia, defendendo-a galhardamente. A todos, reunindo-os no meu abraço, digo, muito do coração: obrigado! E ao meu amigo, cuja obra começa e só findará no dia em que tivermos definitivamente o Theatro para o nosso genio, que hei de dizer? As palavras do meu agradecimento dil-as-á o Tempo, cuja voz sôa eterna.
Amigo sincero e agradecido
Coelho Netto. (16/11/1912, ABL)
As cartas trocadas por Coelho Netto e os demais sujeitos, demonstram sua autoridade enquanto diretor de uma instituição escolar, mesmo que estas sejam informais, pessoais ou oficiais, pois dentre as incumbências do diretor, segundo os regulamentos da instituição, estavam: exercer a inspeção superior da escola providenciando sobre todos os assuntos que se referiam ao ensino e à disciplina bem como à escolha do corpo profissional da escola, como exemplificado em algumas missivas anteriormente citadas. No Arquivo Pessoal de Luís Murat, na Academia Brasileira de Letras, há uma carta de Coelho Netto pedindo a devolução de alguns livros para usar nas suas aulas na Escola Dramática e emprestar ao Miguel Couto para estudar o folclore amazônico.34
Lima (2010) assinala que, no campo das cartas, a relação contratual permite elucidar a respeito das contradições apresentadas nos textos de um determinado missivista, isto é, como um mesmo sujeito contém diferentes perfis identitários, pai, amigo, professor, diretor, literato, político, etc. No caso de Coelho Netto, devemos levar em conta que ao exercer seu papel de diretor, ele também atuava como deputado federal do Maranhão. Logo, na Câmara, ele poderia dar visibilidade aos assuntos de seu interesse, como o fez, de modo incessante ao discursar pela causa da cultura e da nacionalização do teatro brasileiro. Isto o legitimou para dirigir uma escola que pudesse formar atores para ocuparem os palcos do seu próprio país, ideal almejado também por Eduardo Victorino. Enquanto diretor, Coelho Netto conseguia conciliar as vantagens de um político pois, enquanto deputado, tinha o reconhecimento por ser um “homem das letras” atuando no magistério.
Ao atuar como diretor e também professor da Escola Dramática, Coelho Netto almejava educar atores para interpretar o povo e assim o moldar, segundo os padrões de sociedade que considerava como sendo ideais. A escola foi um desses meios que possibilitou pôr em prática o modelo educacional que considerava ser o mais adequado para se obter o progresso do país, civilizar para progredir.
Ao selar do envelope: a despedida
Amigo sincero e agradecido,
Coelho Netto.
(Carta a Eduardo Victorino, 16/11/1912, ABL)
Com o intuito de nos aproximarmos da função exercida por Coelho Netto, como diretor da Escola Dramática, que durou em torno de vinte anos, recorremos à correspondência desse intelectual, localizada em acervos presentes na cidade do Rio de Janeiro, como ABL e FBN. Entendendo que “escrever cartas exige tempo, reflexão e disciplina, pois é uma forma de compartilhar vivências mais pessoais, íntimas e até mundanas” (BASTOS, CUNHA e MIGNOT, 2002, p.5), aquelas aqui investigadas permitiram adentrar pelas demais facetas desse sujeito e privilegiar as de diretor e professor, especialmente quando esteve à frente da escola de teatro, período no qual exerceu concomitantemente outras atividades na cena cultural e política, tornando possível surpreendê-lo enquanto escrevia peças de teatro para adultos e crianças; como escritor preocupado com a disseminação da língua vernácula, com a divulgação e tradução de seus livros; e como deputado federal que discursava em nome das artes e da educação.
Enquanto escrevia e lia cartas, Coelho Netto atuava no magistério, na Câmara dos Deputados, na imprensa, assim como na direção da Escola Dramática, acompanhou o processo de escolarização do país, visto que depois de instaurada a República tornou-se necessário colocar em prática o projeto republicano de fundar escolas. Atuar em várias frentes, e, principalmente na direção de uma escola que formaria ‘almas’ para ensinar como o povo brasileiro deveria se comportar em sociedade era uma maneira de colocar em prática também, o que considerava ser o seu ideal de civilização, com base nos moldes europeus, principalmente aqueles advindos da França.
Entendendo que há uma diferença entre viver, narrar e guardar, as cartas, como qualquer documento, não trazem todo o vivido. Contêm fragmentos das experiências. Revelam e ocultam. Exigem um olhar atento para outros documentos que ajudem a interrogar os ditos e não ditos. Diferentemente do que por vezes se supõe, não trazem necessariamente segredos, mas permitem capturar, em meio às informações, confidências e desabafos, algumas dificuldades e estratégias em curso que sem elas poderiam ficar confinadas aos bastidores. Também nem todas as cartas escritas foram lidas. As lidas necessariamente não foram respondidas. As escritas, lidas e respondidas nem sempre foram guardadas.
Trabalhamos, portanto, com cartas guardadas por Coelho Netto que tornam possível acompanhar o início de sua longa permanência à frente da direção da Escola de Arte Dramática - a primeira escola brasileira para a formação do ator - nas quais se destacam as trocas com aqueles que, como ele, pertenciam à elite letrada. Aquelas aqui lidas e interpretadas não trazem explicitamente os nomes dos professores que nela atuaram, nem o currículo implantado. No entanto, os sujeitos presentes na correspondência de Coelho Netto e, através das linguagens utilizadas pelos mesmos nessas trocas de palavras, proporcionaram compreender a composição do corpo docente contratado para as cadeiras de Prosódia portuguesa e elementos da estética; Arte de dizer; Arte de representar e caracterização; História e Literatura dramática; Psicologia das paixões: expressão das emoções, mímica; Cenografia e perspectiva teatral, indumentária e tecnologia; Exercício de corpo livre, atitude e esgrima. O que se observou foi que algumas dessas disciplinas permaneceram ao longo dos anos na instituição, modificando apenas nomes e “absorvendo as transformações de novas técnicas de interpretação” (SEPÚLVEDA, s/d, p. 3).
Seguindo as redes de remetentes e destinatários, pode-se confirmar a interpretação já tecida em outros estudos de que seus esforços para definir o corpo docente da mesma, formado, em sua maioria, por “imortais” da Academia Brasileira de Letras, com exceção dos professores Cristiano de Souza e Eduardo Victorino que eram diretores de teatro, visavam dar visibilidade e “credibilidade à escola, atrair jovens de classe burguesa, cujas famílias, certamente, se sentiriam mais confiantes e seguras de ter seus filhos orientados por [professores] tão ilustres” (ANDRADE, 2014, p.190), organizando, deste modo o currículo da escola de acordo com o modelo de teatro que privilegiava. Coelho Netto estava convencido de que o trabalho desenvolvido na Escola Dramática era responsável por reverter a situação em que se encontrava a cena teatral brasileira: “Estávamos á beira do jazigo do nosso Theatro contemplando-lhe o frio cadáver”, como afirmou na carta anteriormente citada remetida a Eduardo Victorino, em 1912.
As cartas também silenciam. Neste caso, omitem nomes de alunos que passaram pela Escola Dramática, o que exigiu recorrer a outras fontes. Pelas salas de aula e pelos palcos daquela instituição de formação do ator, ao longo dos anos, passaram, por exemplo, Procópio Ferreira, Sadi Cabral e Tereza Rachel (SEPÚLVEDA, s/d), o que sugere que Coelho Netto atingiu seu objetivo de romper com a improvisação na cena teatral. Uma única carta guardada e localizada, sugere as dificuldades enfrentadas pela Escola Dramática com a direção do Teatro Municipal, o que persistiu visto que seu funcionamento não se manteve no espaço para o qual foi criada. No decorrer do tempo, sua localização se deu em outros estabelecimentos existentes até encontrar uma sede própria.
Ao concebermos tais cartas enquanto “lugares de sociabilidade”, podemos afirmar que Coelho Netto cultivava, através de sua escrita epistolar, um intercâmbio intelectual, pois é por meio destas que “as pessoas, mesmo distantes fisicamente, [poderiam] trocar idéias e afetos, construir projetos mútuos ou discutir planos opostos e estabelecer pactos ou polêmicas e organizar ações conjuntas” (VENANCIO, 2002. p. 223). Dirigidas às autoridades, aos políticos, aos imortais da Academia Brasileira de Letras, a professores interessados ou convidados a lecionar na escola, a prática de escrita de cartas em si mesma contribuía para a legitimação da Escola Dramática como a instituição de formação do ator. Enquanto informava, reivindicava, atendia ou negava pedidos, Coelho Netto também se legitimava como o defensor do ensino de teatro e do teatro brasileiro.